Sobre os fundamentos político-jurídicos dos critérios difuso e concentrado de controle judicial de constitucionalidade: um breve histórico sobre obviedades esquecidas

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Em 1803, no já mundialmente conhecido caso Marbury vs. Madison é afirmado claramente[1], pela primeira vez, pelo Chief Justice Marshall, a possibilidade do controle judicial de constitucionalidade das leis em razão da Supremacia da Constituição.

Nascia, então, o Judicial Review em que cada juiz pode e deve, antes de aplicar uma lei ou ato normativo, verificar a sua compatibilidade com a Constituição para, só-então, decidir o caso concreto.

Esta forma de controle de constitucionalidade pressupõe um modelo de Separação dos Poderes (ou Funções de Poder, conforme a melhor doutrina) segundo o qual nenhum dos Poderes está autorizado descumprir a Constituição, cabendo a última palavra sobre quais seriam as determinações emanadas da Constituição sempre à Suprema Corte. São estes, em breve síntese, os fundamentos e o histórico do controle judicial difuso de constitucionalidade, nascido nos Estados Unidos da América.

Durante esta mesma época, a Europa vivia ainda sob a forte influência da Revolução Francesa e da crença excessiva na racionalidade da lei e do legislador, inspirada na doutrina da vontade geral de Rousseau[2]. Havia, também, em toda a Europa continental (e diferentemente da Inglaterra, inspirada no commom law) uma profunda desconfiança em relação aos juízes; os quais, no “ancien régimen”, eram advindos da nobreza.

No entanto, percebia-se, cada vez mais, que o Sistema Político de controle de constitucionalidade das leis (ainda hoje existente na França) tornava-se insuficiente em face de uma sociedade cada vez mais complexa e dividida em razão das lutas pela efetivação de direitos sociais. Por outro lado, permanecia a desconfiança e os problemas de legitimidade democrática em relação a um controle de constitucionalidade feito por juízes.

Em 1920, na Áustria, é implementado o controle de constitucionalidade concentrado inspirado por Hans Kelsen[3] como uma solução intermediária que, ao mesmo tempo em que retira a decisão sobre a constitucionalidade das leis do próprio parlamento que a elaborou não a entrega a qualquer juiz (não eleito democraticamente), mas sim, a um órgão judicial politicamente escolhido unicamente para desempenhar esta importante função político-constitucional.

O modelo concentrado de controle de constitucionalidade das leis pressupõe um esquema de Separação de Poderes diverso do modelo difuso. A constituição continua sendo a lei suprema, no entanto, o órgão constitucionalmente autorizado a interpretar a Constituição (e, consequentemente, afirmar em última instância o que ela diz) no momento de elaborar as leis é o Parlamento[4]. Assim, se o Judiciário, eventualmente (princípio da inércia de jurisdição), for chamado a manifestar-se sobre a constitucionalidade de alguma lei, a Corte Constitucional é competente para aplicá-la (e, consequentemente, afirmar em última instância o que a Constituição diz) mas deve respeitar a competência para interpretar a Constituição conferida de forma absoluta ao Parlamento no momento de elaboração legislativa; o que, de forma alguma, é aceito no controle difuso[5].

Portanto, em razão da formação e institucionalização histórica de constitucionalidade das leis e atos normativos no modelo concentrado resumidamente acima explicitados, decorre como efeito natural (lógico) do sistema que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade sejam constitutivos (“ex-nunc”).

No modelo difuso, as razões históricas de formação e institucionalização do controle de constitucionalidade e o diferente pressuposto acerca do intérprete autorizado em última instância da Constituição nos momentos de elaboração e aplicação das leis (sempre a Suprema Corte, em razão do esquema de Separação dos Poderes) fazem com que o efeito natural (lógico) do controle de constitucionalidade seja declaratório (“ex-tunc”). Vale dizer, nos Estados Unidos da América, a autorização do Parlamento para interpretar a Constituição no momento de elaboração das leis não se constituiu em uma verdadeira “carta em branco” não-passível de qualquer controle pelos órgãos judiciais.

Conforme Mauro Cappelletti[6], em razão de problemas práticos[7], já em 1929, o modelo de controle concentrado sofre sua primeira reforma para alterar excepcionalmente a lógica do sistema e atribuir efeitos ex-tunc para aquele cidadão que primeiro argüisse a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. Sucessivas reformas ocorrem para estender este efeito (não-diretamente decorrente da lógica do modelo concentrado) a outros casos.

Aqui pode-se falar no primeiro exemplo de modulação dos efeitos da declaração (no caso, constituição) de inconstitucionalidade ocorrido na história mundial.

Com o desenvolvimento das complexas sociedades modernas de riscos[8] e com a maior interlocução entre os modelos difuso e concentrado, em especial no Brasil que adotou um modelo misto[9], a modulação dos efeitos do controle de constitucionalidade no modelo difuso (declaração) começou a ser realizada em especial sob a alegação de que se devia abandonar a interpretação “ortodoxa” (Moreira Alves) entre inconstitucionalidade (com efeitos sempre ex-tunc) ou constitucionalidade. Tal alegação apóia-se nas denominadas “razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social” (art. 27, da Lei n. 9.868/99) que reintroduzem, por via infralegal, critérios eminentemente políticos para efeitos da declaração de inconstitucionalidade, a ferir de morte a idéia de Supremacia da Constituição[10], em que pese o Supremo Tribunal Federal ter entendido como constitucionalmente válido o referido dispositivo.

Os problemas quanto à coerência teórica em relação aos fundamentos do controle, bem como e principalmente, as questões acerca da legitimidade constitucional e democrática desta modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade reclamam  a utilização de novos cânones interpretativos e hermenêuticos para a solução daquilo que se tratou por “ortodoxo” e antiquado (o respeito à Supremacia da Constituição).

Na própria Alemanha, já há alguns anos (décadas, em verdade) são fortes as críticas a modulação dos efeitos da declaração de constitucionalidade, cujas soluções para os problemas que ela propõe resolver restariam melhor estruturadas – de um ponto de vista democrático (Supremacia da Constituição sobre as conveniências políticas) e de coerência teórica (fundamentação – art. 93 IX do CR/88) – por exemplo, por meio de uma Teoria da Adequabilidade que separa o plano de justificação e do de aplicação das normas[11].

No entanto, o Supremo Tribunal Federal (Guardião da Constituição e detentor, conforme Kelsen, do “direito de errar por último”) continua importando a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade da Corte Constitucional Alemã (sem perceber ou, ao menos, “fechando os olhos”, para aquelas diferenças conceptuais quanto aos fundamentos históricos e institucionais de ambos os modelos, conforme já referido).

Cumpre destacar que não é aceita a modulação dos efeitos quando a lei é declarada constitucional, como ocorreu, por exemplo, no julgamento de ADI proposta pelo Procurador Geral da Republica contra a previsão de exigência de dois anos de formado (e não de prática jurídica) para o ingresso na carreira do Ministério Público. Eventuais problemas concretos daí decorrentes da não-aplicação da norma declarada constitucional em sede de controle concentrado deve ser tratada nas vias ordinárias.

Também merece destaque a inédita modelagem dos efeitos que será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da recém proposta ADI contra a 2ª Fase de Implementação da Receita Federal do Brasil (Super Receita). Neste caso, em petição assinada pelo ex-ministro Francisco Resek, a OAB propõe a inédita declaração de que a referida lei (na parte em que implemente a 2ª Fase da Super Receita) é “ainda inconstitucional”, enquanto não for criada a necessária infraestrutura para que a Procuradoria da Fazenda Nacional receba os processos judiciais de execução fiscal do INSS, atualmente a cargo da Procuradoria Federal.

Mais uma vez, a Teoria da Adequabilidade de Klaus Günther[12], ao separar o plano de justificação do de aplicação, apresentaria fundamentação bem mais consistente e democrática para a solução da questão: não afastaria a Supremacia da Constituição.

Importante notar que os critérios difuso e concentrado do sistema judicial de controle de constitucionalidade não se confundem necessária e respectivamente com concreto e abstrato, embora estes últimos seja as respectivas regras em realação àqueles. É que há controle de constitucionalidade em abstrato no controle difuso (reserva de plenário nos Tribunais) e controle concreto no concentrado (Ação de Inconstitucionalidade de Intervenção).

 

Notas:
[1] Embora tenham existido, na Suprema Corte dos Estados Unidos da América, algumas decisões anteriores em que a discussão sobre a compatibilidade entre  lei e a Constituição apareceram como obterem dictum.
[2] ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Trad. Rolando Roque da Silva. Ridendo Castigat Mores. Versão para eBooks (www.jahr.org).
[3] KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
[4] Sobre a distinção entre os discursos de justificação e os de aplicação de normas jurídicas: GUNTHER, Klaus. The sense of appropriateness. Trad. Jonh Farrel. New York: State University of New YorK Press. 1993 e HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia – entre a faticidade e a validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro. Tempo Brasileiro, 1997b. 2v. e Justification and Application: remarks on discorse ethics. Trad. Ciaran P. Cronin. 3ª ed. Cambridge: MIT Press, 2001.
[5] Vê-se, então, uma clara utilização da idéia de autoridade competente (“interpretação autêntica”) para o momento de elaboração da norma (Parlamento) e outra para o momento de sua aplicção (Corte Constitucional). Sobre a tese da “interpretação autêntica”, que só foi efetivamente adotada como um todo para o sistema kelseniano após a segunda edição da Teoria Pura do Direito e com o “giro decisionista”: KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Trad. João Batista Machado. 6.ed., 4ª tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
[6] CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial da constitucionalidade das leis no direito comparado. Porto Alegre: Safe, 1992.
[7] Por exemplo, o fato do cidadão que primeiro argüisse a inconstitucionalidade da lei não seria beneficiado pela sua iniciativa já que o efeito da decisão era ex-nunc (constitutivo) e, portanto, só geraria efeitos daquela decisão em diante.
[8] LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito. Tradução de Gustavo Bayer. 2v. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985.
[9] Aqui, utiliza-se a terminologia de Cappelletti. CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial da constitucionalidade das leis no direito comparado. Porto Alegre: Safe, 1992.
[10] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Safe, 1991 e Elementos de Direito Constitucional na República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Safe, 1998.
[11] Sobre a distinção entre os discursos de justificação e os de aplicação de normas jurídicas: GUNTHER, Klaus. The sense of appropriateness. Trad. Jonh Farrel. New York: State University of New YorK Press. 1993 e HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia – entre a faticidade e a validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro. Tempo Brasileiro, 1997b. 2v. e Justification and Application: remarks on discorse ethics. Trad. Ciaran P. Cronin. 3ª ed. Cambridge: MIT Press, 2001.
[12] GUNTHER, Klaus. The sense of appropriateness. Trad. Jonh Farrel. New York: State University of New YorK Press. 1993.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Onésio Soares Amaral

 

Mestre em Direito Constitucional pela UFMG
Prof. da Faculdade de Direito da UFG – Campus Cidade de Goiás
Procurador da Fazenda Nacional

 


 

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