Possibilidade do uso de habeas corpus e mandado de segurança em face de punições disciplinares na Marinha do Brasil

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Resumo: O presente trabalho é fruto de pesquisa doutrinária, legislativa, bem como jurisprudencial, e objetiva examinar a possibilidade de utilização do Habeas Corpus e Mandado de Segurança em face das Punições Disciplinares na Marinha do Brasil. O título proposto relaciona-se diretamente com o Direito Administrativo e o Direito Constitucional, por tratar-se de direitos individuais, consagrados no texto constitucional e, ao mesmo tempo, serem fruto de ato administrativo, conforme preconizado no Direito Administrativo Militar. A imposição de punição ao militar é fruto de julgamento do Comandante, legalmente empossado na função e em procedimento estritamente administrativo. Assim, a administração militar, que é peculiar por natureza, submete os administrados a um rígido controle. Contudo, o assunto não está totalmente pacificado:  existe corrente doutrinária que defende a utilização irrestrita; e, por outro lado, há corrente doutrinária que defende o não cabimento desses institutos. Nosso intuito é fazer uma verificação na doutrina e jurisprudência, com o objetivo de fundamentar o entendimento de que, somente em caso de ilegalidade, poderia o militar, punido disciplinarmente, recorrer ao judiciário utilizando-se daqueles instrumentos, com o fito de desconstituir a punição imposta.


Palavras-chave: Forças Armadas, habeas corpus, mandado de segurança, hierarquia, disciplina e ato administrativo.


Sumário: Introdução; 1 Profissão Militar; 1.2 Aspectos Legais; 1.3 Poderes Hierárquicos e Disciplinares; 2 Legitimidade dos Atos Administrativos Militares; 2.1 Administração Militar e Princípios Constitucionais; 2.1.1 Princípio da Legalidade; 2.1.2 Princípio da Tipicidade; 2.1.3 Princípio do Contraditório e da Ampla Defesa; 2.1.4 Princípio da Inafastabilidade da Apreciação do Poder Judiciário; 2.2 Administração e a Legalidade de seus atos; 2.3 A Legalidade das Punições Disciplinares na vida Militar; 3 Habeas Corpus; 3.1 Definição e Breve Histórico no Direito Brasileiro; 3.2 Cabimento do Habeas Corpus em Punições Disciplinares na Marinha do Brasil; 3.3 Os Efeitos da Liminar em Hábeas Corpus no seio da tropa; 3.4 Julgados dos Tribunais; 4 Mandado de Segurança;    4.1 Definição e Breve Histórico no Direito Brasileiro; 4.2 Direito líquido e certo; 4.3 Modalidades de Mandado de Segurança; 4.4 Cabimento de Mandado de Segurança em Punições  Disciplinares na Marinha do Brasil; Conclusão.


INTRODUÇÃO


O Brasil é um estado democrático de direito, tendo o legislador constitucional, quando da elaboração da Constituição de 1988, nominado claramente, no artigo 5º, os direitos fundamentais que protegeriam todos os cidadãos brasileiros. Para a manutenção e a defesa da pátria e dos poderes constitucionais desse estado democrático de direito, bem como a garantia da lei e da ordem, existem as Forças Armadas, instituições fortes e perenes, com base na hierarquia e na disciplina.


As Forças Armadas possuem orientações específicas e uma doutrina que muito as diferenciam das demais instituições da administração federal. Ocorre que, constantemente, são questionadas junto à justiça comum, acerca dos procedimentos administrativos ali desenvolvidos, em especial nos julgamentos disciplinares que culminam no cerceamento de liberdade de seus integrantes.


A normalidade jurídica estabelecida com o advento da Constituição, associada ao acesso progressivo da população em geral aos meios de ensino, proporcionou um melhoramento no nível de escolaridade em todos os segmentos, e as Forças Armadas, como parte desta sociedade em evolução não se tornaram exceção. É comum e notória a busca pelo conhecimento levada a cabo pelos militares que, após o expediente normal de trabalho, aventuram-se nas instituições de ensino superior públicas e privadas, buscando um melhoramento acadêmico e a satisfação pessoal nas mais variadas áreas do conhecimento.


Este poderia ser um dos motivos de tantos questionamentos por parte dos militares que reivindicam, junto ao judiciário proteção contra julgamentos de punições disciplinares.  As decisões da Justiça, muitas vezes contrárias ao ponto de vista dominante no seio da Força, são encaradas como fator de desestabilização da hierarquia e da disciplina, previstas na Constituição Federal como elementos basilares da organização das Forças Armadas.


O objetivo do presente trabalho monográfico é analisar a aplicabilidade dos remédios constitucionais habeas corpus e mandado de segurança, em sede de punição disciplinar na Marinha do Brasil, à luz do previsto na Constituição Federal, leis e nos regulamentos infraconstitucionais, bem como na jurisprudência, identificando as possibilidades da sua aplicabilidade.


O problema proposto consiste na seguinte questão: em se tratando das punições disciplinares militares, poderia um militar, julgado administrativamente por seu Comandante, interpor contra ele os remédios constitucionais do habeas corpus e mandado de segurança, independente do previsto no art. 142, § 2º, da Constituição de 1988, e também nos incisos I e III, do artigo 5º, da Lei nº 1.533, de 31/12/1951, onde expressamente existe vedação às medidas mencionadas?   


Embora esteja expressamente vedada a utilização dos remédios acima mencionados, não há posicionamento pacífico na doutrina e jurisprudência. Existe uma corrente conservadora defendendo a impossibilidade de apreciação, por entender que não cabe ao judiciário adentrar na seara administrativa militar. E uma corrente liberal defendendo que a decisão administrativa poderia ser apreciada pelo judiciário, por se tratar a liberdade individual como bem jurídico tutelado pela Constituição Federal. Existe, ainda, corrente moderada, que defende a utilização sob determinados aspectos.


Este trabalho pretende demonstrar que somente poderá ser apreciado o pedido de habeas corpus e mandado de segurança pelo judiciário, nos casos de manifesta ilegalidade e abuso de poder por parte do Comandante, não devendo o juiz adentrar na seara do poder discricionário do administrador militar, examinando critérios de oportunidade e conveniência do ato praticado.


A punição disciplinar, no seio das Forças Armadas, constitui-se de ato administrativo protegido por lei. Os comandantes militares deverão, cumprindo os regulamentos da Força, julgar seus subordinados, sob pena de incorrerem em crime de prevaricação, previsto no artigo nº 319, do Código Penal Militar[1].


Para o perfeito entendimento e desenvolvimento deste trabalho de pesquisa acadêmica, o primeiro capítulo tratará sobre a profissão militar; o segundo capítulo, sobre a legitimidade dos atos administrativos militares; já no terceiro capítulo ver-se-á o histórico do instituto habeas corpus no direito brasileiro, bem como a possibilidade de sua utilização em punições disciplinares. No encerramento deste capítulo, serão trazidos alguns julgados dos tribunais.


O mandado de segurança, por sua vez, será tratado no quarto capítulo, onde será apresentado um breve histórico no direito brasileiro, além de explanação sobre direito líquido e certo e as modalidades de mandado de segurança, para, então, tratar da possibilidade de sua utilização em sede de punições disciplinares.  No quinto capítulo, será apresentada a conclusão, com o entendimento deste autor monográfico.


A metodologia a ser utilizada para o desenvolvimento do trabalho será a partir de pesquisa bibliográfica realizada na área dos Direito Constitucional, Direito Administrativo e Direito Administrativo Militar, além de pesquisa em obras doutrinárias, artigos de periódicos especializados e jurisprudência dos tribunais. Também serão utilizados regulamento e estatuto militar específico, visando buscar os fundamentos necessários ao entendimento das questões que serão enfrentadas durante o desenvolvimento do tema proposto.


1. PROFISSÃO MILITAR


“Dedicar-me inteiramente ao serviço da Pátria”[2]. Esta frase faz parte do juramento que todos os militares realizam ao ingressarem nas fileiras da Marinha do Brasil e das demais Forças Armadas, existindo também a expressão: “com o sacrifício da própria vida”.


A partir deste intróito, percebe-se o quanto os militares destoam, enquanto profissionais, dos demais funcionários públicos federais, afinal profissão alguma impõe aos seus adeptos exigência tão contundente.


Para Farlei Martins de Oliveira (2005, p.38):


“O militar, em sentido amplo, pode ser conceituado como toda pessoa física integrante das Forças Armadas (Exército, Marinha ou Aeronáutica) e das Forças Auxiliares (Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios), ocupantes de cargo ou função pública militar, na respectiva graduação ou posto, conforme a escala contida nos diversos círculos hierárquicos previsto nos respectivos Estatutos.”


As Forças Armadas, desde os primórdios das civilizações, desempenharam papel de alta relevância para a definição e a manutenção de limites e soberania dos estados, não sendo diferente no Brasil.


As origens da Marinha do Brasil remontam aos idos de 1736, quando D. João V criou a Secretaria dos Negócios da Marinha, visando a garantir os interesses da Corte Portuguesa em terras além-mar. Em 1808, devido à transferência da Corte Portuguesa para o Brasil, D. João VI necessitou trazer também, para o emergente País, a pasta da Marinha e Domínios Ultramarinos, embrião do atual Comando da Marinha. Em 1822, o Brasil tornou-se independente, não obstante as províncias do Norte, Nordeste e Cisplatina continuarem fiéis a Portugal. Para apaziguar os ânimos e promover a consolidação e a integridade territorial do nosso País, foi necessária a intervenção da Marinha Imperial. (SINOPSE HISTÓRICA, 2008)


Hoje, a Marinha do Brasil, constitui o Poder Naval e tem por finalidade defender os interesses da nação no mar e, por meta principal, a manutenção da nossa soberania, bem como assegurar ao país o uso econômico e estratégico desse mar que detém riquezas incalculáveis.


1.2. Aspectos legais


A Constituição Federal de 1988 trata das Forças Armadas, no Capítulo II do Título V, mais especificamente no artigo 142, quando diz expressamente:


“As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”


Os militares das Forças Armadas são regidos, de maneira peculiar, por estatuto próprio, que traz, em seus títulos, os direitos e prerrogativas, tratando também do ingresso, permanência e saída das mesmas.


Pelo princípio da continuidade da norma jurídica, as leis anteriores à Constituição Federal de 1988, foram recepcionadas naquilo que não fosse de encontro aos preceitos nela dispostos. Assim, o Estatuto dos Militares[3] foi recepcionado pela Carta Maior.


Neste sentido, Luis Roberto Barroso (1996, p.289) comenta:


“Dificilmente a ordem constitucional recém-estabelecida importará em um rompimento integral e absoluto com o passado. Por isso, toda a legislação ordinária que não seja incompatível com a nova Constituição conserva sua eficácia, vale dizer, é recepcionada pela nova ordem.”


No artigo 1º do mencionado Estatuto, está previsto que ele regulará a “situação, obrigações, deveres, direitos e prerrogativas dos membros das forças Armadas”. Em seu artigo 20, encontra-se a definição de Cargo Militar como “um conjunto de atribuições, deveres e responsabilidades atribuídos a um militar em serviço ativo”. Já no artigo 23 do mesmo Estatuto, a função militar é definida como “o exercício das obrigações inerentes ao Cargo Militar”, que serão compatíveis com o correspondente grau hierárquico dos militares.


O ingresso na Marinha do Brasil processa-se por meio de concurso público, visando à inclusão nos diversos Corpos e Quadros, de acordo com a Lei nº 11.279, de 9 de fevereiro de 2006, e por meio de recrutamento nas modalidades de serviço militar obrigatório e voluntariado, como disposto no artigo 143, da CF/88 e na  Lei nº 4.375, de 17 de agosto de 1964.


O Estatuto dos Militares define posto em seu artigo 16 parágrafo 1º, como “o grau hierárquico do Oficial, conferido por ato do Presidente da República ou do Ministro de Força Singular e confirmado em Carta Patente”. Já o parágrafo 3º do mesmo artigo traz a definição de Graduação como sendo “o grau hierárquico da Praça, conferido pela autoridade militar competente”.


Na Marinha do Brasil, os postos dos Oficiais subdividem-se em quatro círculos hierárquicos: Círculo de Oficiais Generais, composto de Almirante (somente em caso de guerra), Almirante-de-Esquadra, Vice-Almirante e Contra-Almirante; Círculo de Oficiais Superiores, composto de Capitão-de-Mar-e-Guerra, Capitão-de-Fragata, e Capitão-de-Corveta; Círculo de Oficiais Intermediários, composto de Capitão-Tenente e Círculo de Oficiais Subalternos, composto por Primeiro-Tenente e Segundo-Tenente. A graduação de Praças se subdivide em três círculos hierárquicos: Círculo de Suboficiais e Primeiros-Sargentos; Círculo de Segundos e Terceiros-Sargentos; e Círculo de Cabos e Marinheiros/Soldados.


Conforme previsto na CF/88, artigo 12, parágrafo 3º, inciso VI, somente brasileiro nato poderá ascender ao cargo de Oficial das Forças Armadas.


A passagem dos militares para a inatividade dar-se-á mediante transferência para a reserva remunerada nas modalidades de “a pedido” e “ex-officio”, decorridos, no mínimo, trinta anos de serviço.


A exclusão dos militares da Marinha, a bem da disciplina, está disciplinada, para os Oficiais, na CF/88, artigo 142, parágrafo 3º, inciso VII e no Estatuto dos Militares, artigo 48 e parágrafos: por decisão de tribunal militar de caráter permanente, em tempo de paz; e de tribunal especial, em tempo de guerra, desde que seja julgado indigno do oficialato ou com ele incompatível.


No caso das Praças, a exclusão, a bem da disciplina, está disciplinada no Estatuto dos Militares, artigo 49, não existindo previsão na Constituição Federal de 1988.


Os militares se diferenciam dos demais servidores federais por estarem submetidos rigidamente à hierarquia e à disciplina, elementos basilares e indissociáveis desta categoria, conforme previsto no artigo 14, do Estatuto dos Militares e também no artigo 142, da Constituição Federal de 1988.


Além de exercerem atividades peculiares e extremamente específicas, a disponibilidade permanente, incluindo transferências ex-officio para trabalhar nos diversos estados da federação, faz parte da rotina daqueles que se dedicam à carreira das armas. Dentre as restrições mais importantes, destaca-se a dedicação exclusiva, não podendo, o militar da ativa, exercer outra atividade remunerada em paralelo com o serviço militar. Além disso, a CF/88, em seu artigo 142, parágrafo 3º, incisos IV e V, proíbe expressamente a sindicalização, a greve e a filiação a partidos políticos aos integrantes das Forças Armadas.


Estas restrições são justificadas, tendo em vista a intenção do legislador de afastar os integrantes das Forças Armadas do envolvimento direto com a política. É importante frisar, no entanto, que ao militar é franqueada a possibilidade de candidatar-se a cargo eletivo, cumpridas as orientações do artigo 52, do Estatuto dos Militares, no que diz respeito ao licenciamento, afastamento e transferência para a reserva, em caso de eleição.


Tendo em vista as peculiaridades do trabalho desenvolvido ao longo da carreira, o profissional militar necessita estar preparado para as tarefas do tempo de paz e para eventuais conflitos que possam ocorrer, exigindo um contínuo preparo físico e mental deste profissional, desde seu ingresso até sua transferência à inatividade. Para isso, é submetido a um rigoroso controle de saúde por meio de exames periódicos, realizando, também, contínuo treinamento físico militar. O lado técnico também é fator determinante na carreira militar. Assim, realizam-se reciclagens periódicas, visando à formação, à atualização e ao aperfeiçoamento nos diferentes níveis hierárquicos.


1.3. Poderes Hierárquico e Disciplinar


Para Julio Scantimburgo (1972, p.57), poder hierárquico “traduz-se precipuamente, na uniformidade do serviço, dever e obediência aos superiores e direito que estes têm de fiscalizar os atos de seus subordinados” […].


Poder hierárquico é a possibilidade de mando, é a relação de subordinação existente entre os agentes administrativos superiores sobre os agentes administrativos inferiores na estrutura administrativa ou militar. Assim, o superior tem a prerrogativa de ordenar, fiscalizar, rever, delegar e avocar as tarefas de seus subordinados.


Doutrinadores, como Di Pietro, entendem que a administração tem o poder de fiscalizar as atividades exercidas por seus servidores e demais pessoas a ela ligadas, exigindo-lhes mesmo uma conduta adequada e em sintonia com os preceitos legais. O não-cumprimento desses preceitos sujeita os agentes às sanções disciplinares. É bem verdade que essas sanções devem obedecer ao princípio da proporcionalidade, devendo ser adequadas à conduta ilícita praticada pelo agente. Sua aplicação está sujeita ao processo administrativo disciplinar, com a devida observância aos princípios constitucionais do devido processo legal, bem como do contraditório e da ampla defesa, conforme previsto no artigo 5º, LIV e LV, da CF/88.


Este também é o entendimento de Hely Lopes Meirelles (1990, p.116), para quem, “poder disciplinar é a faculdade de punir internamente as infrações funcionais dos servidores e demais pessoas sujeitas à disciplina dos órgãos e serviços da Administração”.


Para o autor (op. cit.), o poder hierárquico não se confunde com o poder disciplinar, apesar de ligados de forma correlata. Enquanto o primeiro proporciona a distribuição e o escalonamento das funções executivas da administração, o segundo serve como controlador das condutas dos administrados. Ele defende o Poder Disciplinar como sendo discricionário, por não se aplicar ao mesmo, o Princípio da pena específica que domina inteiramente o Direito Criminal Comum. Constatada a infração, o administrador poderá, dentro de seu prudente critério, aplicar a sanção que julgar cabível, oportuna e conveniente, dentre as que estiverem enumeradas em lei ou regulamento para a generalidade das infrações administrativas.


João Rodrigues Arruda (2007, p.20), comentando acerca da dificuldade de definir disciplina, diz que “D. José Almirante não se aventurou a dar uma definição para o que chamou de ‘poder invisível’, um ‘vírus impalpável, que assim como dá vigor aos exércitos, os deixa enfermos e mata com sua ausência”.


Esse comentário é pródigo em significado, pois apresenta uma noção do que a disciplina representa para os integrantes das forças armadas e o quanto ela é necessária para a manutenção de sua organização.


Não obstante, Hely Lopes Meirelles (1990, p.118) nos dá uma preciosa orientação no que diz respeito à punição disciplinar:


“A motivação da punição disciplinar é sempre imprescindível para a validade da pena. Não se pode admitir como legal a punição desacompanhada de justificativa da autoridade que a impõe. Até aí não vai a discricionariedade do Poder Disciplinar. O discricionarismo disciplinar se circunscreve na escolha da penalidade dentre as várias possíveis, na graduação da pena, na oportunidade e conveniência de sua imposição. Mas quanto à existência da falta e aos motivos em que a administração embasa a punição, não podem ser omitidos ou olvidados no ato punitivo.”


Os conceitos acima são potencializados quando se trata de servidores militares. A hierarquia e a disciplina são os pilares sobre os quais é forjada a doutrina militar. O art. 142, da CF/88, coloca a hierarquia e a disciplina militares como bases organizacionais das Forças Armadas. Essa previsão já reafirma a grande importância de tais institutos no meio castrense e dá uma idéia sobre a total necessidade de sua mantença.


Também o Estatuto dos Militares traz expressamente, em seu artigo 14:


A hierarquia e a disciplina são a base institucional das Forças Armadas. A autoridade e a responsabilidade crescem com o grau hierárquico.


§ 1º A hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, dentro da estrutura das Forças Armadas. A ordenação se faz por postos ou graduações; dentro de um mesmo posto ou graduação se faz pela antigüidade no posto ou na graduação. O respeito à hierarquia é consubstanciado no espírito de acatamento à seqüência de autoridade.


§ 2º Disciplina é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar e coordenam seu funcionamento regular e harmônico, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes desse organismo.


§ 3º A disciplina e o respeito à hierarquia devem ser mantidos em todas as circunstâncias da vida entre militares da ativa, da reserva remunerada e reformados.”


Ainda, nesse Estatuto, encontram-se elencados os chamados deveres militares, assim dispostos, no artigo 31:


Os deveres militares emanam de um conjunto de vínculos racionais e morais que ligam o militar à Pátria e ao seu serviço, e compreendem, essencialmente:


I – a dedicação e a fidelidade à Pátria, cuja honra, integridade e instituições devem ser defendidas mesmo com o sacrifício da própria vida;


II – o culto aos Símbolos Nacionais;


III – a probidade e a lealdade em todas as circunstâncias;


IV – a disciplina e o respeito à hierarquia;


V – o rigoroso cumprimento das obrigações e das ordens; e


VI – a obrigação de tratar o subordinado dignamente e com urbanidade.”


Farlei Martins de Oliveira (2005, p.27) diz que “a hierarquia e disciplina militar devem ser concebidas como verdadeiros princípios de direito, pautando e balizando toda a organização, o exercício e o desenvolvimento da função militar”.


O autor conclui que (op. cit. p.28):


“[…] hierarquia é o que se impõe ao subordinado, ao subalterno, a estrita e pronta obediência às ordens e instruções legais de seus superiores e, assim, define-se a responsabilidade de cada um. As ordens e determinações legais devem ser bem e fielmente cumpridas, sem ampliação ou restrição ao exato sentido da ordem determinada pelo superior hierárquico, a menos que sejam manifestadamente ilegais. Ausente essa hipótese, o descumprimento ou retardamento da ordem pode ensejar falta disciplinar ou crime funcional (prevaricação), previsto e tipificado no Código Penal e no Código Penal Militar.”


A disciplina é a força, conferida por lei, ao superior hierárquico que lhe permite punir, ou fazer punir internamente, via Administração Pública Militar, as infrações funcionais dos militares sob seu comando.


Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1999 apud OLIVEIRA, 2005, p.29), diz que:


“A hierarquia e a disciplina são caracteres indelevelmente associados às Forças Armadas. Dada a natureza das operações em que se empenham, é essencial para as Forças Armadas a definição do Comando. Realmente, não podem elas atuar eficientemente se cada soldado não souber quem comanda e qual o âmbito de comando de cada um. Por isso a hierarquia é inerente a qualquer das Forças Armadas. A disciplina por sua vez, decorre necessariamente da hierarquia. Esta não existiria se os subordinados não obedecessem aos superiores, se o comando não correspondesse à obediência.”


Percebemos claramente que, para os militares, a hierarquia e a disciplina possuem um significado diferenciado do existente para o servidor de atividade civil. Funciona como uma espécie de código de honra por todos seguido e respeitado de maneira inconteste.


Para João Rodrigues Arruda (2007, p.20):


“[…] esses dois elementos de sustentação da estrutura militar, quando atingidos, por menor que seja o dano sofrido, provocam o desencadeamento de todo um mecanismo de autodefesa, que se consubstancia no Poder Punitivo, quer seja penal, quer seja disciplinar.”


Farlei Martins de Oliveira (2005, p.39), por sua vez, assevera que:


“Além da sujeição aos princípios da disciplina e da hierarquia, que condicionam toda a vida pessoal e profissional do militar, ao ingressar nas Forças Armadas, a função militar possui outras características específicas, inexistentes em qualquer atividade civil, que reforçam o tratamento diferenciado dispensado pelo constituinte de 1988 e que deverá ser o norte da perfeita interpretação e julgamento dos atos administrativos militares.”


No militarismo, o poder hierárquico e disciplinar são norteadores de conduta. As Forças Armadas utilizam-se de regulamentos específicos relacionados à disciplina e ao julgamento das faltas pelos militares. O artigo 47, do Estatuto dos Militares, prevê:


“Os regulamentos disciplinares das Forças Armadas especificarão e classificarão as contravenções ou transgressões disciplinares e estabelecerão as normas relativas à amplitude e aplicação das penas disciplinares, a classificação do comportamento militar e à interposição de recursos contra as penas disciplinares.”


Com base no dispositivo acima, o Poder Executivo criou regulamentos e a Marinha se utiliza do Regulamento Disciplinar próprio, o Regulamento Disciplinar para a Marinha – RDM[4]. Para este Regulamento, a transgressão disciplinar é chamada de “Contravenção Disciplinar”, e é definida, em seu artigo 6º, como:


“[…] toda ação ou omissão contrária às obrigações ou deveres militares estatuídos nas leis, nos regulamentos, nas normas e nas disposições em vigor que fundamentam a organização militar, desde que não incidindo no que é capitulado pelo Código Penal Militar como crime.”


O Direito Disciplinar Militar é complexo e deve-se analisá-lo com cautela para não confundir o poder disciplinar existente na administração pública com o poder punitivo do Estado, pois a primeira é uma faculdade punitiva interna, abrangendo apenas infrações relacionadas com as atividades dos administrados, visando à correção de atitudes, ao passo que, a segunda, visa ao interesse social e reprime os crimes e contravenções definidas em lei, sendo exercida pelo poder judiciário. (ASSIS, 2008)


O Comandante Militar, atuando como administrador, por força de ato de nomeação de autoridade competente, diante de ações que venham de encontro com os valores tutelados pelo regulamento disciplinar da corporação, deverá julgar o contraventor, atribuindo-lhe uma das penas prevista no referido regulamento que vai desde repreensão em particular, até prisão em regime fechado ou, ainda, desconsiderá-la, se entender que tal atitude achou-se justificada. Dentro desse “amplo” poder discricionário do administrador militar, existe a responsabilidade de bem cumprir sua função, agindo coberto com o manto da legalidade, sob pena de ver desconstituída sua decisão por força de decisão judicial, o que, nesse caso, ferirá de morte sua autoridade perante seus comandados.


2. LEGITIMIDADE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS MILITARES


2.1. Administração Militar e Princípios Constitucionais


Administração pública é definida objetivamente como sendo a atividade concreta e imediata que o Estado desenvolve para atingir os interesses coletivos, e subjetivamente, é o conjunto de órgãos e de pessoas jurídicas com atribuição de lei visando a cumprir o exercício da função administrativa do Estado. (Moraes, 2004).


A administração pública está dividida em dois grandes ramos: administração pública direta e administração pública indireta. O primeiro ramo, ainda suporta subdivisão em administração pública civil e administração pública militar, que é o objeto de nosso estudo.


De acordo com o artigo 37, caput da Constituição Federal de 1988, a administração pública deverá pautar-se nos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Este é o mandamento Constitucional.


Para Diógenes Gasparini (1995, p.574), “os princípios fundamentais do processo administrativo disciplinar são, substancialmente, os mesmos dos processos administrativos em geral.”


Estando a administração pública militar inserida na administração pública direta, deverá, também ela, observar esses princípios em suas decisões.


Esse é o entendimento de autores como Farlei Martins de Oliveira (2005, p.98), que entende que “princípios são normas dotadas de positividade, pois determinam condutas obrigatórias, ou impedem a adoção de comportamentos com eles incompatíveis”. E Celso Ribeiro Bastos (1998, p.154), que entende que “os princípios constitucionais são aqueles que guardam os valores fundamentais da ordem jurídica”. E, ao concluir o raciocínio, diz que “isto só é possível na medida em que estes não objetivam regular situações específicas, mas sim desejam lançar a sua força sobre todo o mundo jurídico.”


2.1.1. Princípio da Legalidade


Este é um dos princípios norteadores da administração pública e está determinado no artigo 37, caput, da Constituição Federal de 1988. Pelo princípio da legalidade, artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal, o administrador somente agirá em virtude da lei.


Fábio Nadal e Vauledir Ribeiro Santos (2007 p.30) afirmam que, “ao particular é permitido fazer tudo o que não estiver proibido por lei. Já para a administração pública só é permitido fazer aquilo que estiver previsto em lei”.


Sobre a legalidade das transgressões disciplinares nas Forças Armadas, existem duas correntes predominantes:


A primeira defende o princípio da legalidade estrita ou absoluta, para a qual todas as transgressões disciplinares deverão estar previstas em lei, cumpridas as formalidades do artigo 59 e seguintes, da Constituição Federal, em especial, o quórum necessário à aprovação legislativa. Por essa corrente, os regulamentos disciplinadores das contravenções disciplinares, postos em vigor posteriormente à Constituição de 1988, por decretos, seriam inconstitucionais e, por conseguinte, ilegais.


A segunda corrente, por sua vez, defende o princípio da legalidade ampla ou relativa, entendendo que o artigo 5º, inciso LXI, da Carta Maior, deve ser interpretado de forma ampla, tendo em vista a situação peculiar das Forças Armadas. Por meio desse entendimento, os regulamentos postos em vigor anteriormente à Constituição de 1988 teriam sido recepcionados pela nova ordem jurídica inaugurada com a aprovação do novo texto constitucional, passando a possuir status de lei ordinária, sendo permitido alterá-los somente por intermédio de nova lei. (ASSIS, 2008).


Analisando as correntes acima, percebe-se que a Marinha do Brasil está em sintonia com ambas as correntes, tendo em vista o Decreto-lei que estatuiu o seu regulamento disciplinar, ser de data anterior à Constituição atual e, por ter sido recepcionado pela nova ordem jurídica, passou, inclusive, a gozar de status de lei, podendo sofrer alterações, somente após cumpridos os proclames específicos de alteração de lei, pelo Poder Legislativo.


No entendimento do autor retromencionado, que é seguidor da corrente da legalidade ampla ou relativa, o Tribunal Regional da 2ª Região já decidiu que não cabe o princípio da estrita legalidade aos regulamentos das Forças Armadas, por entender que os mesmos complementam o Estatuto dos Militares, e este, por sua vez, prevê a regulamentação das transgressões disciplinares. Esse julgado encerrou a discussão sobre a inconstitucionalidade do Regulamento Disciplinar do Exército, Decreto nº 4.346/2002, que, embora posterior à Constituição de 1988, está legalmente previsto pelo artigo 47, do Estatuto dos Militares, que foi recepcionado pela nova Constituição, e que é a fonte natural dos regulamentos disciplinares das Forças Armadas.


2.1.2 Princípio da Tipicidade


O princípio da tipicidade, gravado no artigo 5º, XXXIX, da Constituição Federal de 1988, diz que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.


Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2007, p.587):


Ao contrário do direito penal, em que a tipicidade é um dos princípios fundamentais, decorrentes do postulado segundo o qual não há crime sem lei que o preveja (nullum crimem, nulla poena sine lege), no direito administrativo prevalece a atipicidade; são muito poucas as infrações descritas na lei, como ocorre com o abandono de cargo. A maior parte delas fica sujeita à discricionariedade administrativa diante de cada caso concreto; é a autoridade julgadora que vai enquadrar o ilícito como “falta grave”, “procedimento irregular”, “ineficiência no serviço”, “incontinência pública”, ou outras infrações previstas de modo indefinido na legislação estatutária. Para esse fim, deve ser levada em consideração a gravidade do ilícito e as conseqüências para o serviço público.


Por isso mesmo, na punição administrativa, a motivação do ato pela autoridade julgadora assume fundamental relevância, pois é por essa forma que ficará demonstrado o correto enquadramento da falta e a dosagem adequada da pena.”


No entendimento de Falei Martins de Oliveira (op. cit, p.112-115), a tipicidade administrativa opera de modo peculiar, existindo, nesse regime, um espaço para estipulação de ilícitos, desde que os mesmos, genericamente, estejam previstos em lei.


O autor supracitado entende ainda que, diante da subordinação estatal na qual estão incluídos os militares, se admite uma tipicidade proibitiva mais ampla e genérica para efeito de infração e sanção disciplinar, permitindo, assim, que haja uma relativização do alcance da reserva da lei, quando se trata de matéria disciplinar.


Em matéria de direito militar, percebe-se mesmo uma atenuação do princípio ora estudado, pois encontram-se, nas Forças Armadas, relações de condutas consideradas “contravenções disciplinares”, como é o caso  específico do Regulamento Disciplinar para a Marinha, artigo 7º e seus incisos e, mais adiante, em seu parágrafo único, cláusula genérica, ao dispor expressamente:


São também consideradas contravenções disciplinares todas as omissões do dever militar não especificadas no presente artigo, desde que não qualificadas como crimes nas leis penais militares, cometidas contra preceitos de subordinação e regras de serviço estabelecidos nos diversos regulamentos militares e determinações das autoridades superiores competentes.”


Encontra-se também, no artigo 8º, do mesmo Regulamento Disciplinar, a classificação das contravenções em “grave e leve – conforme o dano – grave ou leve – que causarem à disciplina ou ao serviço, em virtude de sua natureza intrínseca, ou das conseqüências que delas advierem […]”


Assim, percebe-se que, na norma administrativa militar, o princípio da  tipicidade é abrandado, ao se encontrarem especificamente classificadas as contravenções disciplinares e a cláusula própria que amplia a esfera de discricionariedade do Administrador Militar, o qual poderá, a seu arbítrio, enquadrar uma conduta considerada inadequada como contravenção, aplicando-lhe as cláusulas de agravamento ou atenuação que se fizerem necessárias.


2.1.3 Princípio do Contraditório e da Ampla Defesa


Este princípio está disposto no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal de 1988: “Aos litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.


Para Celso Ribeiro Bastos (1990  apud   GASPARINI,  1995,  p.575): “É o princípio que exige que em cada passo do processo as partes tenham a oportunidade de apresentar suas razões e suas provas, implicando, pois, a igualdade entre as partes.”


Não há divergência na doutrina quanto à aplicação desse princípio no processo administrativo, em especial, o militar.


Está incluída nesse princípio a observância do rito adequado, a cientificação do processo ao acusado, a oportunidade de contestar a acusação, inclusive com a produção de provas e ainda o devido acompanhamento dos atos da instrução, bem como a utilização dos recursos cabíveis. (ASSIS, 2008).


Para Farlei Martins de Oliveira (2005, p.216):


“O contraditório no processo judicial e administrativo significa a possibilidade de a parte produzir suas próprias razoes e provas e que lhe seja dada a possilidade de examinar e contestar os argumentos, fundamentos e elementos probantes que lhe sejam desfavoráveis. A ampla defesa pode ser entendida como o direito de a parte apresentar sua defesa prévia à decisão administrativa ou judicial, com os meios a ela inerentes.”


Já no entender de Paulo Tadeu Rodrigues Rosa (2003, p.40), “a realização de uma defesa técnica pressupõe que esta seja feita por um profissional bacharel em direito e regularmente inscrito nos quadros da OAB.”


No caso da Marinha, esse princípio parece ser cumprido quando, ao ser cometida uma contravenção disciplinar por militar, esse receberá cópia da autuação realizada pelo superior, juntamente com formulário específico para apresentação de defesa escrita. Esse procedimento dar-se-á na presença de duas testemunhas, que assinarão o termo, juntamente com o Oficial e o militar contraventor.


A defesa que será providenciada pelo militar infrator poderá ser formulada livremente, inclusive com o auxílio de advogado, a suas expensas. Durante o período em que estiver preparando sua defesa, poderá levantar dados novos para subsidiá-la, visto que terá prazo razoável para esse fim.


Após a entrega da defesa escrita, será marcada audiência com o Comandante, ocasião em que será aberta nova possibilidade de defesa, esta oral, independente da defesa escrita que foi apresentada. Nesse momento, poderão surgir informações novas, que possam vir a elucidar e até justificar a falta cometida.


Ao final, a audiência será reduzida a termo por meio de ata e será consignada a decisão do Comandante, a qual deverá ser motivada em forma de julgamento. Caso o militar seja julgado com pena restritiva de liberdade, modalidade mais severa de punição, ser-lhe-á facultada assistência de advogado, conforme previsto nos incisos LXII e LXIII, da Constituição Federal de 1988, além de assistência pela família. 


Pelo procedimento descrito acima, baixado e aperfeiçoado por meio de norma interna da Marinha do Brasil[5], percebe-se o cumprimento do principio constitucional retromencionado.


É verdade que, dependendo do tipo de infração cometida, será, de pronto, instaurado procedimento administrativo em forma de sindicância para as averiguações julgadas necessárias.


2.1.4 Princípio da Inafastabilidade da apreciação do poder judiciário


Está expressamente previsto no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal de 1988, que “A lei não excluirá da apreciação do poder judiciário lesão ou ameaça de direito”.


Esse mandamento constitucional permite que o poder judiciário venha analisar a decisão administrativa no aspecto de sua razoabilidade, com a finalidade de verificar se houve abuso de poder ou se o julgador manteve-se imparcial. (ROSA, 2003).


Esse também é o posicionamento de Jorge César de Assis (2008, p.212), que considera natural “o acesso ao poder judiciário, em virtude de sua inafastabilidade constitucional, poderá ocorrer a qualquer tempo, intentado por qualquer servidor público, inclusive o militar”.


Para o autor, no caso do servidor militar, “há que se considerar sua condição estatutária peculiar como integrante do universo castrense – onde, às vezes, prevalecem os interesses coletivos sobre os individuais”.


O que se depreende do acima considerado é que o militar não está proibido de recorrer ao Judiciário, visando a assegurar um direito que, em tese, lhe foi violado pela Administração; no entanto, na apuração de uma falta disciplinar passível de uma penalidade ordinária, inclusive a de prisão disciplinar, tendo a instituição militar seguido todos os procedimentos previstos nos regulamentos internos e na Constituição quanto ao contraditório e ampla defesa, não se vislumbra, salvo melhor juízo, a legitimidade do ingresso ao Judiciário, pelo simples fato de ser um direito constitucional, visto que poderia ser configurada como ato protelatório do cumprimento da pena imposta.


2.2 Administração Militar e a legalidade de seus atos


Pelo que já foi discorrido, percebe-se que o regime disciplinar nas Forças Armadas naturalmente apresenta-se com maior rigidez, com maiores exigências, seja na observância das leis, dos regulamentos, seja no acatamento das ordens emanadas dos superiores hierárquicos. Dentro desse contexto, observa-se que o processo para a aplicação de penas disciplinares precisa ser simples e ágil, evidentemente respeitando os princípios constitucionais supramencionados.


O autor José Cretella Júnior (1977 apud DI PIETRO, 2007, p.179), define ato administrativo como:


“A manifestação de vontade do Estado, por seus representantes no exercício regular de suas funções, ou por qualquer pessoa que detenha, nas mãos, fração de poder reconhecido pelo Estado, que tem por finalidade imediata criar, reconhecer, modificar, resguardar ou extinguir situações jurídicas subjetivas, em matéria administrativa.”


Helly Lopes Meireles (2000, p.140) também tem entendimento no mesmo encaminhamento, acrescentando que “essa imposição de obrigações poderia ser atribuída aos administrados e a si própria”.


Para Jorge César de Assis, os atos Disciplinares Militares estariam inseridos no conceito dos atos administrativos, devendo cumprir os mesmos requisitos desses.


Assim, o autor define ato administrativo disciplinar como sendo (op. cit., p.161):


“[…] a manifestação unilateral de vontade da Administração Pública Militar que, agindo nessa qualidade, tenha por fim imediato impor uma sanção disciplinar ao servidor militar em face do cometimento de ma infração disciplinar preestabelecida, e ao fim de um processo apuratório em que se lhe faculte a ampla defesa.”


Celso Antônio Bandeira de Mello (1993, p.175) diz que ato administrativo é:


“Declaração unilateral do Estado no exercício de prerrogativas públicas, manifestadas mediante comandos concretos complementares da lei (ou, excepcionalmente, da própria Constituição, aí de modo plenamente vinculado) expedidos a título de lhe dar cumprimento e sujeitos a controle de legitimidade por órgão jurisdicional.”


Para Farlei Martins de Oliveira (2005, p.50), o conceito de ato administrativo comum seria aplicado ao ato administrativo militar por estarem, ambos, inseridos no regime de direito público administrativo, especificamente ao princípio da legalidade:


“O ato administrativo militar pode ser conceituado como todo aquele proveniente de Administração Militar que, agindo nessa qualidade, tenha por fim imediato modificar, resguardar, transferir e extinguir situação jurídica ou impor obrigações em relação aos militares ou aos próprios órgãos dela integrantes.”


Segundo o autor, as especificidades encontradas no ato administrativo militar justificam e legitimam as restrições impostas pelo ordenamento jurídico aos membros das Forças Armadas.


Helly Lopes Meireles (2000, p.142) diz que, no momento da análise do ato administrativo, deve-se verificar se estão revelados os requisitos necessários à sua formação: competência, finalidade, norma, motivo e objeto.


Jorge César de Assis, concordando com a autora acima mencionada, diz que, “ao analisar um ato administrativo militar, também deve-se verificar se estão presentes aqueles requisitos”.


A competência administrativa para punir o subordinado, na Marinha do Brasil, será a primeira condição a ser analisada. Será competente para julgar contravenções disciplinares, na Marinha do Brasil, o Comandante, Diretor ou Chefe, devidamente instituído no cargo por ato de autoridade competente, no caso, o Comandante da Marinha. Caso uma autoridade, que não esteja no cargo, venha a julgar disciplinarmente um militar, haverá o caso claro de invalidade, por ela não possuir, no exemplo em tela, o poder de manifestar a vontade da administração militar.


A competência para julgar, na Marinha, não está relacionada, exclusivamente, ao grau hierárquico superior ao do militar contraventor, mas decorre de competência específica recebida para esse fim. Assim, o simples fato de possuir um grau hierárquico mais elevado, não autoriza o militar a proceder ao julgamento disciplinar daquele que cometeu contravenção disciplinar, sob pena de haver invasão de competência alheia. Deverá, isto sim, fazer comunicação formal ao titular do quartel onde serve e encontra-se subordinado o contraventor, para que aquele tome conhecimento e proceda às devidas averiguações necessárias e realize posterior julgamento.


Para o autor supramencionado, a finalidade do ato disciplinar militar relaciona-se com o objetivo a ser atingido; no caso do militar, visa a sua reeducação dentro da instituição. Se for pensado na organização a que pertence, ter-se-ia o fortalecimento e a preservação da disciplina e da hierarquia. Em uma análise mais ampla, por meio da punição disciplinar do faltoso, ter-se-á um melhor desempenho de sua função dentro do corpo especializado, revertendo em uma melhor eficiência da Instituição como um todo, para melhor cumprir suas destinações constitucionais, quais sejam, a defesa da Pátria e a preservação da ordem pública e ainda a garantia da lei e da ordem, em casos específicos.


Sanção disciplinar é a pena imposta ao servidor público pelo cometimento de falta funcional que possa trazer alguma repercussão negativa à Administração Pública, tendo como funções básicas a prevenção e a repressão, visando a precaver o servidor e trazê-lo ao equilíbrio funcional. O autor diz ainda que são dois os objetivos da sanção disciplinar: trazer de volta a normalidade e reeducar o servidor. (GASPARINI, 1995).


A forma é a maneira pela qual o ato disciplinar é constituído, sendo imprescindível para sua perfeição.


Na Marinha do Brasil, estão previstas, no Regulamento Disciplinar para a Marinha, em seu Título III, capítulo 4, as regras gerais para a imposição de penas disciplinares. Na verdade, os artigos desse Regulamento trazem um roteiro que orienta o Comandante, o qual procederá ao julgamento no sentido de que sejam oportunizadas, ao contraventor, as garantias constitucionais, motivo de análise supra.


Está presente o princípio da ampla defesa, consagrado pela Carta Maior, conforme se pode verificar:


Art. 26 – Nenhuma pena será imposta sem ser ouvido o contraventor e serem devidamente apurados os fatos.[…]


§ 2º – Quando houver necessidade de maiores esclarecimentos sobre a contravenção, a autoridade mandará proceder a sindicância ou, se houver indício de crime, a inquérito, de acordo com as normas e prazos legais.[…]


§ 5º – Nenhum contraventor será interrogado em estado de embriaguez.[…]


§ 6º – O Oficial que lançou a contravenção disciplinar em Livro de Registro de Contravenções deverá dar conhecimento dos seus termos à referida Praça, antes do julgamento da mesma.”


O Comandante, que vier a julgar o contraventor, deverá fazê-lo com imparcialidade e observando certas circunstâncias que poderão agravar, atenuar ou até mesmo, justificar as faltas cometidas.


Art. 27 – A autoridade julgará com imparcialidade e isenção de ânimo a gravidade da contravenção, sem condescendência ou rigor excessivo, levando em conta as circunstâncias justificativas ou atenuantes, em face das disposições deste Regulamento e tendo sempre em vista os acontecimentos e a situação pessoal do contraventor.


Toda pena deverá ser registrada nos assentamentos do militar, sendo possível seu cancelamento, desde que presentes os requisitos do artigo 39, desse Regulamento, dentre os quais: ter decorrido cinco anos sem qualquer punição, a contar do cumprimento da última; não ter sido a falta atentatória à honra pessoal, ao pundonor militar ou ao decoro da classe; ter bons antecedentes, verificados nos registros da carreira e, ainda, ter parecer favorável de seu comandante atual.


Art. 28 – Toda pena disciplinar, exceto repreensão verbal, será imposta na forma abaixo:


a) para Oficiais e Suboficiais: mediante Ordem-de-Serviço que contenha resumo do histórico da falta, seu enquadramento neste Regulamento, as circunstâncias atenuantes ou agravantes e a pena imposta; e


b) para Sargentos e demais Praças: mediante lançamento nos respectivos Livros de Registro de Contravenções, onde constará o histórico da falta, seu enquadramento neste Regulamento, as circunstâncias atenuantes ou agravantes e a pena imposta.”


Para Helly Lopes Meireles (2000, p.145), motivo é a situação de direito ou de fato que determina ou autoriza a realização do ato administrativo.


Pode-se encontrar, como motivo da aplicação de uma punição disciplinar, a própria transgressão de preceitos estabelecido no Regulamento Disciplinar para a Marinha, desde que não seja considerada como crime previsto no Código Penal Militar, caso que ensejaria abertura de Inquérito Policial Militar competente.


O objeto seria a atuação sancionadora da Administração Militar, visando a  apurar a falta disciplinar e a efetividade da punição do militar faltoso, com o objetivo de retornar à normalidade no quartel.


É válido ressaltar que a impunidade, no interior da caserna, seria ferir, de morte, a disciplina. Em um ambiente onde o exemplo é uma das molas motrizes do sistema, o cometimento de falta sem a devida resposta da administração militar ensejaria, aos demais, aventurarem-se na mesma conduta pela não retribuição imediata e pelo sentimento de impunidade que passaria a reinar. Em suma, a punição disciplinar é eficaz para evitar o cometimento de novas infrações pelo militar faltoso e, ao mesmo tempo, motivar os demais para que continuem bem cumprindo suas tarefas com responsabilidade e dedicação.


É importante lembrar que, no quartel, mais que em uma empresa pública civil, a interação entre seus componentes é intensa e mais prolongada. Basta notar que, em navios de guerra, por exemplo, em determinadas missões, o período de duração pode chegar a meses, interregno em que os servidores militares permanecem confinados na embarcação. Assim, atos de indisciplina precisam ser corrigidos e a liderança positiva amplamente disseminada, para que não apareçam líderes negativos no seio da tropa, os quais poderiam pôr em risco a estrutura hierarquizada ali mantida.


2.3 A legalidade das punições disciplinares na vida militar


Como explanado nos tópicos acima e considerando a corrente que compreende a existência da legalidade ampla ou relativa, entende-se que os regulamentos das Forças Armadas, no caso específico da Marinha do Brasil, encontram-se em sintonia com a Ordem Pública vigente, tendo sido recepcionados pela Constituição de 1988.


O autor Paulo Tadeu Rodrigues Rosa, (2003, p.58) comentando sobre a constitucionalidade dos regulamentos disciplinares da administração militar, diz que “Antes do advento da CF de 1988, a maioria dos regulamentos disciplinares foram editados por meio de decretos do Chefe do Poder Executivo (Governadores ou Interventores) nomeado pelo Presidente da República”.


Alexandre Henriques da Costa et tal. (2007, p.188), sobre a legalidade da prisão disciplinar, dizem que “contém previsão no artigo 5º, inciso LXI, e artigo 142, § 2º, da Constituição Federal de 1988, sendo a única possibilidade de cerceamento de liberdade que para a efetivação não dependerá de decisão judicial”.


Segundo os autores, o legislador constituinte, quando autorizou a pena disciplinar, preservou os critérios de conveniência e oportunidade da autoridade militar por ocasião do julgamento administrativo e, principalmente, a separação e independência entre os poderes executivo e judiciário, conforme previsão no artigo 2º da Constituição Federal de 1988.


Esse também é o entendimento do autor Ronaldo João Roth (2004, p.228), ao falar da natureza jurídica das penas disciplinares, defendendo que a Constituição Federal previu a prisão nas transgressões disciplinares, de acordo com o que a lei estabelecer, conforme inciso LXI, do artigo 5º e artigo 142, § 2º, da Carta Magna, asseverando que, enquanto algumas transgressões penais são punidas com quinze dias de prisão, com todos os benefícios legais como suspensão condicional da pena, em alguns casos, o militar poderá permanecer preso por até trinta dias, sem a possibilidade de benefícios.


No Estatuto dos Militares, artigo 47, encontra-se expressamente que:


“Os regulamentos disciplinares das Forças Armadas especificarão as contravenções ou transgressões disciplinares e estabelecerão as normas relativas à amplitude e aplicação das penas disciplinares, à classificação do comportamento militar e à interpretação de recursos contra as penas disciplinares.”


Em atendimento ao princípio da recepção, os regulamentos disciplinares, aprovados por meio de decretos, foram recebidos pela nova ordem constitucional, como ocorreu com o Código Penal, o Código de Processo Penal Militar e outros diplomas legais.


Neste sentido, considerando que a Constituição de 88 recepcionou o Estatuto dos Militares e considerando que os Decretos-lei que estabeleceram os regulamentos disciplinares das Forças Armadas igualmente foram recepcionados, visando principalmente à garantia das bases estruturais dessas Forças, pode-se dizer que, no Brasil, vige um princípio da legalidade ampla. (ASSIS, 2008).


De acordo com o Regulamento Disciplinar para a Marinha, artigo 6º:


“Contravenção disciplinar é toda ação ou omissão contrária às obrigações ou aos deveres militares estatuídos nas leis, regulamentos, normas e nas disposições em vigor que fundamentam a Organização Militar, desde que não incidindo no que é capitulado pelo Código Penal Militar como crime.”


Assim, o militar que não observar os deveres contidos nos regulamentos vigentes na Força estará sujeito às sanções previstas no Regulamento retrocomentado.


Importante destacar que para Alexandre Henriques da Costa et tal. (2007, p.174), “a sanção disciplinar vem a ser o resultado final de uma apuração disciplinar que visa a restabelecer um mandamento regulamentar violado”.


No entender de Farlei Martins de Oliveira (2005, p.83), a punição disciplinar é a pronta resposta da administração à transgressão disciplinar. O autor considera que as transgressões disciplinares podem ser caracterizadas como ilícitos administrativos praticados pelo militar em detrimento das obrigações e deveres inerentes à sua função e diz:


“Com o cometimento de uma transgressão disciplinar (ilícito administrativo) surge para a Administração Pública Militar o direito de punir o transgressor, aplicando-lhe uma sanção, para que este não volte a violar os princípios da hierarquia e disciplina.”


A punição administrativa será eficaz quando comprovada a culpabilidade do agente, para se evitar o cometimento de novas infrações. O autor entende que o caráter educativo da punição disciplinar existe, mas, para isso, esta punição deve ser proporcional à falta cometida, pois se assim não for, ter-se-á a prática de arbitrariedades. (ROSA, 2003).


Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade são princípios decorrentes do devido processo legal. Ele considera que esses princípios estão próximos, onde o primeiro faz com que o agente público atue com bom senso, e o segundo exige que o julgador observe a relação entre a falta cometida e a pena a ser aplicada, visando ao não cometimento de ilegalidade. Ele diz ainda que esses princípios estão expressos nos regulamentos disciplinares. (OLIVEIRA, 2005).


Na Marinha do Brasil, encontra-se expressamente, no artigo 27, do Regulamento Disciplinar para a Marinha:


“A autoridade julgará com imparcialidade e isenção de ânimo a gravidade da contravenção, sem condescendência ou rigor excessivo, levando em conta as circunstâncias justificativas ou atenuantes, em face das disposições deste Regulamento e tendo sempre em vista os acontecimentos e a situação pessoal do contraventor.”


Existem dois tipos de punições disciplinares na Marinha do Brasil: a primeira, imposta visando a trazer à normalidade, educando o militar contraventor, é chamada de sanção punitiva; e a segunda, que visa a retirar o militar faltoso das fileiras da Força Armada, também chamada de demissória. Quando verificado que o Oficial ou Praça se apresenta presumivelmente incapaz de permanecer como militar, será submetido a conselho de justificação ou conselho de disciplina e, ao final, será demitido a bem da disciplina.


Ao realizar o julgamento de um militar faltoso, será verificada a gravidade da falta cometida e de que forma veio a ofender os interesses da Administração Militar, em especial, a hierarquia e a disciplina, bem como a conduta ética. Assim, reprimem-se com sanções disciplinares punitivas as transgressões de menor potencial ofensivo no seio da tropa, e com sanções demissórias as transgressões de natureza mais grave e comprometedora desses institutos.


Na Marinha do Brasil, está previsto, no Regulamento Disciplinar para a Marinha, em seu título III, capítulo 1, a classificação das penas disciplinares a serem impostas aos Oficiais e Praças, separados, ainda por círculos hierárquicos, existindo uma gradação de acordo com a gravidade da contravenção cometida.


Entre as possibilidades, encontra-se a repreensão, que é uma censura verbal, de caráter disciplinar e mais leve das punições. Tem por objetivo mostrar que a contravenção cometida não pode se repetir. Essa pena será aplicada às contravenções de menor potencial e pode ser aplicada a todos os militares. O impedimento, que é a permanência do militar faltoso no quartel, sem prejuízo dos serviços ordinários que lhe competir, sendo aplicado somente aos graus hierárquicos de Sargentos, Cabos, Marinheiros e Soldados. A prisão simples, onde o militar permanece no quartel, sendo dispensado dos serviços de confiança. Essa pena será aplicada a todos os graus hierárquicos. A prisão rigorosa, onde o contraventor fica efetivamente confinado e automaticamente dispensado de suas funções, enquanto cumpre a mesma. Essa pena será aplicada a todos os graus hierárquicos. O licenciamento ou exclusão a bem da disciplina que será antecedido de procedimento administrativo específico.


De acordo com o Regulamento Disciplinar para a Marinha, as contravenções disciplinares possuem classificação específica conforme o dano que tenham causado à Administração Militar, existindo também circunstâncias que as agravam ou as atenuam e ainda aquelas que justificam a falta cometida. Essas circunstâncias serão averiguadas, no decorrer do procedimento administrativo apresentado no item 2.1.3 deste trabalho monográfico :


Art. 8º – As contravenções disciplinares são classificadas em graves e leves – conforme o dano – grave ou leve – que causarem à disciplina ou ao serviço, em virtude da sua natureza intrínseca, ou das conseqüências que delas advierem, ou puderem advir, pelas circunstâncias em que forem cometidas.


Art. 10 – São circunstâncias agravantes da contravenção disciplinar:


a) acúmulo de contravenções simultâneas e correlatas;


b) reincidência […]


Art. 11 – São circunstâncias atenuantes da contravenção disciplinar:


a) bons antecedentes militares;


b) idade menor de 18 anos […]


Art. 12 – São circunstâncias justificativas ou dirimentes da contravenção disciplinar:


a) ignorância plenamente comprovada da ordem transgredida;


b) força maior ou caso fortuito plenamente comprovado[…].”


3. HABEAS CORPUS


3.1. Definição e breve histórico no Direito Brasileiro


O direito líquido e certo à liberdade de locomoção do indivíduo é a razão de ser do habeas corpus. Qualquer outro direito líquido e certo, que não a liberdade de locomoção, será tutelado por mandado de segurança. Este é o mandamento constitucional vigente e insculpido no artigo 5º, inciso LXIX, da Constituição de 1988.


Como descrito acima, esse instrumento judicial foi criado para a proteção da liberdade física do indivíduo, sendo medida urgente, desde que o cerceamento tenha sido ilegal.


Dentre as garantias expressamente descritas no artigo 5º da atual Constituição, entende-se ser o habeas corpus e o mandado de segurança, os que melhor expressam a intenção do legislador em manter claras as garantias necessárias com o fito de liberdade.


Para Alexandre de Moraes (2004, p.138):


“O instituto do habeas corpus tem sua origem remota no Direito Romano, pelo qual todo cidadão podia reclamar a exibição do homem livre detido ilegalmente por meio de uma ação privilegiada que se chamava interdictum de libero homine exhibendo.”


A origem mais apontada para o habeas corpus é a Magna Carta de 1215, do Rei João Sem Terra, por imposição dos barões de ferro e do clero. Apesar de não ser o verdadeiro criador desse instituto tão importante, visto que, na feitura da carta, não se mencionava o habeas corpus da forma que é conhecido hoje, havia a menção de que ninguém haveria de ser preso ou privado de seus bens “a não ser em virtude de um julgamento legal por seus pares e na forma da lei do país”. Ali estava o germe do que se tornaria um dos grandes instrumentos garantidores da liberdade dos indivíduos séculos mais tarde. (BASTOS, 1998).


A finalidade do habeas corpus é a proteção da liberdade de locomoção que foi tolhida por ato de autoridade que não observou as formalidades da lei.


Em nosso país, a Constituição de 1824 inseriu esse instituto implicitamente, ao decretar a independência dos poderes no artigo nº 9 e ao conceder ao Poder Judiciário, o direito de decretar prisão conforme seu artigo 179, inciso X:


“À exceção de flagrante delito – a prisão não pode ser excetuada, senão por ordem escrita da Autoridade legítima. Se esta for arbitraria, o Juiz, que a deu, e quem a tiver requerido serão punidos com as penas que a Lei determinar.”


Assim, quando foi editada a Constituição de 1891, o habeas corpus já era considerado como incorporado ao ordenamento, surgindo expressamente, no ordenamento pátrio, no Código de Processo Criminal de 1832, com a independência dos poderes e ao conceder ao Poder Judiciário o direito exclusivo de conhecer os assuntos que diziam respeito com a inviolabilidade penal, restringindo-o, no entanto, aos brasileiros.


Por ocasião da edição da Constituição de 1891, ele foi elevado ao patamar de norma constitucional, extensiva também aos estrangeiros residentes no país, quando expressamente no caput do artigo 72 dizia que “a constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade […]”, dispondo, sobre o remédio constitucional em estudo no artigo 72, § 22: “Dar-se-á habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência, ou coação, por ilegalidade ou abuso de poder.“


Fruto da reforma Constitucional de 1926, o instituto sofreu alteração, passando o § 22 a ter a seguinte redação: “Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência por meio de prisão ou constrangimento ilegal em sua liberdade de locomoção.”


Em 1930, com a Revolução, o instituto sofreu restrição com relação às transgressões disciplinares, por determinação do Decreto nº 19.398, art. 5º, parágrafo único, que assim dispunha: “É mantido o habeas-corpus em favor dos réus ou acusados em processos de crimes comuns, salvo os funcionais e os de competência dos tribunais especiais.”


Na Constituição de 1934, o remédio constitucional ficou normatizado no artigo nº 113, inciso 23 e imprimiu restrição em sede de Transgressão Disciplinar, quando dispôs:


“Dar-se-á Habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade, por ilegalidade ou abuso de poder. Nas transgressões disciplinares, não cabe o habeas-corpus.”


Em 1937, Getúlio Vargas instituía o Estado Novo e colocaria em vigor uma nova Carta Constitucional, cujo artigo 122, inciso nº 16, declarava: “Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer violência ou coação ilegal, na sua liberdade de ir e vir; salvo nos casos de punições disciplinares.”


A Constituição de 1946, já com idéias democráticas, dispunha em seu artigo nº 141, § 23, o seguinte:


“Dar-se-á habeas-corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Nas transgressões disciplinares não cabe o habeas-corpus.”


As Constituições de 1967 e Emenda à Constituição de 1969 não alteraram o instituto em estudo.


Por sua vez, a atual Carta Constitucional, promulgada em 5 de outubro de 1988, manteve o mesmo texto, em seu artigo 5º, LXVIII, porém deslocou a consideração acerca do não cabimento de habeas-corpus nas transgressões disciplinares para o artigo 142, § 2º, retirando-o, assim, do Título II, Dos direitos e Garantias Fundamentais e o colocou no Título V, Da defesa do Estado e das Instituições Democráticas.


No dizer de Alexandre de Moraes (2004, p.139):


“O habeas corpus é uma garantia individual ao direito de locomoção, consubstanciado em uma ordem dada pelo Juiz ou Tribunal ao coator, fazendo cessar a ameaça ou coação à liberdade de locomoção em sentido amplo – o direito do indivíduo de ir, vir e ficar.”


O autor entende que a restrição de concessão de habeas corpus prevista na Constituição relativamente aos militares refere-se ao mérito da punição, isto é, o Juiz não pode entrar na esfera administrativa para julgar os critérios de oportunidade e conveniência do ato administrativo militar.


Pontes de Miranda (1946 apud MORAIS, 2004, p.153), referindo-se à hipótese de cabimento desse instituto, ainda na vigência da Constituição de 1946, explicava que:


“Quem diz transgressão disciplinar refere-se, necessariamente (a) hierarquia, através da qual flui o dever de obediência e de conformidade com instruções, regulamentos internos e recebimento de ordens, (b) poder disciplinar, que supõe: a atribuição de direito de punir, disciplinarmente, cujo caráter subjetivo o localiza em todos, ou em alguns, ou somente em algum dos superiores hierárquicos; (c) ato ligado à função; (d) pena, suscetível de se aplicada disciplinarmente, portanto, sem ser pela Justiça como Justiça […] ora desde que há hierarquia, há poder disciplinar, há ato e há pena disciplinar, qualquer ingerência da Justiça na economia moral do encadeamento administrativo seria perturbadora da finalidade mesma das regras que estabelecem o dever de obediência e o direito de mandar.”


A doutrina considera duas as possibilidades de habeas corpus. O preventivo, que é uma espécie de salvo conduto, onde aquele que se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder, poderá impetrá-lo, visando impedir sua prisão ou detenção, antes mesmo do julgamento. E o liberatório, que será utilizado na hipótese de o indivíduo já se encontrar detido, desde que ilegalmente. Neste, o objetivo é fazer cessar o desrespeito à liberdade de locomoção.


Para Pedro Enrique Demercian, (2005, p.585):


Será liberatório ou repressivo quando a coação ilegal, ou abuso de poder, já se con­sumou. A impetração, nesse caso, visa corrigir uma ilegalidade já cristalizada.


Será preventivo quando há ameaça de violência ou coação à liberdade de locomo­ção, por abuso de poder ou ilegalidade. Nesse caso, a ameaça deve ser séria e efetiva. O mero temor ou suspeita vaga não autorizam a concessão do “salvo-conduto” (direito de se locomover sem constrangimento). Deve existir, para a concessão da ordem, o mínimo de viabilidade fática.”


A liminar em habeas corpus é utilizada nas espécies mencionadas, para evitar possível constrangimento à liberdade de locomoção irreparável, desde que presentes os requisitos indispensáveis.


Julio Fabbrini Mirabete (1991 apud MORAIS, 2004, p.145) lembra que:


“Embora desconhecida na legislação referente ao habeas corpus, foi introduzida nesse remédio jurídico, pela jurisprudência, a figura da   ՙliminar՚ , que visa atender casos em que a cassação da coação ilegal exige pronta intervenção do Judiciário. Passou, assim, a ser mencionada nos regimentos internos dos tribunais a possibilidade de concessão de liminar pelo relator, ou seja, a expedição do salvo conduto ou a ordem liberatória provisória antes do processamento do pedido, em caso de urgência.”


3.2. Cabimento de habeas corpus em Punições Disciplinares na Marinha do Brasil


A prisão administrativa, conforme comentado anteriormente, está prevista no Regulamento Disciplinar para Marinha, em seu título III, capítulo 1.


Esta modalidade é uma das possibilidades de punição à qual estão submetidos os militares da ativa e reserva remunerada. O Comandante de uma Unidade Militar da Marinha do Brasil, uma vez tomando conhecimento de uma transgressão disciplinar cometida por um subordinado, determinará a instauração de procedimento administrativo, visando esclarecer os fatos e fará, ao final desse procedimento, o julgamento disciplinar coberto de formalidades como, por exemplo, o registro em ata de audiência, com presença de testemunhas, podendo realizar a imposição de punição disciplinar ao militar faltoso ou admoestá-lo se, durante o procedimento, ficar comprovado que a falta cometida restou justificada.


Neste sentido, a prisão administrativa é fruto de julgamento pelo Comandante do Quartel, em procedimento estritamente administrativo e internamente realizado, visando dar uma rápida resposta à situação que lhe foi apresentada.


Ao analisar o previsto no artigo 5º, inciso LXI, e artigo 142, § 2º, da Constituição Federal, perceber-se-á que a prisão disciplinar é a única espécie de cerceamento de liberdade cuja decretação independe de apreciação ou decisão judicial.


Este tema é freqüentemente discutido nos quartéis e em simpósios de direito militar, na medida em que aumenta a incidência de solicitações de militares insatisfeitos com a decisão do Comandante que lhe impôs pena que venha restringir-lhe a liberdade, indo ao judiciário, para verem desconstituída a decisão administrativa.


Em uma análise literal do dispositivo constitucional que veda o habeas corpus, a conclusão a que se chega é que o legislador, de forma clara, restringiu sua utilização quando o cerceamento da liberdade foi conseqüência de punição disciplinar militar.


Por esse motivo existe grande discussão na doutrina e jurisprudência sobre a possibilidade de concessão desse remédio constitucional em face de punições disciplinares militares, especialmente no que diz respeito àquelas que privam a liberdade do punido, não obstante haja vedação expressa na Constituição Federal.


Há quem fale na existência de contradição dessa vedação em relação à garantia constitucional de apreciação do judiciário de qualquer ameaça ou lesão a direito.


Após termos discorrido nos capítulos anteriores sobre as especificidades da Administração Militar e sobre a origem desse instituto e sua aplicabilidade na defesa das garantias fundamentais, discorreremos sobre a opinião de doutrinadores sobre o assunto, bem como apresentaremos jurisprudência sobre o tema com a finalidade de verificarmos qual foi a intenção do legislador pátrio ao colocar tal restrição, quando tratou dos militares federais, ampliando ainda, por meio da Emenda Constitucional nº 18, esta restrição aos militares Estaduais, do Distrito Federal e do Território.


No dizer de Assis (2008. p.176), a Constituição não possui dispositivos antagônicos, razão pela qual não se pode falar em contradição entre os seus artigos 5º, LXVIII, e o § 2º, do artigo 142, sendo necessário conciliá-los.


A punição disciplinar é a pronta resposta da Administração Militar à transgressão disciplinar, conforme já discutido.


O militar que cometer ação capitulada no regulamento disciplinar como contravenção disciplinar será julgado administrativamente. Esse procedimento também é adotado, sem protestos, na administração pública em geral, gerando punições como advertência, suspensão e até demissão, em procedimento estritamente adminisatrativo, consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida e os danos que dela provierem para o serviço público. O caso apresenta-se com especial interesse para os aplicadores do direito, quando se percebe que, em se tratando de funcionários públicos militares, estão incluídas uma listagem de possíveis punições, entre as quais, o cerceamento de liberdade conforme especificado no item 2.1 deste trabalho monográfico.


Aparentemente existe um conflito de normas, tendo a doutrina e a jurisprudência se dividido para solucioná-lo, adotando posições divergentes.


Uma das correntes, a mais conservadora, entende não ser possível o cabimento de habeas corpus em sede de punição disciplinar, tendo em vista a estrutura militar, que necessariamente precisa ser rígida e por compreender que, em caso contrário, haveria o esfacelamento das Forças Armadas, pela destruição das bases da hierarquia e disciplina que as sustentam e as mantêm perenes. Alega-se, ainda, não ser possível o legislador pátrio cometer tamanho equívoco no texto constitucional, defendendo que o habeas corpus não se aplica às punições disciplinares por expressa vedação na Lei Maior. Eles se pautam na argumentação de que o § 2º, do artigo 142, da Constituição Federal, encontra-se em harmonia com o inciso LXI, do art. 5º, da Carta Magna, que dispõe que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”. (grifei)


Essa corrente é defendida por aqueles que entendem que o recolhimento disciplinar, fruto de uma punição disciplinar conforme previsto no Regulamento Disciplinar, não ensejaria uma das possibilidades de cabimento do habeas corpus por que restaria absolutamente legal.


No entendimento de Alexandre Henriques da Costa, (2007, p.188):


“[…] a Constituição Federal consagra a prisão disciplinar como única exceção a respeito da necessidade de existir decisão judicial que a autorize: ՙArtigo 5º -[…]


LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definido em lei՚.”


E segue Alexandre Henriques da Costa, (op. cit., p.188):


“Para aqueles que não conhecem o regime jurídico dos militares, vale esclarecer que, de acordo com o Regulamento Disciplinar das Forças Armadas e Forças Auxiliares, quando o militar comete alguma transgressão disciplinar, após ser submetido ao processo administrativo disciplinar, sofrerá as sanções passiveis ao caso concreto. Ocorre que entre as punições previstas existem aquelas que resultam em cerceamento de liberdade do infrator, e é exatamente a estas punições que o mencionado artigo da Carta Magna está se referindo.”


Para o autor referenciado (idem, p.188), o que o legislador constituinte preservou foram os critérios de conveniência e oportunidade da autoridade militar no julgamento de processo administrativo, e a independência entre os poderes judiciário e executivo.


No dizer de Jorge César de Assis (2005, p.175), a questão do cabimento do habeas corpus nas punições disciplinares militares tem atormentado os aplicadores do direito, os comandos militares e os militares em geral por ocasião da apuração de falta disciplinar.


Gerson da Rosa Pereira (2004 apud ASSIS, 2008, p.187) diz que seria adepto da corrente conservadora Cretella Júnior, para quem:


“O habeas corpus é writ concedido a todo aquele que sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder, regra jurídica constitucional que sofre exceção em relação a punições disciplinares militares […]. Excetuam-se, pois, da proteção pelo habeas corpus, todos os casos em que o constrangimento ou a ameaça de constrangimento à liberdade de locomoção resultar de punição disciplinar.”


Nas palavras de Walter Ceneviva (1989 apud ASSIS, 2008, p.187), “por razões ligadas aos conceitos de hierarquia e disciplina, não cabe o habeas corpus para as punições militares de caráter disciplinar.”


Farlei Martins de Oliveira também se filia a essa corrente (2005, p.151), dizendo:


A vedação constitucional não é difícil de conceber como perfeitamente válida dentro do ordenamento jurídico […]


[…] com efeito, pelo fato de os militares encontrarem-se sujeitos a um regime de especial vinculação estatutária com a Administração pública, ao se excluir o controle judicial sobre o cabimento das penas impostas, optou o legislador constituinte por fortalecer a disciplina nas Forças Armadas, no resguardo da fidelidade aos regulamentos de serviço e ao respeito hierárquico, alcançando-se, ademais, a desejada eficiência no sistema de punições internas do serviço.”


Nas palavras de José Afonso da Silva (1993, p.654), no capítulo específico das Forças Armadas, diz que a existência de hierarquia traz consigo, a relação de sujeição personificada na disciplina, que nada mais é que o rigoroso acatamento das ordens sejam normativas ou individuais, emanadas dos superiores. Diz, ainda que “essa relação fundamenta a aplicação de penalidades que ficam imunes ao habeas corpus, nos termos do art. 142, § 2º, que declara não caber aquele remédio constitucional em relação a punições disciplinares militares.”


Ives Gandra Martins (apud OLIVEIRA, 2005, p.152) pondera:


De início, pela escolha da profissão. Sabem, aqueles que elegem a carreira das Armas que a hierarquia e a disciplina são os alicerces da organização das Forças Armadas e que tais hierarquias e disciplina não permitem que se discuta ordens ou se interpretem, com elasticidade, as instruções superiores. A carreira das Armas é, fundamentalmente, uma carreira da ordem e da obediência. Só os militares poderão compreender em profundidade os militares porque têm a mesma vocação.


Ora, permitir habeas corpus sempre que infração disciplinar militar seja cometida ou punição seja aplicada é retirar a força da hierarquia e da disciplina das Forças Armadas.”


Ainda no encaminhamento desta corrente mais conservadora, Seabra Fagundes (apud ARRUDA, 2007, p.59), defendendo o descabimento do habeas corpus nas transgressões disciplinares militares escreve em sua obra que:


“A restrição se inspira no propósito de fortalecer a disciplina nas corporações militares, subtraindo-se os atos dos superiores hierárquicos, considerados essenciais à sua organização e eficiência, à impugnação e discussão dos subordinados.”


Na verdade, o que se depreende a partir da leitura dos autores acima é que, quando se trata de militar, o legislador resolveu excepcionar o entendimento, certamente querendo preservar as peculiaridades existentes na administração da vida castrense.


No entanto, ver-se-á que existe uma segunda corrente, mais moderada e que possui mais adeptos, a qual entende que a restrição ao habeas corpus constante no referido § 2º, do artigo 142, da Constituição Federal de 1988, não deve ser entendida de maneira absoluta, e que poderiam ser questionados via poder Judiciário, alguns requisitos do ato administrativo, mais especificamente os aspectos de legalidade, competência, bem como as formalidades da medida restritiva de liberdade, não podendo o judiciário, sob hipótese alguma, penetrar no mérito do ato administrativo militar.


Para essa corrente, o writ poderia ser aplicado desde que não fosse analisado o mérito da punição militar. Defende o não cabimento da medida, ao mesmo tempo em que a admite quando não versar sobre o mérito do ato disciplinar. Assim, não estaria impedido o exame quanto à legalidade da punição aplicada ao militar, em caso de não aceitação da punição imposta administrativamente.


Gerson da Rosa Pereira (2004 apud ASSIS, 2008, p.187) diz que seria adepto da segunda corrente:


“Ackel Filho ao afirmar que “[…] o óbice ao habeas corpus há de ser admitido em termos, ou seja, o que se veda é a concessão de habeas  corpus nos casos de punição disciplinar regular. Se a punição é imposta por autoridade manifestamente incompetente ou, de qualquer modo, ao arrepio das normas regulamentares que vinculam a ação do superior que pune, a ação heróica será certamente cabível.”


Ainda nas palavras de Jorge César de Assis (2008, p.188), pensa desta maneira, o autor Pinto Ferreira, “que defende a possibilidade do habeas corpus nas punições disciplinares militares, quando: a) a sanção for determinada por autoridade incompetente; b) em desacordo com a lei; c) extrapolando os limites da lei.”


Pontes de Miranda (apud ASSIS, 2008, p.188), lembra que:


“[…] a transgressão disciplinar refere-se, necessariamente, a: a) hierarquia, através da qual flui o dever de obediência e de conformidade com instruções, regulamentos internos e recebimento de ordens; b) poder disciplinar, que supõe a atribuição de direito de punir, disciplinarmente, cujo caráter subjetivo o localiza em todos, ou em alguns, ou somente em alguns dos superiores hierárquicos; c) ato ligado à função; d) pena, susceptível de ser aplicada disciplinarmente, portanto sem ser pela justiça como justiça.”


E continua o autor:


“É possível, porém, que falte algum dos pressupostos. Se, nas relações entre o punido e o que puniu, não há hierarquia, ainda que se trate de hierarquia acidental prevista por alguma regra jurídica, porque essa hierarquia também é e pode constituir o pressuposto necessário – de transgressão disciplinar não há se falar. Basta que se prove não existir tal hierarquia, nem mesmo acidental, para que seja caso de se invocar o texto constitucional, e o habeas corpus é autorizado. Mas a hierarquia pode existir […] sem existir poder disciplinar […]. Por onde se vê que a hierarquia e o poder disciplinar […] são pressupostos necessários mais autônomos. Se há hierarquia, se há poder disciplinar e há ato ligado à função, […] a pena disciplinar pode ser aplicada, e nada tem com isso a justiça. Se o ato é absolutamente estranho à função, […], falta o pressuposto do ato ligado à função e, pois, de transgressão disciplinar não se há de cogitar.”


Poderíamos exemplificar a questão da falta de pressupostos, com uma situação hipotética em que um militar encontra-se destacado em uma unidade para prestação de serviço e comete uma transgressão disciplinar. O Comandante daquela unidade não poderá proceder ao julgamento do infrator, pois não possui poder disciplinar para com ele, não tendo competência para julgá-lo e, caso o faça, estará invadindo a competência alheia e possível seria a impetração de habeas corpus com a finalidade de não cumprimento da possível punição de cerceamento de liberdade, por ventura imposta. O procedimento correto, nesse caso, seria o comandante do quartel, onde ocorreu a infração, comunicar a ocorrência do fato ao comandante do militar infrator, que efetuará as averiguações devidas e o julgará, comunicando sua decisão ao comandante que lhe participou a infração. Nesse caso, não se teria a possibilidade de impetração de habeas corpus, visto que o procedimento restou absolutamente legal e dentro do previsto no regulamento. 


Ainda no encaminhamento dessa corrente mais moderada, encontra-se a posição de Alexandre Henriques da Costa (2007, p.192), para quem:


“A atuação estatal sempre estará vinculada aos princípios expressos na Constituição Federal. Assim sendo, não existe atuação legitima por parte da Administração Pública que esteja divorciada de tais princípios, sendo que o ato praticado, cuja essência seja contaminada com o vício de abuso de poder, não deve ser capaz de produzir efeitos, devendo ser alvo de controle por parte da Administração Pública ou mesmo pelo Poder judiciário.”


O autor entende que a vedação constitucional sobre a possibilidade de incidência do habeas corpus com relação ao reexame das punições disciplinares dos militares, apenas se refere ao mérito do ato administrativo punitivo, não se estendendo na análise de outros requisitos e condições deste (op. cit., p.193).


Uma terceira corrente, mais liberal, entende ser o § 2º, do artigo 142, CF/88, inconstitucional, defendendo ser possível à interposição do habeas corpus contra punições militares de forma ilimitada, inclusive com relação ao mérito do próprio ato administrativo essencialmente militar.


Essa corrente entende ser possível a concessão ilimitada de habeas corpus em sede de punição disciplinar, considerando que a vedação constitucional está em desacordo com os direitos e garantias fundamentais garantidos e petrificados no caput e nos incisos do artigo 5º, da Constituição Federal de 1988.


Nesse entendimento encontra-se o autor Evaldo Corrêa Chaves (2002, p.32), segundo o qual o princípio republicano implica dizer da existência de três poderes da República, independentes e harmônicos.


Segundo o mesmo autor (op. cit., idem):


“Tendo o legislador constituinte, em nome do povo brasileiro, elaborado a Constituição da Republica Federativa do Brasil, pelo princípio acima não pode o art. 142, § 2º, da Constituição Federal (não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares) ser interpretado como vedação absoluta.”


O autor segue fazendo uma comparação com o previsto no artigo 5º, LXVIII, da Constituição Federal de 1988, onde diz expressamente que caberá habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.


O autor comenta, ainda que (op. cit., idem):


“Entende-se, até que a vedação imposta pelo legislador constituinte, através do art. 142, § 2º, da CF, que proíbe a concessão do hábeas-corpus nas transgressões disciplinares, é formalmente inconstitucional. No ímpeto de resguardar o poder hierárquico e disciplinar, acatando as súplicas dos militares, resolveu o constituinte, inserir uma vedação expressa. E houve-se mal. Bastava a proibição inerente ao próprio principio republicano de que é vedado ao poder Judiciário adentrar no mérito da punição, ao julgar a impetração do habeas corpus. Sabido é que o princípio da conveniência e oportunidade é próprio da Administração da República.”


E segue dizendo (op. cit., p.33) que o STF já se posicionou sobre o assunto, ao entender que, deverão ser analisados durante a apreciação os pressupostos de legalidade da transgressão; a existência da correta hierarquia; o poder disciplinar, que legitima a punição; se o ato administrativo está coerente com a função de autoridade e, finalmente, se a pena ao transgressor pode ser aplicada.


Para Paulo Tadeu Rodrigues Rosa (2003, p.10): “A construção de um Estado de Direito exige o respeito às garantias fundamentais do cidadão, que são essenciais para o desenvolvimento da sociedade e o fortalecimento das instituições.”


O autor entende que a liberdade é um direito fundamental e essencial, sendo cessada essa liberdade somente em caso de prisão em flagrante ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, não sendo possíveis prisões para averiguações que não previstas em lei. Assim a liberdade é a regra e a prisão uma medida de exceção.


Paulo Tadeu Rodrigues Rosa (op. cit., p.13) diz ainda que:


“O regime jurídico dos servidores militares é diverso do regime jurídico assegurado aos servidores civis[…] no campo do direito administrativo militar, existe a possibilidade do servidor (federal ou estadual) ter a sua prisão administrativa decretada por uma autoridade militar sem qualquer autorização judicial neste sentido.”


O artigo 5º, inciso LXI, da Constituição Federal de 1988, dispõe que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.


Assim, a possibilidade de prisão administrativa não retira o status de cidadão do servidor militar ou seus direitos e garantias previstos na Constituição Federal de 1988. O Estado apenas permitiu que autoridade diversa da judiciária, em casos expressamente previstos em norma específica, venha julgar uma classe de servidores públicos especiais, à pena privativa de liberdade.


Como já comentado neste trabalho, o Estatuto dos Militares e o Regulamento Disciplinar para a Marinha foram recepcionados pela nova ordem constitucional.


Para alguns autores, como o Estatuto dos Militares que, em tese, é o nascedouro dos Regulamentos Disciplinares das Forças Armadas foi recepcionado pela nova ordem jurídica, poderia haver alterações no atual Regulamento Disciplinar para a Marinha por meio de Decreto-lei, sem maiores problemas; porém há quem defenda que qualquer nova alteração, após a Constituição de 1988, deverá ser submetida à votação pelo poder legislativo.


A prisão administrativa encontra-se sujeita ao controle jurisdicional em atendimento ao disposto no artigo 5º, inciso XXXV, da CF/88, onde diz que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.


Ainda Paulo Tadeu Rodrigues Rosa (2003, p.15):


“Os militares, por força de disposições regulamentares, encontram-se sujeitos aos princípios de hierarquia e disciplina, mas isso não significa que os direitos e garantias fundamentais possam ser desrespeitados. As instituições, no Estado de Direito, devem se submeter aos princípios que regem os direitos e garantias dos cidadãos, os quais são preservados pelo Estado sob pena de responsabilidade, em atendimento ao art. 37, § 6º, da CF.”


Segundo o autor (op. cit.), a vedação de cabimento de habeas corpus prevista no art. 142, § 2º, da CF/88, por mais que se conteste, fere flagrantemente o disposto no art. 5º, inciso LXVIII, da própria CF/88.


E conclui que, caso fosse intenção do legislador constituinte limitar o cabimento nas transgressões disciplinares, o teria feito expressamente no capítulo dos direitos e garantias fundamentais do cidadão.  


Por outro lado, Jorge César de Assis (2008, p.196), adepto da corrente moderada, diz que deve haver alguns cuidados antes da concessão de habeas corpus em sede de transgressão disciplinar:


“Princípios constitucionais como o da legalidade (art. 5º, II), e o da inafastabilidade do Poder Judiciário (art. 5º, XXXV), são sempre fundamentos, ao lado da alegada violação ao direito de ir e vir dos militares, frente a uma eventual e questionada aplicação de punição disciplinar restritiva de liberdade.”


E continuando, o autor (op. cit.) assevera:


“De plano se diga que há um impeditivo constitucional quanto à matéria (impossibilidade jurídica do pedido) calcada no art. 142, § 2º não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares. Este impeditivo está em harmonia como o inciso LXI, do art. 5º, do mesmo diploma – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente salvo os casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.”


O autor, com muita propriedade, entende que a proibição não é absoluta, em decorrência da inafastabilidade da apreciação do Poder Judiciário, estando restrita ao mérito do ato administrativo militar, que é prerrogativa do Comandante Militar.


Segundo o autor, o Poder Judiciário deverá restringir-se a três verificações: É competente a autoridade? Há previsão legal para a punição? Houve possibilidade para o exercício do direito de defesa?


Dentro do entendimento da corrente mais moderada, que nos parece a mais acertada, sempre que, de acordo com o previsto no regulamento disciplinar militar, o ato praticado for considerado “transgressão disciplinar” e a sanção aplicada pelo Comandante competente estiver dentro dos limites da legalidade, não se poderá conceder habeas corpus, sob pena de o judiciário estar inferindo em área específica militar e, por conseguinte, desconsiderar a divisão dos poderes, conforme previsto na Carta Maior.


3.3. Os efeitos da liminar em habeas corpus no seio da Tropa


Não há como negar que o exemplo é uma das formas mais persuasivas e convincentes no meio da tropa.  A disciplina e a hierarquia fazem parte do dia-a-dia na caserna e a possibilidade de concessão de liminar com o fim de impedir que a decisão do Comandante que julgou e puniu disciplinarmente um militar infrator seja cumprida de imediato, não parece um bom caminho para se trilhar, quando se busca manter o controle positivo da disciplina em um ambiente que congrega pessoas treinadas e condicionadas à obediência e ao cumprimento de deveres.


No dizer de Jorge César de Assis (2008, p.190):


“Poucas profissões têm por pilar básico a disciplina. Uma Força Armada é vista, pela sociedade, à qual pertence, como uma coletividade de indivíduos que devem abnegar seus interesses pessoais, anseios e temores para perseguir os objetivos da instituição que integram. O desapego à vontade individual engrandece e fortalece a capacidade face aos desafios e adversidades encontrados. A disciplina é uma importante ferramenta para que tal propósito seja alcançado.”


O autor continua: “[…] diferentemente da vida civil, a violação dos deveres militares exige uma rápida e eficaz ação da parte do Comandante, de forma a recompor a disciplina onde ela foi, em algum momento, violada.”


A preservação da disciplina e da hierarquia militares é fator fundamental para a sobrevivência das Organizações Militares. Quando um subordinado contrapõe-se ao superior, se não houver uma intervenção visando à correção imediata, o efeito gerado no seio da tropa será devastador e poderá enfraquecer o Comando, caso não seja utilizado o Regulamento Disciplinar, a fim de cumprir uma de suas obrigações que é zelar pela disciplina e eficiência da tropa.


Uma das missões do comandante de um quartel é manter a tropa coesa visando a cumprir as determinações constitucionais atribuídas à Força. Se a contravenção disciplinar não for prontamente corrigida, irá gerar um sentimento de impunidade e, naturalmente, outros militares irão seguir aquele exemplo, na certeza de que não haverá conseqüências administrativas, visando à correção de atitude, e a conseqüência natural seria a derrocada do organismo como um todo.


Jorge César de Assis (op. cit., p.191) assevera:


“[…] há que se adotar extrema cautela na expedição de liminares em pedido de habeas corpus em sede de transgressão disciplinar, não se olvidando que na realidade da Justiça Brasileira, o julgamento definitivo do pedido de habeas corpus, uma vez deferida a liminar pode (e isto ocorre freqüentemente) demorar mais de ano, ocasião em que o Comandante ficará de mãos atadas, isso sem contar igual ou superior prazo para julgamento do recurso de oficio na instância superior.”


No entendimento do autor retromencionado, que se alinha à corrente mais moderada, pelo fato de não estar previsto constitucionalmente o instituto do habeas corpus em transgressão disciplinar, seria razoável que o magistrado somente concedesse liminar se houvesse ilegalidade gritante, como no exemplo de a autoridade que impôs a punição não ser competente para aquela aplicação de pena, por não ter o militar punido sob sua subordinação.


Para Jorge César de Assis (op. cit., idem):


“Se um Comandante, Chefe ou Diretor (expressões equivalentes), determina a prisão de militar que não sirva sob seu comando estará cometendo um crime militar (constrangimento ilegal, seqüestro ou cárcere privado ou no mínimo, abuso de autoridade (Lei 4.898/65). Mas dessa hipótese, aventada à guisa de ilustração, não se tem noticia.”


O autor continua dizendo que os regulamentos disciplinares possuem um roteiro preestabelecido no tocante aos recursos disciplinares cabíveis, razão pela qual entende-se, até que ele se esgote, salvo flagrante e escancarada ilegalidade pelo caminho (a aplicação de punição disciplinar é um ato vinculado), que não se deve conceder liminar em habeas corpus, sob pena de supressão da instância administrativa.


O autor entende que, no caso de liminar liberatória, o magistrado deverá verificar se houve uma ilegalidade no cerceamento de liberdade do militar julgado; já no caso de liminar preventiva, ele entende que será muito difícil, porque não poderá ser concedida antes do julgamento disciplinar, e comenta que a única possibilidade será o caso de julgamento, após a apuração da falta e depois de registrado o referido julgamento, pois antes disso não haverá que falar em iminência de violência ou coação à liberdade, porque somente após o procedimento administrativo para apuração da infração será formado o juízo de valor e as convicções acerca do fato, não podendo o militar alegar qual será sua punição, de forma antecipada.


Em parecer do Procurador da República, Mário Pimentel Albuquerque, (2001 apud ASSIS, 2008, p.192), fica clara a complexidade de se alterar ou se flexibilizar o processo disciplinar nas Forças Armadas, tendo em vista suas peculiaridades:


A hierarquia e a disciplina constituem, por assim dizer, a própria essência das forças armadas. Se quisermos, portanto, preservar a integridade delas devemos começar pela tarefa de levantar um sólido obstáculo às pretensões do Judiciário, se é que existem, de tentar traduzir em conceitos jurídicos experiências vitais da caserna. Princípios como os da isonomia e da inafastabilidade do Judiciário têm pouco peso quando se trata de aferir situações específicas à luz dos valores constitucionais da hierarquia e da disciplina. O quartel é tão refratário àqueles princípios, como deve ser uma família coesa que se jacta de ter à sua frente um chefe com suficiente e acatada autoridade. E seria tão desastroso para a missão institucional das forças armadas que as ordens de um oficial pudessem ser contraditadas nos tribunais comuns, como para a coesão da família, se a legitimidade do pátrio poder dependesse, para ser exercido, do plebiscito da prole.


Princípios democráticos são muito bons onde há relações sociais de coordenação, mas não em situações especificas, onde a subordinação e a obediência são exigidas daqueles que, por imperativo moral, jurídico ou religioso, as devem aos seus superiores, sejam aqueles, filhos, soldados ou monges.


Se o Judiciário, por uma hipersensibilidade na aplicação dos aludidos princípios constitucionais, estimular ou der ensejo a feitos como os da espécie, pronto: os quartéis se superpovoariam de advogados e despachantes; uma continência exigida será tomada como afronta à dignidade do soldado e, como tal, contestada em nome da constituição; uma mera advertência, por motivo de desalinho ou má conduta, dará lugar a pendengas judiciais intermináveis, e com elas, a inexorável derrocada da hierarquia e da disciplina.


Da mesma forma que a vocação religiosa implica o sacrifício pessoal e do amor próprio – e poucos são os que a têm por temperamento – a militar requer a obediência incontestada e a subordinação confiante às determinações superiores, sem o que vã será a hierarquia, e inócuo o espírito castrense. Se um individuo não está vocacionado à carreira das armas, com o despojamento que ela exige, que procure seus objetivos no amplo domínio da vida civil, onde a liberdade e a livre-iniciativa constituem virtudes. Erra rotundamente quem pretende afirmar valores individuais onde, por necessidade indeclinável, só os coletivos têm a primazia. Comete erro maior, porém, quem, colimando a defesa dos primeiros, busca a cumplicidade do Judiciário para, deliberadamente ou não, socavar os segundos, ainda que aos nossos olhos profanos, lídimo possa parecer tal expediente e constitucional a pretensão através dele deduzida.”


O STF e STJ já se pronunciaram, conforme julgados constantes do item 3.4 e pacificaram o entendimento da possibilidade de liminar, com certas ressalvas, sempre levando em consideração o cometimento de arbitrariedade por parte da autoridade coatora, sem adentrar no mérito administrativo.


Um comandante, que tenha desconstituída uma decisão na qual puniu disciplinarmente um subordinado, de forma precipitada pelo judiciário, terá sérios problemas no interior do quartel, à medida que o subordinado passará a ser “venerado”, pelos pares, por ter “enfrentado o sistema”, o que pode servir para um encadeamento de condutas que somente servirá para desestabilizar a Força Armada como um todo. Sem dúvida alguma, essa é uma questão a ser enfrentada e, a nosso ver, uma preocupação que deve estar presente no judiciário, ao analisar um pedido de habeas corpus com pedido de liminar. 


3.4. Julgados dos tribunais


O STF já se posicionou sobre o assunto, entendendo que em habeas corpus em sede de transgressões disciplinares militares, se examinem os pressupostos de legalidade da transgressão, quanto à existência da correta hierarquia; se havia no caso apresentado o poder disciplinar, que legitima a punição; se o ato administrativo está coerente com a função de autoridade; e, finalmente, se a pena ao transgressor pode ser aplicada.


Nesse sentido, veja-se o Julgado do egrégio STF, em 4 de março de 1994, HC 70.6448-7-RJ (DJU, de 4-3-94, p. 3.289):


“Punições por transgressão militar STF: habeas-corpus. O sentido da restrição dele quanto às punições disciplinares militares (Art. 142, inciso II, da Constituição Federal). O entendimento relativo ao inciso II, do Art. 153 da Emenda Constitucional nº 1/69, segundo o qual o princípio, de que a transgressão disciplinar não cabia habeas-corpus, não impede que se examinasse, nele, a ocorrência dos quatro pressupostos de legalidade dessas transgressões (a hierarquia, o poder disciplinar, o ato ligado à função e a pena susceptível de ser aplicada disciplinarmente), continua válido para o disposto do inciso II, do art. 142 da atual Constituição que é apenas mais restritivo quanto ao âmbito dessas transgressões disciplinares, pois a limita às de natureza militar. Habeas-corpus deferido para que o STJ julgue o writ que foi impetrado perante ele, afastada a preliminar do seu não-conhecimento. Manutenção da liminar deferida no presente habeas-corpus até que o relator daquele possa apreciá-la, para mantê-la ou não.”


A posição do Superior Tribunal de Justiça, em algumas decisões, acatou o entendimento do STF, afirmando que não pode tal medida fugir ao controle jurisdicional e consolidando a respeito da restrição prevista no art. 142, § 2º, da Constituição Federal de 1988, ser limitada ao mérito do ato administrativo, conforme extraído da decisão no Processo nº 1999/0066031-5, Diário da Justiça, de 24-9-2001:


A proibição inserta no artigo 142, § 2º, da Constituição Federal, relativa ao incabimento de habeas corpus contra punições disciplinares militares, é limitada ao exame de mérito, não alcançando o exame formal do ato administrativo-disciplinar, tido como abusivo e, por força de natureza, próprio da competência da Justiça Castrense.


STJ: 1. Ao mesmo tempo em que a Constituição Federal reza em seu art. 142, inciso II, que não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares, dispõe ela em seu Art. 5º, inciso XXXV, que a Lei não excluirá de apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.


2. Assim, como qualquer outro ato administrativo, o ato de punições disciplinares não pode fugir ao controle jurisdicional no sentido de que seja aferida sua legalidade pelo exame dos requisitos de que deve achar-se revestidos.” (JSTJ 4/452).


STJ: A Constituição estatui no art. 142, inciso II, que não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares. Decorre das características da disciplina nas Forças Armadas e em outras instituições que lhe são reserva. Elabora-se, contudo, distinção. É inadequado para debater o mérito da sanção, idôneo, entretanto, para analisar o aspecto da legalidade e os pressupostos do próprio mérito.” (RSTJ 34/94).


Como já citado neste trabalho, a disciplina e hierarquia existente nas Forças Armadas, faz com que não seja de bom alvitre que uma decisão de Comando, devidamente motivada e legal, seja alvo de ingerência do Poder Judiciário, sob pena de invasão da atribuição garantida às autoridades militares relativamente aos regulamentos internos da Força Armada. É essencial que não haja interferência, sob pena de pôr em risco os pilares ali existentes. Nesse sentido, seguem os recursos em habeas corpus:


RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 12.867 – RS (2002/0056007-8)VOTO MINISTRA LAURITA VAZ (RELATORA). Inicialmente, impende dizer que o objeto do presente inconformismo persiste pois, com o ingresso na justiça do questionamento da legalidade da sanção disciplinar, foi suspenso o cumprimento da punição de detenção de 24 (vinte e quatro) horas imposta ao recorrente. Passo, a seguir, ao exame dos argumentos defensivos. Ao contrário do que se alega, observa-se, na hipótese, a competência da Justiça Castrense pois a conduta imputada ao recorrente, a qual foi objeto de sindicância administrativa, encontra-se plenamente enquadrada como transgressão disciplinar pelo Regimento Militar da Brigada sul-rio-grandense, o que infirma a competência da Justiça Comum, in verbis :[…] RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 12.867 – RS (2002/0056007-8)/Superior Tribunal de Justiça. Relatora: MINISTRA LAURITA VAZ. Julgado em 02/08/2005.


HABEAS CORPUS N° 33540-AM – SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR EMENTA: Militar. Punição disciplinar Habeas corpus com caráter preventivo com relação a um dos pacientes. A expressa vedação da lei, em caso de transgressão disciplinar, não comporta a utilização do remédio heróico (CF. art. 142, § 2º. CPPM, art. 466, parágrafo único. alínea – “a”). Pedido conhecido e ordem denegada, por falta de amparo legal. Diante disso o habeas corpus assume caráter preventivo com relação ao Sei. Oliveira. Contudo, em ambos os casos, trata-se de prisão decretada por autoridade competente e respaldada no Regulamento Disciplinar da Marinha, segundo as informações da autoridade coatora. A expressa vedação legal, em caso de transgressão disciplinar, não comporta a utilização do remédio heróico (Constituição Federal, art. 142, § 2º. e CPPM. art. 466, parágrafo único, alínea 8S.). Nessas condições, acordam os Ministros do Superior Tribunal Militar, à unanimidade, em conhecer do pedido e denegar a ordem, por falta de amparo legal. HABEAS CORPUS Nº 33540 – AM Superior Tribunal Militar. Relator: MINISTRO ALMIRANTE DOMINGOS ALFREDO SILVA. Julgado em 13/06/2000. (BRASIL, 2000).


4. MANDADO DE SEGURANÇA


4.1. Definição e breve histórico no Direito Brasileiro


De acordo com Celso Ribeiro Bastos (1998, p.236): “O mandado de segurança constitui uma forma judicial de tutela dos direitos subjetivos, ameaçados ou violados, seja qual for a autoridade responsável.” Assim, o autor define esse instituto, que foi desenvolvido a partir da própria evolução do conceito de Estado.


Pode-se dizer que mandado de segurança é o meio através do qual o Estado, por intermédio de um de seus órgãos, coíbe o abuso e a ilegalidade de outros representantes do próprio Estado.


Esse controle somente tornou-se possível com a separação das funções estatais vislumbradas por Montesquieu.


O Mandado de Segurança surgiu tanto no direito brasileiro quanto no estrangeiro, como uma evolução do habeas corpus.


Os autores entendem que esse fenômeno é natural, tendo em vista que o habeas corpus visou proteger um bem que o homem elegeu como prioritário, ou seja, sua liberdade.


Ocorreu que, por não existir um instrumento voltado à garantia de direitos que não o de locomoção, desenvolveu-se um movimento por meio da doutrina e jurisprudência brasileira no sentido de ampliar a utilização do habeas corpus, de forma que atendesse aos demais direitos até então não protegidos.


 O surgimento do Mandado de Segurança foi uma necessidade natural idealizada pela ampla utilização do habeas corpus e com o intuito de criação de um instituto que abrangesse os casos, até então sem proteção, ou seja, de violações diversas da liberdade de locomoção.


O embrião do Mandado de Segurança surgiu em 1922, por intermédio de parecer de Edmundo Muniz Barreto, que reclamava a criação de Instituto capaz de amparar de maneira sumária, as agressões ao direito, advindas de autoridade pública ou privada, tendo surgido em 1926, o primeiro projeto. (MEIRELLES, 2004).


Somente na Constituição de 1934, artigo 113, seria instituído o Remédio Constitucional, tão amplamente aclamado:


 “Dar-se-á Mandado de Segurança para a defesa de direito, certo e incontestável, ameaçado ou violado por ato manifestamente inconstitucional ou ilegal de qualquer autoridade. O processo será o mesmo do Hábeas-Corpus, devendo ser sempre ouvida a pessoa de direito público interessada. O Mandado de Segurança não prejudicará as ações petitórias competentes.”


Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2007, p.708) diz que “o mandado de segurança foi previsto, pela primeira vez, na constituição de 1934, desapareceu na Constituição de 1937 e voltou na Constituição de 1946”. Na verdade, foi o único momento em que, uma vez instituído, ficou fora das constituições, visto que, a partir de então, passou a figurar em todas as Cartas Constitucionais do País.


Ao pesquisar esta ação garantidora de direitos, verificou-se que foi o esforço da doutrina e do legislador nacional que, diante da necessidade e da realidade vivenciada no direito pátrio, conferiu ao mandado de segurança as modalidades jurídicas que hoje este instituto possui.


O mandado de segurança foi aperfeiçoado com o passar dos anos. Nas Cartas de 1946, 1967 e Emenda Constitucional de 1969, manteve-se com semelhança na redação, estando, na atual Carta Constitucional, posicionado no artigo 5º, LXIX, Título II, Dos direitos e Garantias Fundamentais, quando diz expressamente que:


“Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo não amparado por habeas corpus, ou hábeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade publica ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público.”


Na mesma linha, já dispunha o caput do artigo 1º, da Lei 1.533/51:


“Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus, sempre que, ilegalmente ou com abuso de poder, alguém sofrer violação ou houver justo receio de sofrê-la por parte de autoridade, seja de que categoria for ou seja quais forem as funções que exerça.”


Mandado de Segurança é o meio existente em nossa Carta Maior, disponibilizado a toda pessoa física ou jurídica, órgão com capacidade processual, assim como a universalidade reconhecida por lei, visando à proteção de direito individual ou coletivo, desde que, líquido e certo, e que não esteja amparado por habeas corpus ou habeas data.


Verificamos uma ampliação do elenco da legitimidade passiva referente ao mandado de segurança, quando se observa o previsto na Constituição Federal, artigo 5º, inciso LXIX, compreendendo-se nela autoridades públicas e agentes de pessoas jurídicas no exercício de atribuições do Poder Público.


Hely Lopes Meirelles (2004, p.33):


“Ato de autoridade é toda manifestação ou omissão do Poder Público ou de seus delegados, no desempenho de suas funções ou a pretexto de exercê-las. Por autoridade entende-se a pessoa física investida de poder de decisão dentro da esfera de competência que lhe é atribuída pela norma legal.”


O sujeito passivo será a autoridade coatora, configurada como a autoridade que praticou ou ordenou a execução ou inexecução do ato que está sendo fruto de impugnação pelo prejudicado. Essa autoridade será aquela que detenha competência para sanar a ilegalidade praticada.


Para Lúcia Valle Figueiredo (2004, p.23), o sujeito passivo, necessariamente, será pessoa jurídica, que irá suportar os encargos da decisão. Assim, serão sujeitos passivos, a União, os Estados, os Municípios ou delegados de serviço público, sejam dirigentes de estatais ou concessionárias de serviço.


Alexandre de Moraes (2005, p.169) assevera que “a indicação errônea da autoridade coatora afetará uma das condições da ação (legitimatio ad causam), acarretando, portanto, a extinção do processo, sem julgamento de mérito.”


Notamos que a atual Constituição inovou, ao prever também o mandado de segurança coletivo, conforme preceitua o seu artigo 5º, inciso LXX. A nova modalidade acabou por facilitar o acesso à justiça, quando permitiu que as pessoas jurídicas defendessem os direitos de seus membros ou associados.  Ao defender os direitos prejudicados desses associados, a nosso ver, o judiciário tornar-se-á mais célere por não mais necessitar julgar causas idênticas.


No dizer de Luís Roberto Barroso (1996, p.211), “trata-se do velho mandado de segurança com algumas significativas inovações ao ângulo subjetivo e objetivo”.


Para Lúcia Valle Figueiredo (2004, p.20), o artigo 5º, incisos LXIX e LXX, “proporcionaram uma dilatação da garantia insculpida na Constituição anterior”.


Essa garantia foi estendida em relação à conduta de particulares, quando exercendo atividades delegadas pelo poder público, como no caso de concessionárias ou estatais.


O mandado de segurança é um mecanismo de controle judicial da atividade administrativa. Ao administrado é possibilitada uma correção compulsória de um ato praticado pelo poder estatal, por meio do administrador que seja marcado pela ilegalidade ou abuso de poder.


O mandado de segurança poderá ser repressivo, quando se prestar ao ataque de ilegalidade já cometida, existindo também o preventivo, quando o indivíduo possui receio de que venha a sofrer violação de direito líquido e certo por parte da autoridade pública.


O prazo para impetrá-lo é de 120 dias, sendo contado após o desrespeito do direito líquido e certo do interessado. No caso de prescrição desse prazo, ou no caso do direito não ser líquido, o interessado ainda poderá utilizar uma ação judicial ordinária, visto que esse instituto visa a uma proteção rápida de direito violado.


Para Dircêo Torrecillas Ramos (1998, p.26), “a utilidade prática do mandado de segurança é a sua celeridade. A decisão tem de ser rápida e admite a medida liminar protegendo o direito violado, para posterior exame do assunto”.


Alexandre de Moraes (2004, p.171) diz que:


“O prazo para impetrar mandado de segurança, que é de cento e vinte dias, começa a fluir da ciência, pelo interessado, do ato a ser impugnado (Lei nº 1.533/51, art. 18). Geralmente conta-se o prazo a partir da publicação no Diário Oficial ou pela notificação individual do ato a ser impugnado, que lesa ou ameaça violar direito líquido e certo. Estas são as duas formas conhecidas de publicidade do ato administrativo. A comunicação pessoal, feita ao titular do direito, depois de decorrido o prazo de cento e vinte dias, não tem a virtude de reabrir o prazo já esgotado. Tal prazo extintivo, uma vez iniciado, continuamente; não se suspende nem se interrompe.”


O autor supra mencionado também comenta em sua obra que, em se tratando de Mandado de Segurança preventivo, inexistirá aplicação de prazo decadencial de 120 dias.


A doutrina considera o Mandado de Segurança como sendo a defesa mais eficaz contra a ilegalidade ou abuso do poder, que atinge os direitos fundamentais do homem, por parte da autoridade.


No entendimento de Alexandre de Moraes, sobre a abrangência do mandado de segurança (2004, p.165), “o âmbito de incidência do mandado de segurança é definido residualmente, pois somente caberá seu ajuizamento quando o direito líquido e certo a ser protegido não for amparado por habeas corpus […]”.


Os pressupostos para a concessão do mandado de segurança em sede de  liminar, são os requisitos: Fumus boni juris (fumaça do bom direito, significando que há uma grande probabilidade de a situação levada ao judiciário ser verdadeira e por isso deve ela ser juridicamente protegida, de antemão) e o periculum in mora (perigo na demora, significando que haverá dano irremediável à pessoa que pede a medida judicial, caso essa não seja imediatamente executada).


Ao finalizar este tópico, que teve como objetivo traçar, de forma breve, o histórico do mandado de segurança, é imperioso afirmar que este remédio constitucional ao lado do habeas corpus é o mais valioso instrumentos disponibilizados pelo legislador constitucional para que o indivíduo possa fazer frente às ilegalidades, passíveis de serem cometidas pelos agentes públicos.


4.2. Direito líquido e certo


É pressuposto do mandado de segurança o direito líquido (claro, transparente) e certo (definido, evidente), não amparado por habeas corpus e ato praticado por autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de suas atribuições.


Com relação ao direito líquido e certo, Lúcia Valle Figueiredo (2004, p.20) diz que “o conceito deve ser extraído do problema factual. Quer dizer, os fatos têm de ser incontroversos. Se os fatos forem incontroversos, o direito será sempre certo”.


Existe uma nitidez no Direito que se expõe sem necessidade de grande esforço para compreendê-lo; além disso, para comprovar o direito líquido e certo, as provas, ou seja, a documentação deverá vir junto com a petição inicial, para que a caracterização seja apresentada, de pronto, ao poder judiciário.


Para Alexandre de Moraes (2005, p.167), “direito líquido e certo é o que resulta de fato certo, ou seja, é aquele capaz de ser comprovado, de plano, por documentação inequívoca.” Segundo o autor, a imprecisão e incerteza recairão sobre aqueles fatos sobre os quais venha necessitar de comprovação.


A liquidez e certeza do direito são requisitos de admissibilidade da ação, que, se não apresentados de forma clara, ensejarão a inépcia da inicial, como assevera Lúcia Valle Figueiredo (2004, p.21):


“O direito líquido e certo aparece em duas fases distintas no mandado de segurança. Aparece, inicialmente, como condição da ação. É o direito liquido e certo, ao lado das demais condições de ação, requisito de admissibilidade do mandado de segurança.”


Helly Lopes Meirelles (2004, p.36) traz uma importante contribuição acerca de direito líquido e certo, quando diz que:


“[…] é o que se apresenta manifesto na sua existência, delimitado na sua extensão e apto a ser exercitado no momento da impetração. Por outras palavras, o direito invocado, para ser amparável por mandado de segurança, há de vir expresso em norma legal e trazer em si todos os requisitos e condições de sua aplicação ao impetrante: se sua existência for duvidosa; se sua extensão ainda não estiver delimitada; se seu exercício depender de situações e fatos ainda indeterminados, não rende ensejo à segurança, embora possa ser defendido por outros meios judiciais.”


No dizer de Lúcia Valle Figueiredo (2004, p.31), direito líquido e certo é aquele “que não se submete a controvérsias factuais”.


Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2006 apud ASSIS, 2008, p.311), ao dissertar sobre o tema, diz que “hoje está pacificado o entendimento de que a liquidez e certeza referem-se aos fatos; estando estes devidamente provados, as dificuldades com relação à interpretação do direito serão resolvidas pelo juiz”.


4.3. Modalidades de Mandado de Segurança


O mandado de segurança poderá ser individual ou coletivo de acordo com os interesses que estejam sendo discutidos. Quando se tratar de interesse de uma só pessoa e não de sua categoria, corporação ou associação de classe, estará tratando da modalidade individual de mandado de segurança e, em caso contrário, se o direito que estiver sendo discutido disser respeito aos indivíduos das entidades retro mencionadas, teremos a modalidade coletiva.


Segundo Hely Lopes Meirelles (2004, p.38), a Constituição atual criou o mandado de segurança coletivo, que poderá ser impetrado por partido político, organização sindical e entidade de classe ou associação.


Esse remédio constitucional está previsto na Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LXX e alíneas:


“LXX – o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por:


a) partido político com representação no Congresso nacional;


b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados.”


A doutrinadora Lúcia Valle Figueiredo (2002, p.52), critica a forma de criação do mandado de segurança coletivo pela Constituição de 1988, dizendo que ainda irá demorar até que haja doutrina e jurisprudência pacífica sobre sua utilização.


4.4. Cabimento de Mandado de Segurança em Punições Disciplinares na Marinha do Brasil


Conforme pôde-se depreender dos capítulos anteriores, a Carta Magna previu ações específicas para a realização do controle da Administração Pública, também chamadas de remédios constitucionais, sendo objeto deste estudo o habeas corpus, previsto no artigo 5º, LXVII e o mandado de segurança individual, previsto no artigo 5º, LXIX.


O mandado de segurança individual está disposto no artigo 5º, da Constituição Federal, no capítulo que trata dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, nos seguintes termos:


“Art. 5º Todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:


LXIX – conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do poder público.”


Segundo Jorge César de Assis (2008, p.310), mandado de segurança individual:


“Trata-se de ação civil de rito sumaríssimo pela qual o servidor militar pode provocar o controle jurisdicional sempre que sofrer lesão ou ameaça de lesão a direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus nem por habeas data, em decorrência de ato de autoridade militar, praticado com ilegalidade ou abuso de poder.”


Pela leitura e interpretação do previsto no artigo 1º, da Lei 1.533, de 31-12-1951, que trata do mandado de segurança, podemos depreender que persistirá a possibilidade do mandado de segurança individual repressivo, no caso de já ter havido a violação do direito e do preventivo quando o militar tiver justo receio de que terá violado o seu direito.


A Lei 1.533, de 31-12-1951, dispõe o acima mencionado nos seguintes termos:


Art. 1º Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas-corpus, sempre que, ilegalmente ou com abuso do poder, alguém sofrer violação ou houver justo receio de sofrê-la por parte de autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que exerça.


§ 1º Consideram-se autoridade para os efeitos desta lei os administradores ou representantes das entidades autárquicas e das pessoas naturais ou jurídicas com funções delegadas do poder público, somente no que entende com essas funções.


§ 2º Quando o direito ameaçado ou violado couber a várias pessoas, qualquer delas poderá requerer o mandado de segurança.” (grifo do autor)


O artigo 5º, da Lei nº 1.533/51, traz uma vedação que se reveste de importância ao nosso estudo monográfico relativo aos militares, quando dispõe:


Não se dará mandado de segurança quando se tratar:


I – de ato de que caiba recurso administrativo com efeito suspensivo, independente de caução;


II – de despacho ou decisão judicial, quando haja recurso previsto nas leis processuais ou possa ser modificado por via de correição;


III – de ato disciplinar, salvo quando praticado por autoridade incompetente ou com inobservância de formalidade essencial.”


Em uma análise superficial, seria simples concluir que, em relação ao inciso I, do artigo retromencionado, o mandado de segurança somente poderia ser impetrado depois de esgotada a via administrativa e, sobre o inciso III do mesmo artigo, as questões disciplinares militares estariam fora da possibilidade de apreciação, pelo judiciário, no caso de ilegalidade cometida pelo administrador público militar.


Com relação à primeira restrição, onde está impedido o mandado de segurança contra ato de que caiba recurso administrativo, com efeito, suspensivo, independente de caução, o autor Assis se pronuncia (2008, p.314):


“Se a lei ou decreto prevê expressamente o efeito suspensivo do recurso, o ato punitivo não gera efeitos, de sorte que não causa nenhuma lesão enquanto o recurso não for decidido. Falta, portanto, uma das condições da ação que é o interesse de agir. Como exemplo, citamos o Código de Ética e Disciplina dos Militares de Minas Gerais, o regulamento Disciplinar da Polícia de São Paulo e o Regulamento Disciplinar da Brigada Militar do Estado do Rio Grande do Sul, onde o efeito suspensivo dos recursos disciplinares é previsto.”


Dessa maneira, na hipótese de julgamento proferido por autoridade pública militar e existindo a possibilidade no regulamento disciplinar de recurso com efeito suspensivo, não se teria ameaça de direito, enquanto pendente o recurso administrativo e, por conseguinte, prejudicada estaria a impetração do mandado de segurança.


Com relação à segunda restrição, que trata da impetração contra ato disciplinar, salvo quando praticado por autoridade incompetente ou com inobservância de formalidade essencial, o autor pondera (2008, p.314):


“[…] deve ser interpretado com cautela, sob pena de se inviabilizar o recurso ao mandado de segurança no direito disciplinar militar. A Lei 1.533 é de 1951, devemos, por óbvio, adapta-la ao mandamento constitucional que assegura o remédio da segurança e a inafastabilidade do acesso ao Judiciário. Com isso queremos dizer que o fato de ser ato disciplinar não tem mais o condão de restringir o alcance do mandado de segurança, e a análise de seu cabimento, e da viabilidade da concessão ou não da segurança pleiteada, far-se-á no caso concreto, pelo magistrado.”


O autor refere-se ao previsto na norma constitucional contida no artigo 5º, inciso XXXV, que diz: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.


Para Hely Lopes Meirelles (2005, p.43):


“[…] não está obrigando o particular exaurir a via administrativa, para, após utilizar-se da via judiciária. Está, apenas, condicionando a impetração à operatividade ou exeqüibilidade do ato a ser impugnado perante o judiciário. Se o recurso suspensivo for utilizado, ter-se-á que aguardar o julgamento, para atacar-se o ato final; se transcorre o prazo para o recurso, ou se a parte renuncia à sua interposição, o ato se torna operante e exeqüível pela Administração, ensejando desde logo a impetração. O que não se admite é a concomitância do recurso administrativo (com efeito suspensivo) com o mandado de segurança, porque, se os efeitos do ato já estão sobrestados pelo recurso hierárquico, nenhuma lesão produzirá enquanto não se tornar exeqüível e operante.”


O renomado autor retromencionado, que outrora entendia não caber mandado de segurança contra ato disciplinar, diante dos argumentos do Ministro Carlos Velloso o qual se apoiara em fundamentado acórdão do TFR (MS N. 85.850-DF), modificou sua posição, escrevendo (2005, p.54):


“Rendemo-nos ao seu entendimento, que considera a restrição da lei incompatível com a amplitude constitucional do mandamus. Realmente, se a Constituição vigente concede a segurança para proteger todo direito líquido e certo não amparado por habeas corpus, qualquer que seja a autoridade ofensora (art. 5º, LXIX), não se legitima a exclusão dos atos disciplinares, que, embora formalmente corretos e expedidos por autoridade competente, podem ser ilegais e abusivos no mérito, a exigir pronta correção mandamental.”


Com entendimento divergente, temos Lúcia Valle Figueiredo (2004, p. 22), para quem não cabe Mandado de Segurança no caso de pendência de recurso administrativo com efeito suspensivo, por compreender que, nesse caso, o ato do administrador não está constrangendo ninguém, visto que está sob o efeito suspensivo, até o julgamento do recurso.


Segundo Lúcia Valle Figueiredo, (op. cit., idem):


“Não constrange, não pode constranger, porque o efeito é suspensivo. Vale dizer, a eficácia do ato deixa de existir. Deveras, se o ato tem efeito suspensivo, a parte não pode buscar a proteção do Judiciário, a não ser que desista do recurso, pois não existe qualquer ato a constrangê-la indevidamente. Destarte, não haveria interesse processual.”


Ainda na doutrina atual, encontra-se a posição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2007, p.715), que entende que a restrição da Lei nº 1.533/51 sobre a imposição de mandado de segurança contra ato que caiba recurso administrativo, com efeito, suspensivo, somente será cabível se o interessado, de fato, tiver recorrido administrativamente, caso em que teria que aguardar o julgamento do recurso, ou mesmo aguardar propositadamente o término do prazo do recurso, não podendo utilizar-se das duas modalidades, ou seja, impetrar o recurso e concomitantemente, o mandado de segurança.


Nesse sentido, Maria Sylvia Zanella Di Pietro discorre, fazendo alusão ao disposto na lei acima comentada (2007, p.715):


“Com base nesse dispositivo, alguns entendem que, sendo cabível recurso administrativo com efeito suspensivo, é necessária a prévia exaustão das vias administrativas para propositura do mandado. Houve julgados nesse sentido” (STF, in Arquivo Judiciário, v. 112/63; Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, in RF 118/512).


Ainda nas palavras de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, (2007, p.714):


“A jurisprudência evoluiu para admitir o mandado de segurança, mesmo que seja cabível o recurso administrativo com efeito suspensivo, desde que o interessado tenha deixado escoar o prazo, sem recorrer.[…] Na realidade, a exaustão das vias administrativas ocorre quer na hipótese de propositura de todos os recursos cabíveis, com a decisão final do último, quer na hipótese de perda do prazo para recorrer. Assim, se o interessado não quiser recorrer administrativamente, poderá deixar escoar o prazo ou renunciar ao recurso administrativo e impetrar a segurança; o que não pode é propor a ação enquanto pendente de decisão o recurso com efeito suspensivo.” (grifo da autora).


A autora ainda chama a atenção para os casos em que o recurso administrativo não tenha efeito suspensivo. Ter-se-ia situação não prevista na Lei nº 1.533/51 e, conseqüentemente, possibilitaria a impetração de mandado de segurança, independentemente do recurso. O problema que poderá ocorrer é que, se o interessado interpuser recurso, e ao mesmo tempo, o mandado de segurança, ocorrerá a mudança de autoridade coatora, visto que, com o recurso, ter-se-á uma outra autoridade julgando o instrumento interposto, mudando também a competência jurisdicional para decisão do mandado. Diante desse raciocínio, depreende-se que a propositura do mandado de segurança implica desistência do recurso administrativo. (DI PIETRO, 2007)


Assim, levando-se em consideração a doutrina dominante de que devemos analisar o previsto no inciso I da Lei nº 1.533, de 31 de dezembro de 1951, concomitantemente com o previsto no inciso XXXV, do artigo 5º, da Carta Magna vigente, “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, no que diz respeito ao cabimento do mandado de segurança, entendemos que o Regulamento Disciplinar para a Marinha, não apresenta efeito suspensivo no recurso à autoridade superior, em face de julgamento disciplinar, como se pode depreender do texto:


Aquele a quem for imposta pena disciplinar poderá verbalmente ou por escrito, por via hierárquica e em termos respeitosos, recorrer à autoridade superior à que a impôs, pedindo sua anulação ou modificação, com prévia licença da mesma autoridade.


§ 1º – o recurso deve ser interposto após o cumprimento da pena e dentro do prazo de oito dias úteis.(grifei)


Nesse ponto há uma questão que, em tese, precisará ser resolvida pela administração, visto que, em um caso de julgamento disciplinar militar que estivesse eivado de ilegalidade, necessariamente poder-se-ia ingressar com mandado de segurança, visto que impossível seria aguardar o resultado do recurso, por já haver o prejuízo ao jurisdicionado, e inócuo será um resultado de um recurso que anule a pena aplicada por já existir o dano ao interessado, visto que a pena já fora cumprida.


Dessa maneira, concordamos com Jorge César de Assis, quando diz que essa limitação deve ser compreendida com cautela pelos magistrados, sob pena de haver a inviabilização do remédio constitucional em sede de direito disciplinar militar, fato este corroborado com o entendimento de Maria Sylvia Zanella di Pietro. Entendemos ser possível a propositura do remédio constitucional em sede de transgressão disciplinar, desde que o interessado desista de interpor recurso administrativo, sendo mesmo impossível quando do cumprimento de pena disciplinar aplicada pelo Comandante da unidade militar, pelo previsto no Regulamento Disciplinar retromencionado, onde o recurso administrativo requer, de pronto, o cumprimento da pena imposta.


A nosso ver, o remédio Constitucional Mandado de Segurança em sede de transgressão disciplinar na Marinha é cabível, visto que não o é, a priori, o habeas corpus, por vedação expressa na Constituição. É importante, ainda, levar em consideração que o mandado de segurança é o remédio oportuno quando não for possível a utilização do primeiro e, ainda, que o recurso em sede de cumprimento de pena disciplinar, interposto pelo interessado, não trará efeito suspensivo do cumprimento da pena, sendo, pelo contrário, exigido o seu cumprimento para, então, haver a propositura do aludido recurso, que poderá seguir a cadeia hierárquica, até o mais alto grau dentro da instituição e terá, como possibilidade, o cancelamento da punição aplicada com retificação nos assentamentos do militar.


Aspecto importante é o prazo para a impetração de 120 dias da ciência, pelo interessado, do ato a ser impugnado. Segundo Assis, (2008, p.315), esse entendimento já foi pacificado pelo Supremo Tribunal Federal.


Corroborando com esse entendimento, o ministro do STF, Celso de Mello proferiu um ensinamento invulgar, ao tratar da limitação do poder estatal:


“A constituição Brasileira de 1988 prestigiou os instrumentos de tutela jurisdicional das liberdades individuais ou coletivas e submeteu o exercício do Poder Estatal – como convém a uma sociedade democrática e livre – ao controle do Poder Judiciário. Inobstante estruturalmente desiguais, as relações entre o estado e os indivíduos processam-se, no plano de nossa organização constitucional, sob o império estrito da lei. A rule oflaw, mais do que um simples legado histórico-cultural, constitui, no âmbito dos sistema jurídico vigente no Brasil, pressuposto conceitual do estado democrático de direito e fator de contenção do arbítrio daqueles que exercem o poder. É preciso evoluir, cada vez mais, no sentido da completa justiciabilidade da atividade estatal e fortalecer o postulado da inadatibilidade de toda e qualquer fiscalização judicial. A progressiva redução e eliminação dos círculos de imunidade do poder há de gerar, como expressivo efeito conseqüencial, a interdição de seu exercício abusivo. O Mandado de Segurança desempenha, nesse contexto, uma função instrumental do maior relevo. A impugnação judicial de ato disciplinar, mediante utilização desse writ constitucional, legitima-se em face de três situações possíveis, decorrentes (1) da incompetência da autoridade, (2) da inobservância das formalidades essenciais e (3) da ilegalidade da sanção disciplinar. A pertinência jurídica do Mandado de Segurança, em tais hipóteses, justifica a admissibilidade do controle jurisdicional sobre a legalidade dos atos punitivos emanados da administração pública no concreto exercício do seu poder disciplinar. O que os juízes e Tribunais somente não podem examinar nesse tema, até mesmo como natural decorrência do princípio da separação de poderes, são a conveniência, a utilidade, a oportunidade e a necessidade da punição disciplinar. Isso não significa, porém, a impossibilidade de o Judiciário verificar se existe, ou não, causa legitima que autorize a imposição da sanção disciplinar. O que se lhe veda, nesse âmbito, é tão-somente, o exame do mérito da decisão administrativa, por tratar-se de elemento temático da administração pública. 2. A Nova Constituição do Brasil instituiu, em favor dos indiciados em processo administrativo, a garantia do contraditório e da plenitude de defesa, com os meios e recursos a ela inerentes 9art. 5º, LV). O legislador constituinte consagrou, em norma fundamental, um direito do servidor público oponível ao poder estatal. A explícita constitucionalização dessa garantia de ordem jurídica, na esfera do procedimento administrativo-disciplinar, representa um fator de clara limitação dos poderes da administração pública e de correspondente intensificação do grau de proteção jurisdicional dispensada aos direitos dos agentes públicos”. (STF – MS 20.999 – DF – T.P. – Rel. Min. Celso de Mello – DJU 25.05.1990).(grifo do autor).


Em sua obra sobre Direito Disciplinar Militar, Jorge César de Assis (2008, p.311) explana que, tendo em vista o fato do mandado de segurança ser ação que não prevê fase de instrução, necessário e imperioso que o interessado consiga comprovar, na petição inicial, todos os argumentos visando a rechaçar qualquer dúvida, visto que a liquidez e certeza do direito lesado deverão estar claramente presentes, sob pena de extinção do processo sem julgamento do mérito, sendo exceção a essa regra o previsto no artigo 6º, parágrafo único, da Lei 1.533/51, referente ao não fornecimento de documento pela autoridade pública.


Com relação aos efeitos oriundos de impetração de mandado de segurança em sede de transgressão disciplinar, segundo entendimento de Jorge César de Assis (2008, p.311), o militar necessariamente deverá buscar os direitos constitucionalmente franqueados aos cidadãos, passando pelo contraditório e ampla defesa:


“Via de regra, no procedimento de apuração da falta disciplinar ordinária ou no procedimento administrativo disciplinar militar, a incidência de mandado de segurança visará garantir o direito ao contraditório e ampla defesa; o direito à observância do devido processo legal em face dos ritos previsto nas leis e regulamentos; o direito do advogado de ter acesso aos autos de seu constituinte, tomar notas e mesmo retirar os autos sob carga etc.”


Farlei Martins de Oliveira (2005, p.166), sobre a aplicabilidade do mandado de segurança em sede de transgressão disciplinar aplicada, ensina que:


“Na via célere do mandado de segurança, para que a sanção disciplinar seja considerada ilegal é necessário que o punido ofereça a prova pré-constituída do alegado. Só assim, a legalidade juris tantum do ato pode ser desconstituída. Nesse sentido, várias são as decisões dos Tribunais Regionais, do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.”


O autor prossegue, afirmando que (op. cit., p.167):


“Se concedida a medida liminar em mandado de segurança, presentes os requisitos do artigo 7º da Lei nº 1.533/51, o fundamento genérico será sempre o da “suspensão” dos efeitos do ato administrativo, e não a sua “desconstituição”. O controle final da legalidade, se concedida a segurança, é que dará pela ineficácia do ato, em si mesmo considerado e julgado.”


Podemos aduzir, pelo acima exposto, que em um caso concreto, se um militar que tiver cometido uma transgressão não tiver oportunizado durante o procedimento de averiguação, o contraditório e ampla defesa, e tendo sido julgado por autoridade incompetente, por exemplo, ter-se-á um ato administrativo eivado de ilegalidades e facilmente comprovado por meio de provas que serão apresentadas por ocasião da impetração do mandado de segurança competente, com pedido de liminar. O juiz, ouvida a autoridade pública militar, poderá determinar, verificando o alegado, a suspensão dos efeitos do ato administrativo, até que seja julgado em definitivo o mandado de segurança.


Com relação à autoridade militar coatora no Direito Disciplinar Militar, no dizer de Jorge César de Assis (2008, p.312), “será aquela autoridade militar responsável pelo ato disciplinar questionado; via de regra, o comandante que determina a instauração de processo administrativo ou o procedimento de apuração da falta disciplinar”.


Para o autor, (2008, p.312), legitimado passivo do mandado de segurança é a pessoa jurídica de direito público (a União, os Estados e o Distrito Federal), enquanto o impetrado será exatamente a autoridade apontada como coatora.


Por esse entendimento, caso um militar venha ser punido, tendo em vista ter cometido transgressão disciplinar e durante o procedimento de julgamento administrativo, por seu Comandante, entenda que houve afronta a direito líquido e certo, conforme previsto na Constituição Federal, decidindo valer-se do mandado de segurança, será o comandante, a autoridade coatora, que irá prestar os esclarecimentos, enquanto a União figurará no pólo passivo da ação.


Esse entendimento é afastado por Maria Sylvia Zanella Di Pietro, para quem os questionamentos realizados pelo Judiciário serão direcionados à pessoa jurídica, que os responderá por meio dos advogados da União ou dos procuradores dos Estados e Distrito Federal e não pela pessoa da autoridade coatora, que será o impetrado.


Com relação ao mandado de segurança coletivo, a doutrina dominante é no sentido da não possibilidade em sede de transgressão disciplinar, tendo em vista a própria condição do militar e as vedações constitucionais, entre elas a contida no artigo 142, § 3º, incisos IV e V, sobre a filiação a partidos políticos e sindicato, enquanto permanecer na atividade militar.


Sobre esse assunto, Jorge César de Assis (2008, p.314) ensina:


“Analisando-se a hipótese sob a ótica do Direito Disciplinar Militar, independente de outras considerações, entendemos que o Partido Político não pode impetrar mandado de segurança coletivo para assegurar direito de militar submetido ao procedimento de apuração de falta disciplinar, principalmente tendo em vista que é a própria Constituição Federal, em seu art. 142, § 3º, inc. V, que assevera que o militar, enquanto em serviço ativo, não pode estar filiado a partidos políticos, sendo certo que o constituinte pretendeu manter o caráter apolítico das Forças Armadas e Auxiliares que ficaria comprometido se fosse dado aos partidos políticos imiscuírem-se na relação entre o militar faltoso e a organização militar a que pertence”.


E continua o autor (op. cit., idem):


“O raciocínio vale igualmente para o sindicato ante a vedação do art. 142, § 3º, inc. IV, não sendo crível aceitar que, estando os militares proibidos de pertencerem a sindicatos, estivessem estes autorizados a defendê-los em um procedimento tão peculiar quanto a apuração da falta disciplinar.”


CONCLUSÃO


Ao concluir este trabalho monográfico, tendo analisado as correntes existentes sobre o assunto, percebemos que, embora a doutrina não esteja pacificada, a punição disciplinar, aos moldes do que acontece com a administração pública em geral, inclusive no poder judiciário e no poder legislativo, é a maneira disponível na administração militar, para que o Comandante da Unidade mantenha a normalidade no quartel e, sobretudo, a disciplina de seus subordinados.


As penas disciplinares militares são penas funcionais, tanto quanto aquelas ocorridas nos Órgãos acima mencionados, sendo sua finalidade reprimir a transgressão disciplinar para que não se repita e, seu objetivo principal, o funcionamento normal do serviço.


O problema abordado foi se um militar, julgado administrativamente por seu Comandante, poderia interpor contra este os remédios constitucionais habeas corpus e de mandado de segurança, com o objetivo de desconstituir a medida administrativa imposta, tendo em vista o previsto no art. 142, § 2º da Constituição de 1988, e também no inciso III, do artigo 5º, da Lei nº 1.533, de 31-12-1951, onde, expressamente, encontra-se vedação da concessão de habeas corpus e de mandado de segurança nas punições disciplinares militares.


As Forças Armadas são instituições baseadas na hierarquia e na disciplina. A expressão transgressão disciplinar militar está diretamente relacionada com a hierarquia e o dever de obediência. O poder disciplinar pressupõe a atribuição de direito de punir disciplinarmente, com intervenção mínima do poder judiciário.


Se houver hierarquia, ter-se-á o chamado poder disciplinar, ato disciplinar e pena disciplinar. Nesse diapasão, qualquer interferência desenfreada do judiciário, seria ferir, de morte, as bases e o direito de comando das Forças Armadas. Assim, havendo punição (ato exclusivamente disciplinar), dentro dos limites da razoabilidade e da proporcionalidade, sendo disponibilizado ao acusado o princípio do contraditório e o da ampla defesa e existindo os pressupostos da hierarquia e da disciplina, não se pode falar em concessão de habeas corpus nem mandado de segurança em sede de transgressão disciplinar na Marinha do Brasil.


Em nosso entendimento, ao Poder Judiciário é permitido apreciar a inconstitucionalidade ou a ilegalidade dos atos dos poderes públicos, e não verificar se as decisões foram justas ou injustas no que disser respeito ao poder discricionário de cada órgão independente.


O habeas corpus e mandado de segurança não podem ser concedidos para impedir que a autoridade competente exerça atos que se compreendem na esfera das suas atribuições legais e mesmo constitucionais.


O Comandante de um quartel, como administrador público especial que é, tem o poder discricionário de aplicar as punições previstas nos regulamentos, com as respectivas cláusulas de agravamento ou atenuação da conduta aos seus subordinados, levando em consideração os critérios de conveniência e oportunidade, valorando o motivo e escolhendo o objeto do ato, caso seja conveniente, oportuna e necessária a sua realização.


Entendemos, com relação ao cabimento de habeas corpus em sede de transgressão disciplinar, que o militar somente poderá ingressar com pedido desse remédio constitucional, e o judiciário somente o conhecerá, em caso de manifesta ilegalidade e abuso de poder; do contrário, seguindo a corrente moderada, não poderá o Judiciário adentrar no mérito administrativo militar relativo à oportunidade e conveniência do ato praticado, visto que é prerrogativa do Comandante, sob pena de motivar uma onda de insubordinação no interior dos quartéis e uma desmoralização da figura do Comandante que tem a obrigação de manter a disciplina e fazer cumprir a missão e o propósito para os quais o quartel fora criado.


Com relação ao cabimento de mandado de segurança em sede de transgressão disciplinar, entendemos que, havendo ilegalidade e abuso de poder, será cabível, visto que não o é, a priori, o habeas corpus, por vedação expressa na Constituição e pelo fato do recurso em sede de pena disciplinar não possuir efeito suspensivo do cumprimento da pena, sendo, pelo contrário, exigido o seu cumprimento.


A administração pública militar de nosso país exige uma indissociável relação entre o poder de mando dos Comandantes e o dever de obediência de seus subordinados e esta relação está tutelada pelos regulamentos disciplinares e pela legislação penal militar. Assim, o chamado mérito administrativo, o poder judiciário não poderá analisar, sob pena de comprometimento da independência e autonomia dos poderes. O poder judiciário não poderá “invadir” o poder executivo, pois se assim fizer, estará contrariando a tripartição de poderes e, na tentativa de aplicar a justiça, em busca da paz social, tornar-se-á um usurpador de poderes.


 


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Notas:

[1] Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969.

[2] Juramento à bandeira contido no Decreto nº 2.243, de 3 de junho de 1997. 

[3] Lei nº 6.880, de 9 de dezembro de 1980.

[4] Decreto nº 88.545, de 26 de julho de 1983.

[5] DGPM 315 – Normas sobre deserção, Conselho de Disciplina / Justificação, sindicância […]


Informações Sobre o Autor

Francisco José Martins Cavalcante

Acadêmico de Direito na Universidade Federal do Rio Grande – FURG


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