Sumário: 1. O conflito de entendimentos. 2. A remissão. 3. O não reconhecimento do art. 179 como uma fase ou etapa procedimental sine qua. 4. A impossibilidade do mp aplicar mse. 5. O direito fundamental à defesa e à audiência. 6. A defesa em um procedimento judicializado de remissão 7. Conclusões.
1. O conflito de entendimentos
Enquanto instrumento do Direito Penal Juvenil, a Remissão prevista no ECA tem sido fonte de divergências acerca da sua procedimentalização ou instrumentalização, que em verdade são decorrentes de sua compreensão unilinear, sem atenção quanto aos aspectos formativos ou integradores.
O conflito de entendimentos vem ocorrendo quando:
1º., diante da remessa ao MINISTÉRIO PÚBLICO, VIA CARTÓRIO JUDICIÁRIO, de autos de Investigação (seja contendo B.O.C., Auto de Apreensão em Flagrante de Ato Infracional, ou Relatório Policial), nos quais os infratores adolescentes tenham sido liberados ou entregues aos Genitores ou Responsáveis;
2º., o mesmo MINISTÉRIO PÚBLICO concede Remissão requerendo cumulativamente a sua Homologação e a Aplicação de Medida Sócio-Educativa, APÓS A OUVIDA JUDICIAL DO INFRATOR, quando não há utilização da fase do art. 179 do ECA, em razão da sua prescindibilidade;
3º. o próprio Juízo prolata DECISÃO manifestando o descabimento de tal OITIVA JUDICIAL, sustentando ser tal providência da alçada exclusiva do MINISTÉRIO PÚBLICO na forma do referido art. 179, sendo apenas “responsável” pela sua homologação e aplicação de medida.
Ora, se os aplicadores do Direito apresentam divergências na aplicação do instrumento do Direito Penal Juvenil, como fazer com que os destinatários da Remissão, os adolescentes infratores, compreendam seu sentido?
2. A remissão
Como mais um instituto inovador do ECA, a REMISSÃO consta inserida substantiva, funcional e materialmente nos dispositivos dos arts. 126 a 128, 148, II, 180, II, 181, 186, §1º., 188, 201, II, assim estabelecidos:
“Art. 126 – Antes de iniciado o procedimento judicial para apuração de ato infracional, o representante do Ministério Público poderá conceder a remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às circunstâncias e conseqüências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional.
Parágrafo único. Iniciado o procedimento, a concessão da remissão pela autoridade judiciária importará na suspensão ou extinção do processo.”
“Art. 127 – A remissão não implica necessariamente o reconhecimento ou comprovação da responsabilidade, nem prevalece para efeito de antecedentes, podendo incluir e eventualmente a aplicação de qualquer das medidas previstas em lei, exceto a colocação em regime de semiliberdade e a internação.”
“Art. 128 – A medida aplicada por força da remissão poderá ser revista judicialmente, a qualquer tempo, mediante pedido expresso do adolescente ou de seu representante legal, ou do Ministério Público.”
“Art. 148 – A Justiça da Infância e da Juventude é competente para:
II – conceder a remissão, como forma de suspensão ou extinção do processo;”
“Art. 180 – Adotadas as providências a que alude o artigo anterior, o representante do Ministério Público poderá:
II – conceder a remissão;”
“Art. 181 – Promovido o arquivamento dos autos ou concedida a remissão pelo representante do Ministério Público, mediante termo fundamentado, que conterá o resumo dos fatos, os autos serão conclusos à autoridade judiciária para homologação.
§ 1º – Homologado o arquivamento ou a remissão, a autoridade judiciária determinará, conforme o caso, o cumprimento da medida.
§ 2º – Discordando, a autoridade judiciária fará remessa dos autos ao Procurador-Geral de Justiça, mediante despacho fundamentado, e este oferecerá representação, designará outro membro do Ministério Público para apresentá-la, ou ratificará o arquivamento ou a remissão, que só então estará a autoridade judiciária obrigada a homologar.”
“Art. 186 – Comparecendo o adolescente, seus pais ou responsável, a autoridade judiciária procederá à oitiva dos mesmos, podendo solicitar opinião de profissional qualificado.
§ 1º – Se a autoridade judiciária entender adequada a remissão, ouvirá o representante do Ministério Público, proferindo decisão.”
“Art. 188 – A remissão, como forma de extinção ou suspensão do processo, poderá ser aplicada em qualquer fase do procedimento, antes da sentença.”
“Art. 201 – Compete ao Ministério Público:
I – conceder a remissão como forma de exclusão do processo;”
A partir dos conteúdos das primeiras disposições, ou seja dos textos dos arts. 126 a 128 do ECA, a Doutrina vem explicando a Remissão como:
“Define-se remissão como o perdão do ato infracional praticado por adolescente. (…)
É também a remissão, considerada transação e acordo. Embora tenha o perdão como resultado, ele é atingido através da transação, cuja popularização verificou-se através da Lei n. 9.099/95, no âmbito dos Juizados Especiais Criminais.”[1]
O objeto do presente estudo fica limitado aqui aos aspectos da Remissão concedida pelo Ministério Público, portanto como forma de exclusão do processo, quando há inclusão ou condição do cumprimento de medida(s) sócio-educativa(s) (v. as expressões sublinhadas nos dispositivos dos arts. 126 e 127 acima transcritos).
Isto porque na Remissão simples, ou seja, sem cumulação de medida, onde ocorre o puro e simples perdão do ato infracional, na hipótese de concordância pelo Órgão Judicante, dado o exaurimento que a homologação produz, ela não possui condicionantes ou pressupostos. Situação diversa acontece na Remissão Cumulada, dada sua natureza de transação, e seu aspecto procedimental conexo ao material.
3. O não reconhecimento do art. 179 como uma fase ou etapa procedimental sine qua
As interpretações do ECA já apontam de forma unânime que a oitiva informal prevista no art. 179 não constitui uma condição de procedibilidade para o ajuizamento da AÇÃO SÓCIO-EDUCATIVA através da representação. Também o referido art. 179 não representa etapa procedimental.
Neste sentido a Decisão do TJSP em Acórdão relatado pelo Desembargador Yussef Cahali:
“Torna-se temerária e até perigosa a afirmação de que a representação ofertada em face de adolescente tem como pressuposto ou mesmo condição de procedibilidade a oitiva informal deste. Essa exegese não deflui do Estatuto da Criança e do Adolescente. (…) A concessão de remissão pelo próprio Promotor de Justiça não está vinculada à inquirição prévia do adolescente, mas À análise que esse representante do Parquet fará dos fatos e do conjunto probatório como um todo, posto que ligado o perdão com exclusão do processo não a fórmulas preestabelecidas em lei, mas e tão somente à sua convicção.” Ap. 20.136-0,j. em 13.10.94.[2]
Da mesma forma, não há como condicionar o oferecimento da Remissão à prévia oitiva informal do infrator pelo MP. Pois, se pode representar sem tal condição, o que dizer de conceder Remissão sem tal providência, quando entender pela sua adequação ao caso. Qui potest plus, potest minus.
Todavia, o que não é possível é confundir o momento ou ocasião da concessão da Remissão pelo MP, não sujeita exclusivamente à oitiva informal do infrator, com a imprescindibilidade da oitiva do infrator, máxime em razão do seu direito de defesa.
4. A impossibilidade do MP aplicar MSE
A possibilidade de o MINISTÉRIO PÚBLICO aplicar diretamente a Medida Sócio-Educativa foi afastada pelo STJ através da sua súmula n. 108, a partir da qual ficou bem firmado:
“A aplicação de medidas sócio-educativas ao adolescente, pela prática de ato infracional, é da competência exclusiva do juiz”.
Ora, sendo assim, tal oitiva do infrator na fase do art. 179, além de dispensável, é também insuficiente, por si mesma, quando houver cumulação da Remissão com a necessidade de aplicação de Medida Sócio-Educativa.
É justamente por isso que é também inexistente a previsão da oitiva informal, do art. 179, do ECA, como rito processual intrínseco para concessão de Remissão em qualquer situação.
Aqui a integração judicial na Remissão começa a apresentar seu contorno fundamental, pois inexiste audiência processual sem a presidência de um Juiz.
O único momento para colheita da manifestação de vontade do infrator acerca da Remissão e das medidas requeridas com a sua concessão é diante do Juiz, Autoridade com competência para aferir as condições em que a aceitação desta remissão e das medidas propostas, dada a carga coativa e pedagógica.
Interessante ordenar a compreensão da Decisão Homologatória da Remissão Cumulada para a compreensão do seu momento anterior:
“Não é demais assinalar que a dita “HOMOLOGATÓRIA” é, sem sombra de dúvida, de natureza CONDENATÓRIA, embora, com aspectos singularíssimos, através da qual o Poder Judiciário APLICA a medida cumulada com a remissão. Daí porque, ao contrário de tantos e tantos expertos na matéria infracional, aqui se aplaude efusivamente a súmula referida – que, reitere-se, lida com atenção, NÃO exclui a possibilidade de o Ministério Público oferecer remissão cumulada com medida sócio-educativa e/ou protetiva.”[3]
5. O direito fundamental à defesa e à audiência
Além da cláusula geral do direito à defesa, art. 5º., LV, a Constituição entendeu por bem explicitar no art. 227, §3º., IV, “a”:
-“garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica.”
E por fim o ECA ainda disciplinou no art. 111,
“Art. 111. São asseguradas ao adolescente, entre outras, as seguintes garantias:
III- defesa técnica por advogado” (grifo nosso)”
Sobre a amplitude e o sentido do Direito à Defesa, é bem posta a divisão didática do ensinamento do Douto GILMAR MENDES FERREIA, hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal:
“As dúvidas porventura existentes na doutrina e na jurisprudência sobre a dimensão do direito de defesa foram afastadas de plano, sendo inequívoco que essa garantia contempla, no seu âmbito de proteção, todos os processos judiciais ou administrativos.(…)
Daí afirmar-se, correntemente, que a pretensão à tutela jurídica que corresponde exatamente à garantia consagrada no art. 5º., LV, da Constituição, contém os seguintes direitos:
-direito de informação (Recht auf Information), que obriga o órgão julgador a informar à parte contrária dos atos praticados no processo e sobre os elementos dele constantes;
-direito de manifestação (Recht auf Äusserung), que assegura ao defendente a possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e jurídicos constantes o processo;
-direito de ver seus argumentos considerados (Recht auf Berücksichtigung), que exige do julgador capacidade apreensão e isenção de ânimo (Aufnahmefähigkeit und Aufnahmebereitschaft) para contemplar as razões apresentadas”.[4]
Constitui um equívoco interpretar o art. 181, “caput” e seu § 1º, em contexto de isolamento, de tal modo que uma vez concedida a Remissão mediante termo fundamentado, o procedimento comportaria apenas à autoridade judiciária homologar ou não homologar …
Primeiro, porque o fato dos dispositivos não falarem em oitiva judicial do infrator, e mesmo com a oitiva informal pelo MP, art. 179, como já exposto acima, não é suficiente para fazê-la prescindível ou dispensável.
Segundo, porque na hipótese de Remissão clausulada, que contém requerimento de aplicação de Medida sócio-Educativa não privativa de liberdade (que não pode ser aplicada diretamente pelo MP, como também já explicitado acima), e por constituir espécie de “transação”, dada a natureza bilateral (como explica Valter Kenji Ishida[5] ), não há lugar para Decisão Condenatória sem oitiva do infrator.
E não há como restringir ao infrator direitos conferidos aos indivíduos criminosos ou não em geral, ou mesmo admitir que os primeiros possam renunciá-los.
Será possível admitir a natureza renunciável do direito e da garantia prevista no Estatuto em seu art. 111, V, do adolescente ser ouvido pessoalmente pela autoridade competente? Lógico que não.
Será que a “autoridade competente” é somente o Representante do Ministério Público? Da mesma forma a resposta também é negativa.
Além da impossibilidade de renúncia à direito fundamental, a oitiva do adolescente pela Autoridade Judiciária, antes da homologação da Remissão concedida, decorre da Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, por suas cláusulas da inafastabilidade da jurisdição, do Juiz Natural, e do devido processo legal, art. 5º. XXXV e LIII, LIV.
Da inafastabilidade ou reserva da jurisdição com seus consectários naturais resulta a impossibilidade da interpretação das disposições da Remissão no ECA a partir do seu molde de concepção através das disposições 11.1. e 14.1. das Regras das Nações Unidas para Administração da Justiça de Menores (Regras de Beijing), de 1985:
“11.1 Examinar-se-á a possibilidade, quando apropriada, de atender os jovens infratores sem recorrer às autoridades competentes, mencionadas na regra 14.1 adiante, para que os julguem oficialmente.
11.2 A polícia, o ministério público e outros organismos que se ocupem de jovens infratores terão a faculdade de arrolar tais casos sob sua jurisdição, sem necessidade de procedimentos formais, de acordo com critérios estabelecidos com esse propósito nos respectivos sistemas jurídicos e também em harmonia com os princípios contidos nas presentes regras.
14.1 Todo jovem infrator, cujo caso não tenha sido objeto de remissão (de acordo com a regra 11), será apresentado à autoridade competente (juizado, tribunal, junta, conselho), que decidirá de acordo com os princípios de um processo imparcial e justo.” [6]
Portanto, tal confusão entre a Remissão e seu procedimento, vem produzindo decisões em que a manifestação do consentimento do infrator e da Defesa são as únicas condições a serem consideradas, deixando de lado que ambas devem necessariamente ocorrer em Audiência perante uma Autoridade Judiciária Competente.
É neste sentido que se ressalta a incompletude da Jurisprudência e da Doutrina quando assinalam separadamente as exigências do consentimento do infrator e de Defesa técnica, deixando de lado a ocasião e a forma:
“APELAÇÃO CRIMINAL – ECA – Ato Infracional. Remissão. Inverificação do consentimento dos menores. Impossibilidade. Sentença imotivada. Infringência ao disposto no art. 93, IX, da Constituição Federal. Remissão e julgado que merecem ser anulados. Decisão Unânime.
Tendo a sentenciante discrepado das medidas sócio-educativas sugeridas pelo Parquet, forçoso se faz fundamentar as razões pelas quais optara pela aplicação de outra medida, máxime quando mais gravosa.” (TJSE, Câm. Crim., Acórdão n. 0392/2004, Rel. Des. Epaminondas Silva de Andrade Lima.)
“Embora esta exigência de defensor na audiência prévia com o Ministério Público não esteja expressamente prevista no ECA, decorre de uma interpretação sistêmica das garantias constitucionais asseguradas a todos.
Não é possível que se pretenda reviver nesta etapa pré-processual, porém decisiva, onde pode vir a ser concertado cumprimento de uma medida socioeducativa, um novo Juizado de Menores, sem possibilidade de defesa do adolescente, posto que evidentemente, frente ao Ministério Público estão os pais ou responsáveis do adolescente em flagrante desvantagem.
Visando à previsão legal expressa da presença de defensor nesta audiência já existe projeto de lei na Câmara dos Deputados, sendo que a proposta de Lei de Diretrizes Socioeducativas – LDSE contempla expressamente este caso em seu art. 12.” [7]
O Direito à defesa e a garantia do seu exercício somente podem ser concebidos enquanto inseridos em um procedimento.
6. A defesa em um procedimento judicializado de remissão
Somente é possível conceber o Direito à Defesa, enquanto Instrumento, em conexão com a Garantia de seu exercício. É portanto termo contextualizado, inserido num sistema.
A explicação recorrente na Filosofia Aristotélica, ajuda na compreensão:
“Das coisas que se dizem (twn legómenon), umas são feitas com conexão (symplokén), com liame, outras, sem qualquer espécie de correlação. A correlação está a indicar um estado posicional (Ele se encontra sentado), uma possessão (Ele porta uma caneta), uma ação (Ele escreve), e outras categorias mais. O que é importante frisar é o aspecto atributivo que já aparece nesta primeira distinção aristotélica, pois, das coisas que se dizem, muitas se dizem sem que se coloque em correlação dois ou mais termos no jogo frásico do discurso. A simples elocução de um vocábulo descontextualizado e isolado não é hábil a significar e formar uma symplokém; dizer-se “caneta”, dizer-se “homem”, dizer-se “sentado”, não permite que da locução se perceba logicamente um estado, uma possessão, uma ação ou qualquer outro atributo.”[8]
Vale também conferir no mesmo sentido o ensinamento de Régis Jolivet sobre a oposição entre a realidade substancial e acidental, no seu Curso de Filosofia.[9]
A relação entre o Direito à defesa e seu exercício é mútua, inseparável, de possível compartimentalização apenas acadêmica. Daí porque hodiernamente tal como na cláusula do devido processo legal é reconhecido aspecto material (substantive process), também são encontráveis aspectos processuais (procedural due process) nos direitos fundamentais:
“As Constituições e os direitos fundamentais, assim como a Teoria mais adequada ao seu estudo, possuem também dimensão processual, que talvez seja a mais importante, especialmente se os considerarmos de uma perspectiva menos idealista e, logo, mais realista. Com isso, quer-se introduzir uma distinção. Distinguir, como explica em sua filosofia lógico-matemática SPENCER BROWN, é fazer uma marcação que divide o objeto estudado em dois lados. Em um dos lados, no nosso caso, situa-se aquilo que há de processual nos direitos fundamentais, que são o seu aspecto garantístico, onde se tem direitos, de natureza processual, que são direitos, material ou formalmente. Fundamentais.”[10]
Num sistema de garantia de direitos, não há lugar para simulações ou aparências. Assim não é suficiente o simples ajuste de Remissão no Gabinete do MP, ainda com a chancela da Defesa Técnica (Advogado ou Defensor) do infrator, para simples homologação judicial posterior, porque ela careceria do vício da ausência de audiência e não produziria efeito algum.
No rito do procedimento da Remissão que o Direito à defesa deverá ser exercido e realizado contextualmente, dada a conexidade de ambos:
“Portanto, a cláusula due process of law só tem sentido e efetividade se a garantia do processo não for meramente formal, mas real, com uma série de regras assecuratórias da defesa e presidido por um juiz revestido das garantias pré-faladas. Assim, a ordem constitucional brasileira não tolera qualquer decisão que envolva a liberdade ou a propriedade dos indivíduos que não provenha de um processo regido por regras claras permissivas do exercício do direito à defesa e que haja passado sob o crivo de um magistrado independente.”[11]
Tomando como exemplo o instituto da Transação Penal, em cujo procedimento necessariamente ocorre a apresentação de Proposta de Aplicação Imediata de Pena em Audiência Preliminar presidida por Juiz togado, com a oitiva do Autor do crime de Pequeno Potencial Ofensivo, da sua Defesa Técnica, e Homologação Judicial, cf. art. 76, da Lei nº 9.099/95, em obediência à conexidade do rito com os Princípios Constitucionais Processuais do Contraditório, Ampla Defesa, e Devido Processo Legal, seria um contra-senso que os mesmos direitos e garantias previstos fossem negados aos infratores menores de 18 anos.
Tal como a Proposta para Transação (rectius, de Aplicação Imediata de Pena) não pode ser confundida com o conjunto de atos que resulta na Transação, cf. arts. 98, I, da Constituição Federal e 76, da Lei n. 9.099/95, o instituto da Remissão não pode ser confundido com o procedimento para aplicação da Remissão. Será possível imaginar que alguém possa ajustar um acordo ou transação com reflexo na restrição da própria liberdade, sem que a sua manifestação de vontade não seja recepcionada por Autoridade Judiciária natural?
Ainda que o Membro do MINISTÉRIO PÚBLICO ajustasse a Remissão com o infrator e seu representante no gabinete, seja quando da oitiva informal ou outro “momento pré-processual”, tais manifestações de vontade não deixam de prescindir a necessidade de possibilitar formalmente à defesa a oportunidade de manifestação, ainda que seja para aquiescer em “momento processual” onde aquela vontade inicialmente manifestada possa ser objeto de aferição pela autoridade judiciária com os atributos necessários (imparcialidade e competência, etc.), ou seja, ouvida em audiência e aferida sua regularidade, inclusive quanto à efetividade da própria defesa.
E a concepção de ROBERT ALEXY acerca de procedimento nos auxilia no entendimento da aplicação da Remissão Convencionada com Medida Sócio-Educativa examinada:
“Los procedimientos son sistemas de reglas y/o princípios para la obtención de um resultado. Si el resultado es logrado respetando las reglas y o los princípios, entonces, desde al aspecto procedimental presenta uma característica positiva. Si no es obtenido de esta manera, entonces es defectuoso desde el punto de vista procedimental y, por ello, tiene una característica negativa. Este concepto amplio de procedimiento abarca todo lo que cae bajo la fórmula “realización y aseguramiento de los derechos fundamentales a través de la organización y el procedimiento.” Así, no obstante notorias diferencias, las normas del derecho contractual y procesal definen igualmente procedimientos: las primeras estabelecen cómo puede crearse uma obligación contractual; las segundas, cómo puede crearse um fallo.” (…)
Los Derechos a procedimientos judiciales y administrativos son esencialmente derechos a uma “proteción jurídica efectiva”.[12]
A compreensão das exigências operacionais do Sistema de Garantias de Direitos vai um pouco além da sinalizada pela Dogmática atual para que os operadores do Direito prestem a devida atenção, mas sem risco da ruptura ‘completa’ daqueles pilares fundamentais:
“Transportando esses princípios para o Estatuto da Criança e do Adolescente sem outras citações, eis que não se busca, aqui, esgotar a matéria; fica inafastável a conclusão de que nenhuma medida sócio-educativa poderá ser aplicada a adolescente infrator sem que seja respeitado o devido processo legal. Assegurando-se, ao menor ampla defesa e direito ao contraditório”.[13]
“Importante salientar, por fim, que não há óbice em que o Juiz, exercendo seu poder de cautela, designe audiência para que as partes ratifiquem ou retifiquem o acordo submetido a homologação e que o controle da execução da medida aplicada por força da transação será realizado, sempre, pelo Juiz com intervenção necessária do representante do Ministério Público. (…) 4) O Juiz poderá ainda, tendo por inspiração a Lei 9.099/95, designar audiência para que as partes ratifiquem ou retifiquem o acordo submetido à homologação.”[14]
Embora a Jurisprudência recente já sinalize indicando a audiência processual na Remissão como algo além do mero bom senso:
correição PARCIAL. ECA. PEDIDO DE homologação DE remissão QUE INCLUI MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE prestação DE serviços A COMUNIDADE. designação DE audiência, PELO MAGISTRADO, PARA OITIVA DO ADOLESCENTE E DO responsável, ACOMPANHADOS DE DEFENSOR. POSSIBILIDADE. EMBORA CAIBA AO ministério PUBLICO CONCEDER remissão AO ADOLESCENTE, EM FASE PRE-PROCESSUAL, ISSO não SIGNIFICA QUE A LEI também LHE PERMITA A imposição DE MEDIDA SOCIOEDUCATIVA, CUJA aplicação RESERVOU AO PODER JURISDICIONAL ESPECIFICADO NOS ARTIGOS 146 E 148, I, DA LEI 8.069/90. DAI, NO mínimo, O CABIMENTO DA designação, PELO MAGISTRADO, DE audiência PARA OITIVA DE MENOR E DE SEU REPRESENTANTE LEGAL, A FIM DE ASSEGURAR O PRINCIPIO CONSTITUCIONAL DA AMPLA DEFESA. aplicação DA SUMULA 108, DO STJ. JULGARAM IMPROCEDENTE. (25 FLS – D) SEGREDO DE justiça (OUTROS FEITOS Nº 70004415477, QUINTO GRUPO DE CÂMARAS CÍVEIS, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS, JULGADO EM 13/12/2002). [15]
7. Conclusões
É de fundamental importância dissociar a Remissão do seu procedimento, com a exigência de atendimento de todos os direitos fundamentais pertinentes: manifestação do infrator, presença de defesa técnica, e exercício desta defesa em audiência presidida por Juiz Natural.
Sem isto, a Remissão Cumulada padece de grave e incontornável vício invalidante.
Face ao que consta acima e apenas para suscitar formalização de entendimento prático com respeito ao Sistema Jurídico Constitucional, sem prejuízo das anteriores e de novas reflexões:
A) A Remissão possui aspectos substancial e procedimental inserido num Sistema de Garantia de Direitos;
B) A Remissão clausulada ou cumulada com Medida Sócio-Educativa importa carga coativa e pedagógica, além de pressupor ajuste ou transação;
C) A Remissão no aspecto procedimental comporta necessária observância ao devido processo legal, material e processual, a ser efetivado perante o Juiz Natural, em rito com possibilidade do Direito de Defesa Técnica e seu Exercício;
D) A Remissão não prescinde de formalização em audiência perante a Autoridade Judiciária com os predicamentos pertinentes.
Informações Sobre o Autor
Silvio Roberto Matos Euzébio
Promotor de justiça titular da 2ª. Curadoria da infância e adolescente de Aracaju/SE; Pós-graduado como especialista em direito constitucional pela UFS; ex-juiz de direito.