A vocação hereditária na inseminação artificial homóloga post mortem

Resumo: Tendo em vista as diretrizes preconizadas pelos direitos fundamentais ditos de 4ª dimensão, mormente os vinculados à questão da reprodução humana assistida, o Código Civil Brasileiro, em seu artigo 1.597, inovou a ordem jurídica trazendo disposições acerca da possibilidade da utilização pela mulher dos gametas criopreservados de seu cônjuge ou companheiro, após a morte deste, através da técnica da inseminação artificial homóloga post mortem. Porém, o legislador foi omisso no tocante à questão dos direitos sucessórios, mantendo as disposições gerais previstas no artigo 1.798 do mencionado diploma legal. Surge, então, o questionamento: o filho gerado por meio da técnica de reprodução homóloga post mortem tem direitos sucessórios? A partir da utilização do método de pesquisa bibliográfico, tendo como parâmetro de análise a doutrina nacional e o direito comparado com alguns doutrinadores estrangeiros, bem como a pesquisa jurisprudencial e a consulta à legislação nacional, buscar-se-á fazer uma reflexão acerca das possíveis respostas à questão posta em análise, de sorte a mapear as possibilidades hoje existentes dentro do sistema jurídico pátrio.

Palavras-Chave: Vocação Hereditária. Inseminação Artificial Homóloga post mortem. Filiação. Autonomia da Vontade. Petição de Herança.

Resumen: En vista de las directrices recomendadas por los derechos fundamentales dichos de 4º dimensión, especialmente los vinculados a la cuestión de la reprodución humana assistida, la ley civil, en suyo artículo 1.597, innovó el ordenamiento jurídico trayendo disposiciones respecto de la posibilidad del uso por la mujer de los gametos criopreservados de su cónyuge o compañero tras la muerte de este, por médio de la técnica de la inseminación artificial homóloga post mortem. Sin embargo, el legislador há sido descuidado en cuanto a la cuestión de los derechos de sucesión, manteniendo las disposiciones generales establecidas en el artículo 1.798 de la ley civil brasileña. Conque se plante ala pregunta: il hijo generado a través de la técnica de la reprodución homóloga post mortem tiene derechos de sucesión? Mediante la utilización del método de investigación bibliográfico, teniendo como parámetro de análisis la doctrina interna y el derecho comparado con um par de escritores extranjeros, junto con la investigación jurisprudencial y la consulta a la legislación nacional, si pretenderá hacer una reflexión respecto los potenciales respuestas a la questión en análisis, suerte a mapear las posibilidades que existen actualmente en el sistema jurídico de la patria.  

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Palabras-Clave: Vocación Hereditaria. Inseminación artificial homóloga post mortem. Filiación. Autonomía de la Voluntad. Petición del patrimonio.

SUMÁRIO. Introdução. 1. A instituição familiar analisada sob o prisma da constituição federal de 1988. 2. Vocação hereditária e presunção de filiação: uma análise sistemática do Código civil Brasileiro. 2.1. Legitimação para suceder e as figuras do nascituro e do concepturo. 2.2. Vocação hereditária e a presunção de filiação. 3. Reprodução artificial post mortem. 3.1. Noções gerais sobre os métodos de reprodução artificial. 3.2. A problemática da inseminação artificial homóloga post mortem. 3.2.1. Referências casuísticas e a posição jurisprudencial. 3.2.2. Análise do direito comparado. 3.3. Ação de petição de herança e seus efeitos. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

“Os direitos do homem (…) são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas. (…) Nascem quando devem ou podem nascer.” (BOBBIO, 1992, p. 5)

O processo histórico de criação ininterrupta dos “novos” direitos justifica-se na afirmação permanente das necessidades humanas específicas e na legitimidade de ação dos novos atores sociais, aptos a implementar práticas diversificadas de relacionamento entre indivíduos e grupos. Neste sentido, identificamos o surgimento dos direitos denominados por parte da doutrina como “direitos de quarta dimensão”[1], os quais constituem-se nos “novos” direitos vinculados à biotecnologia, à bioética e à regulação da engenharia genética. “Tratam dos direitos específicos que têm vinculação direta com a vida humana, como a reprodução humana assistida (inseminação artificial), aborto, eutanásia, cirurgias intra-uterinas, transplantes de órgãos, engenharia genética (“clonagem”), contracepção e outros” (WOLKMER, 2003, p. 12).

Seguindo esta orientação, o Código Civil Brasileiro, em seu artigo 1.597, inovou a ordem jurídica inserindo três novas formas de presunção de filiação, mediante a utilização das técnicas de reprodução assistida, quais sejam, os incisos III, IV e V. O inciso III, em particular, dispõe acerca da possibilidade da utilização pela mulher dos gametas criopreservados de seu cônjuge ou companheiro, após a morte deste, através da técnica da inseminação artificial homóloga post mortem. De tal sorte, o diploma legal buscou conferir solução ao problema da paternidade superveniente, criando mecanismo que a viabilizasse, tendo em vista que tal paternidade seria inadmissível à época de vigência do Código Civil de 1916, haja vista que a referida presunção ocorreria somente nos casos em que e criança nascesse nos 300 dias após a morte de seu pai.

Todavia, o legislador não foi preciso ao estabelecer referida inovação, uma vez que restou omisso no tocante à questão dos direitos sucessórios, deixando a temática à mercê da regra geral estabelecida no artigo 1.798 do Código Civil Brasileiro. Tal artigo indica que estão legitimados a suceder aqueles que eram ao menos concebidos no momento da abertura da sucessão (ou seja, no momento da morte do autor da herança). Daí surge o seguinte questionamento: O filho gerado por meio da técnica de reprodução homóloga post mortem tem direitos sucessórios?

Buscando responder de forma satisfatória à mencionada indagação, o presente estudo será direcionado através da utilização do método de pesquisa bibliográfico, tendo como parâmetro de análise a doutrina nacional e alguns doutrinadores europeus, um argentino e um mexicano, bem como a pesquisa jurisprudencial em alguns tribunais nacionais e a consulta à legislação nacional vinculada à questão em análise, mormente aos princípios norteadores da temática do direito de família.

1. A INSTITUIÇÃO FAMILIAR ANALISADA SOB O PRISMA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Particularmente arrojado, para não dizer revolucionário, é o capítulo da constitucionalização da família. O constituinte de 88, tendo em conta todas as inovações operadas no cenário social no tocante às relações familiares[2], promoveu significativas alterações na leitura do núcleo familiar[3], deixando inequívoco que “não é mais a família um fim em si mesmo, (…), mas, sim, o meio social para a busca de nossa felicidade na relação com o outro.” (GAGLIANO, 2011, p. 98).

A partir do momento em que a solidariedade social passa a ser reconhecida como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, através da previsão constante no artigo 3º, I da Constituição Federal, percebemos um reflexo imediato nas relações familiares: por óbvio, a solidariedade deve existir igualmente nesses relacionamentos pessoais. De tal sorte, a solidariedade, uma vez entendida como a ideia de preocupar-se com o outro, ao ser analisada no âmbito familiar, deve ser tida em sentido amplo, tendo caráter afetivo, social, moral, patrimonial e espiritual (TARTUCE, 2013, p. 1057-1058).

Assevera Jean-Jacques Rosseau (2011, p. 24):

“Portanto, a família é, se quiserem, o primeiro modelo das sociedades políticas; o chefe é a imagem do pai, o povo, a imagem dos filhos, e todos, tendo nascido iguais e livres, só alienam sua liberdade em proveito próprio. A diferença é que, na família, o amor dos pais pelos filhos vale pelos cuidados que dispensa a eles, enquanto, no Estado, o prazer de comandar substitui esse amor, que o chefe não tem por seu povo.”

Para a ordem constitucional, a família é de suprema relevância, sendo apontada como a base da vida social. De tal sorte, a noção de família trazida pela Constituição Federal vai muito além da instituição formada a partir do casamento[4], sendo considera também família o núcleo familiar constituído a partir da união estável e da família monoparental, conforme previsão constante no artigo 226, parágrafos 3º e 4º, respectivamente. O parágrafo 5º do mencionado artigo 226, por seu turno, representando expressão do princípio da igualdade, refere que no núcleo familiar se estabelecem os mesmos direitos e deveres para homens e mulheres, cabendo a estes, conjuntamente, definir o projeto familiar que levarão adiante, sendo proibido ao Estado, bem como às instituições privadas, qualquer forma de coerção, mormente no que tange ao planejamento familiar (FERNANDES, 2017, p. 1659).

Assim, desde que não afetado o ordenamento jurídico como um todo, neste compreendidos os princípios gerais de direito e o ordenamento legal propriamente dito, à família reconhece-se autonomia e liberdade na “sua organização e opções de modo de vida, de trabalho, de subsistência, de formação moral, de credo religioso, de educação dos filhos, de escolha de domicílio, de decisões quanto à conduta e costumes internos.” (RIZZARDO, 2006, p. 15 e 16). Não se tolera, portanto, a ingerência de estranhos, sejam eles pessoas privadas ou até mesmo o próprio Estado, para decidir ou impor no modo de vida, nas atividades, no tipo de trabalho e de cultura que decidiu adotar a família.

Neste sentido, leciona o ilustre Professor Carlos Silveira Noronha (1999, p. 69):

“No direito político nacional também essa evolução é admitida pela Constituição Federal de 1988. Conserva-se a instituição da família fundada no casamento civil ou no casamento religioso com efeitos civis; proclama-se a igualdade plena de direitos entre os consortes; admite-se a dissolução do vínculo matrimonial pelo divórcio; adota-se a paridade de qualificação e de direitos entre os filhos havidos ou não no casamento.”

Outrossim, resolvendo finalmente a questão da discriminação entre os filhos, o constituinte colocou fim a um período nada saudoso da nossa ordem jurídica estabelecendo, através da disposição constante no parágrafo 6º do artigo 227, a igualdade substancial entre os filhos, de sorte a evitar qualquer conduta discriminatória, em homenagem ao princípio da dignidade da pessoa humana[5], finalidade precípua da República Federativa do Brasil. Assim, a partir da nova ordem constitucional, todos os filhos passaram a ter as mesmas prerrogativas, independentemente de sua origem ou da situação jurídica dos seus pais.[6]

Neste sentido, aponta Flávio Tartuce (2013, p. 1058):

“Em suma, juridicamente, todos os filhos são iguais perante a lei, havidos ou não durante o casamento. Essa igualdade abrange os filhos adotivos e os havidos por inseminação artificial heteróloga (com material genético de terceiro). Diante disso, não se pode mais utilizar as odiosas expressões filho adulterino, filho incestuoso, filho ilegítimo, filho espúrio ou filho bastardo.”

Cumpre destacar, ainda, que, como corolário do princípio da igualdade[7] entre os filhos, teremos a decorrência lógica da sua igualdade patrimonial no âmbito sucessório. De tal sorte, “os filhos possuem idênticos direitos patrimoniais, não se justificando um tratamento sucessório diferenciado para o filho adotivo, como ocorria outrora.” (FIGUEIREDO, 2013, 1183).

2. VOCAÇÃO HEREDITÁRIA E PRESUNÇÃO DE FILIAÇÃO: UMA ANÁLISE SISTEMÁTICA DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO

2.1 Legitimidade para suceder e as figuras do nascituro e do concepturo.

A regra geral prevista no ordenamento jurídico brasileiro é no sentido de que somente as pessoas nascidas (ou seja, separadas pelo cordão umbilical), assim como as já concebidas ao tempo da abertura da sucessão, detém legitimidade para serem herdeiras ou legatárias. Tal regra, no entanto, encontra-se excepcionada nos termos previstos no artigo 1.799 do Código Civil Brasileiro, in verbis:

“Art. 1.798. Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão.

Art. 1.799. Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder:

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I – os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão;

II – as pessoas jurídicas;

III – as pessoas jurídicas, cuja organização for determinada pelo testador sob a forma de fundação.”

De tal sorte, como o nascituro já está concebido no ventre materno e tem resguardados os seus direitos sucessórios – conforme entendimento albergado pela teoria concepcionista, a qual é adotada, segundo posição doutrinária dominante, pelo Código Civil Brasileiro[8] -, inexiste dúvida quanto à circunstância de possuir legitimidade para suceder[9]. Consiste, todavia, em legitimação condicional, tendo em vista que somente titularizará direitos sucessórios de fato se vier a nascer com vida. Tratando-se de natimorto, não há que se falar em direito sucessório, embora estejam resguardados os seus direitos da personalidade[10], como o direito ao nome, à imagem e à sepultura (FIGUEIREDO, 2013, p. 1397).

Corroborando com este entendimento, adverte Maria Helena Diniz (2010, p. 1276) que a capacidade sucessória do nascituro é excepcional, somente sucedendo se nascer com vida, in verbis:

“Havendo um estado de pendência da transmissão hereditária, recolhendo seu representante legal a herança sob condição resolutiva. O já concebido no momento da abertura da sucessão e chamado a suceder adquire desse logo o domínio e a posse da herança como se já fosse nascido, porém, em estado potencial, como lhe falta personalidade jurídica material, nomeia-se um curador de ventre. Se nascer morto, será tido como se nunca tivesse existido, logo, a sucessão é ineficaz. Se nascer com vida, terá capacidade ou legitimação para suceder.”

Mauro Antonini (2008, p. 1956), por seu turno, sinaliza:

“Ao estabelecer genericamente a legitimidade sucessória passiva às pessoas nascidas ou concebidas ao tempo da abertura da sucessão, a norma em questão se aplica tanto à sucessão legítima como à testamentária. (…) A atribuição de capacidade sucessória ao nascituro é disposição que dá concreção, no âmbito do direito das sucessões, ao art. 2º, pelo qual, embora a personalidade civil comece com o nascimento com vida, a lei protege desde a concepção os direitos do nascituro. Como o nascituro não tem personalidade jurídica, sua legitimação sucessória está sujeita à condição de nascer com vida. (…) Ao dispor que têm legitimidade para suceder as pessoas nascidas ou concebidas no momento da abertura da sucessão, o legislador não cuidou das hipóteses de filiação por reprodução assistida.”

No que tange à sucessão testamentária, também possuem capacidade sucessória a prole eventual, consistindo esta no filho (legítimo ou ilegítimo, bem como no adotivo)[11] que uma pessoa, a qual deve necessariamente estar viva no momento da abertura da sucessão do testador e que deverá ser devidamente especificada no ato de elaboração do testamento, terá no futuro. Não se trata, portanto, de um nascituro já concebido (conceptus), mas sim do filho ainda não concebido e que há de sê-lo no futuro (concepturo ou nodum concepti).

Relevante observar que a prole eventual deve ser concebida (ou seja, não precisa nascer, bastando a sua concepção) no prazo de até dois anos, contados a partir da data da abertura da sucessão. Nesse caso, uma vez aberta a sucessão, os bens da herança serão confiados a um administrador ou curador expressamente designado pelo testador ou pelo juiz competente. Nascendo com vida o herdeiro esperado, a deixa ser-lhe-á deferida, acrescida dos respectivos frutos e rendimentos. Contudo, não ocorrendo a concepção no prazo ora referido, os bens serão redirecionados para o monte hereditário formado pelos herdeiros legítimos, salvo se for verificada alguma indicação específica pelo testador no testamento em sentido diverso. (FIGUEIREDO, 2013, p. 1399-1400)

Cumpre destacar, por fim, que não se trata do instituto jurídico do fideicomisso (VENOSA, 2017, p. 320 e 325). O administrador, ou curador, deverá ser nomeado pelo testador ou pelo juiz, não existindo a figura do fiduciário, o qual exercia, no caso de fideicomisso, o direito de propriedade. Os nascituros, bem como a prole eventual, recebem o quinhão com todos os frutos e acréscimos, contabilizados desde a abertura da sucessão. Tendo em vista a expressiva responsabilidade do administrador, que pode não ser o pai ou a mãe dos menores, sua função deverá ser remunerada, caso estes não o tenham sido. Caso o administrador seja o próprio testamenteiro, referida circunstância deve ser levada em conta no cálculo de sua vintena. “Note-se que, embora o presente Código preveja a nomeação desse curador na pessoa cujo filho o testador esperava ter por herdeiro, a disposição testamentária ou mesmo a inconveniência apurada pelo juiz no caso concreto poderá fazer com que outros sejam nomeados” (VENOSA, 2017, p. 223-224).

2.2 Vocação hereditária e a presunção de filiação.

Vocação hereditária consiste na legitimação que o indivíduo possui para ser considerado herdeiro, tendo em vista o cumprimento de certos requisitos legais. Esta capacidade para suceder, a qual deve ser verificada no momento da abertura da sucessão em conformidade com o droit de saisine, pode decorrer ou da lei – a qual estabelece a ordem sucessória no artigo 1.829 do Código Civil Brasileiro –, ou de testamento, circunstância em que determinado indivíduo, independentemente da classificação de herdeiro ou não, é contemplado com bens. “Daí a distinção dos herdeiros em legítimos ou testamentários, que se capacitam a recolher a herança, podendo ser pessoas físicas ou jurídicas, nascida ou por nascer” (RIZZARDO, 2009, p. 47).

Para Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (2003, p. 87):

“(…) tanto podem ser herdeiros legítimos, testamentários, ou mesmo legatários os indivíduos que já tivessem nascido quando do momento do exato falecimento do de cujus, bem assim todos os que já estivessem concebidos no mesmo momento. (…) Na condição de pessoas concebidas estão duas classes médico-legais: o feto, fase que vai da concepção até o início do desalojar do ser do aparelho reprodutor feminino, e o feto nascente, período que se situa entre o início da expulsão fetal e o momento em que se estabelece vida autônoma.”

Ademais, conforme adverte Caio Mário da Silva Pereira (1976, p. 30), o indivíduo, para ser considerado herdeiro, deve ser capaz para suceder e não pode ser indigno, in verbis:

“Não basta ao herdeiro invocar a sua vocação hereditária. É preciso, ainda, seja ele capaz e não indigno. Mas não se confunde capacidade sucessória com capacidade civil, ou poder de ação no mundo jurídico. Deve entender-se em acepção estrita de aptidão da pessoa para receber os bens deixados pelo falecido. Assim é que uma pessoa pode ser incapaz para os atos da vida civil, e não lhe faltar capacidade para suceder; e vice-versa, incapaz de suceder, não obstante gozar de plena capacidade para os atos da vida civil. Nesse sentido restrito, a incapacidade sucessória identifica-se como implemento legal para adir à herança.”

Questão tormentosa surge, entretanto, ao analisarmos a vocação hereditária em cotejo com a presunção de filiação prevista no artigo 1.597, III do Código Civil Brasileiro. O referido dispositivo legal estabelece a presunção de filiação nos casos de inseminação artificial homóloga ocorrida inclusive após o falecimento do marido, sendo desnecessária, portanto, a simultaneidade de vida entre o autor da sucessão e o herdeiro, bem como a prévia autorização do marido, tendo em vista a ausência deste requisito no dispositivo legal.

“Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

I – nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;

II – nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;

III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;

IV – havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;

V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. (grifo nosso)”

Emerge, então, o grande conflito – o qual será objeto de apreciação logo a seguir –, tendo em vista que a compreensão da vocação hereditária em nosso ordenamento jurídico, a partir da interpretação do constante no artigo 1.798 do Código Civil Brasileiro, pressupõe a simultaneidade de vida entre o autor da sucessão e o herdeiro, ressalvada a situação jurídica do concepturo. Logo, partindo de uma interpretação eminentemente legalista, chegaríamos à conclusão de que, embora o indivíduo gerado a partir de uma inseminação artificial homóloga post mortem tivesse o seu estado de filho reconhecido, não teria direito sucessório (não seria considerado herdeiro).

3 REPRODUÇÃO ARTIFICIAL POST MORTEM

3.1 Noções gerais sobre os métodos de Reprodução Artificial.

Conforme preleciona a doutrina especializada na pessoa da Drª Regina Beatriz Tavares da Silva (2002, p. 1407), os termos “fecundação” e “inseminação por meios artificiais” são utilizados como expressões sinônimas. A inseminação artificial pode ser (a) homóloga, quando realizada com sêmen originário do marido; ou (b) heteróloga, quando realizada com sêmen de terceira pessoa. Pode ser, ainda, realizada post mortem, situação em que é realizada com sêmen ou embrião conservado por meio de técnicas especiais, após a morte do doador do material genético (sêmen).

 Maria Cruz Terán Velasco (2005, p. 56) assinala a distinção existente entre a inseminação homóloga e a heteróloga, a saber:

“La segunda distinción que se hace, atendendo al origen de los gametos, diferencia entre fecundación artificial heteróloga y homóloga. Se disse que la fecundación artificial es homóloga cuando se lleva a cabo com los gametos de la pareja solicitante, y heteróloga cuando se realiza com donación de uno dos elementos llamados en causa de la fecundación. A su vez, la donación puede ser de ovócitos, de espermatozoides de embriones o, incluso, se dan supuesto de alquileres de úteros. La possibilidade de donar óvulos, espermatozoides y embriones ha supuesto, por su parte, la creación de bancos donde son crioconservados y a los cuales puedem aceder los solicitantes.”

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Embrião, por seu turno, é o ser oriundo da junção de gametas humanos, o qual poderá ser introduzido no corpo da mulher através de, basicamente, dois métodos, quais sejam: (a) método ZIFT, consistente na realização da fecundação fora do corpo da mulher (in vitro); e (b) método GIFT, consistente na introdução do embrião, por meio artificial, no corpo da mulher, esperando-se que a própria natureza faça a fecundação. Embrião excedentário, por seu turno, é aquele que é fecundado fora do corpo (in vitro) e não é introduzido prontamente na mulher, sendo armazenado por técnicas especiais.

3.2 A problemática da inseminação artificial homóloga “post mortem”.

As técnicas de inseminação artificial permitem a ocorrência material de filiação biológica posteriormente à morte do autor da sucessão, haja vista que o homem, que houver conservado seu material genético, poderá possibilitar à cônjuge ou companheira a sua utilização após o seu falecimento. Assim, o filho concebido a partir da técnica de inseminação post mortem não terá sido concebido até a abertura da sucessão. Portanto, embora filho[12], não seria herdeiro, conforme aplicação literal da previsão constante no artigo 1.798 do Código Civil Brasileiro.

Analisando a questão da legitimidade para suceder por sucessão legítima, Washington de Barros Monteiro (2009, p. 42-44) adverte que o indivíduo que não estiver concebido até a data da morte do autor da herança não possui legitimação para suceder por sucessão legítima, padecendo de incapacidade sucessória absoluta. Em relação à sucessão testamentária, o indivíduo que não estiver concebido até a data da morte do autor da herança somente possuirá legitimação na situação excepcional do concepturo. Leciona o ilustre autor:

“Incapacidade absoluta vem a ser a da pessoa ainda não concebida ao tempo da morte do testador. Dessa forma de incapacidade ocupa-se o Código no art. 1798: “Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão. Em regra, para receber herança ou legado, torna-se mister existir, ou melhor, estar concebido, no dia da morte do testador. Não se exige que o beneficiado já tenha nascido. Realmente, se o legislador exclui da sucessão apenas os indivíduos não concebidos, admite, a contrário sendo, os já concebidos ou nascituros. Trata-se de aplicação do princípio nasciturus pro jam nato habetur, si de ejus commodo agitur. Entretanto, o Código abre exceção em favor dos não-concebidos, desde que a disposição testamentária se refira aos filhos de pessoas designadas pelo testador e vivas ao abrir-se a sucessão (art. 1799, I). (…) Questionados preceitos da lei civil proclamam a vigência de princípios de suma importância: 1) são capazes de receber por testamento, de modo geral, aqueles a quem a lei não retira a capacidade; 2) podem suceder as pessoas naturais e as pessoas jurídicas; 3) como condição dessa capacidade, exige-se que o beneficiado exista, sobreviva ao testador, ao abrir-se a sucessão, ou venha a nascer em determinado prazo, se filho ainda não concebido de pessoas indicadas pelo testador, devendo estar vivas quando falecer o autor da herança.”

Segundo a opinião de Eduardo de Oliveira Leite, ao limitar a legitimação sucessória às pessoas concebidas até a abertura da sucessão, o artigo exclui, realmente, as resultantes de inseminação artificial post mortem, argumentando que só com alteração legislativa essa situação poderia ser modificada. No mesmo sentido, afirmando que o filho resultante de inseminação post mortem não tem direito sucessório, a opinião de Guilherme Calmon Nogueira da Gama (2003, p. 19-20).

Contudo, considerando os princípios constitucionais norteadores do direito de família, analisados em compatibilidade com o princípio da autonomia da vontade[13], parece razoável defender que se o marido ou companheiro tiver deixado anuência expressa, consentindo com a inseminação post mortem, estabelece-se o vínculo de paternidade e, por extensão, o direito sucessório. Corroborando com tal entendimento, acrescenta Mauro Antonini (2008, p. 1956-1957):

“Tal hipótese não conflita com o artigo ora comentado, por não se cogitar na vigência do Código Civil de 1916, nem na elaboração do Código atual, da reprodução assistida mediante inseminação post mortem. O art. 1798 tem por finalidade, por conseguinte, em sua concepção original, resguardar o direito do nascituro, não excluir filhos concebidos após a abertura da sucessão. Quanto ao óbice de tal possibilidade gerar insegurança jurídica por tempo indefinido, é de se estabelecer como limite, para petição de herança, o prazo de dez anos da abertura da sucessão.”

Percebe-se, portanto, que a única forma de pensarmos os presentes dispositivos legais à luz dos princípios norteadores das relações familiares, mormente dos princípios da igualdade entre os filhos e o da autonomia do planejamento familiar, para vermos a filiação e o direito sucessório reconhecidos sem maiores dificuldades e percalços, é no sentido de interpretarmos a disposição constante no inciso III do artigo 1.597 do Código Civil Brasileiro através da figura do concepturo. Explica-se. Para que o filho nascido através de procedimento de inseminação artificial homóloga post mortem seja contemplado com direitos sucessórios de forma automática e sem maiores questionamentos, faz-se necessária a existência de disposição testamentária expressa do testador no sentido de contemplar o seu futuro filho como herdeiro, na condição de concepturo. Nestes termos, o filho possuirá, inequivocamente, direitos sucessórios. [14]

Porém, não podemos nos olvidar da situação jurídica constituída a partir da existência de material genético conservado biologicamente sem nenhum tipo de manifestação de vontade do de cujus. Neste contexto, em que pese o filho tenha reconhecido o seu direito de filiação, não gozará de direitos sucessórios, ao arrepio do princípio da igualdade jurídica e patrimonial entre os filhos. Nestes casos, inclusive, verifica-se que a utilização do referido material genético pela cônjuge ou companheira sobrevivente, em decorrência do princípio da autonomia da vontade, só será possível através de ação judicial, circunstância em que o magistrado deverá analisar o caso concreto para verificar sobre a possibilidade ou não de concessão da autorização judicial neste sentido, considerando então a viabilidade ou não da aplicação do princípio da autonomia do planejamento familiar.

Percebemos, por fim, a situação na qual existe o material genético conservado e uma autorização por parte do de cujus no sentido da autorização da utilização póstuma do seu material genético. Neste caso, a posição doutrinária dominante[15] é no sentido de que esta autorização, como manifestação do princípio da autonomia da vontade, deve surtir efeitos inclusive sucessórios em favor do filho concebido a partir da inseminação artificial homóloga post mortem. [16]

Nesta linha, destaca Paulo Lôbo (2003, p.51):

“O princípio da autonomia dos sujeitos, como um dos fundamentos do biodireito, condiciona a utilização do material genético do falecido ao consentimento expresso que tenha deixado para esse fim. Assim, não poderá a viúva exigir que a clínica de reprodução assistida lhe entregue o sêmen armazenado para que seja nela inseminado, por não ser objeto de herança. A paternidade deve ser consentida, porque não perde a dimensão da liberdade. A utilização não consentida do sêmen deve ser equiparada à do dador anônimo, o que não implica atribuição de paternidade.”

3.2.1 Referências casuísticas e a posição jurisprudencial.

A temática da inseminação artificial post mortem ganhou relevo na década de 80, a partir do caso que ficou conhecido como “Parpalaix”. Conforme relata Sandra Marques Magalhães (2010, p. 64-66), o francês Alain Parpalaix, o qual vivia um relacionamento amoroso com Corinne, descobriu ter câncer nos testículos e, antes de iniciar o seu tratamento, tendo em vista a possibilidade de ver afetada a sua fertilidade, decidiu coletar e congelar o seu sêmen com o intuito de futura utilização. Neste ínterim, o casal contraiu matrimônio, vindo Alain a falecer logo após.

Neste contexto, a viúva e os pais do de cujus solicitaram ao centro de criopreservação o sêmen de Alain, tendo ambos os pedidos resposta negativa. A família resolveu, então, recorreu ao poder judiciário, ocasião em que discutiu-se, junto ao Tribunal de Grande Instance de Crétil, a natureza jurídica do contrato havido entre o centro de criopreservação e Alain, bem como o destino que deveria ser dado ao material genético após a morte do seu doador.

A sentença, datada de agosto de 1984, decidiu que o contrato firmado entre as partes não era de depósito, tendo em vista ser de coisa fora do comércio, tratando-se, assim, de contrato atípico, cujo objeto não era vedado, porém também não era permitido em território francês. Assim, conclui-se pela entrega do sêmen criopreservado à Corinne, pois entenderam não haver nenhuma violação ao direito então vigente, sendo a procriação, inclusive, uma das finalidades do casamento.

No cenário nacional, a temática em estudo ainda não foi objeto de grande apreciação pelos Tribunais. Ocorre que, a circunstância de a matéria em análise encontrar-se deficientemente regulamentada no ordenamento jurídico pátrio acarreta uma grande insegurança jurídica. Em que pese o Código Civil Brasileiro reconheça o estado de filho ao indivíduo concebido através de técnica de inseminação artificial homóloga, o mencionado diploma legislativo é totalmente omisso em relação à forma como deve se realizar o mencionado procedimento.

O Conselho Federal de Medicina, por seu turno, editou em 2010 a resolução   n.º 1.957[17] deliberando acerca da necessidade de expressa manifestação de vontade do doador sobre a utilização do seu material genético. Tal orientação, no entanto, não está amparada por regra legal expressa, sendo uma decorrência do princípio da autonomia da vontade.

Nesta perspectiva, verificamos dois julgados proferidos nos tribunais pátrios, cada um seguindo uma diretriz diversa. O primeiro que será posto em análise, foi no sentido de desconsiderar a ausência de declaração de vontade do de cujus e autorizar a viúva a utilizar o material genético do seu falecido marido[18], a saber:

“Decisão do juiz da 13ª Vara Cível de Curitiba (PR) concedeu liminar autorizando a professora Katia Lenerneier, 38, a tentar engravidar com sêmen congelado do marido, que morreu em fevereiro deste ano, de câncer de pelé (melanoma). É a primeira decisão judicial brasileira sobre reprodução póstuma, segundo advogados e desembargadores. (…)

A paranaense Katia e o contador Roberto Jefferson Niels, 33, eram casados havia cinco anos. Tentavam engravidar naturalmente quando Niels foi surpreendido pelo câncer, em janeiro de 2009. Por indicação médica, congelou o sêmen antes de iniciar o tratamento de quimioterapia, que poderia deixá-lo infértil.

Em julho do ano passado, o casal iniciou o tratamento de reprodução, interrompido depois de um novo diagnóstico: o câncer havia se espalhado para os ossos. Sete meses depois, Niels morreu.

Ela quis dar continuidade ao sonho do casal de ter filhos, fazendo uma inseminação com o sêmen congelado. Mas, ao procurar o laboratório onde está o esperma de Niels, ela soube que não poderia utilizá-lo porque não havia um consentimento prévio do marido liberando o uso após sua morte. O laboratório alegou "razões éticas" para justificar a recusa. Não há legislação brasileira que regulamente a matéria. Clínicas de reprodução e laboratórios se baseiam em norma do Conselho Federal de Medicina que os orienta a documentar o que os homens pretendem fazer com o sêmen congelado. Em sede de antecipação de tutela a liminar foi deferida, entendendo o juiz Alexandre Gomes Gonçalves que a manifestação de vontade não deveria necessariamente ser escrita nos termos do enunciado nº.106 do Conselho da Justiça Federal, mas deveria ser manifestada por atos do falecido em vida de forma inequívoca, o que foi feito pelo ato inquestionável de depósito de seu sêmen, bem como o incentivo ao tratamento da esposa para que a fertilização pudesse ser realizada, interrompido pelo grave estágio da doença. Assim, o juiz concedeu a antecipação de tutela entendendo que a verossimilhança está provada pelos atos do marido em vida, bem como a anuência da família deste para que tal procedimento fosse realizado. Ademais, o perigo do dano irreparável ou de difícil reparação foi configurado a partir de relatório médico pelo qual a demora na solução da lide tornaria mais difícil o sucesso na fertilização. Quanto à questão do planejamento familiar e a possibilidade da concretização da vontade após a morte, o juiz discorre na decisão interlocutória: “A autora, portanto, além da provável legitimação, como sucessora para realizar a vontade do marido, parece ter também o direito de concretizar os planos feitos com eles, utilizando-se dos meios que deixou notadamente, porque, segundo prescrevem os §§ 5º e 7º do art.226 da Constituição Federal, o planejamento familiar é de livre decisão do casal, sendo os direitos referentes à sociedade conjugal “exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”. Normas que não por sua redundância, mas por sua importância, estão reafirmadas no art.1.565 do Código Civil vigente e o art.2° da Lei nº.9.263/96.” Processo nº. 27862/2010. 13º Vara Cível da Comarca de Curitiba.”

O segundo julgado[19], por seu turno, orientou-se no sentido diametralmente oposto, entendendo que a ausência da declaração de vontade impede a utilização do material genético por parte da viúva, em respeito ao princípio da autonomia da vontade do de cujus, in verbis:

A utilização de sêmen armazenado para inseminação artificial post mortem está condicionada à manifestação expressa de vontade do doador. A Juíza a quo reconheceu o direito da autora sobre o material genético de seu falecido companheiro. Por sua vez, a empresa responsável pela coleta e armazenagem do sêmen alegou a inexistência de autorização expressa do doador nesse sentido. Os Desembargadores, por maioria, entenderam que o fato de o de cujus ter guardado material genético, ao saber que poderia ter sua capacidade reprodutiva afetada pelo tratamento ao qual se submeteria, não significa que o mesmo estaria de acordo com a inseminação post mortem. Dessa forma, o voto majoritário foi no sentido de que, diante da falta de disposição legal expressa sobre a utilização do material, presumir o consentimento do de cujus caracteriza violação ao princípio da autonomia da vontade. Por outro lado, no voto minoritário, ficou consignado que se houve a celebração de contrato para a realização de coleta e armazenagem de sêmen é porque o casal pretendia ter filhos mediante inseminação artificial, o que caracteriza a autorização implícita do de cujus. (Acórdão n.º 820873, 20080111493002APC, Relatora: NÍDIA CORRÊA LIMA, Relator Designado: GETÚLIO DE MORAES OLIVEIRA, Revisor: GETÚLIO DE MORAES OLIVEIRA, 3ª Turma Cível, Data de Julgamento: 03/09/2014, Publicado no DJE: 23/09/2014. Pág.: 139)”

3.2.2 Análise do Direito comparado.

A fecundação homóloga é reconhecida por diversos países que têm legiferado nesta seara do direito. Diferentemente do Brasil, o Velho Mundo dispõe de regramento expresso acerca dos direitos hereditários do inseminado artificialmente post mortem.

A título de exemplo, perfazendo leitura direita das normas regentes no Direito português, percebe-se vedação da inseminação póstuma homóloga prescrita no artigo 22 da Lei n.º 32 de 26 de julho de 2006. Conforme adverte José de Oliveira Ascensão (2005, p. 30), “estabelece-se como princípio a proibição da inseminação pós-mortem e a destruição nesse caso do sêmen eventualmente criopreservado. Mas admite-se a transferência pós-morte de embrião dentro de um Projecto parental claramente estabelecido por escrito antes do falecimento do pai”.

Na Espanha, conforme disposição da Lei n.º 35 de 1988, a inseminação homóloga post mortem não estabelece filiação, salvo se o pai tenha deixado, mediante escritura pública ou testamento, que o seu material genético possa ser utilizado após a sua morte, desde que dentro do prazo de 12 meses. Percebe-se, assim, a primazia do consentimento (autonomia da vontade do de cujus) sobre a verdade biológica, conforme conclui Eduardo Serrano Alonso (2007, p. 302).

Na Itália, por seu turno, a inseminação homóloga póstuma é expressamente vedada, conforme disposição constante na Lei n.º 40 de 19 de fevereiro de 2004. Comentando a legislação italiana, Sílvia Orrù (2008, p. 12-13) refere que “è vietato, in fatti, qualsivoglia tecnica di fecondazione post mortem, realizzata mediante l’utilizzazione di gameti crioconservati appartenenti a persona già deceduta; ne puÒ essere consentito il prelievo di materiale genético da cadavere”.

Compartilhando desta mesma orientação, a legislação francesa proíbe expressamente a procriação assistida post mortem, sendo condição sine qua non, para a utilização de quaisquer dos métodos de reprodução artificial, a circunstância de o casal encontrar-se vivo. Adverte Frédéric Debove (2011, p. 344): “La loi prohibe ainsi l’insémination et la gestation post mortem”.

Na Argentina, a legislação é omissa sobre a temática. Outrossim, conforme ensinam Gustavo Bossert e Eduardo Zannoni (2004, p. 475), em ocorrendo a inseminação artificial post mortem, o filho deverá ver a sua filiação reconhecida, porém não gozará de direitos sucessórios, in verbis:

“Como hemos dicho, el congelamiento de semen crea la posibilidad de que, tras la muerte del marido, la esposa solicite ser fecundada con sêmen congelado de aquél. Ante el silencio actual de nuestra legislación, no creemos que podría negarse el derecho de la mujer a lograrlo; tampoco resulta posible sostener que se trata de un hecho ilícito, aunque pueda resultar cuestionable de lege ferenda, ya que no respeta el interés del niño que nacería condenado de antemano a ser huérfano de padre. Concretada dicha inseminación, no rige la presunción de paternidade -pues el hijo, salvo una inseminación practicada inmediatamente después del fallecimiento del marido, nacerá después de trescientos días de la disolución del matrimonio-, pero puede probarse, en base a la comprobación de la inseminación y a las pruebas biológicas, que el niño es, biológicamente, hijo del marido muerto. De manera que en función de dicha prueba, que se deberá producir dentro de un juicio de reclamación de filiación, quedará establecido el vínculo de filiación entre el hijo y quien era el marido de la madre. Claro está que este hijo carecerá de derechos hereditarios, ya que no existía al tiempo de la apertura de la sucesión (arg. art. 3282, Cód. Civil).”

Aníbal Guzmán Ávalos (2006, p. 238), ao analisar a legislação mexicana acerca do tema, aponta a necessidade do consentimento para a realização do procedimento de inseminação, sob pena do ato ser considerado criminoso, sinalizando que “la ausência de la voluntad para la práctica de la inseminación artificial se considera como uma conducta punible. Este critério lo siguen los códigos penales de los Estados de Querétaro y Colima, que autorizan el aborto cuando el embarazo es causa de una inseminación artificial indebida”. Indica o mencionado autor, ainda, que “para la inseminación artificial se requiere el consentimento por escrito de la mujer y del marido o concubinario, previa explicación y justificación que se les otorgue y con la satisfación de los requisitos exigidos”.

3.3 Ação de Petição de Herança e seus efeitos.

A ação de petição de herança é a medida judicial cabível para que se veja reconhecida a qualidade de herdeiro, bem como para postular o recebimento dos bens que compõem a herança, inclusive com os seus rendimentos e acessórios. Nas palavras de Orlando Gomes (1984, p. 266), é a ação que se destina “ao reconhecimento da qualidade sucessória de quem intenta; ou visa, precipuamente, à positivação em um status, do qual deriva a aquisição da herança”, devendo ser proposta pelo interessado ‘não unicamente no propósito de ter reconhecida a sua condição de herdeiro, mas, também, para obter a restituição de todos os bens da herança, ou de parte deles”.

Whashington de Barros Monteiro (2009, p. 83), por sua vez, indica que:

“É ação que compete a quem é herdeiro, mas não tem título reconhecido, como acontece, por exemplo, se, aberta a sucessão, esta se processa como se fora ab intestato, vindo a descobrir-se, porém, que o falecido deixou testamento no qual contempla o autor da ação; é ainda o caso do filho não reconhecido, que deve antes comprovar a filiação para depois receber seu quinhão hereditário; ocorre também se é sucessão de irmão não reconhecido, tendo a herança sido atribuída a tios do extinto. Dispõe o art. 1.824 que o herdeiro pode, em ação de petição de herança, demandar o reconhecimento de seu direito sucessório, para obter a restituição da herança, ou de parte dela, contra quem, na qualidade de herdeiro, ou mesmo sem título, a possua. É ação pertinente tanto à sucessão legítima como à testamentária, e seu prazo prescricional é de dez anos.”

Apesar de declarativa, a petitio hereditatis reveste-se igualmente de índole condenatória (MONTEIRO, 2009, p. 83-84), submetendo-se, necessariamente, a prazo prescricional. Aplica-se a ela a cláusula geral de prescrição que estabelece o prazo extintivo de 10 anos, o qual deverá ser contado a partir da data da abertura da sucessão (fato gerador do direito sucessório). Verifica-se oportuna a lembrança de que contra os absolutamente incapazes não corre qualquer prazo prescricional.

Cumpre destacar, ainda, que mesmo estando cumulada com outro pedido – v.g. investigação de paternidade –, a petição de herança prescreverá em 10 anos. Assim, apesar de imprescritível a declaração filial, a petitio hereditatis prescreverá normalmente, conforme entendimento cristalizado na Súmula 149 do Supremo Tribunal Federal[20], segundo a qual “é imprescritível a ação de investigação de paternidade, mas não o é a de petição de herança”. (RIZZARDO, 2009, p. 144 – 146)

Contudo, impende destacar que não há que se falar em petição de herança enquanto não houver a confirmação da paternidade. À vista disso, conclui-se que o termo inicial do início da contagem do prazo prescricional para o ajuizamento da ação de petição de herança é a data do trânsito em julgado da ação de investigação de paternidade[21], quando, em síntese, confirma-se a condição de herdeiro (CAVALCANTE, 2017, p. 467).

Neste sentido, posiciona-se Carlos Roberto Gonçalves (2016, p. 142), in verbis:

“O termo inicial do lapso prescricional é coincidente com a data da abertura da sucessão, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal, uma vez que não se pode postular acerca de herança de pessoa viva. Somente depois da morte há legitimação ativa para suceder, por parte de quem tiver de pleitear a herança. (…) Todavia, se a legitimação depender do prévio reconhecimento da paternidade, o dies a quo do prazo prescricional será a data em que o direito puder ser exercido, ou seja, o momento em que for reconhecida a paternidade, e não o da abertura da sucessão.”

Por fim, cabe salientar que não se pode confundir a petitio hereditatis com a ação reivindicatória, haja vista que enquanto nesta busca-se o reconhecimento do direito de propriedade, naquela pretende-se a declaração do direito de reclamar a herança, ou que se reconheça o direito na universalidade hereditária. Ademais, na reivindicatória postula-se a restituição de coisa singular e determinada, enquanto que na ação de petição de herança persegue-se um título para, posteriormente, vindicar o bem ou o conjunto de bens que integra o quinhão.

Outrossim, mesmo delimitando-se o campo de atuação de cada uma das ações, percebe-se uma grande semelhança quanto à natureza, tendo em vista que ambas possuem cunho real, sendo exercitáveis e oponíveis erga omnes. Adverte Arnaldo Rizzardo (2009, p. 131-133) que a petição de herança possui, efetivamente, “uma extensão que antecede a natureza real, e que a torna também uma ação pessoal: na parte que envolve o reconhecimento da qualidade de herdeiro, considerada como preliminar, é prejudicial ou não ao direito de peticionar o recebimento do quinhão”. Informa, destarte, que esta ação constitui o meio judicial de receber os direitos hereditários, ou de salvaguardá-los, contra as usurpações de terceiros. “Não propriamente para defender os direitos ou bens, eis que, para tanto, há as ações possessórias, utilizáveis no caso de turbação ou esbulho, ou de ameaça de perda. Serve mais para reclamar e conseguir o bem ou o quinhão hereditário.”

CONCLUSÃO

Os impasses e as insuficiências do atual paradigma da ciência jurídica tradicional entreabrem, lenta e constantemente, o horizonte para as mudanças e a construção de inovadores paradigmas, conectados com uma visão pluralista, flexível e interdisciplinar. (WOLKMER, 2001, p. 1-3). Os “novos” direitos oriundos da biotecnologia e da engenharia genética necessitam prontamente de uma legislação específica regulamentadora, bem como de uma teoria jurídica apta a captar as novidades e assegurar proteção à vida humana.

Neste sentido, sustenta Antônio Carlos Wolkmer (2001, p. 1-3):

“A teoria jurídica formalista, instrumental e individualista vem sendo profundamente questionada por meio de seus conceitos, de suas fontes e de seus institutos diante das múltiplas transformações tecno-científicas, das práticas de vida diferenciadas, da complexidade crescente de bens valorados e de necessidades básicas, bem como da emergência de atores sociais, portadores de novas subjetividades (individuais e coletivas). Desse modo, as necessidades, os conflitos e os novos problemas colocados pela sociedade no final de uma era e no início de outro milênio engendram também “novas” formas de direitos que desafiam e põem em dificuldade a dogmática jurídica tradicional, seus institutos formais e materiais e suas modalidades individualistas de tutela. Impõe-se a construção de novo paradigma para a teoria jurídica em suas dimensões civil, pública e processual, capaz de contemplar o constante e o crescente aparecimento histórico de “novos” direitos. Esses “novos” direitos que se desvinculam de uma especificidade absoluta e estanque assumem caráter relativo, difuso e metaindividual. Trata-se de uma verdadeira revolução inserida na combalida e nem sempre atualizada dogmática jurídica clássica. O estudo atento desses “novos” direitos relacionados às esferas individual, social, metaindividual, bioética, ecossistêmica e de realidade virtual exige pensar e propor instrumentos jurídicos adequados para viabilizar sua materialização e para garantir sua tutela jurisdicional, seja por meio de um novo Direito Processual, seja por meio de uma Teoria Geral das Ações Constitucionais.”

A partir das reflexões expostas no presente estudo perfunctório acerca da temática do filho concebido mediante técnica de inseminação artificial homóloga post mortem, identificamos que a única forma de interpretarmos os dispositivos legais vigentes à luz dos princípios norteadores das relações familiares – mormente dos princípios da igualdade entre os filhos e da autonomia do planejamento familiar –, no sentido de vermos possível o reconhecimento da filiação e do direito sucessório sem maiores percalços pela família, é se deduzirmos a disposição constante no inciso III do artigo 1.597 do Código Civil Brasileiro através da figura do concepturo. Assim, para que o filho nascido através de procedimento de inseminação artificial homóloga post mortem seja contemplado com direitos sucessórios, faz-se necessária a existência de disposição testamentária expressa do testador no sentido de contemplar o seu futuro filho como herdeiro, na condição de concepturo. Nestes termos, o filho possuirá, inequivocamente, direitos sucessórios.

Contudo, caso estejamos diante da circunstância de existir material genético conservado biologicamente sem nenhum tipo de manifestação de vontade do de cujus, a orientação prevalente na doutrina é no sentido de que o filho deverá ter reconhecido o seu direito de filiação, porém, não gozará de direitos sucessórios. Nestes casos, inclusive, verifica-se que a utilização do referido material genético pela cônjuge ou companheira sobrevivente somente será possível através de ação judicial, circunstância em que o magistrado deverá analisar o caso concreto para verificar sobre a possibilidade ou não de concessão de autorização judicial, em homenagem ao princípio da autonomia do planejamento familiar.

Por fim, nos casos em que exista o material genético conservado e uma autorização por parte do de cujus no sentido da permissão da utilização póstuma do seu material genético, a posição doutrinária dominante é no sentido de que esta autorização deve surtir efeitos, inclusive sucessórios, em favor do filho concebido a partir da inseminação artificial homóloga post mortem. Trata-se, destarte, de manifestação do princípio da autonomia da vontade.

Isto posto, em virtude da instabilidade que o conflito de entendimentos doutrinários sobre a temática ocasiona, deduz-se a premente necessidade de regulamentação da matéria em análise, de sorte a conferir segurança jurídica aos jurisdicionados. Temática de tal envergadura não pode ser deixada ao alvedrio da casuística, sob pena de verificarmos latente violação aos direitos fundamentais do cidadão, bem como injustiças que ocasionam profundos e tormentosos reflexos negativos na vida dos indivíduos.

 

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Notas
[1] Nestes sentido, refere Ingo Wolfgang Sarlet: “Verifica-se que os direitos da terceira e da quarta dimensões (ou mesmo de uma quinta dimensão, como preferem alguns), que ainda se encontram em fase de reconhecimento e positivação, seja na esfera internacional, mas principalmente em nível do direito constitucional interno, constituem, na verdade, direitos em processo de formação, razão pela qual costumam ser caracterizados como autênticos law in making, cuja importância jurídica e política não deve, contudo, ser menosprezada. Na verdade, como oportunamente menciona Denninger, ilustre catedrático da Universidade de Frankfurt, Alemanha, ao nos depararmos com a pergunta sobre o que de novo efetivamente revelam os novos direitos fundamentais na era tecnológica, talvez possamos responder que eles nos levam a reconhecer que as antigas dificuldades da humanidade com a problemática da justiça não lograram ser superadas pelo avanço tecnológico e científico. Reconhecendo que os direitos chamados de “novos” nem sempre são genuinamente “novos”, Antônio Carlos Wolkmer bem observa a novidade muitas vezes reside no modo de obtenção (e fundamentação, poderíamos acrescer) dos direitos, que não se restringe necessariamente ao reconhecimento legislativo e jurisprudencial, mas resulta de um processo dinâmico e complexo de lutas específicas e de conquistas coletivas, até que venham a obter a chancela pela ordem social e estatal.” In: SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 56-57.

[2] Tratando do fenômeno da despatrimonialização do direito civil, Flávio Tratuce refere: “O Direito Existencial de Família está baseado na pessoa humana, sendo as normas correlatas de ordem pública ou cogentes. Tais normas não podem ser contrariadas por convecção entre as partes, sob pena de nulidade absoluta da convenção, por fraude à lei imperativa (Art. 166, VI, do CC). Por outra via, o Direito Patrimonial de Família tem o seu cerne principal no patrimônio, relacionado a normas de ordem privada ou dispositivas. Tais normas, por óbvio, admitem livremente previsão em contrário pelas partes. (…) Destaque-se que a própria organização do CCB/2002, no tocante à família, demonstra essa divisão. Primeiramente, os arts. 1511 a 1638 tratam do direitos pessoal ou existencial. Por conseguinte, nos arts. 16369 a 1722, o Código Privado regulamenta o direito patrimonial e conceitos correlatos. É correto afirmar, na verdade, que essa divisão entre direito patrimonial e direito existencial atinge todo o Direito Privado. Tal organização ainda remete à tendência de personalização do Direito Civil, ao lado da sua despatrimonialização, uma vez que a pessoa é tratada antes do patrimônio. Perde o patrimônio o papel de ator principal e se torna mero coadjuvante.” In: TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: Volume Único. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013, p. 1052.

[3] Destaca Inocêncio Mártires Coelho: “(…) um terreno que no passado estava entregue, quase por inteiro, à livre discrição dos seus integrantes, com destaque para a figura paterna, na condição de chefe e condutor dos que gravitavam a seu redor, não só a esposa e os filhos, mas também aqueles que se relacionavam com ele por vínculos de dependência econômica, o que, tudo somado e guardadas as devidas distâncias, fazia lembrar o pater familias do velho Direito Romano, cujos poderes – a chamada patria potestas – compreendiam, além da apropriação dos bens adquiridos pelos seus filhos, também o direito de puni-los como entendesse adequado, inclusive aplicando-lhes a pena de morte.” In: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 1425-1426.

[4] Pontua Inocêncio Mártires Coelho: “No que respeita ao casamento, foi ainda mais longe a Constituição – nisso, em verdade, a reboque dos fatos e de algumas normas infraconstitucionais e de decisões judiciais que os legalizaram e/ou legitimara -, ao estatuir que, para efeito do proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, assim considerada, também, a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. Quanto à pessoa dos filhos, é igualmente digna de louvor a determinação constitucional no sentido de que, havidos ou não dentro do casamento, ou por adoção, terão eles os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.” In: MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Ob. Cit., p. 1426.

[5] Adverte o brilhante jurista português Jorge Miranda: “A dignidade humana é da pessoa concreta, na sua vida real e quotidiana; não é de um ser ideal e abstracto. É o homem ou a mulher, tal como existe, que a ordem jurídica considera irredutível, insubsistente e irrepetível e cujos direitos fundamentais a Constituição enuncia e protege.” In: MIRANDA, Jorge; MEDEIROS, Rui. Constituição Portuguesa anotada. Coimbra: editora Coimbra, 2010, p. 53.

[6] Neste sentido: “Trata-se, sem dúvida, de norma-princípio paradigmática, servindo para eliminar todo e qualquer tipo de tratamento discriminatório (bastante comuns no sistema do Código Civil de 1916, que optou por conferir privilégios ao filho nascido de um casamento). Com isso, afastou-se também do campo filiatório os privilégios concedidos a uma, ou outra, pessoa em razão da simples existência de casamento. Filho é filho, sem designações ou discriminações. (…) A regra em alusão consagrou a igualdade existencial entre os filhos, deixando claro que o tratamento jurídico independe da origem da filiação, pouco interessando se é sexual, biotecnológica, adotiva, afetiva ou de qualquer outra origem.” In: FIGUEIREDO, Luciano; EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; DIAS, Wagner Inácio Freitas; FARIAS, Cristiano Chaves de. Código Civil para concursos. Salvador: Editora JusPodivm, 2013, p. 1183.

[7] Neste sentido, pertinente colacionar a reflexão do Prof. Bernardo Gonçalves Fernandes acerca do Princípio da Igualdade, in verbis: “(…) já é possível encontrar autores que apresentam uma visão mais ampla e adequada do princípio da igualdade quando lido sob o prisma do Estado Democrático de Direito. Com isso, este irão afirmar um ir além da igualdade meramente formal e da igualdade material, em favor de uma igualdade procedimental, orientando-se para garantia da igual condição (opção) de participação do cidadão em todas as práticas estatais. Trata-se de uma igualdade aritmeticamente inclusiva, já que viabiliza um número cada vez mais crescente de cidadãos na simétrica participação da produção de políticas públicas. Dessa feita, a preocupação do constitucionalismo contemporâneo no tocante ao princípio da igualdade tem sido de diferenciar discriminação (ou discriminação arbitrária e absurda) e diferenciação (que para alguns poderia ser intitulada de discriminação adequada e razoável). Enquanto as diferenciações (ou discriminações lícitas, não absurdas) se mostram como mecanismos necessários à proteção das minorias, excluídas da condição de participação na tomada de decisões institucionais (igualdade procedimental), as discriminações (ilícitas) são elementos arbitrários e, por isso mesmo, lesivos à própria igualdade.” In: FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Ob. Cit., p. 463-464.

[8] “Art. 2o A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.” In: BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm> Acesso em: 30 out. 2017.

[9] Destaca Ingo Wolfgang Sarlet: “Tanto o nascituro quanto o embrião situado fora do útero, em virtude de sua vida e dignidade humana, são titulares de direitos fundamentais.” In: SARLET, Ingo Wolfgang. Ob. Cit., p. 221.

[10] Enunciado n. 1 da Jornada de Direito Civil do CJF: “Art. 2º: a proteção que o Código defere ao nascituro alcança o natimorto no que concerne aos direitos da personalidade, tais como nome, imagem e sepultura.” In: Enunciados do CJF. Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej/JORNADA%20DE%20DIREITO%20CIVIL%202013%20ENUNCIADOS%20APROVADOS%20DE%20NS.%201%20A%20137.pdf/view> Acesso em 30 de out. 2017.

[11] Neste sentido, adverte Sílvio de Salvo Venosa: “O testador não fazendo referência (e sua vontade deve ser respeitada), não se faz distinção quanto à filiação: recebem os filhos legítimos ou ilegítimos, isto é, na nova sistemática, filhos provenientes ou não de união com casamento. Afirmava-se que os adotivos não se incluíam nessa possibilidade, a menos que houvesse referência expressa do testador (Wald, 1988:94). Contudo, entendemos que a evolução da situação sucessória do adotivo não permite mais essa afirmação peremptória. Lembre-se de que houve sucessivas alterações de direito sucessório em favor do filho adotivo. A intenção do legislador foi, sem dúvida, possibilitar a contemplação dos filhos de sangue. A pessoa indicada poderia adotar exclusivamente para conseguir o benefício testamentário. Contudo, já a legitimação adotiva e a adoção plena das leis revogadas não mais permitiam diferença entre a filiação natural e a filiação civil. Cremos que na atual legislação incumbe ao testador excluir expressamente os filhos adotivos se não desejar incluí-los, por força do art. 41 da Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente).” In: VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Sucessões. v. 6. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 222.

[12] Ensina Regina Beatriz Tavares da Silva: “(…) Na fecundação homóloga considera-se, por presunção, filho do marido aquele concebido após a sua morte e aquele concebido a qualquer tempo, sendo embrião excedentário, e na fecundação heteróloga presume-se a filiação do marido desde que tenha havido o seu consentimento.” In: SILVA, Regina Beatriz Tavares da. Ob. Cit., p. 1407.

[13] Ensinam Andrey Borges de Mendonça e Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira: “Desta feita, é imprescindível partirmos da premissa de que o princípio da autonomia da vontade também é um princípio assegurado implicitamente pela ordem constitucional e não pode ser desconsiderado pelo intérprete e aplicador do direito. Realmente, analisando a Constituição, verifica-se que ela assegura a autonomia da vontade implicitamente. (…) Verifica-se, assim, que o aplicador, ao se deparar com a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, terá que ponderar dois bens jurídicos igualmente tutelados pela Constituição da República: de um lado a dignidade da pessoa humana, como síntese dos direitos fundamentais, e de outro, a autonomia da vontade. (…) Porém, apesar da necessidade de soluções diferenciadas, entendemos que todas as vezes em que, sobre o pretenso argumento de exercício da autonomia da vontade, malferir-se o princípio da dignidade da pessoa humana, a balança deve pender para a proteção deste último bem jurídico.” In: MENDONÇA, Andrey Borges de; FERREIRA, Olavo Augusto Vianna Alves. Eficácia dos Direitos Fundamentais nas Relações Privadas. In: CAMARGO, Marcelo Novelino (Organizador). Leituras complementares de Direito Constitucional – Direitos Fundamentais. 2. ed. Salvador: Edições Juspodivm, 2007, p, 148-149.

[14] “Direito sucessório do filho nascido por fertilização homóloga post mortem. Promovendo uma interpretação sistêmica dos comandos dos arts. 1597, III, e 1798 do Código de 2002, diferentes conclusões surgem. Se já havia concepção, quando do falecimento do genitor, o filho terá direito sucessório, uma vez que o art. 1798 é de clareza solar ao afirmar que a capacidade para suceder é reconhecido em favor de quem nasceu ou foi concebido. Ora, não havendo diferenciação entre a concepção uterina ou laboratorial, é forçoso concluir que ambas estão abarcadas, em homenagem ao princípio constitucional da igualdade entre os filhos (que é princípio de inclusão). A outro giro, se não havia concepção, ou seja, em se tratando de sêmen congelado, sem ainda ter havido a concepção laboratorial, não há que se falar em direito sucessório, exatamente pelo princípio da isonomia porque as situações são absolutamente distintas e a igualdade substancial consiste em tratar desigualmente quem está em situação desigual. Mas, curiosamente, haverá a presunção de paternidade, caso preenchidas as diretrizes do inciso III do art. 1597. Ou seja, o exuberante quadro apresentado pelas novas técnicas reprodutivas nos apresenta uma singular situação jurídica, na qual uma pessoa será filha de um homem já morto, mas não será seu herdeiro legítimo. Poderá, de qualquer sorte, ter sido beneficiado por testamento deixado pelo seu pai em favor da prole eventual (CC, art. 1800, § 4º), desde que tenha sido concebido no prazo de dois anos, contados a partir da data do óbito (abertura da sucessão), sob pena de caducidade da disposição testamentária. O entendimento mereceu assento no Enunciado 267 da Jornada de Direito Civil: “a regra do art. 1798 do Código Civil deve ser estendida aos embriões formados mediante o uso de técnicas de reprodução assistida, abrangendo, assim, a vocação hereditária da pessoa humana a nascer cujos efeitos patrimoniais se submetem às regras previstas para a petição de herança”.” In: FIGUEIREDO, Luciano; EHRHARDT JÚNIOR, Marcos; DIAS, Wagner Inácio Freitas; FARIAS, Cristiano Chaves de. Ob. Cit., p. 1185-1186.

[15] Indica Paulo Luiz Neto Lôbo que a manifestação de vontade é ponto pacífico como pressuposto para a presunção de paternidade contida no artigo 1.597, III do Código Civil, para aqueles que admitem a legitimidade de tal efeito jurídico contido no disposto em tal dispositivo. Deste modo, não se cogita em tal situação quanto à entrega obrigatória do material genético a viúva, como se tal material se tratasse de herança. Repita-se que a realização de tal inseminação dependerá sempre do consentimento de ambos, e na ausência deste consentimento caso a inseminação se realizasse teria status de inseminação por doador anônimo. In: LÔBO, Paulo Luiz Neto. Código Civil Comentado: direito de família. Relações de parentesco. Direito Patrimonial. Álvaro Vilaça Azevedo (coord.). São Paulo: Atlas, 2003. V.XVI. p.51.

[16] Enunciado 267 do Conselho da Justiça Federal do Superior Tribunal de Justiça: “A regra do art. 1798 do Código Civil deve ser estendida aos embriões formados mediante o uso de técnicas de reprodução assistida, abrangendo, assim, a vocação hereditária da pessoa humana a nascer cujos efeitos patrimoniais se submetem às regras previstas para a petição de herança.” In: Enunciados do CJF/STJ. Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/526> Acesso em: 31/10/2017.

[17] A deliberação do casal sobre a criopreservação de gametas está prevista na Resolução n. 1.957/2010 do Conselho Federal de Medicina, segundo a qual: “V – 3. No momento da criopreservação, os cônjuges ou companheiros devem expressar sua vontade, por escrito, quanto ao destino que será dado aos pré-embriões criopreservados, em caso de divórcio, doenças graves ou de falecimento de um deles ou de ambos, e quando desejam doá-los.” In: Resoluções do Conselho Federal de Medicina. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2010/1957_2010.htm> Acesso em 31/10/2017.

[18] Disponível em: < https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/2209896/liminar-autoriza-reproducao-post-mortem> Acesso em: 31 out. 2017.

[19] Disponível em: <https://www.tjdft.jus.br/institucional/jurisprudencia/informativos/2014/informativo-de-jurisprudencia-n-o-292/utilizacao-de-material-genetico-post-mortem-2013-violacao-ao-principio-da-autonomia-da-vontade> Acesso em 31 out. 2017.

[20] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula 149. Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/ jurisprudencia/menuSumarioSumulas.asp?sumula=1986> Acesso em: 06 nov. 2017.

[21] Em recente julgado acerca da matéria o Superior Tribunal de Justiça posicionou-se no sentido de que na hipótese em que ação de investigação de paternidade post mortem tenha sido ajuizada após o trânsito em julgado da decisão de partilha de bens deixados pelo de cujus, o termo inicial do prazo prescricional para o ajuizamento de ação de petição de herança é a data do trânsito em julgado da decisão que reconheceu a paternidade, e não o trânsito em julgado da sentença que julgou a ação de inventário. In: BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1475-759-DF. Sobre prazo prescricional para o ajuizamento da ação de petição de herança. Disponível em <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=1475759&b=ACOR&p=true&t=JURIDICO&l=10&i=2> Acesso em: 06 nov. 2017.


Informações Sobre o Autor

Charlene Cortes dos Santos

Mestranda em Direito de Família e Sucessões pela UFRGS Advogada e Consultora Imobiliária. Possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC/RS 2004 pós-graduação em Direito Público pela PUC/RS 2011 e pela Escola Superior Verbo Jurídico 2008


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