Direito Privado e Racionalidade: um novo paradigma

1.Introdução


O presente trabalho destina-se a algumas reflexões sobre o atual contexto em que está inserido o direito privado, contexto este de transformações, tanto no plano do direito positivo como no âmbito da representação do pensamento jurídico especializado. O entendimento é de que tal contexto de mudanças pode ser melhor compreendido a partir da instrumentalização do conceito de racionalidade jurídica. Para tanto, urge delimitar e precisar melhor a noção de racionalidade jurídica, já que a proposta que emerge das conclusões deste trabalho, sinalizam para a riqueza e alto potencial heurístico deste conceito, para viabilizar-nos uma melhor compreensão do momento atual porque passa o direito privado  de um modo geral e, em especial do direito civil.


A interdisciplinariedade tem se constituído em exigência inarredável para uma plausível análise científica, o que implica no reconhecimento do caráter complexo com que se apresenta a realidade que buscamos conhecer. Com efeito, neste trabalho procuro um diálogo entre a sociologia e a ciência jurídica, ao mesmo tempo em que visualizo duas dimensões da realidade jurídica, procurando contemplá-las a partir da constatação de um mesmo processo ao qual ambas estariam sujeitas: a jurisdição e o direito positivo dos contratos. 


2. A racionalidade jurídica e o contexto atual do direito privado


2.1.A matriz weberiana


Max WEBER foi o teórico que utilizou a noção de racionalidade de modo mais bem sistematizado, constituindo-se, inclusive, em instrumento heurístico de primeiro plano para este pensador. Não seria pertinente, neste momento, adentrarmos nas minúcias da complexidade dos meandros da sociologia weberiana, da qual emergiu a noção de racionalidade jurídica, apenas bastando-nos, para os propósitos do presente trabalho, uma delimitação pontual do conceito, tal como o apreendemos em sua generalidade, uma vez que o mesmo se apresenta de forma altamente complexa, sendo mesmo razoável afirmar-se que há um certo teor plurívoco em seu aspecto conceptual.


Max WEBER desenvolve esta noção de racionalidade a partir de alguns pressupostos epistemológicos, dos quais destaco a idéia de “tensão”. Temos, em verdade, que a idéia de tensão é inerente à análise weberiana da racionalidade, ou seja, esta última qualifica desenvolvimentos divergentes e, muitas vezes, conflitantes, pois os processos de racionalização são determinados pela interação complexa de diversos fatores e não escapam à tensão insuperável entre as racionalidades formal e material (COUTU, 1995: p. 24).


À forma do direito, WEBER opõe sua matéria. De modo que esta oposição constitui um dos temas mais importantes de sua sociologia do direito. E aqui, ratificamos a atualidade de suas contribuições, haja vista o acalorado debate contemporâneo na sociologia jurídica, acerca a chamada rematerialização do direito.


Em que pese a presença de diferentes significações atribuídas à noção de material na sociologia weberiana, podemos afirmar que o sentido geralmente empregado significa que material reenvia aos motivos extrínsecos (de ordem ética, política, ou utilitarista) que presidem a descoberta e a criação do direito em certos sistemas jurídicos, por oposição à lógica jurídica intrínseca característica do direito formal. Trata-se, de fato, do sentido mais usual constatado na sociologia jurídica de WEBER.


Assim, da leitura da obra de WEBER, percebe-se que a racionalização do direito é condicionada por uma contradição intransponível: aquela que opõe a racionalidade formal à racionalidade material. Esta oposição significa, em outras palavras, o confronto de um direito cuja descoberta repousa sobre uma lógica específica da esfera jurídica e fechado às influências externas, com um direito fundado sobre motivações religiosas, políticas, econômicas, etc. O primeiro formal e este último material.


A teoria weberiana, no que tange ao processo de racionalização apanhado basicamente em uma dimensão teórica, interna, do direito, apresenta-se a partir de duas tipologias: uma referindo-se aos tipos ideais de racionalidade e criação do direito, e a outra referindo-se a estágios históricos pelos quais passou a racionalização do direito, na qual o autor pretendeu evidenciar os aspectos gerais do processo de racionalização do direito[1].


Pela primeira, e talvez mais conhecida, das tipologias, nós temos quatro tipos ideais de racionalidade e de criação do direito, do ponto de vista dos meios e da técnica jurídica: irracional formal – ausência de controle pela razão (é o caso em que o juiz ou o legislador tomam decisões que são formalizadas, mas seus critérios fogem à razão, como ocorre com os oráculos, por exemplo) (WEBER, 1999: p. 72); irracional material – ausência de recurso a normas gerais (prevalecendo o arbítrio pessoal do legislador e o sentimento pessoal do juiz, como se dá com o juiz do Cádi) (TREVES, 2004: p. 161); racional material – casos em que há elaboração de regras jurídicas aplicáveis em função de imperativos éticos ou de regras utilitárias, de regras de oportunidade ou de máximas políticas; racional formal – as características juridicamente importantes são trazidas à luz por interpretações lógicas significantes e em conformidade a conceitos jurídicos fechados, são formuladas e aplicadas sob a forma de regras abstratas (COUTU, 1995: p. 64).


Para WEBER, o tipo mais puro de racionalidade jurídica formal é encontrado no direito continental europeu, em sua estrutura fundamental caracterizada pela sistematização lógica. As características principais decorrentes da perspectiva do direito a partir da racionalidade formal seriam expressas pelas idéias de percebê-lo como portando uma ordem logicamente coerente, sem lacunas, que invoca para si uma metodologia específica, primando pelo caráter dedutivo de inferência dos fatos e extração das conclusões, e ancorado no postulado da neutralidade valorativa bem como num fundamento de legitimidade eminentemente formal.


Em termos de coerência lógica, a ordem jurídica reveste o caráter de um sistema coerente e logicamente claro, e seria constituída de modo a não abarcar contradições internas (WEBER, 1999: p. 13). Por seu turno, a completude significa que o direito não possuiria lacunas.


A especificidade metodológica é traduzida na elaboração de um método próprio para a ciência do direito, que não se confunda com os métodos de outras ciências. Isto conduz à autonomização e à profissionalização da ordem jurídica (WEBER, 1999: p. 84).


A neutralidade axiológica é um postulado no qual está assentada a racionalidade formal do direito, pois a progressão desta última estaria ligada à rejeição de considerações ideológicas e de julgamentos de valor. Para WEBER, uma característica essencial do direito formal consiste em descartar considerações extrínsecas (especialmente religiosas e políticas) na sistematização das normas jurídicas. Do mesmo modo que o princípio formal de legitimação, a legitimidade do direito racional formal está fundada no princípio da legalidade e da regularidade procedimental, e não sobre um critério substantivo de legitimação, tal como o direito natural.


Por fim, o caráter dedutivo, típico da racionalidade formal do direito, é assim expresso (em tradução livre) por Michel COUTU:


“… seguindo WEBER, o recurso ao silogismo, a rejeição aos procedimentos analógicos e a superação de um método puramente analítico, são condições necessárias ao desenvolvimento da racionalidade formal do direito; cada decisão jurídica parece, assim, aplicação de uma prescrição jurídica abstrata a uma situação concreta” (COUTU, 1995: p. 67).


Para bem caracterizar a racionalidade jurídica material, é interessante o confronto pontual da mesma com a racionalidade jurídica formal. Deste modo, temos que a unidade e a coerência lógicas da ordem jurídica são colocadas em causa por uma variedade de fatores, que levam à modificação da estrutura do direito, à pressão dos interesses ligados às classes e grupos sociais, ao racionalismo burocrático e à intervenção do Estado. Michel COUTU explica que o desenvolvimento sempre crescente de esferas especializadas de aplicação do direito, bem como as conseqüências que este fenômeno produz sobre as representações e a prática profissional dos juristas, favorecem à progressão da racionalidade material (COUTU, 1995: p. 74).


Tudo isto porque os direitos especiais[2] fazem apelo a um conhecimento específico, que exige uma diferenciação profissional entre os praticantes do direito. Tais esferas de aplicação do direito devem atender aos interesses que sonham escapar às formalidades do procedimento normal, no interesse de uma jurisdição mais rápida e mais adaptada ao caso concreto. Mangabeira UNGER entende que a adaptação do direito às práticas e usos comerciais necessita de um nível elevado de discernimento judiciário, o que se traduz por um declínio do formalismo e por adoção de procedimentos de raciocínio orientados por escolhas políticas (grifo meu) (In: COUTU, 1995: p. 74).


Além disso, a axiomática jurídica fundada sobre procedimentos silogísticos é substituída pela procura teleológica de verdades materiais, na base de indícios não formais. Aqui temos a questão da utilização de critérios vagos (vagues) e indefinidos (indéfinis), a qual permite escapar das conseqüências de uma dedução puramente formal da sanção jurídica. Em oposição ao apego desmesurado à idéia de certeza e segurança jurídicas, as normas carregam-se de termos abertos que remetem a uma atividade mais criativa por parte do aplicador do direito. Em verdade, este se constitui mais do que nunca, aqui, em um criador do direito. Trata-se da presença de cláusulas gerais, em relação às quais tornarei no próximo tópico.


A idéia do dever ser constituindo-se em plano ideal sem lacunas, sobre o qual repousa o direito, também é substituída pela doutrina da presença inevitável de falhas na ordem jurídica, a qual corresponde mais, na defesa de seus adeptos, à realidade empírica tal como ela se impõe aos praticantes do direito. Esta insistência sobre a incompletude do direito também conduz a uma acentuação do papel livremente criativo do juiz, em detrimento da busca de uma aplicação formal da lei. A questão da incompletude pode ser exemplificada com uma citação da Escola do Direito Livre (École du Droit Libre), corrente do pensamento jurídico desenvolvida na França, a qual teria pretendido demonstrar que o silêncio do legislador “est le destin inévitable de toute loi étant donné l’irrationalité des faits” (COUTU, 1995: p. 76).


Como conseqüência da racionalidade material, há uma substituição ou, ao menos, uma complementaridade, dos conceitos jurídicos por raciocínios sociológicos, econômicos ou éticos. Para Mangabeira UNGER, uma das características fundamentais do direito pós-liberal consiste no abandono das modalidades formalistas do raciocínio jurídico, em favor da adoção de procedimentos finalistas dirigidos por escolhas políticas (In: COUTU, 1995: p. 77). E para Gunther TEUBNER, a tendência contemporânea de rematerialização do direito, tem como uma de suas características a sociologização do direito (TEUBNER, 1988: p. 47).


Por outro lado, com relação ao postulado da neutralidade axiológica, podemos dizer que a descoberta e a criação do direito, a partir de uma racionalidade material, devem se apoiar sobre uma escolha axiológica, especialmente por recurso a um critério que se pretenda objetivo. Com isso, a neutralidade axiológica não pode servir de guia, em um direito racional material, à atividade jurídica científica. Do mesmo modo, uma opção valorativa também fundamenta a legitimidade do direito racional material. A legitimidade formal é rejeitada, seja por uma idéia nostálgica de um direito supra-positivo (como o caso do direito natural inerente às prédicas católicas), seja pela exigência de um direito social fundado sobre a justiça material (COUTU, 1995: p. 78).


Quanto aos fatores que influenciaram o processo de racionalização do direito (em termos de racionalidade teórica, isto é, condução ao estabelecimento de uma coerência lógica), temos duas ordens distintas: fatores intra-jurídicos e fatores extra-jurídicos. Dentre os primeiros, temos o papel que WEBER reconheceu à lógica autônoma das idéias (representações) jurídicas, bem como o papel exercido pelos profissionais do direito. Já como fatores extra-jurídicos nós temos a política e a economia.


Já a seu tempo, WEBER constatava certas tendências no sentido de uma inserção de elementos éticos, utilitários, morais, metas políticas em suma, no interior da prática e da reflexão jurídicas. Ou seja, um autêntico processo de materialização do direito, o qual poderia ser percebido de modo mais evidente no setor do direito dos contratos (In: TEUBNER, 2000: p. 88).  


Com relação à reclamação por uma justiça material da ordem social, no entendimento de WEBER, a mesma provém, antes de qualquer outra, das reivindicações das classes não privilegiadas. A estas reivindicações, fazem eco certas ideologias dos juristas[3] que exigem um direito social sobre a base de postulados éticos. Este último movimento, segundo o autor, vai ao encontro da ideologia do bem estar, típica do Estado intervencionista, e ao encontro de sua racionalidade burocrática.


De fato, WEBER entendia que tais influências sobre o direito e a prática jurídica (influências tendentes à materialização) são condicionadas pelas reivindicações sociais da democracia.


WEBER trata, assim, da ideologia profissional interna dos práticos do direito, voltada para uma crítica ao dogmatismo (que seria outra ideologia interna, embora o autor assim não se refira expressamente). Como exemplo de ideologia crítica, WEBER cita a tese da Escola do Direito Livre, já mencionada, pela qual as falhas da lei são inevitáveis, e todas tendem a este destino, diante da “irracionalidade dos fatos, isto é, que em muitos casos a aplicação da mera interpretação é pura aparência, e a decisão, na verdade, é e deve ser baseada em avaliações concretas e não em normas abstratas” (WEBER, 1999: p. 147).


2.2. A mudança paradigmática no direito privado brasileiro


Na história do direito privado brasileiro, devemos distinguir algumas etapas que apresentam nuanças significativas, especialmente se levarmos em conta o período pós Constituição Federal (CF) de 1988.


No Brasil, vigorou por mais de três séculos as Ordenações Filipinas (publicadas em 1603), editadas ao tempo da dominação espanhola sobre Portugal. Apenas em 1917 entrou em vigor o primeiro Código Civil brasileiro. Este fato é interessante porque se percebe que o Brasil não participou do movimento de codificação que se alastrou pela Europa ocidental no século XIX, passando, assim, de um conjunto de leis elaboradas para Portugal do século XVII, diretamente a um Código em pleno século XX (GOMES, 2003: p. 3).


Para os propósitos do presente trabalho, no entanto, não se faz necessário abordar esta fase pré-codificação de nossa história do direito privado, centrando as atenções, isto sim, na fase subseqüente.      


Conforme nos ensina Orlando GOMES, em seu abalizado Raízes históricas e sociológicas do Código Civil brasileiro, temos que o código de 1916 (que entrou em vigor em 1917) foi elaborado por juristas da classe média, classe esta que estava presa aos interesses dos fazendeiros, nada obstante tivesse aspirações libertárias, o que teria impedido maiores ousadias. O autor expõe com muita proficiência a formação desta classe média na sociedade brasileira da época, o que se deu paulatinamente pela ocupação de cargos na nascente burocracia do Estado, bem como nos quadros militares. A classe economicamente dominante era composta por duas espécies de burguesia: a agrária e a mercantil. Enquanto a primeira era bastante refratária a mudanças, a segunda era dotada de aspirações liberais. Mas apesar de tal contradição ideológica, havia uma acomodação por uma certa troca de interesses, já que a burguesia mercantil se mantinha no poder político graças à ação coronelista da burguesia agrária (GOMES, 2003: p. 30). 


Naturalmente, a constituição da racionalidade jurídica que orientou aquele diploma legal deve ser vista a partir de uma perspectiva plurívoca, de modo que reste abarcada a gama de elementos que, como vimos anteriormente, conduziram ao processo de racionalização do direito (lógica interna do pensamento jurídico, atuação dos profissionais do direito, economia e política). Mas uma análise desta monta foge igualmente aos propósitos deste trabalho, com o que, resta-nos partir as análises da simples constatação de que se tratava de uma racionalidade jurídica formal aquela que orientava o direito civil inscrito em referido Código, mesmo porque, este último apresentou forte influência da codificação francesa oitocentista. Neste sentido, Cláudia Lima MARQUES explica que esse Código aceitou a perspectiva voluntarista e liberal, aderindo, assim, à concepção clássica do direito contratual. Com isso, sua proposta, seguindo esta lógica, era de apresentar regras contratuais supletivas, meramente interpretativas, pois o escopo era permitir e assegurar a plena autonomia de vontade dos indivíduos, assim como a liberdade contratual (MARQUES, 1999: p. 38).  


Podemos avaliar esta asserção a partir da percepção das alterações que foram incidindo no direito civil pátrio, através de leis esparsas que, de uma forma ou outra atualizaram-no à realidade social emergente. Não podemos esquecer que o processo de rematerialização do direito, descrito anteriormente, foi observado no mundo ocidental desde o primeiro pós-guerra. No Brasil, porém, as mudanças que foram advindo no direito privado foram bastante acanhadas neste aspecto, recebendo, verdadeiramente um impulso decisivo apenas com a Constituição Federal de 1988. É bem verdade que devemos mencionar aqui a emergência da Lei de Usura (1933), do direito do trabalho (1940), os quais são dois exemplos significativos de forças materializadoras no direito privado nacional, ambos com incidência direta na esfera contratual, o primeiro deles limitando a taxa de juros em 12% ao ano, quando pactuada pelas partes ou, em ausência de pactuação, 6% ao ano[4]; por sua vez, o direito do trabalho significou a imposição de determinadas cláusulas em contratos versando sobre relações laborais[5].  


Mas foi com a Constituição Federal de 1988 que logramos a incorporação dos chamados direitos sociais no patamar de direitos fundamentais, ao lado dos direitos individuais. Nesta Lei Máxima, vem inscrita a necessidade de se atender à função social da propriedade (artigo 5º, inciso XXIII e 170, III); eleva-se ao nível de princípio da ordem econômica e financeira a defesa do consumidor, a redução das desigualdades regionais e sociais, bem como assevera-se a orientação conforme aos ditames da justiça social (tudo isto inserto no mesmo artigo 170 da CF). Esta mesma Constituição institui aquilo que seriam os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, contemplando expressamente entre eles o escopo de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (artigo 3º, III).


A consagração, já referida, dos direitos sociais, expressos no direito à saúde, educação, trabalho, habitação, etc., somada aos objetivos e princípios os quais institucionalizou, cristalizaram a consagração de metas, de fins utilitários, ética social, em suma, incorporados ao ordenamento jurídico nacional e, mais precisamente, agora institucionalizados no topo da hierarquia normativa. Ocorre que esta gama de inovações se deu em meio a um contexto social que contava, ainda, com um Código Civil publicado no início do século (e projetado no século XIX). Configurou-se, então, uma nítida disparidade jurídica, que nada mais refletia que o descompasso entre uma legislação orientada por uma racionalidade que expressava uma visão de sociedade não mais condizente com as relações sociais concretas.


A partir daí, em 1990 emerge a lei 8078, que instituiu o Código de Defesa do Consumidor (CDC), diploma este que dá seqüência à lógica racional material desencadeada a partir da Constituição Federal de 1988. O CDC representou uma transformação significativa na lógica das relações contratuais entabuladas no Brasil, pois sua orientação material é ostentada claramente na pretensão de tutela à parte hipossuficiente da relação, constante no inciso VII do seu artigo 6º. Além disso, a consagração da boa- fé objetiva se fez perceber, o que sintetiza a inserção de elemento de ética social numa posição estratégica em referido corpo normativo.


A edição de uma lei de natureza tutelar é extremamente significativa, posto que representa o acolhimento jurídico de uma posição social determinada, no caso, a de consumidor, e sintetiza, ainda, uma valoração sobre a mesma, já que a contextualiza em meio a uma realidade social e confere, em função desta mesma realidade, o reconhecimento da necessidade de proteção.


Como bem pondera Cláudia Lima MARQUES, o CDC rompe com o pensamento individualista, liberal, da concepção clássica de contrato, representando a positivação da teoria da função social do contrato. No entendimento da autora, com o CDC, passamos de uma visão liberal e individualista do Direito Civil, a uma visão social que “valoriza a função do direito como ativo garante do equilíbrio, como protetor da confiança e das legítimas expectativas nas relações de consumo no mercado” (MARQUES, 1999: p. 31).


Mais recentemente, ainda, em 2003, entrou em vigor a lei 10406/2002, que instituiu o novo Código Civil brasileiro, suplantando o Código até então vigente, que datava de 1916, conforme já mencionado. O novo diploma civil trouxe uma série de alterações nas diversas dimensões em que o sujeito de direito se insere em sociedade: seja como proprietário (contemplando a função social da propriedade), seja como negociante (boa-fé, função social), como integrante da entidade familiar (fala-se em poder familiar), etc. Em verdade, as transformações começam pelo próprio sujeito tomado por si só, na qualidade de ser humano, com a consagração expressa dos direitos da personalidade, até então sem positivação sistemática no direito privado nacional.


Com efeito, este diploma legal apresenta-se nitidamente inserido naquele processo de rematerialização do Direito, posto que, noções como as de função social da propriedade, função social dos contratos, boa-fé, eqüidade, bons costumes, etc. são contemplados em posições estratégicas dentro do Código.


Os liames entre o culturalismo de Miguel Reale e o novo CC, são expostos por Gerson Branco, o qual menciona a substituição do princípio do individualismo, típico no CC de 1916, pelo princípio da socialidade. Tratar-se-ia de uma das características mais marcantes do novo Código Civil, ou seja, a supremacia dos valores coletivos sobre os individuais, da qual o exemplo da instituição da posse pro labore (artigo 1228, § 4º) é um dos mais significativos, mas também devemos citar a função social dos contratos (artigo 421). Na senda deste espírito, Gerson Branco menciona ao lado do mister da função social dos contratos e da propriedade, a questão de vários dispositivos do atual Código estarem voltados para a consecução de determinados fins; trata-se, portanto, do caráter utilitário a que se referem Gunther TEUBNER e Max WEBER, para caracterizar a racionalidade jurídica material. E ainda nesta lógica, outro princípio parece somar-se ao da socialidade para, no novo CC, consubstanciar isto que seria a consagração da rematerialização de nosso direito: o princípio da eticidade, o qual estaria expresso através de standards, cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, que fazem alusão a expressões cujo significado exige uma atividade valorativa do julgador para que a regra possa ser aplicada. Como exemplo, são trazidos a referência à boa-fé[6], à eqüidade, aos bons costumes, como elementos atribuidores de maiores poderes ao juiz (MARTINS-COSTA, 2002: p. 51). Houve uma mudança na linguagem da atual legislação, com o escopo de que a comunidade jurídica possa ter papel ativo na determinação do sentido das normas jurídicas. O CC de 1916 era calcado num estilo parnasiano[7].


Porém, se é fato que houve referida mudança paradigmática em termos abstratos, passando-se de um modelo liberal-individualista a um social-humanista, Gerson BRANCO lembra que é mister uma mudança de mentalidade dos aplicadores do direito, para se realizar o caráter prospectivo do novo CC. E esta mudança ou não de mentalidade (racionalidade) apenas pode ser perquirida em pesquisa empírica junto àqueles que procedem ao ato jurisdicional. Ratificando este argumento, é afirmada a alteração na linguagem em que o CC foi redigido, em que agora não temos mais a preocupação, nos dispositivos, de os magistrados meramente subsumirem o caso à lei, mas sim de colocar à disposição dos mesmos, dispositivos aptos a serem completados, integrados, no ato jurisdicional (MARTINS-COSTA, 2002).


A mudança paradigmática presente no novo Código Civil brasileiro, tem nas cláusulas gerais um dos elementos de maior importância em face dos desdobramentos não só teóricos como práticos que acarreta.


Partindo da hipótese de rematerialização do Direito, temos antes de mais nada a questão da lógica interventora do Estado nas relações particulares. A partir daí, temos que o Judiciário serviria à intervenção estatal precisamente através da aplicação das cláusulas gerais, principalmente pela boa-fé (AGUIAR JºR, 2000: p. 222).


Consentâneo uma leitura pela perspectiva da rematerialização do Direito, através das cláusulas gerais o Estado modificaria os contratos, o que, sobretudo, serviria para realizar a justiça material do contrato. Temos, então, duas ilações: por um lado, a cláusula geral é o meio através do qual o Estado atua pelo juiz na economia, permitindo-lhe conformar e configurar a relação contratual; por outro, as cláusulas gerais permitem que a decisão judicial, versando sobre os negócios, atenda a valores que não são econômicos, mas éticos, garantidores de uma justiça material.


Conclusão


Muitas leituras podem ser feitas a respeito do momento atual, porque passa o Direito, especialmente o direito privado. Muitas delas vão no sentido de diagnosticar um período de crise, sendo que esta adjetivação tem se constituído em lugar comum nas análises que se debruçam sobre o fenômeno jurídico. Porém, devemos atentar para precisar o objeto desta crise. Entendemos que não se trata propriamente do Direito, como fenômeno normativo-social, que esteja em crise. Podemos compreender o momento atual como de transição de paradigmas. Assim, não deveríamos falar em crise do contrato, mas antes em, crise de um paradigma contratual. O que procurei explicitar ao longo das linhas precedentes foi que estamos contemplando um novo tipo de raciocínio jurídico que está se estabilizando no patamar normativo (através das leis vigentes), no âmbito teórico (através da doutrina especializada) e no âmbito prático (espaço de tomada de decisões vinculantes – Judiciário). Trata-se de uma mudança de racionalidade jurídica, o que marca o direito privado contemporâneo.


Também devemos considerar com reservas a questão da perda de autonomia do Direito que poderia estar acompanhando esta etapa de transição. Isto porque os elementos extralegais que adentram cada vez mais o sistema jurídico, tornam-se, a partir de então, elementos normativos, com caráter jurídico. Não devemos, naturalmente, esquecer que este ingresso de elementos de ordem moral, ética, social, política distributiva, etc., deve se dar de forma a não comprometer a coerência lógica e a sistematicidade jurídicas, pois caso contrário, o próprio caráter racional do Direito (e das decisões judiciais, em particular) estaria comprometido. Assim, o grande desafio será estabelecer uma disposição por parte do sistema jurídico, no sentido de que este aprenda com as demais esferas da realidade social. Deve haver um diálogo constante com as demais formas de conhecimento, não uma assimilação de uma sobre a outra. Não se está aqui defendendo uma relação hierárquica entre as disciplinas, mas sim uma relação paritária, em que se reconheçam os recíprocos limites.


O resgate da noção desenvolvida por WEBER, de racionalidade jurídica, nos ajuda a perceber e compreender as conexões que se estabelecem entre o direito elaborado pela via legislativa, e sua construção jurisprudencial. O Código de Defesa do Consumidor, assim como o Código Civil de 2002, nos remetem, fatalmente, a esta segunda forma de manifestação do Direito (ou seja, a via jurisprudencial), basta lembrarmos as tão propaladas cláusulas gerais. Porém, uma plausível compreensão desta dimensão na qual o Direito é (re)criado, exige um olhar abrangente, que consiga perspectivar as recentes alterações pelas quais passou o direito privado nacional não como transformações pontuais, tomadas de modo estanque, mas antes, como fruto de todo um processo que apresenta como única permanência exatamente o caráter dinâmico de sua constante transformação. Atentarmo-nos a isto, significará a possibilidade de racionalizarmos argumentos propositivos, voltados para o aprimoramento de nosso sistema jurídico.


 


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Notas

[1] A este respeito, urge lembrar que a construção do tipo ideal é feita a partir da acentuação unilateral dos traços presentes, de maneira difusa, nos fenômenos. O objetivo é a formação de um quadro analítico homogêneo. Assim, o tipo ideal permanece o produto de uma racionalização utópica, e por conseqüência, jamais reflete imediatamente a realidade. O valor do tipo ideal é o de um instrumento heurístico, o qual permite, em razão de sua clareza e de seu rigor conceptual, tornar inteligível o desdobramento concreto da ação (WEBER,1969: p. 16).

[2] Os direitos especiais em questão são: direito do trabalho, direito da criança e do adolescente, direito do consumidor, etc. 

[3] Exemplificando a exigência que certos juristas fizeram de um direito social sobre a base de postulados éticos, Michel COUTU cita Otto von GIERK. Este autor alemão criticou a codificação alemã, em nome das tarefas sociais do direito privado (In: COUTU, 1995: p. 78).

[4] O Código Civil de 1916, em seu artigo 1262 liberava completamente a fixação dos juros remuneratórios nos contratos de mútuo, ou seja, valia o que as partes contratuais livremente negociassem. Por seu turno, o Decreto n. 22626/33 limitou esta fixação aos patamares já descritos. O detalhe é que este decreto não discriminava o tipo contratual a que incidia, o que significou uma incidência genérica sobre todas as modalidades contratuais.

[5] Orlando GOMES registra que ao tempo da elaboração do CC de 1916, foram apresentados vários projetos de lei com escopo de proteção ao trabalhador, especialmente para casos de acidente no trabalho. Porém a indiferença do parlamento foi maior, e nenhum dos projetos prosperou. O autor apresenta como causa central deste fracasso, o fato de o País, à época, contar com um desenvolvimento industrial incipiente (início do século XX) (GOMES, 2003: p. 33). 

[6] Particularmente com relação aos efeitos da cláusula da boa-fé objetiva, Cláudia Lima MARQUES destaca os chamados deveres anexos, os quais vinculam as partes a uma série de atos, de condutas gerais, mesmo antes do vencimento ou da ocorrência do evento futuro e incerto (nos contratos deste tipo). Como exemplos de obrigações acessórias decorrentes da boa-fé objetiva, temos o dever de informar, de cooperar, dever de cuidado, de sigilo, de conselho, de lealdade, etc. (MARQUES, 1999: p. 79)

[7] Aqui traço um paralelo com o Allgemeines Landrecht prussiano de 1794, mencionado por WEBER como sendo o grande símbolo, a seu tempo, de um Código racional material. Considerado o modelo de direito principesco de tipo patriarcal, orientado para uma racionalização sistemática no sentido material, tenta se livrar, de modo consciente, do direito formal e lógico, e dos notáveis do direito formados por Universidade, segundo explicação de COUTU, o qual anota que a ruptura com o direito romano (cujo conhecimento requer uma formação jurídica especializada) se manifesta especialmente na adoção de uma linguagem simples e acessível (COUTU, 1995: p. 73).


Informações Sobre o Autor

Marcos Cáprio Fonseca Soares

Doutorando em Direito e mestre em Sociologia pela UFRGS. Advogado, sociólogo e pesquisador


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