Uma das grandes novidades promovidas pela Emenda Constitucional 42, de 19 de dezembro de 2003, foi à criação do chamado princípio da anterioridade nonagesimal, também denominado, por alguns, como princípio da noventena. Trata-se, na verdade, de mais uma medida limitativa do Poder de Tributar do Estado.
Com o advento da Emenda Constitucional 42, responsável pela atual reforma tributária, o inciso III, do artigo 150, da Constituição Federal, recebeu o acréscimo da alínea “c”, e passou a estabelecer, agora, a vedação aos Estados, dentre outros entes públicos, de cobrar tributos “antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea ‘b” . Com isso, considerando-se, hipoteticamente, que um tributo venha a ser instituído por uma lei publicada em 1º de julho de 2004, ele só poderá ser exigido após o decurso de prazo de 90 dias, ou seja, a partir de 29 de setembro de 2004.
Contudo, essa norma não pode ser interpretada, nem tampouco aplicada, isoladamente. Nesse sentido, ante a plena vigência do antigo principio da anterioridade, a cobrança do Tributo deve respeitar os dois institutos. Sendo assim, se levarmos em conta a regra da anterioridade no mesmo exemplo, o tributo só poderá ser cobrado em 1º de janeiro de 2005. Exsurge do exposto que o novo princípio não teve qualquer influência no Poder de Tributar do Estado.
Por outro lado, se considerarmos a instituição de um novo tributo em 31 de dezembro de 2003 e aplicarmos, em concomitância, os dois institutos, verificaremos, com clareza, a sua real função. Neste caso, o tributo só poderá ser exigido a partir de 30 de março de 2004.
Da mesma forma que o princípio da anterioridade, o princípio da noventena estende-se para alcançar as normas majoradoras de tributos, seja através da previsão de aumento da alíquota, ou da base de cálculo.
O princípio da noventena não se confunde com o princípio da irretroatividade da lei. Este atinge todo o sistema normativo e, por via de conseqüência, o Direito Tributário, ao qual impõe a pré-existência da lei à ocorrência do fato gerador.
Não se identificam, tampouco, os princípios da noventena e da anualidade. Pelo princípio da anualidade a cobrança do tributo depende de autorização anual do Poder Legislativo, mediante previsão no orçamento. Dentro de um sistema que prevê esse princípio os representantes do povo, anualmente, examinam a proposta orçamentária do governo e, em face das despesas, autorizam a cobrança dos tributos indispensáveis ao respectivo atendimento. Não basta, pois, a instituição do tributo pela lei, sendo necessário o prévio conhecimento pelo povo das metas e atuação do governo.
Não há em nosso ordenamento jurídico, previsão expressa quanto ao princípio da anualidade. Para alguns autores, contudo, ele se encontrava consubstanciado na regra do artigo 62, da Constituição Federal de 1967, com a redação dada pela Emenda nº 1, de 1969. Essa Emenda Constitucional determinava a obrigatoriedade de previsão orçamentária de todas as receitas. Para outros, esse fator histórico é o argumento que sustenta a atual vigência implícita do princípio, mesmo após o advento da Constituição de 1988.
Seja como for, o princípio da noventena não pode ser aplicado isoladamente.
Uma questão que pode ser levantada com relação à Emenda Constitucional 42, criadora do novo princípio, diz respeito à data da sua entrada em vigor. Curiosamente, ao contrário das demais emendas constitucionais, ela não consta de seu teor.
Ter-se-ia, nesse caso, que respeitar a regra geral da Lei de Introdução do Código Civil, que estipula o prazo de 45 dias para entrada em vigor da lei que não o prevê expressamente?
Cremos que não. Isso porque apesar de ser a Lei de Introdução uma norma de sobredireito, e, por isso, atingir indiscriminadamente todo o ordenamento jurídico, a importância de uma norma de natureza constitucional impõe sua vigência imediata, após a publicação. É nesse sentido o entendimento de Oscar Tenório.[1]
Outra questão que se levanta é aquela referente ao alcance do princípio da noventena.
Teria ele incidência sobre todos os tributos?
Para que se possa responder essa questão temos que nos posicionar a respeito do conceito de tributo.
Para Constituição Federal (artigo 148) e para o Código Tributário Nacional (artigo 5º) o conceito de tributo abrange apenas os imposto, taxas e contribuições de melhoria.
Contudo, para o Supremo Tribunal Federal, tributo é gênero das espécies imposto, taxa, contribuições de melhoria, contribuições sociais e empréstimo compulsório. Considerando-se essa classificação e os termos da Emenda Constitucional 42, concluiremos que ela tem incidência nas cinco formas de tributos.[2]
Contudo, assim como o princípio da anterioridade, tem, o princípio da noventena, certas exceções.
A primeira delas se refere aos impostos de importação, exportação, sobre operações financeiras e sobre imposto extraordinário de guerra.
Outra exceção diz respeito aos empréstimos compulsórios destinados a atender as despesas extraordinárias decorrentes de calamidade pública, guerra externa ou sua iminência.
Também não são atingidas pelo novel princípio da noventena as contribuições sociais, que ficam sujeitas, todavia, à anterioridade de noventa dias, prevista não pela referida emenda, mas pela regra do artigo 195, parágrafo 6º, da Constituição Federal.
Por outro lado, apesar de se submeterem ao princípio da anterioridade, as leis referentes à fixação da base de cálculo do IPVA e do IPTU não precisam respeitar o princípio da noventena.
De outra banda, curiosamente, o Imposto sobre Renda e Proventos de Qualquer Natureza (IR) não se submete à Anterioridade Nonagesimal, ao contrário do Imposto sobre produtos industrializado (IPI), que não foi excepcionado.
Ainda sobre o tema da aplicabilidade do princípio da noventena, outra questão importante é aquela referente à sua incidência sobre normas instituidoras de valores referentes ao porte de remessa e retorno de autos processuais ao Juízo ad quem, e a taxa judiciária para interposição de recurso.
Essa questão tem real importância, principalmente no Estado de São Paulo, que, com o advento da Lei Estadual 11.608 de 29 de dezembro de 2003, passou a prever o pagamento de taxa e porte de remessa e retorno nos recursos de Agravo de Instrumento.
Numa visão apressada, e tomando-se em conta apenas a data da publicação da lei instituidora, poderíamos concluir pela aplicação do princípio da noventena, tanto com relação à taxa, quanto ao porte de remessa e retorno. Contudo, essa incidência não pode ser indiscriminada.
Com relação ao porte de remessa e retorno, o que se verifica da Lei Estadual 11.608, de 29 de dezembro de 2003, em seu artigo 2º, é que ele expressamente excluiu do conceito de taxa judiciária “as despesas com o porte de remessa e de retorno dos autos, no caso de recurso, cujo valor será estabelecido por ato do Conselho Superior da Magistratura”. E é por causa dessa expressa exclusão que se tem entendido que, neste caso, não incidem os princípios e normas de Direito Tributário.
Para alguns juristas, inclusive, o “porte” de remessa e retorno representa um mero custeio das despesas referentes a trânsito do processo dentro dos Tribunais ou entre as Varas e os Tribunais, não podendo ser classificado como taxa decorrente de “serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição”. Seria, na verdade, o simples pagamento pelo serviço de terceiro para transportar, até os Tribunais, os autos dos processos, não tendo como fato gerador “a prestação de serviços públicos de natureza forense, devida pelas partes ao Estado, nas ações de conhecimento, na execução, nas ações cautelares, nos procedimentos de jurisdição voluntária e nos recursos”.
Poderíamos então classificar o porte de remessa e retorno como preço público?
Respeitadas as posições dissonantes, acreditamos que não.
Muitos são os critérios utilizados pelos estudiosos do Direito para diferenciar taxa, tarifa e preço público. Contudo, um dos critérios que mais se sobreleva é o da compulsoriedade adotado, inclusive, pelo Supremo Tribunal Federal.
Dentro desse critério, a taxa decorre de serviço público de utilização compulsória e o preço público, por sua vez, representa a paga de um serviço público não compulsório.
Nesse sentido, o preço público englobaria tudo o que o Estado recebe do particular em contraprestação de algo a ele fornecido.
Já o preço público e a tarifa teriam como grande diferencial o ente prestador do serviço. No primeiro, o prestador seria a Administração Direta, e, no segundo, as empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos.
Ocorre que, ao tomarmos como critério a compulsoriedade do serviço, concluiremos que o porte de remessa e retorno não pode ser classificado como preço público. Isso porque, ao interpor um recurso de Agravo de Instrumento, não tem a parte a liberdade de transportar, ela mesma, os autos do processo, sendo obrigada a utilizar-se do serviço de transporte fornecido pelo Tribunal.
Por outro lado, tem-se entendido, com base no artigo 4º do Código Tributário Nacional, que a natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevante para qualificá-la, a denominação e demais características formais adotadas pela lei, ou, a destinação legal do produto da sua arrecadação.
Nesse sentido, considerando-se que o fato gerador do porte de remessa e retorno é a própria remessa dos autos para superior instância, após a interposição de um recurso, conclui-se que sua natureza é de taxa decorrente da utilização de um serviço público compulsório, específico e divisível.
Isso porque, repita-se, a natureza específica do tributo não depende da sua denominação, nem de qualquer outro aspecto formal, pouco importando se, ao invés de denominar taxa a lei ou ato normativo resolveu chamá-la de imposto ou preço público.
Sendo assim, apesar da expressa exclusão prevista pelo artigo 2º da Lei Estadual 11.608/2003, é de se concluir que o porte de remessa e retorno tem a mesma natureza das demais taxas judiciárias.
Mas se ambos tem a natureza de tributo, deve a referida Lei Estadual respeitar o princípio da anterioridade nonagesimal?
Cremos que não.
Não por causa da natureza jurídica do porte de remessa e retorno e das taxas judiciárias, mas sim em virtude da data de publicação da Emenda Constitucional e da Lei Estadual.
É que a primeira foi publicada no Diário Oficial da União em 31 de dezembro de 2003, e, a segunda, no Diário Oficial do Estado em 30 de dezembro de 2003, portanto, um dia antes.
Considerando, portanto, que o princípio da noventena só passou a valer a partir da primeira data e que, conforme a posição já citada de Oscar Tenório, a vigência da Emenda Constitucional só tem início com a publicação, fica a Lei Estadual 11.608/03 excluída do âmbito de incidência do princípio da noventena.
Informações Sobre o Autor
Evelise Paffetti
Sou Assistente Jurídico do Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo.