Resumo: O estudo visa a discutir a revalorização da vítima e a reparação do dano no Processo Penal Brasileiro. Inicialmente, demonstrou-se a preocupação com o ofendido em âmbito internacional e nas reformas processuais penais ocorridas em 2008. Logo depois, estudou-se o ressarcimento da vítima no Direito Brasileiro e analisou-se, detidamente, a nova redação do art. 387, IV, do CPP e os seus principais problemas práticos. Concluiu-se que são totalmente inadequadas a apuração e a determinação de danos materiais e/ou morais no bojo de um processo penal e que o artigo deveria ser expurgado do CPP. Em isso não ocorrendo, urge, ao menos, que sejam observadas as premissas do sistema acusatório, em especial a inércia judicial.
Palavras-chave: Revalorização da vítima. Reparação do dano. Reformais processuais penais. Art. 387, IV, do CPP. Sistema Acusatório. Inércia Judicial.
Sumário: I. As reformas processuais penais e a revalorização da vítima. II. A reparação do dano da vítima no direito brasileiro. III. A nova redação do art. 387, IV, do Código de Processo Penal. III.I. Aplicação da lei no tempo. III.II. Necessidade de pedido expresso. III.III. Legitimidade e interesse recursal. IV. Conclusões
I. As reformas processuais penais e a revalorização da vítima
A problemática da vítima ocupa um papel de destaque no Direito Penal e na Política Criminal. Encontram-se, nos mais diversos países, importantes discussões de temas como o apoio psicológico e material à vítima[1].
Em conformidade com esta tendência internacional, as reformas do Código de Processo Penal brasileiro, ocorridas em 2008, consagraram uma revalorização do ofendido no âmbito do processo criminal. Estabeleceu-se, por exemplo, que este deve ser ouvido sempre que for possível (art. 201) e que deve ser intimado de diversos atos processuais (art. 201, §3˚).
Estabeleceu-se, também, que, se o juiz entender necessário, deve encaminhar a vítima a atendimento multidisciplinar, especialmente nas áreas psicossocial, de assistência e de saúde, a expensas do ofensor e do Estado (art. 201, § 5˚). Ainda a título exemplificativo da revalorização do ofendido, insta referir que se determinou que devem ser tomadas as medidas necessárias à preservação de sua intimidade, vida privada, honra e imagem, determinando-se, inclusive, o segredo de justiça em relação a dados, depoimentos e outras informações constantes nos autos a seu respeito (art. 201, § 6˚).
Neste trabalho, interessa, especialmente, a nova redação do art. 387, IV, do Código de Processo Penal. Este dispositivo consagrou mais uma vantagem para o ofendido, visando-se à “concertação entre agente-vítima”[2] através da facilitação da reparação de danos. Parece que o Legislador identificou como um “problema” a demora que a vítima enfrentava para que lhe fosse alcançada a indenização, agravada, ainda, pela demora de um processo de liquidação, dado o caráter “ilíquido” da sentença criminal[3].
Antes deste estudo, far-se-á breve análise do ressarcimento do ofendido no processo penal. Demonstrar-se-á que as leis brasileiras cuidam, há algum tempo e com especial zelo, da reparação do dano da vítima, buscando, sempre que possível, incentivá-la.
II. A REPARAÇÃO DO DANO DA VÍTIMA NO DIREITO BRASILEIRO
Conforme referido, neste item, analisar-se-ão, de forma meramente exemplificativa, normas da legislação brasileira[4] que versam sobre o ressarcimento da vítima, a começar pelos dispositivos do Código Penal. O art. 91, I, deste Diploma estabelece como efeito da condenação a obrigação de reparar o dano. A sentença penal condenatória faz, portanto, coisa julgada no cível[5].
O art. 16, por sua vez, prevê o arrependimento posterior. Trata-se, como se sabe, de uma causa de redução de pena (de um a dois terços) àquele que, antes do recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário, repare o dano ou restitua a coisa[6]. E, não é demais referir, se a reparação do dano ocorrer depois do recebimento da denúncia e antes da prolação da sentença, aplica-se a atenuante genérica do art. 65, III, b[7].
O Código Penal incentiva, ainda, a reparação para a substituição das condições genéricas por condições específicas na suspensão da pena. No prazo da suspensão que é concedido ao condenado, ele deverá prestar serviços à comunidade (art. 46) ou submeter-se à limitação de fim de semana (art. 48). A exceção fica por conta dos casos de reparação do dano causado ao ofendido, tendo em vista que o § 2° do art. 78 estabelece que, sendo favoráveis as circunstâncias judiciais do art. 59, poderá o juiz substituir as exigências de prestação de serviço à comunidade ou de limitação de fim de semana pela aplicação, cumulativa, de outras circunstâncias menos gravosas ao acusado, a saber: a) proibição de freqüentar determinados lugares, b) proibição de, sem autorização do juiz, ausentar-se da comarca onde reside e c) comparecimento mensal ao juízo a fim de justificar suas atividades.
Mais, o art. 83, IV, estabelece a reparação do dano enquanto condição para a concessão do livramento condicional, salvo a efetiva impossibilidade de fazê-lo[8]. E, por derradeiro, no art. 312, § 3˚, permite a extinção da punibilidade no crime de peculato culposo quando a reparação do dano der-se antes da sentença irrecorrível. Sendo depois desta, é prevista a redução pela metade da pena imposta.
Também o Código de Processo Penal regula a reparação do dano. No título IV, do Livro I, proporciona meios eficazes para a vítima buscar o seu ressarcimento. Além disso, garante a utilização das medidas assecuratórias, quais sejam: a) seqüestro (art. 125); b) hipoteca legal (art. 134); c) arresto de imóvel (art. 136) e d) arresto de bens móveis suscetíveis de penhora (art. 137)[9].
Com efeito, não é excessivo referir que quaisquer dos procedimentos acima arrolados podem ser requeridos e decretados em qualquer fase do procedimento criminal, antes do oferecimento da denúncia ou queixa e, até mesmo, após decisão final do processo, desde que ainda passível de recurso (art. 127 do CPP).
Transitada em julgada a sentença penal – obrigatoriamente condenatória –, serão os autos do pedido de medidas assecuratórias (os quais são autuados em separado) remetidos ao Juízo Cível, conforme impõe a regra prevista no art. 143, para os fins de que seja promovida a execução através de uma ação civil própria.
Insta, ainda, lembrar a Lei 9.099/95, a qual introduziu o chamado modelo consensual de Justiça. Esta Lei priorizou a indenização do dano em detrimento, até mesmo, da punição do infrator.
O art. 62 deste Diploma prevê que, sempre que possível, deve ocorrer a reparação dos danos sofridos pela vítima. O art. 72 e seguintes, por sua vez, regulam a conciliação e composição de danos. E, ressalta-se, o acordo homologado implica a renúncia ao direito de queixa e de representação.
A Lei 9.099/95 instituiu, ainda, a suspensão do processo. Estabelece o art. 89 que, nos crimes com pena inferior a 1 (um) ano, é possível a suspensão do feito por de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, desde que o acusado se submeta a algumas condições. E uma delas é justamente a reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo (art. 89, §1°, I)[10]. Vale dizer que o não-cumprimento deste requisito implica a revogação da suspensão (art. 89, §3˚).
Também a Lei 9.503/98, que instituiu o Código de Trânsito, mostrou preocupação com a vítima e com o dano, prevendo a penalidade de multa reparatória. O art. 297 estabelece que esta penalidade consiste no pagamento, mediante depósito judicial em favor da vítima ou de seus sucessores, de quantia calculada com base no §1˚ do art. 49 do Código Penal, sempre que o crime gerar prejuízo material.
Ainda a título demonstrativo, cita-se a Lei 9.605/98, que dispõe sobre sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. Esta lei apropriou-se do viés reparatório do princípio do Poluidor-Pagador[11]; exigindo, em diversos momentos, a reparação.
O art. 17, por exemplo, estabelece, enquanto condição à concessão de “sursis” especial, o laudo comprobatório da reparação do dano ambiental. O art. 27, a seu turno, prevê enquanto condição à transação a composição do dano, salvo em caso de comprovada impossibilidade.
Lembra-se, ainda, o art. 20, que consagra previsão bastante semelhante à nova redação do art. 387, IV, pois determina que “a sentença condenatória, sempre que possível, fixará o valor mínimo para a reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido e pelo meio ambiente.” No parágrafo único deste dispositivo, prevê-se que, transitada em julgado a sentença, a execução poder efetuar-se nos termos do “caput”, sem prejuízo de liquidação para apuração do dano efetivamente sofrido.
A preocupação com a reparação do dano está, também, na pena a ser imposta: o art. 9° estabelece que a prestação de serviços a comunidade consiste, no caso de dano a coisa particular, na restauração desta, se possível. O art. 14, por sua vez, considera circunstância que sempre atenua a pena o arrependimento do infrator, manifestado pela espontânea reparação ou, ainda, limitação significativa da degradação ambiental causada[12].
Por derradeiro, no que tange aos crimes contra a Ordem Tributária (Lei 8.137/90), interessante a observação de Baltazar Júnior no sentido de não haver necessidade da fixação do valor mínimo a título de indenização. Isso porque o oferecimento de denúncia contra delitos dessa natureza exige conclusão de procedimento administrativo-fiscal tributário e, via de conseqüência, pressupõe a existência de liquidez do valor da obrigação, elemento essencial para posterior inscrição em dívida ativa da União[13].
III. A NOVA REDAÇÃO DO ART. 387, IV, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Eugênio Pacelli de Oliveira explica que, quando a repercussão da infração penal atinge também o campo da responsabilidade civil, terá lugar a chamada ação civil “ex delicto”, prevista no art. 63 e seguintes do CPP, que consiste no procedimento judicial voltado à recomposição civil do dano causado pelo crime, previamente reconhecido pelo juízo criminal. O autor aborda, ainda, que há vários e diferentes sistemas processuais regulamentando a matéria, ora permitindo o ajuizamento simultâneo dos pedidos (penal e cível) em um só juízo, ora prevendo a separação de instâncias, com maior ou menor grau de separação entre elas[14].
No Brasil, adota-se o sistema de independência relativa, pois existe, muitas vezes, subordinação da temática civil à criminal. Conforme referido, o art. 91, I, do Código Penal prevê que a obrigação de reparar o dano é efeito genérico da sentença penal condenatória. Mais, o art. 935 do Código Civil estabelece que não mais se discutirá no cível a decisão criminal que reconheça a existência do fato ou sobre quem seja o seu autor.
Antes da reforma, a vítima aguardava o trânsito em julgado da decisão penal e ingressava na esfera cível em busca de seu ressarcimento. Tratava-se de um título ilíquido e fazia-se necessária a liquidação por artigos, com produção de provas do dano.
A nova redação do art. 387, IV, trazida pela Lei 11.719/08, mudou esta concepção e tornou o título líquido (ao menos em parte), na medida em que previu a possibilidade de o juiz fixar um valor “mínimo” para a reparação dos danos causados pela infração. Este posicionamento é reforçado pelo parágrafo único do art. 63, também inserido pela Lei 11.719/08, o qual prevê que “transitada em julgado a sentença condenatória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do inciso IV do ‘caput’ art. 387 deste Código sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano efetivamente sofrido”.
Assim, permite-se, atualmente, que a vítima ingresse no Juízo Cível com um valor pré-fixado pelo juiz criminal[15]. Esta previsão, contudo, não obsta o ajuizamento de ação civil “ex delicto” pelo ofendido ou seus sucessores ou, ainda, da liquidação pela diferença a ser pleiteada[16] [17].
Esta alteração, sabe-se, foi trazida pelo anteprojeto da “Comissão Pelegrini”[18] e está em plena conformidade com a tendência internacional de revalorização da vítima e com a já analisada preocupação do Legislador brasileiro com a reparação do dano. Isso porque torna mais célere, para o ofendido, a reparação dos prejuízos experimentados pelo ato ilícito, pois não mais haverá necessidade, estando o patamar mínimo do dano estabelecido, de processo civil de liquidação[19].
Vale referir que o Anteprojeto do Código de Processo Penal[20] também trata da questão. Prevê a possibilidade de o juiz arbitrar indenização pelo dano moral causado pela infração penal, sem prejuízo da ação civil contra o acusado e contra o eventual responsável civil pelos danos materiais existentes.
Na exposição de motivos, consta que “a opção pelos danos morais se apresentou como a mais adequada, para o fim de se preservar a celeridade da instrução criminal, impedindo o emperramento do processo, inevitável a partir de possíveis demandas probatórias de natureza civil.” Consta, ainda, que, “nesse ponto, o anteprojeto vai além do modelo trazido pela Lei nº 11.719, de 20 de junho de 2008, que permitiu a condenação do réu ao pagamento apenas de parcela mínima dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos efetivamente comprovados.” [21]
Neste trabalho, não serão analisados os dispositivos do Anteprojeto, mas, tão-somente, algumas questões acerca do 387, IV, cuja vagueza traz mais questionamentos que repostas:
III. I. APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Um dos primeiros problemas surgidos logo após a entrada em vigor da norma processual penal diz respeito à aplicação da lei no tempo, justamente porque se discute a natureza[22] do art. 387, IV, do CPP. Nos primeiros julgados sobre esta problemática, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul firmou, acertadamente, entendimento de que a norma possui evidente natureza substantiva, já que importa sanção a ser imediatamente executada pela vítima, quando do trânsito em julgado. Em outras palavras, para o Tribunal, o preceito tem carga penal, e isso impede a sua incidência imediata, sob pena de fazer retroagir lei prejudicial ao acusado.
Afora isso, o Tribunal gaúcho abordou que, se fosse possível a aplicação do instituto aos processos em andamento, “estar-se-ia retirando do acusado a possibilidade de debater a questão, no curso do processo, violando frontalmente os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, vendo-se condenado à indenização, sem que tivesse chance de rebatê-la.” [23]
As decisões aqui citadas parecem acertadas e encaminham-se de extremada prudência[24], pois se trata de aplicação da regra em processos que estavam em andamento. Contudo, isso, evidentemente, não encerra a problemática trazida à discussão.
III.II. NECESSIDADE DE PEDIDO EXPRESSO
Andrey Borges de Mendonça entende que a fixação do “quantum” pelo magistrado independe de pedido expresso da parte. Fundamenta que é efeito automático de toda a sentença penal condenatória transitada em julgado a obrigação de indenizar o dano causado e que o mesmo raciocínio se aplica ao valor da indenização: é automático, sem que seja necessário pedido expresso de quem quer que seja.
Mais, o citado autor aborda que existe um verdadeiro comando ao magistrado de fixar o montante mínimo. E, em não tendo elementos para tanto, o juiz deverá mencionar tal impossibilidade, expondo os motivos pelos quais assim decide. Acrescenta, ainda, que, na hipótese de simples omissão da autoridade judicial, será cabível a oposição de embargos de declaração[25].
O entendimento é reforçado pelo coro de José Paulo de Baltazar Júnior, para quem inexiste necessidade de requerimento da vítima. Argumenta que, não raro, o ofendido desconhece o seu direito à indenização ou, por algum motivo qualquer, teme exercê-lo. Este autor assevera, também, que, a teor da lei, pode o magistrado determinar a fixação do valor mínimo de ofício[26].
Esta orientação foi acolhida em recentíssimo julgado da Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, quando do julgamento da Apelação n° 70028215945[27]. Contudo, não parece adequada. Os autores e os magistrados desconsideraram importantes premissas do sistema acusatório, bem como o princípio da correlação.
Aury Lopes Júnior propõe, acertadamente, uma leitura da ação processual (penal) dentro da “estruturação de conceitos dentro de características próprias”[28] e, neste contexto, apresenta o princípio da correlação[29] (ou congruência). Este princípio consiste na idéia de imutabilidade absoluta de objeto no processo penal, o qual está umbilicalmente ligado à imputação formulada na “pretensão processual penal”.
Essa rigidez advém da própria estrutura do sistema acusatório, em que o magistrado deve ser considerado mero espectador do processo, sem poderes de gestão sobre a prova e sem a possibilidade de incursão ao elemento objetivo da pretensão acusatória, seja para ampliá-la ou restringi-la[30]. Deve, assim, haver necessariamente uma identidade entre a deliberação do magistrado e aquilo que, sob o crivo do contraditório, foi produzido no processo, não sendo possível permitir decisão à parte da matéria que foi objeto de discussão no feito.
Neste contexto, para que possa o juiz aplicar a norma prevista no art. 387, IV do CPP, deve haver a necessária correlação entre o pedido formulado na denúncia ou queixa e a decisão, sem prejuízo, ainda, de toda a formação da prova a ser feita na fase instrutória do processo penal. Em outras palavras, para que seja aplicada a reparação do dano tal qual estabelece o dispositivo processual, deve a peça inicial estabelecer, ainda que aproximadamente, o “quantum” indenizável a título de reparação de dano. Mais, no decorrer do processo, a parte interessada deve fazer a prova necessária e indispensável que venha a embasar sua pretensão e eventual condenação à reparação do dano.
Quando do julgamento da Apelação Criminal 70029444130[31], a Sexta Câmara do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul manifestou-se sobre a questão, referindo que o instituto jamais poderá ser aplicado “ex oficio” pelo juiz. Fundamentou que:
“[…] sua incidência repudia a unilateralidade e requisita observância, antes de tudo e sobretudo, aos princípios norteadores dos direitos e garantias fundamentais individuais (constitucionais e infraconstitucionais), dentre os quais se inscrevem os da imputação, da correlação, do contraditório e da ampla defesa, dentre outros não menos importantes, no devido processo penal legal aplicável à espécie “sub judice”.
Por derradeiro, interessante citar o entendimento de Nereu Giacomolli, no sentido de que a vítima pode expressar seu interesse de que não seja estabelecido o valor da indenização na sentença criminal. O autor destaca, acertadamente, que a reparação está no âmbito de disponibilidade do interessado, motivo por que, diante de manifestação contrária da vítima, não pode o magistrado fixar qualquer valor. Conclui abordando que, aqui, se aplica o princípio dispositivo, o qual comporta renúncia e transação[32].
III.III. LEGITIMIDADE E INTERESSE RECURSAL
Questão de especial relevo para compreensão do instituto diz respeito, ainda, à impugnação da decisão que determina, ou não, ao acusado o pagamento à vítima de reparação do dano sofrido pelo ato ilícito. A doutrina e os Tribunais discutirão, provavelmente, a problemática através dos institutos da legitimidade e do interesse recursal.
O art. 577 do Código de Processo Penal legitima aos recursos penais as partes (Ministério Público ou querelante, como sujeitos ativos da ação, e o réu, como sujeito passivo). Os arts. 584, §1°, e 598, a seu turno, legitimam à interposição de apelação e de recurso em sentido estrito o ofendido e seus sucessores, ainda que não se tenham habilitado como assistentes[33]. Nesse contexto, conclui-se que esses têm pertinência subjetiva para recorrer.
Passa-se, então, a analisar quais desses têm interesse recursal. No que tange ao réu, não restam dúvidas, eis que a decisão que fixa valor de indenização atinge frontalmente seus interesses.
O assistente de acusação e o querelante também têm interesse recursal, pois visam à satisfação integral de seu dano. Contudo, parece que o processo penal não é o foro adequado para este tipo de embate.
Assim, considerando a vítima ser de pequena monta o valor “mínimo” fixado pelo magistrado quando da sentença penal, deve postular no Juízo Cível um valor maior. O seu interesse econômico pode e deve ser satisfeito com plenitude, mas em seara distinta do processo penal.
No que concerne ao Ministério Público, é necessário reconhecer que não possui, em regra, interesse recursal sobre a questão: apenas ao ofendido e ao acusado incubem decidir sobre “quantum” da reparação. Isso porque se trata de um bem disponível e cabe apenas às partes decidir acerca da disposição, ou não, desse direito e acerca da busca dos meios de tutela que lhe são assegurados. Ademais, no processo penal, a função do Ministério Público encontra-se estreitamente ligada à tutela do bem jurídico protegido pela conduta tipificada, e não aos eventuais interesses econômicos da vítima em ser indenizada.
No entanto, em uma situação, parece que o “Parquet” tem interesse recursal: quando o Órgão tem legitimidade para intentar a ação civil “ex delicto”, nos termos do art. 68 do Código de Processo Penal[34]. E, ressalta-se, esta atribuição só existe em estados que ainda não organizaram a Defensoria Pública, constitucionalmente incumbida da orientação e defesa dos necessitados, na forma dos art. 5°, LXXIV, e 134[35]. Vale, também aqui, a ressalva de que o ideal seria satisfazer o interesse econômico da vítima na seara cível.
IV. CONCLUSÕES
À guisa de conclusão, interessa retomar, sucintamente, os principais pontos abordados no curso do trabalho. Na parte inicial, demonstrou-se que a problemática da vítima ocupa um papel de destaque no Direito Penal e na Política Criminal dos mais diversos países. Destacou-se, ainda, que as reformas processuais penais – ocorridas em 2008 – consagraram uma revalorização do ofendido no âmbito do processo penal.
Iniciou-se, então, a discussão sobre os objetos centrais deste trabalho, quais sejam, a questão da reparação do dano no Direito Processual Penal Brasileiro e a nova redação do art. 387, IV, da Lei Adjetiva Penal. No que tange àquela questão, demonstrou-se que as leis brasileiras cuidam, há algum tempo e com especial zelo, da reparação do dano do ofendido, buscando, sempre que possível, incentivá-la. Foram, então, analisados, doutrinária e jurisprudencialmente, os principais dispositivos legais sobre o assunto.
No que tange à nova redação do art. 387, IV, do Código de Processo Penal, mostrou-se que a inovação está na fixação do “quantum” a ser reparado no bojo do processo penal. Antes da reforma, a vítima aguardava o trânsito em julgado da decisão penal e ingressava na esfera cível em busca de seu ressarcimento. Tratava-se de um título ilíquido e fazia-se necessária a liquidação por artigos, com produção de provas do dano.
A nova redação do art. 387, IV, mudou esta concepção e tornou o título líquido (ao menos em parte), na medida em que previu a possibilidade de o juiz fixar um valor mínimo para a reparação dos danos causados pela infração. Contudo, a vagueza deste dispositivo trouxe mais questionamentos do que respostas aos juristas, fazendo-se imprescindível a análise dos principais problemas práticos, sob a ótica dos princípios constitucionais que norteiam o processo penal.
O primeiro deles consiste na aplicação da lei no tempo. Concluiu-se que dispositivo tem evidente carga penal e que isso impede a sua imediata incidência, sob pena de fazer retroagir lei prejudicial ao réu. Afora isso, se fosse possível a aplicação do instituto aos processos em andamento, “estar-se-ia retirando do acusado a possibilidade de debater a questão, no curso do processo, violando frontalmente os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, vendo-se condenado à indenização, sem que tivesse chance de rebatê-la.”[36]
Outro problema, quiçá o mais grave, reside na necessidade, ou não, de pedido pela parte interessada na inicial acusatória. Demonstrou-se que as premissas do sistema acusatório e o princípio da correlação impõem que haja pedido expresso e, ainda, a correlação entre o pedido formulado na denúncia ou queixa e a decisão, sem prejuízo de toda a formação da prova a ser feita na fase instrutória do processo penal.
Discutiu-se, ainda, a legitimidade e o interesse recursal das partes e do ofendido para recorrer da decisão que fixar, ou não, o “quantum” a ser indenizado. Entendeu-se que têm legitimidade o réu, o Ministério Público, o assistente de acusação e o querelante. No que tange ao “Parquet”, demonstrou-se que falta, em regra, interesse recursal, por se tratar de questão patrimonial e, portanto, disponível.
Ressaltou-se, no curso do trabalho, que o ideal é que a discussão acerca da reparação do dano não seja travada no processo penal, mas sim em ação civil. Isso porque trazer esta discussão representa uma violação de princípios básicos do processo penal e de toda e qualquer lógica jurídica. “Desvirtua o processo penal para buscar a satisfação de uma pretensão que é completamente alheia a essa função, estrutura e princípios informadores.”[37]
Enfim, parecem totalmente inadequadas a apuração e a determinação de danos materiais e/ ou morais no bojo de um processo criminal. Ao trazer tal possibilidade, o Legislador incrementou o pólo acusador e fragilizou o defensivo. Isso porque, como bem observa Nereu Giacomolli, a Acusação terá interesse em produzir provas para a fixação da indenização, enquanto a Defesa terá mais uma preocupação, além de demonstrar a necessidade de absolvição[38].
O dispositivo deveria, então, ser expurgado do Código de Processo Penal para que a indenização fosse discutida, tão-somente, no âmbito cível. Isso, provavelmente, não ocorrerá, até porque o Anteprojeto traz, ainda mais, a discussão para o processo penal. Diante disso, urge, ao menos, que sejam observadas as premissas do sistema acusatório, em especial a inércia judicial.
Informações Sobre os Autores
Renata Jardim da Cunha Rieger
Advogada criminalista, Mestranda em Ciências Criminais (PUC/RS), especialista em Direito Penal e Processual Penal (Faculdade IDC).
Rodrigo Oliveira de Camargo
Advogado criminalista, Mestrando em Ciências Criminais (PUC/RS), Membro da Comissão Sobral Pinto de Direitos Humanos da OAB/RS