Resumo: O presente estudo consiste em uma revisão bibliográfica, com abordagem dedutiva e análise crítica-dialética que tem como mote analisar a incidência da responsabilidade civil do Estado e dos juízes por eventuais danos causados em razão de deficiente prestação jurisdicional. É importante mencionar que o Estado, por meio do Poder Judiciário e na pessoa do magistrado, detém o poder-dever de prestar a jurisdição, função esta que deve ser exercida com responsabilidade e eficiência, visando sempre o desenvolver correto dos processos e a prolatação de decisões que objetivem os ditames da justiça. E este poder-dever cresceu de maneira substancial na sociedade contemporânea, o que sem dúvida vem a corroborar com o aumento da discussão a respeito desta responsabilização. Destarte, buscou-se observar quem é o responsável pela reparação dos danos causados por eventuais erros ou atrasos na solução das demandas judiciais e em que situações isso pode ocorrer.
Palavras Chave: Responsabilidade Civil. Prestação Jurisdicional. Magistrado. Estado.
Abstract: This study consists of a bibliographic research, where a deductive approach and critic dyaletic analysis were used aiming to analyze the incidence of the State´s civil responsibility, as well as of the judges, for eventual damages caused due to jurisdictional service deficiency. It is important to mention that the State, through the judiciary power and the magistrate´s person, has the power and the duty to offer judiciary service, and it must be exercised with responsibility and efficiency, always aiming a correct progress of the processes and prolatation of the decisions, according to the principles of the justice. And this power-duty grew up substantially in our contemporary society, and, without any doubt, corroborates the increase of the discussion regarding this responsibilization. Thus, we tried to observe who is responsible by the reparation of the damages caused by eventual mistakes or delay in the solution of judiciary demands and in which situation this occurs.
Keywords: Civil Responsibility. Jurisdictional Service. Magistrate. State.
Sumário: Introdução. 1. Dos Atos Jurisdicionais. 1.1 Diferença entre atos judiciais e jurisdicionais. 1.2 As atribuições e obrigações do magistrado no exercício de suas funções. 2. A legislação brasileira. 3. A responsabilidade civil do Estado pelo ato jurisdicional. 4. A responsabilidade civil do magistrado pelo ato jurisdicional. 4.1 A responsabilidade pessoal direta. 4.2 A responsabilidade regressiva. Conclusão. Referências.
Introdução
O estudo tem origem na necessidade de se fazer uma análise da possibilidade de responsabilização do Estado e dos juízes por eventuais erros, demoras, atrasos ou falhas na solução e trâmite das ações judiciais.
Em que pese a atividade dos magistrados seja pública, vislumbra-se que o desenvolvimento de suas funções apresenta diferenciações das demais atividades estatais, visto que envoltas ao assunto inúmeras implicações valorativas.
O trabalho possui, destarte, como objetivo geral estudar a incidência da responsabilidade civil do Estado e dos juízes por eventuais danos causados em razão de deficiente prestação jurisdicional, e especificamente verificar se nos casos de danos ocorridos em virtude da má atuação do juízo na solução de demandas judiciais é possível haver a responsabilização do Estado e da pessoa do magistrado, identificando-se quais os requisitos para que possa haver esta responsabilização, observando as normas existentes a respeito a fim de questionar sua real eficácia no plano jurídico brasileiro hodierno, executando possíveis contribuições para melhora deste sistema.
Para a solução destes questionamentos, utiliza-se de uma pesquisa do tipo bibliográfica, que, em termos genéricos, é um conjunto de conhecimentos reunidos em obras de toda a natureza (FACHIN, 2006).
Conforme Gil (1999, p. 65), a pesquisa bibliográfica “é desenvolvida a partir de material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos”.
O método utilizado, por sua vez, é o dedutivo, no qual parte-se de uma premissa maior, indo para uma premissa menor, chegando à conclusão. Para Gil (1999, p. 27), “o método dedutivo parte de princípios reconhecidos como verdadeiros e indiscutíveis e possibilita chegar a conclusões de maneira puramente formal, isto é, em virtude unicamente de sua logica”.
Busca-se observar se existe a possibilidade se responsabilizar civilmente o juiz da causa e o Estado nos casos de eventuais erros ou atrasos na solução das demandas judiciais, e em que situações isso pode ocorrer.
O Estado, por meio do Poder Judiciário e na pessoa do magistrado, detém o poder-dever de prestar a jurisdição, função esta que deve ser exercida com responsabilidade e eficiência, visando sempre o desenvolver correto dos processos e a prolatação de decisões que objetivem os ditames da justiça.
O objetivo central deste estudo é, especificamente, descobrir sobre a possibilidade ou impossibilidade de responsabilização dos juízes, bem como do Estado, por eventuais danos decorrentes de erros, atrasos ou demora no exercício da atividade jurisdicional.
Por outro lado, é valioso lembrar que se tem notícia da punição de juízes que proferissem sentenças errôneas desde o Código de Hamurabi, conforme refere Altavila: “O artigo 5º pune o juiz que dá uma sentença errada, não somente com o pagamento das custas multiplicadas por 12, pois ainda ‘deverá publicamente expulsá-lo de sua cadeira’” (1964, p. 29).
Deve-se ter em mente que a análise do tema não pode ser feita de maneira abstrata, de modo que a responsabilidade deve ser inerente a um elemento concreto, constituído por um sistema jurídico e a uma ordem judiciária. A responsabilidade judicial possui manifestações diferentes, por exemplo, nos sistemas que consideram o processo civil como matéria de interesse público e naqueles em que as partes possuem pleno poder de disposição do processo, o que também ocorre em ordenamentos onde diferentes o grau de prestígio, a criatividade do judiciário e o caráter público ou secreto dos procedimentos. De fato, o assunto é carregado de implicações valorativas, eis que envolve diversos valores sociais, que, por óbvio, não são os mesmos em todas as sociedades (CAPPELLETTI, 1989).
É necessário que se diga aqui que a prestação jurisdicional é um poder-dever, visto que o andamento e julgamento das causas constituem uma obrigação do juiz competente.
A esse respeito, explica Cappelletti: “Responsabilidade judicial pode significar tanto o poder dos juízes, quanto o seu dever de prestação de contas […] Ainda no seu primeiro significado, de resto, trata-se de um poder que ao mesmo tempo é um dever: o dever do juiz de exercer a função pública de julgar. E porque o exercício de tal função é disciplinado por regras e princípios, escritos e não escritos, a óbvia consequência será uma responsabilidade no sentido ulterior de sujeição a sanções (‘liability’) daqueles que, em tal exercício, violem essas regras ou princípios, e/ou daqueles comprometidos com uma ‘responsabilidade substitutiva’, para o caso de tal violação” (1989, p. 17).
De fato, quando se fala no termo responsabilidade, podemos distinguir dois momentos, quais sejam: o próprio dever do juiz de exercer a função pública e um segundo, decorrente do descumprimento daquele primeiro, que tem caráter sancionatório, indenizatório.
Como o próprio Cappelletti afirma: “um poder não sujeito a prestar contas representa patologia […] autoritarismo e, na sua expressão extrema, de tirania” (1989, p. 18). Assim, um Estado Social Democrático de Direito deve impor a todos os poderes uma responsabilidade intrínseca, a fim de limitar qualquer espécie de abuso e reprimir eventuais desídias perante a sociedade.
E nesta sociedade pós-moderna, houve e está acontecendo um crescimento sem precedentes do Poder Judiciário, de modo que podemos dizer que há uma tendência evolutiva no sentido de ampliação do papel do juiz.
E isto se deu por diversos motivos, tais como: (a) o movimento pela oralidade do processo, desde o fim do século XIX, com os objetivos de acelerar seu desenvolvimento e assegurar a efetiva igualdade entre as partes, (b) a emergência do Estado social ou welfare state que veio a gerar um aumento da competência e dos poderes do Estado legislador e administrador, aumentando-se também a exigência do controle judiciário sobre a atividade do Estado, (c) a expansão da função legislativa e do volume da legislação, que vieram a causar dois fenômenos posteriores, quais sejam: o seu sobrecarregamento e a frequente imprecisão e ambiguidade dos atos legislativos, deixando muitas vezes importantes decisões sociais à larga interpretação do poder judiciário, (d) o envelhecimento dessa grande quantidade de leis, (e) o fato de que estes direitos provenientes do Estado social são caracterizados por não possuírem natureza puramente normativa, eis que projetam o futuro, exigindo para sua gradual realização a intervenção lenta do Estado, trazendo uma maior elasticidade na possibilidade decisória do juízo no caso concreto, com base no comportamento dos órgãos públicos, (f) a massificação – assim como da economia atual, com produção, distribuição e consumo em massa – dos conflitos e relações sociais e culturais, os quais passam a assumir caráter muito mais coletivo que individual (CAPPELLETTI, 1989).
Deste modo, o poder-dever dos juízes, por todos os fatores citados, cresceu de maneira substancial, o que sem dúvida vem a corroborar com o aumento da discussão a respeito da responsabilização pelos atos jurisdicionais.
Nas palavras de Kraemer: “o estabelecimento e a solidificação de um ordenamento jurídico racional exige que, além das conquistas formais, o Estado assegure materialmente os cidadãos” (2004, p. 56) e justamente estas demandas sociais fizeram com que se qualificassem as funções do Poder Judiciário.
Mas, tendo em vista o fato de que julgar é um dever do magistrado, devemos fazer uma distinção de quais atos deste são abrangidos neste trabalho, considerando que o ato de julgar pode abranger inúmeras condutas do sujeito-Juiz, de modo que nos fixaremos, especialmente, na diferença entre atos judiciais e jurisdicionais.
1 Dos atos jurisdicionais
1.1 Diferença entre atos judiciais e jurisdicionais
Com o objetivo de atingir os seus fins, o Estado desenvolve três funções básicas: a legislativa, a administrativa e a jurisdicional, sendo que esta última se traduz no fenômeno da aplicação do direito, enquanto os demais correspondem à sua formação e realização, respectivamente (CANALLI, 2011).
Para que seja entendido o atual sistema, bem como para que se possa chegar a uma conclusão a respeito do tema central do presente trabalho, deve-se tomar como ponto de partida o delineamento ôntico de suas atividades e diferenciações básicas ente atos e providências judiciais e jurisdicionais (FIGUEIRA JÚNIOR,1995, p. 45).
Importante, assim, que se delineie como se distinguem atos judiciais e jurisdicionais.
Antes disso, numa visão mais ampla dos atos que envolvem o processo, Alvim assim afirma: “os atos processuais podem ser classificados usando-se de um critério subjetivo, isto é, tendo em vista aquele que pratica o ato. Sob a luz desse critério, o ato jurídico pode ser: a) ato judicial e b) ato postulatório das partes (igualmente de terceiros intervenientes no processo). Como atos judiciais são considerados não só os atos do juiz (stricto sensu), como os dos auxiliares da Justiça (lato sensu)” (2010, p. 450-451).
Conforme o art. 203 do Código de Processo Civil/2015, os pronunciamentos do juiz consistem em: sentenças, decisões interlocutórias e despachos.
Esta redação veio a corrigir a palavra “ato” do caput do art. 162 do Código de Processo Civil de 1973, no qual não foi aplicada de maneira adequada, porque passava a ideia de que as atividades exercidas pelo juiz restringem-se às elencadas na sequência: sentença, despacho e decisão interlocutória. Figueira Júnior defendia (1995), mesmo antes do anteprojeto do novo código de processo civil, que mais feliz teria sido o legislador se tivesse utilizado a expressão pronunciamentos.
Salienta-se, noutro aspecto, que o rol não é taxativo, mas sim exemplificativo, de modo que, conforme já mencionado, existem outros atos ou atividades desenvolvidas pelos magistrados no exercício de seu labor, tais como: presidir audiências, proceder à colheita das provas, realizar inspeção judicial, entre outros.
Conclusão outra não se pode chegar, portanto, que não seja a de que o critério adotado e explícito na norma processual não é suficiente para a classificação e diferenciação entre ato judicial e jurisdicional.
Nesta linha, Figueira Júnior (1995, p. 49) classifica os atos do juiz da seguinte maneira: “Tendo por critérios o seu conteúdo (decisório ou não) e a atividade judicial desenvolvida no curso do processo, razão por que, dentro da sistemática do atual CPC, podemos afirmar que os atos do juiz são: a) os despachos (de impulso processual, de expediente, correicional processual ou correicional administrativo); b) as atividades instrutórias; c) as atividades de polícia; d) as decisões; d1) interlocutórias (correicionais administrativas ou processuais); sentenças (de mérito ou formais)”.
Pode-se dizer, portanto, que função judiciária é gênero, que engloba a função jurisdicional, e outras espécies de atos, o que pode inclusive abranger os cartoriais ordinatórios, que são atividades que não necessitam obrigatoriamente da intervenção do magistrado, à exceção dos casos em que não cumpridos ou cumpridos indevidamente, necessitando do impulso ou revisão deste.
Na visão de Canalli (2011, p. 48): “os atos jurisdicionais são aqueles praticados especificamente pelo juiz, distinguindo-se, portanto, dos atos judiciários, que são aqueles próprios do funcionamento administrativo do Poder Judiciário, como os praticados por cartorários e demais auxiliares que atuam nos serviços judiciários. […] o ato jurisdicional é o que implica, efetivamente, o exercício da função estatal de dirimir os litígios que lhe são apresentados, dizendo o direito no caso concreto ou eventualmente praticando medidas coercitivas que visem à execução de uma decisão já prolatada.”
Há quem exclua, dos efeitos pertinentes à responsabilidade civil do Estado-juiz, o componente administrativo-organizacional, justificando que não possui relevância externa capaz de causar algum dano às partes do processo, como por exemplo: designação de audiências em dia e hora a critério do juiz, funcionamento interno dos cartórios, entre outros, ressalvando as providências de natureza disciplinar, perante os órgãos correicionais competentes (FIGUEIRA JÚNIOR, 1995).
Contudo, há que se fazer outra ressalva na afirmação supra. Se ocorrer, por exemplo, alguma omissão ou atraso injustificado na execução de algum destes atos de fundo administrativo, vindo tal conduta a causar dano a outrem, poderá, em tese, estar caracterizado o dever de indenizar.
A este respeito, Kraemer (2004, p. 64) afirma que “O importante é, isto sim, definir que a eventual responsabilidade pela deficiente prestação jurisdicional deve ter por base atos praticados em autos processuais. Os demais atos praticados pelos juízes, caso causem prejuízos, ensejam a responsabilidade buscada na responsabilidade do Estado, com base nos princípios que norteiam a responsabilidade em geral”.
Feita essa breve distinção e estando delimitada a ideia de ato jurisdicional, torna-se possível analisar a espécie de vício judicial causador do dano, de modo que passaremos a definir de que forma incide a responsabilidade civil do magistrado e do Estado pela prática destes atos.
1.2 As atribuições e obrigações do magistrado no exercício de suas funções
A igualdade de tratamento entre as partes, a duração razoável do processo, a prevenção de atos contrários à dignidade da justiça, o indeferimento de postulações meramente protelatórias, a determinação de medidas necessárias ao cumprimento da ordem judicial, a promoção da autocomposição, o exercício do poder de polícia, a dilação de prazos processuais e alteração da ordem de produção de meios de prova, de acordo com as necessidades do conflito a fim de conferir maior efetividade à tutela do direito, dentre outras, são atribuições do juiz, tudo conforme o art. 139 do Código de Processo Civil/2015.
O juiz somente conseguirá aplicar a lei com equidade quando se ativer aos preceitos legais, concedendo aos litigantes igualdade de tratamento, buscando a direção do processo com celeridade, a manutenção da urbanidade entre as partes e a oportunização de conciliação (ALMEIDA FILHO, 2000).
Todas estas obrigatoriedades são de buscar tais fins, não se podendo exigir, por exemplo, que o magistrado atinja uma conciliação entre as partes, visto que tal acontecimento não depende de sua própria vontade. Fazer-se tal exigência seria, pelo contrário, um ato arbitrário do juiz.
Outras obrigações do julgador são a de sentenciar ou despachar os processos, mesmo que existam lacunas legislativas a respeito do tema discutido – ocasião em que devem ser aplicadas as regras do Decreto-Lei 4.657 de 1942, conhecida como Lei de Introdução às normas do Direito brasileiro e do art. 140 e parágrafo único, do Código de Processo Civil/2015, sendo também defeso ao juiz conhecer de questões não suscitadas pelas partes, à exceção daquelas em que se pode conhecer do ofício, tais como incompetência absoluta, prescrição, decadência e carência da ação, nos moldes do art. 142 do Código de Processo Civil/2015 (ALMEIDA FILHO, 2000).
A Lei Complementar nº 35 (Lei Orgânica da Magistratura Nacional) em seu artigo 35 define os deveres do magistrado, que são: (1) Cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício; (2) não exceder injustificadamente os prazos para sentenciar ou despachar; (3) determinar as providências necessárias para que os atos processuais se realizem nos prazos legais; (4) tratar com urbanidade as partes, os membros do Ministério Público, os advogados, as testemunhas, os funcionários e auxiliares da Justiça, e atender aos que o procurarem, a qualquer momento, quanto se trate de providência que reclame e possibilite solução de urgência. (5) residir na sede da Comarca salvo autorização do órgão disciplinar a que estiver subordinado; (6) comparecer pontualmente à hora de iniciar-se o expediente ou a sessão, e não se ausentar injustificadamente antes de seu término; (7) exercer assídua fiscalização sobre os subordinados, especialmente no que se refere à cobrança de custas e emolumentos, embora não haja reclamação das partes; (8) manter conduta irrepreensível na vida pública e particular.
O juiz, no sentido amplo da palavra, é um funcionário público. Contudo, considerando que as peculiaridades referentes à sua posição e função são tantas, acaba por ocorrer um afastamento do funcionário público comum e do regime jurídico a que este se submete. Tão importantes que são algumas destas excepcionalidades, que o legislador inseriu-as no texto constitucional (ALVIM, 2010), conforme se vê, por exemplo dos artigos 93 e 95 da Constituição Federal.
Desta forma, considerando todas estas atribuições e atitudes a serem seguidas pelos magistrados, em caso de descumprimento de alguma delas, vindo a gerar dano a alguma das partes, seria possível intentar a ação indenizatória em face do juiz da causa, tanto em conjunto com o Estado com isoladamente? Para que se possa responder a este questionamento observa-se, a seguir, a legislação a respeito do tema, bem como as hipóteses responsabilidade civil do Estado e pessoal do magistrado pelo exercício da prestação jurisdicional.
2 A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
A legislação pátria que trata da responsabilidade pelos atos jurisdicionais não teve alterações nos últimos tempos, o que não significa dizer que o tema não permaneça sendo polêmico e complexo.
Mas antes disso, de janeiro de 1603 a 1917, vigoraram em nosso país as Ordenações Filipinas, do Reino de Portugal. Nelas, era explicitamente adotado o princípio da responsabilidade pessoal do Juiz. Com a independência do Brasil, não houve alteração a respeito, visto que silente a Constituição Federal de 1824, sendo que em 1850, o Decreto 737 que dispunha sobre a ordem do juízo no processo, também previa a responsabilidade civil do juiz. (AGUIAR JUNIOR, 2002).
Já em 1890, explica o autor supracitado, com a promulgação do Código Penal, houve a imposição ao Estado do dever de indenizar o réu condenado por sentença criminal e depois reabilitado, sendo que o Código Civil de 1916 estabeleceu a responsabilidade das pessoas jurídicas de direito público por ato de seus funcionários, bem como diversos preceitos que impõem responsabilidade ao julgador por danos causados às partes (v.g. artigos 294, 420, 421 e 1.552 daquele diploma), mas não tratou especificamente da responsabilidade civil do juiz, apresentando apenas normas gerais como estas (p. 158).
A Lei 4.898 de 1965, que regula o direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa civil e penal nos casos de abuso de autoridade, em seus artigos 4º, d e 6º reza que constitui abuso de autoridade deixar, o juiz, de ordenar o relaxamento de prisão ou detenção ilegal que lhe seja comunicada, sendo que o abuso de autoridade sujeita o autor à sanção administrativa civil e penal.
Por sua vez, o Código de Processo Penal, no capítulo que trata da revisão, em seu art. 630, define a possibilidade de reconhecimento de direito de indenização por prejuízos sofridos em razão da condenação errônea.
Em seguida, no § 2º do mesmo artigo, refere que a indenização não será devida se o erro ou injustiça da condenação tenha ocorrido em decorrência de ato ou fato imputável ao condenado, ou se a acusação tenha sido meramente privada.
Por outro lado, o Código de Processo Civil/2015 nos diz em seu artigo 143 que: o juiz responderá, civil e regressivamente, por perdas e danos quando: (1) no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude; (2) recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício ou a requerimento da parte.
A Lei Complementar 35 de 1979 (Lei Orgânica da Magistratura) em seus artigos 56 e 57, dispõe sobre as sanções administrativas de aposentadoria e disponibilidade do magistrado, nos casos de negligencia no cumprimento dos deveres do cargo, procedimento incompatível com a dignidade, honra e decoro das funções e escassa ou insuficiente capacidade de trabalho ou proceder funcional incompatível com o bom desempenho das atividades.
Este mesmo diploma legal repetiu, em seu artigo 49, o texto do artigo 133 do Código de Processo Civil de 1973, muito semelhante à disposição do art. 143 do Código de 2015, antes citado, o que fez com que a aplicação daquele passasse a ser estendida aos demais juízos, que não o cível.
Miranda, ao tratar sobre a redação exposta no Código processualista de 1973, faz dura crítica à sua existência, e refere quais foram suas origens, desta forma: “No fundo, o direito processual, sem o confessar, fracassa nos seus intuitos de resolver o problema, fora do direito civil. Se alguns legisladores se conformam com esse fracasso, com esse non possumus, alguns tentam solvê-lo. Os processualistas italianos do Projeto definitivo (art. 43) redigiram texto para ser transformado em princípio de responsabilidade civil do juiz. O Código de Processo Civil brasileiro de 1939 aí bebeu a sua inspiração. No código de 1973, o art. 133 tem a explicitude de 1939, com mudança de redação (1973, p. 395)
E o que se observa, no caso, é que a norma do Código atualmente vigente é idêntica, somente com mudança de redação e ao excluir, do procedimento a ser exercido pela parte, a necessidade de agir por intermédio do escrivão, pois no Código de 1973 era necessário à parte requerer ao juiz, por intermédio do escrivão, que determine a providência, sendo que a atual redação refere “depois que a parte requerer ao juiz que determine a providência”.
Assim, é possível afirmar que não houve alteração substancial no cerne da norma, que portanto tem suas origens no Código de 1939.
Com efeito, o Código de Processo Civil de 1939, artigo 121, como referido, trazia em suas linhas as mesmas disposições da legislação em vigor nos dias de hoje.
Stoco (2011), ao comentar o Código de 1973, disse ter sido ele redundante, assim como o seu antecessor que a fraude somente pode ocorrer com a tentativa de enganar, ludibriar, sendo, assim, atitude dolosa em sentido estrito, sendo que a fraude constitui uma particularização do dolo.
E, conforme se vê, não ocorreu evolução na recente legislação processual civil.
Vale mencionar o disposto na Lei 9.784 de 1999 – a qual trata do processo administrativo no âmbito da administração pública federal – que em seu artigo 64-B, com redação dada pela Lei 11.417/06, prevê a responsabilização pessoal do julgador do processo administrativo, nas esferas cível, administrativa e penal, nos casos de violação de súmula vinculante em que acolhida reclamação pelo Supremo Tribunal Federal, seja aquele notificado a alterar suas futuras decisões e não assim proceda.
Além disso, tem-se ainda notícia da responsabilidade pessoal do julgador no artigo 1.744 do Código Civil, no capítulo que trata do exercício da tutela, estabelecendo que a responsabilidade do juiz será direta e pessoal “quando não tiver nomeado o tutor, ou não o houver feito oportunamente” e subsidiária “quando não tiver exigido garantia legal do tutor, nem o removido, tanto que se tornou suspeito”.
3 A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO PELO ATO JURISDICIONAL
Primeiramente, far-se-á o estudo da responsabilidade civil do Estado pelo ato jurisdicional, sendo que em tópico próprio a seguir será abordada a possibilidade de responsabilização pessoal da pessoa do magistrado.
Via de regra, o Estado responde pelos danos causados por seus agentes, visto que a legislação brasileira adota a teoria do risco administrativo.
Contudo, o que se questiona é se tal teoria também é aplicável aos atos cometidos pelo Poder Judiciário. Kraemer (2004, p. 55) nos traz um início à formulação da resposta ao afirmar que: “Na responsabilidade do Estado pelos atos judiciais, não há possibilidade de aplicação da cláusula geral prevista no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, mas sua aplicação deve obrigatoriamente considerar as demais normas do sistema jurídico vigente, em especial o disposto no art. 5º, LXXV, igualmente da Constituição Federal.”
Este inciso LXXV do art. 5º da Constituição Federal determina a indenização por parte do Estado em razão de condenação efetuada por erro do judiciário, bem como nos casos de prisão além do tempo fixado em sentença.
Tal dispositivo constitucional rompeu com a aparente restrição contida no Código de Processo Penal, no sentido de subordinar a reparação por erro do judiciário à prévia revisão criminal (DIAS, 2006).
Devemos, destarte, levar em consideração as características próprias da atividade jurisdicional para que sejam observados as normas e princípios específicos que dizem respeito ao tema.
Insta referir o que Cappelletti (1998) define como dois obstáculos históricos à admissão da responsabilidade judicial, quais sejam: (a) o princípio de que o Estado não pode cometer injustiça e (b) o princípio res judicata facit jus.
O primeiro deles, baseava-se justamente no Estado absolutista, conforme o princípio The King can do no wrong, ou o rei não erra, a significar que o Estado, enquanto fonte do Direito, não cometeria atos ilícitos ou ilegítimos.
Já o segundo, do res judicata facit jus, é assim explicado por Cappelletti (1989, p. 27): “mesmo depois do abandono do princípio da irresponsabilidade geral do Estado em todas as suas atividades públicas, um aspecto pelo menos de tal princípio foi e ainda hoje é difícil de morrer em alguns países: a irresponsabilidade do Estado e dos seus agentes, por danos causados às partes por decisão judiciária ‘injusta’. O argumento empregado é o de que as decisões judiciárias são normalmente sujeitas a recurso e que o recurso constitui exatamente o instrumento regular e suficiente das partes para protegerem-se contra injustiça judiciária. Mas, uma vez que a decisão do juiz, não mais sujeita a recurso, torna-se definitiva, adquire autoridade da coisa julgada […]. Ainda que por hipótese, errônea de fato ou de direito, a decisão passada em julgado cria sua própria ‘verdade’ e o seu próprio direito […] a responsabilidade civil sequer pode ser reconhecida, dado que dita responsabilidade pressupõe ato contrário ao direito”
Basta observar as duas teorias para que se chegue à conclusão de que a segunda indubitavelmente tem as mesmas origens da primeira. Em que pese sejam diversas, a semelhança reside justamente no fato de afirmar que o Estado (no segundo caso por intermédio do judiciário) não cometeria erros, ou teria seus próprios meios para saná-los – no caso, o julgamento dos recursos.
Prevaleceu, ainda, durante um grande lapso de tempo a opinião de que o Estado não seria responsável por atos jurisdicionais, sob o argumento da independência dos poderes. Tal posição hoje se demonstra superada por várias vozes que se levantam contra essa posição dogmática, que se baseava no fato de que se o Executivo não poderia interferir nas decisões judiciais, não poderia responder por tais atos. Tratar-se-ia o Judiciário como um poder soberano (VENOSA, 2005).
Há quem afirme, ainda, que a doutrina corrente é no sentido de que os atos derivados do exercício da função jurisdicional não empenham a responsabilidade do Estado, salvo exceções expressamente estabelecidas na lei, caracterizando uma tendência de incluir no âmbito da irresponsabilidade os atos exercidos pelo juiz e pelos auxiliares da justiça (DIAS, 2006).
O mesmo jurista expõe que os que sustentam a irresponsabilidade do Estado em razão do erro judiciário argumentam que o ato judiciário é a emanação da soberania, cuja essência seria incompatível com o conceito de responsabilidade civil, concluindo também que (p. 855): “O problema se reduz à procura de uma solução de equilíbrio entre a preocupação de eqüidade, que não tolera fique a vítima do erro judiciário sem compensação, e o interesse não menos imperioso de não perturbar o funcionamento da justiça, inspirando os juízes o enervante receio de estar, possivelmente, com sua atuação, provocando futuras ações de indenização contra o Estado. Mas seu ponto de vista atual é que não pode a segunda consideração primar sobre a primeira”.
A fim de exemplificar as decisões que alegavam a irresponsabilidade estatal sob o argumento de respeito à soberania, observa-se trecho da seguinte decisão do antigo Tribunal de Alçada Cível de São Paulo, proferida em 1987: “[…] A função judiciária, embora mal desempenhada, não deixa de ser função de soberania, pertencendo àquela categoria de atos que não empenham a responsabilidade civil do Estado em face dos particulares. A própria natureza da arrematação exclui qualquer responsabilidade na sua realização, porque, enfim, a alienação se opera sem o concurso da vontade do proprietário, e o Estado, por sua vez, a realiza considerando a coisa tal qual é, sempre se presumindo que o Poder Judiciário no exercício normal de suas funções, tenha agido sem dolo nem culpa. (AI 203.208-6, 29/4/87, 1ª Câm. 2º TACSP, Rel. Juiz FRANKLIN NEIVA, in RT 620-134).”
A lógica de justiça que se tem nos tempos atuais não permite que se faça aquela espécie de leitura deveras absolutista. O Poder Judiciário pode, sim, cometer erros uma, duas e inúmeras vezes, inclusive em um mesmo caso concreto. Seria injusto e de certa forma autoritarista firmar convicção em contrário, restringindo o direito constitucional ao livre acesso ao poder judiciário ou inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV da CF).
Nas palavras de Venosa: “além do fato do termo soberania ser equívoco, sem exata precisão em qualquer contexto, o Judiciário não pode ser considerado um superpoder, colocado sobre os outros” (2005, p. 99).
Deste modo, ao contrário de outros países, dentre eles a Inglaterra, o Brasil não adota o princípio The King can do no wrong, visto que o próprio poder judicial é emanado do povo, detendo o juiz o poder de julgar seus jurisdicionados, e por isso há a necessidade de haver a contraprestação, que é a reparação (ALMEIDA FILHO, 2000).
Com o advento do Estado Moderno, a função da magistratura apresenta uma nova concepção, diferente daquela que se apresentava no passado, em que possuía uma íntima ligação com os detentores do poder. Agora, esta magistratura possui funções essenciais à manutenção do Estado Democrático de Direito, tendo em vista que no atual modelo as decisões dos demais Poderes de Estado podem ser revistas pelo Poder Judiciário, razão pela qual é necessário o estabelecimento de um controle do poder dos juízes (KRAEMER, 2004).
Desta forma, a responsabilidade do Estado pelos atos jurisdicionais não é somente uma forma de recomposição do patrimônio dos cidadãos, mas é também uma maneira de controle do próprio Poder Judiciário, visando a qualidade dos serviços prestados.
E esta conexão entre os objetivos de responsabilização pelos atos jurisdicionais é muito bem exposta por Kraemer, desta maneira (2004, p. 62): “A construção de um sólido arcabouço teórico no pertinente à responsabilidade do Estado e do Juiz, antes de apresentar características de penalidade, revela um acréscimo na legitimidade do Poder, na aceitação do Judiciário como meio eficaz para a solução das querelas individuais e coletivas do corpo social. […] a possibilidade de o próprio Poder julgar a licitude de seus atos mostra a necessidade de manutenção de um equilíbrio na idéia da responsabilidade. É importante não reduzir os instrumentos da responsabilidade estatal por deficiente prestação jurisdicional em mero mecanismo de satisfação patrimonial, mas em eficaz instrumento de qualificação da jurisdição.”
Assim, segundo afirmam alguns doutrinadores, no sistema jurídico brasileiro, comprovando o lesado o evento danoso e a participação do Estado, como detentor do poder judiciário, seguir-se-ia a regra geral de responsabilização estatal, havendo o dever de indenizar por parte deste, com exceção dos casos em que houver caracterização de excludentes de responsabilidade civil, como por exemplo na culpa exclusiva da vítima, no caso fortuito, na força maior.
Portanto, havendo falhas do Estado ao não fornecer Justiça, retardando ou suprimindo as decisões por desídia de servidores em geral (o que inclui os juízes), greves ou mazelas do aparelhamento, aplicar-se-ia a responsabilidade do Estado em sentido lato (VENOSA, 2005).
Mas uma aplicabilidade direta do art. 37, § 6º, da Constituição Federal transformaria a responsabilidade estatal em um seguro universal, visto que as decisões judiciais sempre tendem a acarretar uma diminuição de um bem jurídico a uma das partes, ou seja, na maior parte das vezes uma das partes é derrotada quando existente uma demanda judicial (AGUIAR JÚNIOR, 2002).
Contudo, não se sustenta na doutrina a não responsabilização do Estado e dos magistrados pelos seus atos. Também não se pode utilizar do mesmo método de responsabilidade civil objetiva trazido pela regra geral constitucional, sob pena de ferir as ideias de coisa julgada e segurança jurídica.
Assim, sendo a magistratura função essencial ao Estado de Direito, e não sendo esta uma razão para eximir os juízes de responderem por seus atos, deve-se observar a questão de modo proporcional, não se interferindo na independência funcional da Magistratura, tampouco se adotando a teoria da irresponsabilidade do Estado, primando sempre pelo respeito aos direitos do jurisdicionado e visando o controle das atividades do juiz.
Ainda deste modo, não se pode confundir a imunidade dos juízes à responsabilidade com sua independência, visto que, conforme leciona Cappelletti (1989, p. 32): “a imunidade dos juízes não é, assim, gratuita e necessariamente correlata à sua independência, já que pode existir grau muito alto de imunidade perante as partes, acompanhada de alto grau de ‘responsabilidade’, face ao poder político (e vice-versa); e dita responsabilidade pode chegar ao ponto de ser ausência total de independência”.
Seguindo esta mesma linha de pensamento, Gonçalves acrescenta que “a independência da magistratura […] não é argumento que possa servir de base à tese da irresponsabilidade estatal, porque a responsabilidade seria do Estado e não atingiria a independência funcional do magistrado” (2005, p. 210).
Além disso, considerando os inúmeros atos possíveis de serem praticados no exercício da atividade jurisdicional, já referidos anteriormente, deve-se levar em consideração as particularidades de cada espécie desses.
Essas diversas formas de caracterização não permitem que haja um tratamento igualitário para a responsabilidade do Estado pela deficiente prestação jurisdicional, não podendo, por exemplo, fazer-se um exame idêntico nas hipóteses de culpa e de erro e nas situações de demora ou atraso (KRAEMER, 2004).
Este mesmo autor nos ensina que o exame a ser feito é de responsabilidade subjetiva (2004, p. 70-71): “A responsabilidade do Estado pela deficiente prestação jurisdicional deve, obrigatoriamente, ser examinada pelo viés da responsabilidade subjetiva. Existem atividades, em decorrência de suas peculiaridades, que devem buscar, na disposição constitucional, apenas a regra geral da reparabilidade por eventuais atos danosos. Uma simples leitura da Constituição acarreta tal conclusão. São explicáveis, pela própria natureza do risco, os motivos que levaram o legislador constitucional a efetuar a expressa previsão dos danos nucleares pelo risco integral”
Evidente, portanto, a diferença entre a regra do dever de indenizar do Estado e, a título de exemplo a necessidade de indenização por erro judiciário, prevista no Art. 5º, LXXV da Constituição Federal. Nesta, a responsabilidade é guiada pela regra subjetivista.
Urge mencionar, portanto, que a responsabilidade subjetiva do Estado não foi totalmente suprimida de nosso ordenamento jurídico, em que pese a regra geral seja a da responsabilidade objetiva, fundada no risco administrativo (CAVALIERI FILHO, 2008).
Deste modo, levando-se em consideração a exposta conceituação dos atos jurisdicionais, podemos concluir que o Estado responde a estes de forma subjetiva, demandando-se uma análise individual, e nos demais atos judiciais, a responsabilização é regida pela regra geral da responsabilidade estatal objetiva.
Posto isso, é imperioso mencionar ainda a possibilidade de estabelecimento de três grandes grupos de hipóteses onde cabível a indenização por ato jurisdicional, quais sejam: (a) o erro judiciário, (b) o dolo ou fraude do magistrado e (c) a demora na prestação jurisdicional (KRAEMER, 2004).
Mas uma diversa e não menos importante distinção nos é trazida por Figueira Júnior, ao sustentar a diferenciação entre erro judiciário stricto sensu e lato sensu (1995, p 56): “o erro judiciário stricto sensu enquadrar-se-ia naquelas figuras descritas no art. 133 do Código Buzaid (procedimento culposo – culpa grave – ou doloso; recusa, omissão ou retardamento sem justo motivo de providências que deveria tomar de ofício ou a requerimento da parte) e naquelas outras do art. 630 do Código de Processo Penal, em sintonia com o estatuído no inc. LXXV da Constituição Federal (direito à indenização pelos prejuízos sofridos decorrentes de sentença condenatória, após a obtenção de decisão judicial determinando a sua cassação – revisão criminal; condenação errada e prisão por tempo superior ao fixado no decisum). […] o erro judiciário lato sensu estaria enquadrado nas hipóteses de mau funcionamento da máquina administrativa”.
Todavia, sob um ponto de vista pragmático, adotar uma ou outra diferenciação dentre as acima expostas não se mostra útil ao presente trabalho, visto que, em que pese sejam diversas, não se vislumbra qualquer oposição ou pontos contraditórios em sua análise conjunta, tratando-se somente de uma questão de adoção de determinada nomenclatura por parte dos citados doutrinadores.
O que se deve deixar claro é que o simples fato de uma decisão ser reformada em grau de recurso não significa, por si só, que tenha ocorrido erro no exercício da prestação jurisdicional.
Importante que se diga também que a questão da demora na prestação jurisdicional vem sendo bastante debatida, visto que atualmente o nosso Poder Judiciário vem enfrentando diversas críticas nesse sentido, podendo-se afirmar que o sistema encontra-se deficiente. A respeito dos danos causados pela demora na prestação jurisdicional, sustenta Venosa (2005, p. 103) que: “A justiça muito rápida corre o risco de ser injusta; mas a justiça tardia é sempre injusta: o devedor e seus bens desaparecem; a parte chega à velhice sem o reconhecimento definitivo de seu direito; desaparecem os vestígios do processo; a população descrê da justiça do magistrado […]. Não se nega que existe gravame, inclusive elevado dano moral nesse retardamento da Justiça que por muitas vezes equivale à sua própria negação […]. A prestação jurisdicional tardia é instrumento dos maus pagadores, escudo de sua conduta ímproba.”
De fato, a infeliz realidade do Judiciário muitas vezes é esta: a falta de aparelhamento (tanto a ausência de material quanto de pessoal) faz com que determinados litigantes tirem proveito destas deficiências, retardando providências que muitas vezes se demonstram inevitáveis de serem cumpridas.
A denegação de justiça é passível de responsabilidade do Estado, porém, observadas as condições do caso concreto, visto que muitas vezes os mecanismos do Judiciário não apresentam condições de funcionar. Há ocasiões em que esta demora se demonstra desnecessária, fruto da burocracia, das falhas estruturais ou de desídia, circunstância que pode causar dano ao jurisdicionado (CANALLI, 2011).
Quando o Estado não cumpre com suas obrigações responde inexoravelmente pelos danos causados ao jurisdicionado – de ordem patrimonial e moral. O dano sofrido por omissão culposa do Estado, ao deixar de oferecer instrumentos e estruturas adequadas, afronta direitos fundamentais da pessoa humana (FIGUEIRA JÚNIOR, 1995).
Não obstante isso, tendo sob análise a responsabilidade por erro em condenação criminal, o pleno do Supremo Tribunal Federal decidiu, em 04 de março de 1964, no recurso extraordinário 46766, cujo relator era o Ministro Antonio Villas Boas, que “não cabe ao Estado a responsabilidade do dano quando a condenação criminal resultou de ato do próprio interessado, que assim concorreu para a perpetração do erro judiciário” (RE 46766 embargos, Relator: Min. ANTONIO VILLAS BOAS, TRIBUNAL PLENO, julgado em 26/04/1963, ADJ DATA 05-03-1964 PP-00059 DJ 17-12-1963 PP-04445 EMENT VOL-00566-04 PP-01661).
Por fim, torna-se indispensável referir que mesmo havendo dicção de responsabilização direta do magistrado, expressa no art. 143 do Código de Processo Civil/2015 (com origens no Código de 1939, como já exposto) e na Lei Orgânica da Magistratura Nacional, em qualquer destas hipóteses será possível buscar o Estado como responsável, o qual poderá acionar regressivamente o juiz (VENOSA, 2005).
Destarte, passaremos a analisar as ocasiões em que possível esta responsabilização pessoal do magistrado e a seguir os casos em que cabível a ação de regresso do Estado em face de seu agente.
4 A RESPONSABILIDADE CIVIL DO MAGISTRADO PELO ATO JURISDICIONAL
4.1 A responsabilidade pessoal direta
A discussão acerca da responsabilização pessoal do magistrado é assunto extremamente delicado (MIRANDA, 1975), até porque, na espécie, julga-se o agente que é incumbido de exercer a jurisdição. Tal fato já traz ao assunto uma severa complexidade, devendo por isso ser tratado com muito cuidado.
Esta responsabilidade pessoal pode se apresentar sob dois aspectos: a ação ajuizada em razão de atos lesivos praticados em decisões jurisdicionais e ação ajuizada contra o juiz com base na Lei 8.429/92 (KRAEMER, 2004).
Cabe a nós analisarmos somente o primeiro aspecto, tendo em vista que estamos discorrendo sobre a possibilidade de responsabilização no âmbito civil, razão pela qual não serão tratados os atos de improbidade administrativa propriamente dita, o que não impede, contudo, de lembrar a possibilidade do magistrado ser demandado diretamente neste último caso, quando causados danos no exercício de suas funções.
Observa-se, conforme veremos, nos casos da responsabilidade civilista, a possibilidade do autor da demanda propô-la em face somente do Estado ou contra o Estado e o magistrado de forma simultânea.
O ponto mais controvertido concentra-se no inciso II do art. 143 do Código de Processo Civil/2015 – estampado também na Lei Orgânica da Magistratura – visto este estabelece responsabilização do magistrado quando houver recusa, omissão ou retardamento, sem justo motivo, de providência que o juiz deveria ordenar de ofício, ou a requerimento da parte. O grande problema se torna a definição do termo justo motivo, visto que se trata de entendimento extremamente subjetivo e variável.
É certo que a EC nº. 45/04 assegurou a todos o direito à razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação (MORAES, 2008, p. 106). Contudo, questiona-se se desta forma será atingida a boa desenvoltura do trabalho do magistrado, visto que tal espécie de regra – do inciso II do art. 143 do Código de Processo Civil/2015 – tem em si a possibilidade de gerar três espécies de resultados diversos daquele para a qual foi desenvolvida: a) a ineficácia da norma jurídica; b) a ocorrência de injustiças, no caso de responsabilização civil sem a existência de dolo ou culpa ou; c) a ocorrência de decisões tomadas de forma precipitada, sem a devida análise do caso concreto, visando somente a celeridade, mas não também a efetividade daquela prestação jurisdicional. Não é à toa que, conforme já mencionado no presente trabalho, tal dispositivo legal já foi duramente criticado.
Ademais, há quem considere um ônus extremamente severo a possibilidade de atribuir ao juiz a responsabilidade por eventual atraso na prestação jurisdicional, quando o que se observa é um Poder Judiciário em que o número de causas para cada juiz é efetivamente superior ao humanamente possível de ser solucionado em tempo razoável.
Em contrapartida, afirma-se que em que pese o código processualista de 1973 tenha conferido ao juiz ampla liberdade de condução do processo, situação que aparente foi mantida neste recente código, não é por isso que seria tolerável a desídia desse no desempenho de suas funções. Exatamente por isso o Código teria condicionado aquela liberdade à obrigação de agir de maneira que assegure ao processo um rápido andamento, sem causar prejuízo às partes (LEVENHAGEN, 1973).
É importante que se ressalte, contudo, que a responsabilidade pessoal do magistrado se dá por meio da teoria aquiliana, respeitando aos aspectos subjetivos (KRAEMER, 2004).
Mas a discussão é longe de ser pacífica, tendo o Supremo Tribunal Federal já decidido no sentido de ser o juiz parte ilegítima no polo passivo da ação indenizatória, em decisão assim ementada: “Recurso extraordinário. Responsabilidade objetiva. Ação reparatória de dano por ato ilícito. Ilegitimidade de parte passiva. 2. Responsabilidade exclusiva do Estado. A autoridade judiciária não tem responsabilidade civil pelos atos jurisdicionais praticados. Os magistrados enquadram-se na espécie agente político, investidos para o exercício de atribuições constitucionais, sendo dotados de plena liberdade funcional no desempenho de suas funções, com prerrogativas próprias e legislação específica. 3. Ação que deveria ter sido ajuizada contra a Fazenda Estadual – responsável eventual pelos alegados danos causados pela autoridade judicial, ao exercer suas atribuições -, a qual, posteriormente, terá assegurado o direito de regresso contra o magistrado responsável, nas hipóteses de dolo ou culpa. 4. Legitimidade passiva reservada ao Estado. Ausência de responsabilidade concorrente em face dos eventuais prejuízos causados a terceiros pela autoridade julgadora no exercício de suas funções, a teor do art. 37, § 6º, da CF/88. 5. Recurso extraordinário conhecido e provido. (RE 228977, Relator: Min. NÉRI DA SILVEIRA, Segunda Turma, julgado em 05/03/2002, DJ 12-04-2002 PP-00066 EMENT VOL-02064-04 PP-00829).”
Por outro lado, no caso de necessidade de ajuizamento de demanda para reparação de dano – quando houver o entendimento de existência de dolo, fraude ou retardamento no exame de pretensão formulada pela parte ou outra hipótese que demonstre a responsabilidade do juiz – para que se saiba e se decida a legitimidade passiva na causa, o exame deve ser feito a partir de dois diferentes enfoques: a) o contido na legislação processual civil, que demonstra apenas os limites quando poderia existir o ajuizamento da ação contra o magistrado, ficando à escolha do ofendido a promoção contra o Estado ou contra o julgador e; b) o disposto no art. 37, § 6º da Constituição Federal, que seria superior às demais norma supletivas. Nessa hipótese, a ação deveria ser proposta somente contra o Estado, sendo que as demais normas seriam apenas diretrizes para ajuizamento de ação regressiva por esse. Excepcionalmente poderia haver litisconsórcio entre ambos. (KRAEMER, 2004).
Lembra-se que, nos casos de responsabilidade pessoal do juízo na nomeação de tutor e exigência de garantia legal deste para o exercício da tutela, previstos no art. 1.744 do Código Civil, o Supremo Tribunal Federal não tem admitido esta responsabilização direta do julgador perante o jurisdicionado (CANALLI, 2011).
Necessária, portanto, assim como na responsabilização direta do Estado, a compatibilização entre a norma geral constitucional e a legislação restante, a fim de que possamos concluir as diferentes possibilidades de composição do polo passivo e talvez observar eventuais vantagens entre efetuar a escolha entre uma ou outra hipótese.
Considerando que o mau funcionamento da justiça pode resultar da culpa de seu agente determinado ou da culpa anônima, simples falta do serviço, para o lesado basta demonstrar esta falha, o dano e o nexo causal, visto que nos casos de acúmulo de trabalho, cujo aumento não pode ser controlado, da insuperável falta de juízes, servidores e de recursos suficientes, não se pode precisar a quem se deve imputar a falta, sendo que todos estes são fatores determinantes e comuns do funcionamento anormal do Poder Judiciário (AGUIAR JÚNIOR, 2002).
Nesta toada, Kraemer (2004, p. 97) pondera que: À medida que a responsabilidade do Estado por deficiência na prestação jurisdicional é situação admitida na doutrina de forma pacífica, o sistema deve criar hipóteses nas quais o próprio juiz possa ser demandado. A responsabilidade estatal é situação acolhida pelo sistema, contudo imputar ao magistrado responsabilidade pessoal e direta constitui-se em exceção. A eventual banalização da responsabilidade direta acarretaria o esvaziamento da própria carreira. Assim, criou o sistema hipóteses em que haveria a possibilidade de buscar-se a reparação diretamente. As normas ordinárias jamais poderiam restringir a responsabilidade estatal, mas haveria condições de engendrar-se, como efetivamente se fez, situações previstas em lei, nas quais o juiz seria passível de pessoalmente ser demandado”.
Assim, com base na norma geral constitucional o Estado deverá sempre integrar o polo passivo da demanda, respondendo por eventuais danos causados pelo seu agente: o magistrado.
Já a pessoa do juiz, somente poderá ser demandada nas hipóteses de responsabilização previstas na legislação infraconstitucional, quando caracterizados os elementos dolo ou culpa da responsabilidade civil subjetiva.
Sobre esse aspecto, Figueira Júnior (1995, p. 77-78) nos apresenta uma síntese da matéria atinente à legitimidade passiva, nestes termos: “a) responsabilidade solidária autônoma (direta ou indireta) da Fazenda Pública e do Estado-Juiz, nas hipóteses de a1) ato ilícito (omissivo ou comissivo), por dolo ou fraude; a2) culpa grave (recusa, omissão ou retardamento de providência que deva tomar de ofício ou a requerimento da parte), sem justo motivo; b) responsabilidade direta e exclusiva da Fazenda Pública, nos casos de: b1) disfunção da máquina administrativa da justiça; b2) erro judiciário ou erro stricto sensu (erro técnico do oferecimento da tutela estatal)”.
Por conseguinte, nas hipóteses elencadas no item “a”, ocorre a responsabilidade concorrente passiva do Estado e da pessoa do julgador, podendo o lesado propor a ação em face de ambos, ou somente contra um deles, sendo a responsabilidade pessoal do juiz sempre supletiva.
Já no segundo caso, trata-se de hipótese de responsabilidade exclusiva do estado, não sendo possível a propositura da ação em face do julgador.
4.2 A responsabilidade regressiva
O sujeito que suportar indenização por dano causado por outrem poderá voltar-se contra este causador do dano a fim de receber os valores suportados, restabelecendo o equilíbrio patrimonial, conforme preconiza o art. 934 do Código Civil ao referir que “aquele que ressarcir o dano causado por outrem pode reaver o que houver pago daquele por quem pagou, salvo se o causador do dano for descendente seu, absoluta ou relativamente incapaz”.
Tal direito regressivo, encontra-se estampado de forma genérica pela actio in rem verso, e é de justiça cristalina, sendo genericamente aceito pelas legislações, excepcionando-se somente nos casos em que o causador do dano for descendente do indenizados, absoluta ou relativamente incapaz, caso em que o pagamento insere-se dentro dos ônus e deveres do poder familiar (VENOSA, 2005).
No caso da responsabilidade civil pelos atos jurisdicionais, portanto, perfeitamente cabível a ação regressiva do Estado em face do julgador, contudo, somente nos casos em que a ação originária pudesse ter sido proposta também contra o magistrado.
Evidentemente, seria contraditório afirmar a impossibilidade da vítima propor a ação em face do juiz em determinados casos e nestes mesmos autorizar a ação regressiva do Estado em face do julgador.
Conclusão
De todo o exposto no presente estudo, é possível observar que uma deficiente prestação jurisdicional é capaz de causar danos aos litigantes, os quais devem, de fato, ser reparados, levando-se em consideração as atuais concepções a respeito do Direito e da Justiça, embasadas no advento do Estado Democrático de Direito.
Deste modo, nos tempos atuais, não se pode aceitar a leitura absolutista de irresponsabilidade do Estado, independentemente do órgão responsável pelo ato danoso. Assim, não se pode olvidar da necessidade de reparação dos danos causados pelos julgadores, com base no direito constitucional ao livre acesso ao poder judiciário ou inafastabilidade da jurisdição.
Se de um lado deve ser preservada a autonomia dos juízes, de outro se vislumbra a necessidade de se ter um Poder Judiciário eficiente e transparente, o que passa pela necessidade de haver uma posterior responsabilização nos casos em que caracterizada a culpa do agente, neste caso o Estado ou o próprio julgador, respeitando-se, contudo, a autoridade da coisa julgada.
Em que pese a liberdade dos magistrados seja uma garantia assegurada pela legislação, não se pode admitir a desídia dos julgadores no exercício de suas funções.
A esse respeito, brilhantes foram as palavras de Cappelleti (1989, p. 93) ao concluir seu estudo sobre o tema: “Justamente para remediar o risco da clausura corporativa, particularmente ameaçador numa magistratura de carreira, deve-se adotar, por isso, os instrumentos normativos, organizativos e estruturais que possam tornar a autonomia dos juízes aberta ao corpo social e, assim, às solicitações dos ”consumidores” do supremo bem que é a Justiça”.
Não obstante, observou-se que apesar de termos uma regra geral de responsabilidade civil objetiva do Estado, a responsabilidade subjetiva deste não foi totalmente suprimida do ordenamento jurídico, a qual é aplicada justamente nos casos de comprovação da existência de deficiente prestação jurisdicional causadora de dano.
Cumpre referir que o assunto ainda é polêmico não somente por ser julgado o trabalho do agente político incumbido de exercer a jurisdição, mas também por termos uma legislação muitas vezes confusa, que pode causar entendimentos errôneos nos casos em que efetuada uma leitura desatenta.
Assim, é possível ao sujeito que busca o ressarcimento por danos causados por ato jurisdicional propor a ação em face somente do Estado ou contra o Estado e o magistrado de forma simultânea.
Há que se lembrar, contudo, a existência de decisões do Supremo Tribunal Federal afirmando ser o juiz parte ilegítima na ação indenizatória, opinião que não se demonstra ser a mais justa.
Faz-se necessária, em qualquer hipótese, a compatibilização entre a norma geral constitucional e a legislação restante, a fim de que a vítima possa concluir as diferentes possibilidades de composição do polo passivo e talvez observar eventuais vantagens entre efetuar a escolha entre demandar somente em face do Estado (que poderá sempre ser demandado) ou a este somado à pessoa do julgador.
A pessoa do juiz, portanto, somente poderá ser demandada nas hipóteses de responsabilização previstas na legislação infraconstitucional, quando caracterizados os elementos dolo ou culpa da responsabilidade civil subjetiva, podendo neste caso haver a escolha entre demandar o Estado ou ambos, eis que o julgador será sempre demandado de forma supletiva.
Outrossim, sempre será possível a ação regressiva do Estado em face do julgador quando aquele for condenado, nos casos em que a ação originária pudesse ter sido proposta também contra o magistrado.
Informações Sobre o Autor
Pedro Henrique Baiotto Noronha
Especialista em Direito Processual Civil com capacitação para o Ensino no Magistério Superior pela Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus Bacharel em Direito pela Unicruz. Servidor Público do Poder Judiciário-RS