A grande relevância repaginada do princípio da autonomia privada no direito contratual brasileiro permite que esse seja apontado com um dos principais paradigmas do Direito Civil contemporâneo. E é exatamente por essa razão tal paradigma deve ser repensado e redimensionado.
O conceito surgiu a partir das concepções liberais que especialmente se desenvolveram nos séculos XIX e XX, principalmente em função do prestígio que ganhou a liberdade inserida nos textos constitucionais dos chamados países democráticos.
Na verdade foi a autonomia da vontade uma grande força propulsora das relações negociais e sofreu evolução conforme ensina Francisco Amaral influência dos glosadores, da escola do direito natural, da teoria do contrato social de Rousseau e de Kant que informava que a partir da autonomia da vontade adquire conotação dogmática, passando a ser imperativo categórico da ordem moral.
Justificava-se amplamente, nesse tempo, o rigor excessivo sobre o pacta sunt servanda, quer dizer, os pactos devem ser respeitados. Concebendo o contrato como instrumento jurídico vinculativo, criada pela vontade das partes e por isso mesmo, ato de força obrigatória.
A liberdade de contratar é a faculdade de se criar sem constrangimento, um pacto que concluído, nega a cada uma das partes a possibilidade de se afastar unilateralmente dele. Até por que o pacto nascia de duas vontades convergentes e livres.
A razão da vinculação do pacto está que a promessa livremente aceita gera expectativas fundadas. Portanto, o acordo realiza fins dignos de tutela de direito. A autodeterminação das partes gera a vinculação recíproca que não viola o princípio da autonomia privada.
A partir do incremento capitalista da metade do século XX bem como com o surgimento dos chamados direitos de segunda e terceira geração ou dimensão[1], observou-se progressiva preocupação legislativa na proteção dos vulneráveis nas relações negociais, como trabalhadores, consumidores e hipossuficientes em geral.
Ao lado da sociedade de consumo de massa surgiu a estandardização contratual, passou a liberdade contratual passou a contar com limitações de caráter protetivo, e o dirigismo contratual e com a intervenção estatal e da lei cada vez maior nas relações negociais.
E justifica-se a intervenção do Estado culmina com a adoção do princípio da função social dos contratos[2], que é regramento aplicável tanto aos contratos de consumo como aos contratos civis. A função social do contrato inaugura então uma nova vertente: o Estado Social.
A autonomia privada confirma-se como fundamento das relações negociais inserido em contratos, no direito de família e no direito das coisas. Darcy Bessone lecionava mesmo antes da vigência do CDC e do CC de 2002 a vedação a lesão, possibilidade de revisão contratual por fato superveniente, vedação do enriquecimento sem causa e o abuso do direito e consagra que a evolução principiológica consagra os princípios da função social dos contratos e da boa-fé objetiva.
O conceito da autonomia privada e sua óbvia importância no atual direito contratual terão que ser dimensionados a partir da Constitucional Federal de 1988 e particularmente e a tendência de se privilegiar as normas fundamentais que protege a dignidade da pessoa humana e que possuem aplicação nas relações privadas, perfazendo a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, o que justifica sua aplicação nas relações entre particulares, entre iguais. O que rompe com a concepção original de eficácia vertical, imposta pela lei, pelo Estado.
A importância salutar da autonomia privada é essência para a teoria geral do negócio jurídico e para conservação negocial, e as atuais limitações à autonomia previstas seja pelo CDC ou pelo CC de 2002 seguem a finalidade de demonstrar a abertura do regramento do direito civil brasileiro contemporâneo escapando das linhas privatísticas tradicionais.
Situa-se o contrato no âmbito dos direitos pessoais obrigacionais, que veicula inegável importância da expressão da vontade humana, mais particularmente da vontade jurígena. Percebe-se que o negócio jurídico constitui verdadeiro instrumento da liberdade humana tendo sua origem na vontade.
É a declaração de vontade[3] que constitui o elemento central e mais característico do negócio jurídico, sendo o seu estudo comum às declarações que afetam a relação negocial.
O domínio da vontade dos contratantes foi conquista advinda de um lento processo histórico, culminando com respeito à palavra dada, principal herança dos contratos romanos de cunho ritualístico e cerimonial.
Inicialmente, percebe-se plena liberdade para celebração de pactos e avenças, reconhecendo-se o direito à contratação como valor inerente à própria pessoa humana, um direito de personalidade advindo do princípio da liberdade. Por outro lado, a liberdade de contratar corresponde à escolha da pessoa ou das pessoas com quem o negócio será celebrado. Mas, num outro plano ainda, esta face da autonomia da vontade humana, dirigida à celebração dos contratos, pode estar relacionada com o conteúdo do negócio jurídico, onde estarão fixadas as limitações ainda mais severas à liberdade da pessoa humana, surge então o conceito da liberdade contratual.
A liberdade de contratar comum a todos os indivíduos sem preocupação, a priori, com o conteúdo negocial, se revela assim em conceito de plena liberdade que cada um tem de realizar contratos, ou de não os realizar, conforme sua exclusiva vontade.
A liberdade de contratar é em princípio ilimitada, levando-se em conta a autonomia privada daqueles que pretendem contratar enquanto a liberdade contratual pode ser limitada, principalmente por força de normas de ordem pública.
Atinente à essa diferença o art. 425 do CC de 2002 expressa a possibilidade de celebrar contratos atípicos, isto é, aqueles que apesar de estarem legalmente previstos, mas que são lícitos plenamente.
Expressiva parte da doutrina pátria e da estrangeira propõe a substituição do antigo princípio da autonomia da vontade pelo princípio da autonomia privada, pois seria consentânea com a revisão sofrida pelo liberalismo econômico, sobretudo, as concepções individualistas e voluntaristas de negócio jurídico que se passou a cogitar em autonomia privada.
De fato, se a antiga autonomia da vontade com o conteúdo que lhe era atribuído já era alvo de críticas, a atual autonomia privada é noção mais sólida e temperada.
Foi Enzo Roppo um dos autores que melhor prescreveu sobre os elementos que formam o contrato, e referindo-se ao Código Civil Italiano aduz: “a autonomia e a liberdade dos sujeitos privados em relação à escolha do tipo contratual, embora afirma em linha de princípio pelo art. 1322º e 2 do CC, estão na realidade, bem longe de ser tomadas como absolutas, encontrando pelo contrário, limites não descuráveis no sistema de direito positivo.”
Assim o renomado doutrinado italiano reconhece explicitamente restrições à liberdade de contratar ou não o contrato, e tais restrições podem ser de caráter subjetivo, pois se referem particularmente aos sujeitos de direito com quem as avenças são celebradas.
Mas as principais limitações a liberdade de contratar gravitam no conteúdo dos pactos, daí ser curial entender o significado da chamada eficácia interna da função social dos contratos entre os contratantes.
A repersonalização do direito privado[4] e da valorização da dignidade da pessoa humana como centro do direito privado, o conceito de autonomia privada é mais adequado que a autonomia da vontade. Visto que não é da vontade, e sim da pessoa.
Assim brilhantemente expões Francisco Amaral quando aponta que autonomia privada é poder que os particulares possuem para regular, através do exercício de sua própria vontade,, as relações de que participam, estabelecendo-lhe o conteúdo e a respectiva disciplina jurídica.
Não seria sinônimo da autonomia da vontade posto que esta tem conotação mais subjetiva, psicológica ao passo que a autonomia privada marca o poder de vontade jurígena de modo objetivo, concreto e real. E, ouso acrescentar, finalístico.
A vontade, por si mesma, perdeu o destaque e a eloqüência que exercia no passado relativamente à formação dos contratos e dos negócios jurídicos. E, são variados fatores que entraram em cena para a concretização da crise instaurada nas relações pessoais, o que acarreta em mudança estrutural nas relações negociais, sendo certo que deve ser analisado o contrato pelo que representa para o meio social.
Sem dúvida, corresponde a autonomia privada a um dos principais fundamentos do direito privado, tratando-se de projeção de direito personalíssimo, ético, axiológico da pessoa tratada como centro e destinatário principal da ordem jurídica privada, sem o que apesar da pessoa humana estar formalmente revestida de titularidade de direitos e jurídica, nada mais seria do que mero instrumento a serviço da sociedade, perdendo sua primacial qualidade de sujeito de direito. E, disputando lugar ao lado dos objetos de direito.
Inicialmente cravamos o campo de incidência da autonomia privada na seara patrimonial, no qual também se situam os contratos, mas não se pode esquecer que também exerce influencia importante no direito existencial, como no direito de família. Assim a autonomia privada traz nítidas limitações principalmente quanto à formação e reconhecimento de validade dos negócios jurídicos. (sendo a função social do contrato[5] também apontada como uma dessas limitações, mas acredito ser vetor para releitura conceitual dos contratos e da autonomia privada).
A essência a autonomia privada reside na identidade entre sujeito do negócio e sujeito do interesse regulado, ou na coincidência imediata entre interesse regulado e poder regulador. Por essa razão, o princípio da autonomia privada pode ser conceituado como regramento basilar da ordem particular mas certamente influenciado pela norma de ordem pública, pela qual a formação dos contratos, além de depender da vontade das partes, também reputa atenção a outros fatores como psicológicos, políticos, econômicos e sociais.
É direito indeclinável do contratante de auto-regulamentar seus interesses, decorrente de sua própria dignidade humana, mas que encontra limitações em normas de ordem pública , particularmente nos princípios sociais contratuais.
Por vezes, é preciso defender a pessoa de sua própria torpeza e ignorância, no sentido de não estimular aos espertalhões o enriquecimento ilícito, o locupletamento indevido e outras formas fraudulentas de aferir vantagens nas relações negociais.
Salutar recordar que o Enunciado 23 do CJF aponta que a função social do contrato não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua o alcance desse princípio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana. É interessante exemplo da eficácia interna da função social do contrato em prol da valorização da dignidade humana.
Larenz aponta concretamente que a autonomia privada é a possibilidade, oferecida e assegurada aos particulares, de regularem suas relações mútuas dentro de determinados limites, por meio de negócios jurídicos, em especial mediante contratos. É o poder auto-regulamentação dos próprios interesses e relações, exercida pelo próprio titular deles, de que cogita Betti, a ser exercido dentro dos limites e com as finalidades assinaladas pela função social do contrato.
É poder de auto-regulamentar seis próprios interesses, é o autogoverno de sua esfera jurídica e tem com matriz a concepção do ser humano com agente moral, dotado de razão e discernimento, capaz de decidir e prover escolhas, desde que estas não perturbem os direitos de terceiros e nem violem outros valores relevantes da comunidade.
A substituição do princípio da autonomia da vontade pela autonomia privada traz em seu bojo a relativização do princípio da força obrigatória dos contratos [6]como um dos principais aspectos da eficácia interna da função social dos contratos, o que nos dá a nova dimensão em que se encontra a contratação privada.
A grande interação que existe entre o direito civil e a Constituição Brasileira vigente traz como tendência definitiva a valorização da pessoa humana, e produz as cláusulas gerais (mecanismos de eficácia horizontal) contidas na codificação civil, como a boa-fé objetiva e a função social do contrato e que deverão ser preenchidas, conforme o caso concreto e de acordo com os valores, regras e princípios constitucionais.
Mas igualmente jaz a valorização constitucional da autonomia privada já que a liberdade é valor previsto e assegurado pela Magna Carta, e em seu art. 3º, inciso I reconhece como um dos objetivos da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade[7] livre, justa e solidária.
Novamente a valorização da liberdade surge no art. 5º caput da CF de 1988 que garante o direito à liberdade como direito fundamental, e em complemento, o inciso II, do mesmo dispositivo prevê que: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, e adiante, o inciso XVII assegura ainda o direito à associação para fins lícitos, sem falar, na livre concorrência como um dos princípios gerais da atividade econômica (art. 170, inciso IV da CF).
Mas mesmo enquanto valor constitucional, também a liberdade encontra limitação em razão de outros valores e princípios constitucionais, como é o caso do princípio que protege a dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, inciso II do mesmo diploma legal.
Há célebre caso da jurisprudência francesa envolvendo a prática de arremesso de anão, à guisa de espetáculo em uma casa noturna. Quando então o prefeito local decidiu impedir aquele bizarro gênero de divertimento público que consistia em lançar um anão sobre um colchão pneumático, a fundamentação baseava-se no respeito à dignidade da pessoa humana que conflitou com a liberdade do anão, que se declara então satisfeito por trabalhar e para o qual a interdição promovida atentava contra a sua dignidade, tornando-o um excluído.
Na verdade, o referido Conselho de Estado francês, no caso do lançamento de anão, pretendeu moralizar o indivíduo, mesmo contra a sua vontade, restringindo a sua atividade privada, sendo que, a priori, não o fez em face ou em prol da dignidade humana, mas ao contrário, colocou o atributo da dignidade humana em situação de correlação com o atributo da liberdade, o que não poderia in casu, ser possível, por se tratar de paradigmas distintos.
Não se conjugava prioritariamente o atributo da liberdade do anão de trabalhar e consentir ser lançado, pois se a liberdade é a essência dos direitos do homem, a dignidade é a essência da Humanidade. O respeito à dignidade humana, por ser conceito absoluto, não conceberia acomodar-se a qualquer concessão em função de apreciações subjetivas que cada um possa ter a seu próprio respeito…
Daí, ser irrelevante o consentimento do anão ao tratamento degradante ao qual se submetia , posto que não poderia renunciar à dignidade, e porque uma pessoa pode excluir de si mesma, a humanidade. Seja este anão, acéfalo, em estado vegetativo, ativo ou latente.
O Tribunal de Versalhes, fulcrou entendimento de que o respeito à dignidade da pessoa humana é um dos componentes da noção de ordem pública, e que a autoridade investida do poder de polícia municipal pode, mesmo na ausência de circunstâncias locais específicas, interditar um espetáculo atentatório à dignidade da pessoa humana.
Apesar de ser antiga a decisão francesa, mantém relação direta com o Enunciado 23 do CJF segundo o qual a liberdade contratual deve ser atenuada quando estiverem presentes interesses individuais relativos à dignidade humana, o que, em última palavra, corresponde à eficácia interna da função social do contrato em prol dos direitos da personalidade.
O que dizer então, dos contratos que envolvem os realities shows e que expõem escatologicamente os seres humanos diante de várias câmaras desde mais inocentes poses, até as mais cruéis quando são submetidos a provas degradantes dentro de catres caninos, por horas a fio, a fim de galgarem alguma vantagem num jogo… Acirrando-lhes os ânimos tal qual ratos em laboratório…
Num âmbito maior e mais profundo é possível a reflexão hermenêutica sobre o denominado conflito de princípios como aborda Robert Alexy registrando que ocorrendo colisão de princípios como a liberdade e a dignidade humana, um deles deve recuar, sem que, no entanto, o princípio preterido seja atacado de invalidade, uma vez que, na hipótese concreta, o que aplicou foi apenas uma ponderação de pesos dados aos princípios, fazendo que um deles, ou apenas um deles, preponderasse, afastando o outro.
No âmbito mais restrito, o negocial, a reflexão tem viés mais prático, e considerando-se a eventual colisão de princípios[8], como o da liberdade (contida fundamentalmente na autonomia privada) daqueles que negociam, e o princípio da função social (do qual decorrem normas cogentes para assegurá-lo), que determina restrições a essa mesma liberdade, no âmbito contratual.
Superada a ponderação entre a liberdade e a função social, passa-se analisar o conteúdo das normas que limitam a autonomia privada e suas repercussões práticas. As normas restritivas da autonomia privada constituem exceção e não admitem analogia ou interpretação extensiva, justamente diante da tão mencionada valorização da liberdade.
Sinaliza o art. 496 do CC que é anulável venda de ascendente para descendente, não havendo autorização dos demais descendentes e do cônjuge do alienante. Tal dispositivo também é aplicável a hipoteca, direito real de garantia sobre coisa alheia? A resposta é negativa, pois caso contrário, estar-se-ia aplicando o citado artigo por analogia, a uma determinada situação não alcançada pela subsunção da norma jurídica.
Porém, eventualmente se admite que norma restritiva da autonomia privada pode admitir a interpretação extensiva ou a analogia, visando proteger a parte mais vulnerável da relação negocial, tal como o trabalhador, o consumidor ou do aderente.
Para reforçar tal constatação, é relevante lembrar-se da proteção constitucional dos vulneráveis, particularmente, os trabalhadores( art. 7º.) e dos consumidores( art. 5º., inciso XXXII). E, em relação aos aderentes, a proteção resta consagrada nos arts. 423 e 424 do CC de 2002, onde pode ser invocado o princípio da especialidade, segunda parte da isonomia constitucional.
Na célebre “Oração aos moços” o princípio da isonomia tem sentido de que a lei deve tratar de maneira igual os iguais, e de maneira desigual os desiguais, na medida de suas desigualdades.[9]
Daí, é fácil constatar que em alguns casos de contratação, existe bem mais que mera autonomia privada, e sim realmente verdadeira necessidade de contratara, devendo então a norma restritiva também ser guiada para proteger a pessoa que tem necessidade em todas as fases do negócio. E, seguindo a tese do patrimônio mínimo, podemos citar os contratos de plano de saúde e aqueles firmados para aquisição de casa própria, já que moradia e a saúde são reconhecidamente protegidas pela Constituição como direitos sociais. O que impõe uma interpretação diferenciada das demais contratações.
Negócio jurídico é o principal meio de funcionamento da autonomia privada e segundo Pontes de Miranda, há três planos a serem analisados: o plano de existência, o plano de validade e o plano de eficácia. O plano de existência sempre trouxe dúvidas metodológicas, que foram acentuadas com a vigência do C.C. de 2002, posto que não trouxe tratamento específico quanto a esse plano, a fim de dirimir as controvérsias.
Já o art. 104 do CC refere-se diretamente no plano da validade e, ainda o art. 2.035, caput do mesmo diploma legal que também somente faz referência à validade e à eficácia.
Então, constatamos que não existe qualquer regulamentação no C.C. quanto à inexistência do negócio jurídico, particularmente quanto às suas hipóteses e seus efeitos bem como procedimentos relativos.
Assim com base na concepção ponteana para se galgar a perfeição e a completude do negócio jurídico, deve-se pensar que, em regra, para que possa gerar os seus efeitos, é necessário, que primeiro, se pressuponha sua existência e que se verifique a sua validade. E, ipso facto, saber-se-á se estará apto à produção de seus efeitos. E, aí estão os três indispensáveis planos ao exame completo de qualquer negócio jurídico.
No entanto, tal regra pode ser quebrada, pois um negócio poderá ser existente, porém inválido, mas pode estar gerando efeitos jurídicos. A título de exemplo, um contrato anulável pela lesão (art. 157 do CC) antes de ser proposta a ação anulatória. Sem prejuízo disso, é preciso lembrar que, não sendo proposta a ação de anulação, dentro do prazo decadencial de quatro anos, o negócio é convalidado pelo tempo. Passando, a ser, portanto, um negócio existente, válido e eficaz.
A anulabilidade de um negócio depende de ação específica conforme pode ser retirado do art. 177 do atual CC e não tem efeito antes de julgada por sentença e nem se pronuncia de ofício, somente os interessados a podem alegar e se aproveita exclusivamente aos que a alegarem, salvo o caso de solidariedade ou indivisibilidade.
Contrato é negócio jurídico pelo menos bilateral, e conceito derivado da clássica doutrina, embora continuemos a ter um Código Civil que continua a não conceituar exatamente o contrato, diferentemente do que fez o Código Civil Italiano de 1942 no seu art. 1.321 , in verbis: “é acordo de duas ou mais partes para constituir, regular ou extinguir entre elas uma relação jurídica patrimonial”.
Sem dúvida, há uma nova dimensão conceitual de contrato, considerando os valores existenciais atinentes à proteção da pessoa humana. Paulo Nalin conceitua contrato de forma mais contemporânea: “relação jurídica subjetiva, nucleada pela solidariedade constitucional destinada a produção de efeitos jurídicos existenciais e patrimoniais, não só entre os particulares, os titulares subjetivos da relação, como também perante terceiros.”
Portanto, o perfil contemporâneo de contrato está amparado em valores constitucionais, a eficácia externa da função social e a situação existencial dos contratantes. O contrato, portanto é um instituto jurídico em terceira dimensão (3D).
Existem nítidas limitações à autonomia privada na parte geral do Código Civil Brasileiro vigente e as mais notórias limitações estão relacionadas com vícios ou defeitos do negócio jurídico do negócio jurídico. O erro ( arts. 138 a 144), o dolo ( arts. 145 a 150), a coação ( arts. 151 a 155), o estado de perigo( art. 156) e a lesão (art. 157) sendo os dois últimos novidades trazidas pela atual codificação.
Há ainda dois outros vícios que podem igualmente afetar o negócio jurídico que são denominados vícios sociais: a fraude contra credores (arts. 158 ao 165) e a simulação ( art. 167) e que atingem a validade e também por conseguinte, a sua eficácia.
Frise-se que havendo erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão e fraude contra credores o negócio jurídico é anulável. Enquanto que havendo simulação, em qualquer uma das modalidades, o negócio jurídico é nulo.
Ressalte-se que quanto à revisão contratual específica no caso de lesão, não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito. É a prevalência do princípio da conservação do contrato, que busca a preservação da autonomia privada. Porém, há entendimento de que a regra seria a revisão do negócio e do contrato e não a sua anulação.
É possível que o prejudicado promova ação requerendo diretamente a revisão, e não a anulação negocial diante da lesão. Merece atenção o entendimento de aplicação desse dispositivo para outros vícios do negócio jurídico. Isso se deve porque a conservação do contrato, da autonomia privada, mantém a relação com a valorização de sua função social.
Deve-se compreender que essa relação que existe entre a autonomia privada e o negócio jurídico, como perpetuadora de relações negociais vem a valorizar a liberdade de contratual e a função social do contrato.Admite-se a revisão, pois se a autonomia privada quando defeituosamente realizada.
Merecem atenção as limitações à autonomia privada no CDC, principalmente em face dos contratos de consumo, onde identificamos o dirigismo contratual, e com a concepção do Estado Social que veio a substituir o oitocentista Estado Liberal, tendo como principal parâmetro de proteção a parte mais vulnerável da relação contratual.
A Lei 8.078/90 veio implementar uma revolução no conceito de contrato, principalmente por sua concepção social e uma tentativa de análise do contrato de acordo com o meio que o cerca, assim, o CDC adotou implicitamente o princípio da função social dos contratos.
Frise-se que se trata de um Código protetivo impondo claras limitações à autonomia privada, justamente em prol dos interesses dos consumidores, e de forma indireta, propugna também no interesse de toda a coletividade.
Note-se que já existe a limitação prevista no art. 46 pelo qual não haverá vinculação de cláusulas que o consumidor desconheça ou aquelas de conteúdo incompreensível. A boa-fé objetiva é prestigiada de forma evidente, e pela exigência de conduta de lealdade e probidade das partes contratantes, principalmente relacionada com o dever de informação. Essa boa-fé conduta é mais valorizada ainda no art. 4º, inciso III do CDC.
A quebra do dever de informação gera a não vinculação da cláusula, ou seja, a não aplicação da clássica regra do pacta sunt servanda. Apesar de não ser tendente a reconhecer ineficácia da cláusula, nos parece ser caso de invalidade, ou seja, de nulidade absoluta da cláusula, por ser abusiva. Mas, não afeta o contrato em sua totalidade.
A maior restrição à autonomia privada no CDC ainda pode ser percebida em seu art. 51 que institui rol apertus clausus (entendimento majoritário na doutrina), embora haja quem entenda que se trata de rol fechado e, portanto, numerus clausus.
Não coaduna com espírito do CDC em proteger o consumidor por ser a parte mais frágil na relação negocial termos um rol limitado e fechado. Assim é comum que a Secretaria de Direito Econômico, órgão do Ministério da Justiça edite portarias[10] sempre aduzindo novas cláusulas abusivas, vindo à aplicação do art. 51 do CDC.
Mais ainda diante da configuração da cláusula abusiva é relevante perceber a significância do princípio da conservação do contrato, esculpido no art. 51, §2º da Lei 8.078/90, imputando a possibilidade de revisão do negócio jurídico, o que corre favoravelmente à sua conservação, corrigindo também a autonomia privada.
Lembremos que o CDC admite explicitamente a revisão contratual por simples onerosidade excessiva, com adoção franca da teoria da base objetiva do negócio jurídico de Karl Larenz. E, também admite a resolução por simples onerosidade excessiva, sem a investigação de fato imprevisível ou extraordinária.
Também se limita a autonomia privada, vedando a onerosidade excessiva da cláusula penal, prevendo que as multas de mora decorrentes do inadimplemento de obrigação não poderão ser superiores de dois porcento do valor da prestação. A jurisprudência tem entendido que se trata de norma de ordem pública como tantas outras do CDC, o que impõe que a liberdade contratual não pode contrariar a importante previsão.
Portanto, é cabível a redução da cláusula penal, de ofício pelo juiz. Ainda há a cláusula protetiva, no art. 53, caput do CDC, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, considerando-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações já pagas, em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.
A construção contratual é ampla e podemos conceituar o contrato de adesão como aquele que o estipulante impõe o conteúdo do negócio, restando ao aderente duas únicas opções a saber: aceitá-lo in totum ou não ( “take it ou leave i”t, ou seja, pegue-o ou abandone-o).
Mas cumpre não confundir contrato de adesão com o contrato de consumo em decorrência dos arts. 2º. e 3º da Lei 8.078/90. O conceito do contrato de adesão reside no art. 54 do CDC e descobre-se que a inserção de cláusula no formulário não desfigura a natureza de adesão do contrato.
Sem prejuízo desta regra, nos contratos de adesão se admite cláusula resolutória, desde que alternativa, cabendo a escolha ao consumidor (art.54, segundo parágrafo do CDC). Diante do dever de informar, anexo ao princípio da boa-fé objetiva, os contratos de adesão escritos serão redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão. (art. 54, quarto parágrafo).
As normas também restringem a autonomia privada em prol do consumidor-aderente. Sem prejuízo dessas regras consumeristas, o Código Civil de 2002 também traz duas outras normas de proteção ao contratante-aderente (arts. 423 e 424), e que ainda serão analisadas neste estudo.
Em conclusão, o que se pode concluir, é que o CC institui uma série de intervenções à liberdade contratual, possibilitando justo controle do conteúdo negocial de consumo. E, ainda instituiu proteção relacionando regras que regulam à publicidade e à oferta (arts. 30 a 38 do CDC).
O diálogo das fontes é mesmo recomendável em face da proximidade na regulamentação dos contratos tanto pelo CC de 2002 como pelo CDC e, ainda é endossado pelo Enunciado 167 do CJF que admite francamente que tanto um como outro diploma legal propõe a regulação contratual dentro de uma nova teoria geral dos contratos.
A tese do diálogo das fontes trava um diálogo de coerência, conexão, de complementaridade, é atribuída ao jurista alemão Erik Jayme e foi trazida para o Brasil pela Cláudia Lima Marques.
Cumpre mencionar que no art. 421 do CC há dois erros técnicos redacionais ressaltados tanto por Antonio Junqueira de Azevedo e Álvaro Villaça Azevedo pois o referido artigo deveria mencionar liberdade contratual e não liberdade de contratar, eis que a função social dos pactos limita a primeira e não propriamente a segunda. Ademais a função social do contrato não é em razão do contrato. Pois a razão do contrato é justamente a autonomia privada.
Assim resta evidente que a autonomia privada é limitada pela função social do contrato, ou seja, indica qual finalidade exerce o pacto perante o meio que o cerca, bem como sua utilidade em face dos demais membros da coletividade.
Além dessa limitação, há igualmente a exigência do princípio da boa-fé objetiva devendo ser observado durante toda formação contratual, ou seja, nos primórdios, na formação, na execução e, até mesmo depois desta.
A exigência de lealdade também constitui clara restrição à autonomia privada eis que poderá sua transgressão constituir abuso de direito, ou até constituir cláusula abusiva no contrato de consumo.
Presume o CDC tal qual a CLT como vulnerável uma das partes da relação contratual, o aderente que exerce um grau mínimo de autonomia privada, manifestando consentimento simplificado.
Cumpre ainda apontar o art. 426 do CC que veda os pactos sucessórios os chamados pacta corvina que dispõe expressamente que não pode ser o objeto de contrato a herança de pessoa viva. Riscando assim notória separação entre os direitos pessoais inter vivos e os direitos pessoais mortis causa, não sendo permitidos contratos sucessórios.
Trata-se de nulidade absoluta virtual pois a lei proíbe o ato sem cominar sanção direta( art. 166, inciso VII, segunda parte do C.C.).
Também a onerosidade excessiva constitui outra restrição à autonomia privada, e tal limitação se extrai dos arts. 317 e 478 do CC e, pela conjugação desses dispositivos, está consagrada no ordenamento civil pátrio, a revisão contratual, ou mesmo de resolução do contrato, em razão da ocorrência de fato superveniente, constituindo-se em fato imprevisível e extraordinário, tudo somando a uma onerosidade excessiva.
Vige, aliás, grande divergência doutrinária quanto à teoria enfim adotado pelo CC quanto à revisão ou resolução contratual por fato superveniente. Alguns juristas entendem que o CC de 2002 adotou a teoria da imprevisão cuja origem reside na cláusula rebus sic stantibus (Álvaro Villaça) mas há também forte corrente doutrinária no sentido de que foi adotada a teoria da onerosidade excessiva cuja inspiração é do Código Civil Italiano de 1942 (Judith Martins-Costa).
Trata-se de questão inquestionavelmente controvertida, e alvo de nenhum consenso tanto na III Jornada de Direito Civil do CJF como na IV Jornada (2006). De fato, art. 478 de nossa codificação corresponde ao art. 1.467 do Código Civil Italiano, no entanto, o art. 317 do nosso codex civil não guarda correspondência com o diploma italiano.
A partir dessas pequenas constatações, pode-se concluir que o CC de 2002 traz a revisão contratual por fato superveniente diante de uma imprevisibilidade somada a uma onerosidade excessiva.
A vedação quanto à onerosidade excessiva atinge a cláusula penal, que não pode ser superior a obrigação principal (art. 412 do CC). No que tange aos contratos em espécie, existem várias restrições à autonomia privada, como por exemplo: compra e venda, a doação e a locação regida pela C.C.
Quanto à compra e venda, continua haver no codex específicas limitações, como a restrição de venda de ascendente para descendente, da venda entre cônjuges (art. 499), de venda de bens sob administração (art. 497) e da venda de coisa comum em condomínio (art. 504)
Quanto à compra e venda, o limite somente vige quanto a venda de ascendente para descendente, e não a situação inversa, envolvendo a venda de descendente para ascendente.
Quanto à venda entre os cônjuges, somente admite quanto aos bens excluídos da comunhão havida pelo regime de bens adotado. A norma em questão em verdade não puramente restritiva.
Pode o art. 499 do CC ser aplicado por analogia à união estável, sendo que in albis, aplica-se o regime legal de comunhão parcial de bens, salvo de houver contrato de convivência dispondo o contrário. Alerta-se que a venda entre cônjuges não poderá ser realizada com fraude contra credores, fraude à execução ou simulação. No primeiro caso, será anulável, no segundo caso será ineficaz e no terceiro e último caso será nulo.
O art. 497 do CC que trata de venda de bens sob administração, traz autêntica limitação à liberdade de contratar em prol da ordem e da moralidade pública. É caso de nulidade absoluta e textual conforme os termos do art. 166, inciso VI do C.C.
Quanto ao contrato de doação a vedação refere-se à doação universal, consoante o art. 548 do CC e que visa à manutenção do patrimônio mínimo da pessoa, daí ser caso de nulidade absoluta textual.
E continua vedando a doação inoficiosa, como aquela que atinge a legítima que é quota intangível dos herdeiros necessários (art. 549 do CC), faz- notar criticável apenas prever mera anulabilidade no caso de doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice.
Outro caso é de compra e venda quanto no caso de doação, há previsão comum de exigência da outorga uxória ou marital como regra de legitimação, nos termos do art. 1647 do CC.
A conseqüência é mera nulidade relativa conforme dispõe o art. 1.649 do CC. A norma não se aplica à união estável pois não se exige a outorga convivencial. Ademais, as locações não regidas pela Lei 8.245/1991, o CC de 2002 traz outras limitações à autonomia privada.
Em linhas finais pode-se afirmar que o princípio da autonomia privada veio substituir a autonomia da vontade em face da valorização da dignidade da pessoa humana, portanto a autonomia não é da vontade, e sim da pessoa. Ademais, nota-se mitigação do poder jurígeno da vontade no cenário contemporâneo negocial.
A notória valorização constitucional da liberdade faz com que não admitiremos que as normas restritivas da autonomia privada sejam interpretadas extensivamente ou por analogia. Assim, em confronto a proteção da liberdade e do patrimônio. Deve-se dar primazia à liberdade, e sempre em prol da parte vulnerável da relação contratual, como é o caso do trabalhador, do consumidor e do aderente.
A natureza normativa do Código Civil de 2002 exemplifica clara intervenção estatal com a recepção ativa do princípio da função social do contrato, da boa-fé objetiva e com a vedação da onerosidade excessiva, na vedação do enriquecimento sem causa, da cláusula penal desproporcional, além de outras normas que restringem à autonomia privada nos contratos em espécie.
Informações Sobre o Autor
Gisele Leite
Professora universitária, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, pedagoga, advogada, conselheira do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas.