Resumo: Na atualidade, há um pensamento alinhado mundialmente da comunidade jurídica em países comprometidos com a democracia no sentido de que os procedimentos criminais adotem a publicidade ampla como regra. O procedimento de investigação criminal sigiloso, secreto, sem controle da sociedade era característica do ultrapassado sistema inquisitório, não mais compatível com o vigente sistema acusatório. No sistema jurídico brasileiro, tanto a investigação criminal, quanto o processo penal devem seguir essa silhueta de acesso público, reservando-se o segredo de justiça para casos excepcionais, previstos expressamente em lei e devidamente justificados por decisão da autoridade.
Palavras-chaves: Constituição Federal. Princípio da publicidade. Direito Processual Penal. Inquérito Policial. Processo penal.
Abstract: There is currently a world aligned thinking of the legal community in countries committed to democracy in the sense that criminal procedures adopt broad publicity as a rule. The procedure of stealthy criminal investigation and without control of society was characteristic of the outmoded inquisitorial system, no longer compatible with the current adversarial system. In the Brazilian legal system, both criminal investigation and criminal proceedings must follow this outline of public access, reserving the secrecy of justice for exceptional cases, provided expressly in law and duly justified by decision of the authority.
Key-words: Federal Constitution. Principle of advertising. Criminal Procedural Law. Police Inquiry. Criminal proceedings.
Sumário: 1 Introdução. 2 O princípio constitucional da publicidade. 3 Classificação da publicidade dos atos processuais. 4 O sigilo do processo criminal. 5 O sigilo no inquérito policial. 6 O sigilo no procedimento investigatório do Ministério Público. Conclusões. Referências.
1 Introdução
A Emenda Constitucional n. 45, de 8 de dezembro de 2004, tornou-se notabilizada como aquela que representara a “Reforma do Poder Judiciário”, cabendo destacar as modificações substanciais ao sistema judicial brasileiro, a exemplo da introdução das súmulas vinculantes, da repercussão geral, da criação do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, da federalização do julgamento das causas que envolvam violação grave de direitos humanos.
Outro destaque centrou-se na tentativa de mitigar o problema da morosidade da justiça, com vista na introdução da garantia de julgamento do processo em prazo razoável e meios que garantam essa celeridade, o que é motivo de grande controvérsia, porquanto os direitos e garantias fundamentais do art. 5º devem (ou deveriam) ser de aplicação imediata (parágrafo primeiro), o que não se compatibiliza com conceitos fluídos, a exemplo do sobredito julgamento em prazo razoável.
Tudo isso, a bem verdade, nada representa se não há reforma estrutural do sistema processual brasileiro. De acordo com Ada Pellegrini Grinover[1], as modificações introduzidas pela EC n. 45/2004, especialmente o disposto no novo inciso LXXVII do art. 5º, exigem que sejam oferecidos os meios a tanto pela umbilicalmente necessária reforma infraconstitucional do sistema processual.
Neste viés, é sempre cediço que a materialização de alterações orgânicas do Poder Judiciário e do Ministério Público não são se dá, de per si, por emenda constitucional, sobretudo quando o debate é a resolução da invencível demora de entrega da prestação jurisdicional, pois, para, além disso, mister se faz substanciais alterações da legislação infraconstitucional e, em última razão, profunda mudança de cultura de operadores do Direito, no sentido de contribuírem para a rápida solução das demandas.
2 O princípio constitucional da publicidade
A propósito do dever de transparência do Poder Judiciário em atos e julgamentos de seus órgãos, a Constituição da República assegura ao cidadão a garantia fundamental da publicidade de seus atos:
“Art. 5º omissis;
LX – a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”.
Na estrutura sistêmica da Constituição, o art. 93, inciso IX, ainda preceitua que todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.
A primeira tônica a ser iluminada está em que as disposições constitucionais supracitadas qualificam-se como “princípios”, de sorte que, em prolegômenos, é primordial ao intérprete que, antes de incursionar-se no tema da publicidade dos atos do Poder Judiciário, atente-se para os conceitos propedêuticos acerca de “princípios” e de “regras”.
Nesse enfoque, é possível alinhavar que princípios são normas finalísticas (um fim a ser atingido) que se destinam a orientar a interpretação de um sistema jurídico e, mais concretamente, do conteúdo colimado, o estado ideal das coisas a serem atingidas. De lembrar-se, nesse sentido, o princípio da moralidade, como orientador da Administração Pública.
As regras podem ser explicitadas como normas imediatamente descritivas, que, por sua vez, urgem avaliação em caso concreto para perquirir se há correspondência entre a prescrição normativa e a situação fática presente. Veja-se exemplo bastante preciso de regra no art. 156 do Código de Processo Penal, segundo o qual a “prova da alegação incumbirá a quem a fizer”.
Nesse diapasão, a proposta conceitual de regras e princípios está assaz expendida por Humberto Ávila[2]:
“As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos.
Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua produção.”
Para Ronald Dworkin:
“A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis quanto à maneira tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela oferece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão”[3].
Bandeira de Mello[4] adverte que princípios são mandamentos nucleares de um sistema, verdadeiros alicerces dele, e ainda disposições fundamentais que se irradiam sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definirem a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.
Estando delineado, pois, que a publicidade de atos do Poder Judiciário é princípio motor a inspirar o sistema jurídico, notadamente do Processo Penal Constitucional brasileiro, qualquer exceção a esse vetor deve estar acompanhada de devida fundamentação judicial, onde o juiz esclareça, por meio de raciocínio que pondere valores constitucionais sob jogo, em caso concreto, da prevalência do segredo, do sigilo, sobre a publicidade, no processo penal. Essa ponderação deve ser exercitada por meio de equação, a demonstrar [por a + b = segredo de justiça] o porquê da inacessibilidade pública a caso submetido ao Poder Judiciário.
É dizer: deve ser apontado, em caso concreto, ante o exercício da ponderação de valores constitucionais, a razão de prevalência do princípio da intimidade e da privacidade sobre da publicidade.
Cabe anotar que há duas condições — cumulativas — para que a exceção à publicidade seja aplicada pelo Poder Judiciário em caso concreto:
i) existência de lei (anterior) que contemple o caso em concreto;
ii) situação que não cause prejuízo a interesse público à informação.
Está clarividente que a restrição à publicidade de atos do Poder Judiciário deve ter sustentáculo em lei que preveja, especificamente, determinada hipótese a ser invocada em caso concreto (subsunção do fato à norma). É o que ocorre, verbi gratia, em casos nos quais a própria Constituição estabelece a exceção, como no sigilo de votações em processos de competência do tribunal do júri, por força de expressa disposição contida no art. 5º, inciso XXXVIII, alínea “b” (“é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: […] b) o sigilo das votações”), com vistas a preservar a imparcialidade de jurados, que poderiam sentir-se intimidados com a presença de acusado e de assistentes.
Como assinala Rogério Lauria Tucci[5], a publicidade se faz necessária no processo penal não só para garantir ao interessado na realização de ato processual a devida transparência de um iter procedimental escorreito de qualquer vício, mas para que a sociedade possa formar sua opinião sobre a retidão de órgãos judiciais.
Há de ter-se em conta que o Processo Penal hodierno permeou o histórico sistema inquisitivo — que, conforme Jacinto Nelson de Miranda Coutinho[6], tinha cunho sigiloso, no qual a gestão de provas é confiada ao juiz, que atuava secretamente, tratando o réu como objeto da investigação — a espraiar-se pelo vigente sistema acusatório, cujo alicerce se estriba, dentre outros, no princípio da publicidade absoluta, cujo axioma não pode em hipótese alguma ser desvalorado pelo operador do Direito atual. A propósito, o retrospecto histórico apontado por Fernando da Costa Tourinho Filho:
“Como característico do processo do tipo acusatório, a publicidade campeava na Índia, entre os atenienses, entre os romanos, à época republicana, entre os germânicos. Era a publicidade popular. Posteriormente, a publicidade foi sofrendo limitações e, na Idade Média, por influência do Direito Processual Penal canônico, foi totalmente abolida. O processo passou a ser secreto. Só o julgador, que também acusava, e o secretário é que tinham conhecimento do que se passava no processo. Não se permitia sequer defensor, sob a alegação de que, se o acusado era inocente, não precisava de defensor, e, se culpado, era indigno de defesa. […]”[7]
Coutinho[8] destaca a ausência de publicidade do modelo inquisitório, ao apontar que, neste, a característica principal está na gestão de provas, confiada essencialmente ao magistrado, que, em geral, recolhe-a secretamente.
Importante não perder de vista que o histórico Sistema Inquisitivo considerava o sistema de fórmulas processuais mero detalhe, como ficou bem registrado no Manual dos Inquisidores, de Nicolao Eymerico:
“Es peculiar y nobilíssimo privilegio del tribunal de inquisicion que no estén los jueces obligados á seguir las reglas forenses, de suerte que la omision de los requisitos que en derecho se requieren no hace nulo el proceso, con tal que no falten las cosas esenciales para determinar la causa […]”[9].
No Sistema Acusatório, a contrario sensu, forma é garantia do acusado, entre as quais está a publicidade de todos os atos do processo e o controle da sociedade sobre o acesso público aos autos e de todas as decisões judiciais exaradas pelo juiz competente.
Luigi Ferrajoli conceitua, em linhas gerais, a estrutura do sistema acusatório:
“[…] pode-se chamar acusatório todo sistema processual que tem o juiz como um sujeito passivo rigidamente separado das partes e o julgamento como um debate paritário, iniciado pela acusação, à qual compete o ônus da prova, desenvolvida com a defesa mediante um contraditório público e oral e solucionado pelo juiz […]”[10]
Portanto, a premissa que se coloca ao princípio da publicidade é que o processo penal brasileiro segue, na atualidade, o modelo acusatório, de alto comprometimento constitucional, nomeadamente com os direitos e garantias fundamentais, de sorte que os operadores do Direito que atuam na persecução criminal devem ter em mente que a estrutura do procedimento investigatório e do processo judicial demandam que seus atos se inspirem e se norteiem pelos conceitos (antes vistos) de princípios e sobre como estes influenciam um sistema jurídico.
3 Classificação da publicidade dos atos processuais
Neste compasso, há de trazer-se à tona a classificação de publicidade apresentada por Tucci[11], para melhor compreensão do tema: a) publicidade ativa: quando os atos de processo tornam-se involuntariamente conhecidos pela sociedade; b) publicidade passiva: quando os atos de processo tornam-se conhecidos por iniciativa da própria sociedade; c) publicidade imediata: quando o conhecimento de atos do processo é franqueada pelos juízes livremente aos cidadãos; d) publicidade mediata: quando o acesso ao processo se dá por meio de certidões, cópias, mass media (imprensa) etc.; e) publicidade absoluta ou externa: quando todos os atos de processo são acessíveis ao público; f) publicidade restrita ou interna: quando o acesso aos atos de processo é exclusiva às pessoas diretamente interessadas no processo e aos seus procuradores.
Lamentavelmente, a questão de segredo de justiça (publicidade restrita ou interna), sob fundamento de existência de preservação de interesse público, sempre contou, e conta, com alta carga de subjetividade inserta em decisões que a concedem, dada a margem de discricionariedade aplicada pelos juízes em contraposição ao princípio constitucional da publicidade.
Nada obstante, vale lembrar que a redação anterior do inciso IX do art. 93 da Constituição Federal estava assim vazada:
“Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes”. [grifo nosso]
Ocorre que a redação atual, dada ao dispositivo ex vi da EC n. 45, passou a dispor de maneira clarividente:
“Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.” [grifo nosso]
De acordo com a norma revogada, afigurava-se suficiente invocar um suposto “interesse público” — cujo conceito é nitidamente fluído — para restringir-se acesso ao processo.
Sucede que o atual texto está sulcado em duas garantias constitucionais proporcionadas ao cidadão: i) obrigatoriedade de julgamentos públicos; ii) obrigatoriedade de todas as decisões judiciais conterem fundamentação.
Aliás, não há como ser diferente em um país que se rege pelo princípio do Estado Democrático de Direito e que almeja alicerçar seu Direito Processual Penal no precitado Sistema Acusatório. À sabendas, em ambientes democráticos, ou que colimem sê-lo, todas as decisões de autoridades devem ser públicas; não há espaço para atos secretos (típicos do sistema inquisitório) e, tampouco, praticados à margem do conhecimento do povo. Bobbio (2000), ao definir democracia, considera-a como sendo o “poder em público”[12].
Segue-se que os atos praticados por governantes e por autoridades, de um modo geral, são imanentes aos interesses dos administrados, ou seja, ao interesse público, sobre cuja definição Ives Gandra Martins Filho glosa ser “a relação entre a sociedade e o bem por ela perseguido, por meio daqueles que, na comunidade, exercem a autoridade (governantes, administradores públicos, magistrados etc.)”[13].
4 O Sigilo no processo criminal
O interesse público é aquele da coletividade, pela coletividade, e não para evitar o conhecimento público da coletividade. Por corolário, em linha principiológica, a restrição à informação pública deve ser a “exceção da exceção”, e não deve causar prejuízo ao interesse público à informação.
A publicidade de atos processuais é, em Vicente Greco Filho[14], a garantia de outras garantias, inclusive da reta aplicação da lei. Geraldo Prado[15] adscreve que, pela publicidade, cidadãos podem controlar, de forma consentânea, o cumprimento da exigência de respeito aos direitos básicos, além da moralidade e da impessoalidade da ação estatal.
Nesse viés democrático, a CF de 1988[16] introduz o direito à liberdade de imprensa, a garantir a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, sem qualquer tipo de restrição.
A única excepcionalidade à publicidade de julgamentos ocorre quando lei (anterior) restringir a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo “não prejudique o interesse público à informação”.
A substancial distinção desta norma em cotejo ao modelo anterior está em que, antes, o magistrado podia apenas invocar o interesse público — de definição subjetiva — para impor o “segredo de justiça” a determinado processo.
Hodiernamente, ao fazê-lo, deve esclarecer o porquê a preservação da intimidade do interessado não estará a violar o princípio do interesse público à informação, porquanto a publicidade de atos do Poder Judiciário decorre do propalado Estado Democrático de Direito.
Por força do princípio introduzido ao sistema — de teor axiológico muito mais inspirador do que as regras —, houve perda superveniente do fundamento que emprestava substrato à regra.
A população tem o direito de conhecer todos os atos e decisões emanadas do Poder Judiciário. É dizer: não existe seara de discricionariedade neste dever constitucional.
Leva-se a cabo a práxis censurável de estabelecer-se “segredos de justiça” em situações incabíveis, como processos que envolvam pessoas públicas e autoridades, o que denota a idéia de que estes têm direito a preservar seus interesses, enquanto que o cidadão em geral não goza da mesma prerrogativa na Justiça.
O “processo cidadão” não distingue a publicidade de atos do procedimento pelas partes, pela classe social, pela profissão, por se tratar de pessoa conhecida por redes sociais e pela imprensa, pois o sigilo só deve ocorrer em hipóteses previstas na lei.
Muitos equívocos têm sido aplicados nesse sentido, quando segredos de justiça são impingidos a processos que devem ser públicos porque determinado documento sigiloso é juntado aos autos, visto que, em casos tais, cabe ao juiz determinar o desentranhamento e a autuação em separado do documento sigiloso, mas não convolar todo o processo, que é público, em sigiloso. Vale lembrar que, na atualidade, processos digitais também permitem tornar sigilosos apenas determinados documentos ou, quando não, autuá-los em apensos sigilosos, mas nunca o processo todo, tornando-o inacessível ao público. Outro exemplo a trazer a lume está em processos em que juízes quebram sigilos bancários e fiscais. Nessas hipóteses, não há razão para o processo ser transformado em sigiloso, se for pelo fundamento de ter havido requerimento de quebra de sigilo constitucional, pois o que deve ser preservado são as informações advindas dos órgãos requisitados, estes sim a serem autuados em separado, com segredo de justiça.
Mutatis mutandi, é de concluir-se que, desde o advento da Emenda Constitucional n. 45/2004, magistrados não mais têm discricionariedade para cunhar o selo de “segredo de justiça” em qualquer processo, a seu talante, ou a requerimento de interessado, como ocorre, verbi gratia, quando seja parte alguma autoridade — de qualquer um dos Poderes, dos tribunais de contas e do Ministério Público — ou personalidade de conhecimento comum da população.
Mercê do princípio da ponderação, o juiz deve adotar as cautelas necessárias para que o interesse público à informação e o direito à liberdade de imprensa não transformem o processo em um espetáculo a causar o chamado julgamento paralelo da imprensa, mas, em última razão, sempre prestigiando a publicidade do processo.
Geraldo Prado[17] acena para o contexto havido em tempos modernos, quando a exploração de causas penais como casos jornalísticos, com intensa cobertura por todos os meios, leva à constatação de que, ao contrário do processo penal tradicional, no qual réu e Defesa podem dispor de recursos para tentar resistir à pretensão de acusação em igualdade de posições e paridade de armas com o acusador formal, o processo paralelo difundido na mídia é superficial, emocional e muito raramente oferece a todos os envolvidos igualdade de oportunidade para expor seus pontos de vista.
Sem embargo, não é por conta dessas excepcionalidades que a garantia constitucional do interesse público à informação deve ser soto-posta no processo judicial. Importante não perder de vista que a “liberdade de imprensa” também é garantia constitucional e conquista histórica da República.
Novamente aqui entra o papel relevante do juiz como guardião de valores constitucionais, a dosar excessos que, eventualmente, possam ser constatados pela publicidade deformada, tal como prevê o art. 472 do Código de Processo Penal italiano, ao permitir ao magistrado estabelecer apenas a publicidade interna, quando, no interesse do Estado e da privacidade das partes e das testemunhas, em casos nos quais a publicidade possa conturbar a realização do debate e/ou influir na formação de convencimento do órgão julgador. Na mesma linha, o art. 6º da Convenção Europeia para a Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades fundamentais e o art. 14, 1, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.
Entra em cena o princípio da proporcionalidade (ou da ponderação), que, consoante Canotilho e Moreira, veda, nomeadamente, as restrições desnecessárias, inaptas ou excessivas de direitos fundamentais. Os direitos fundamentais só podem ser restringidos quando tal se torne indispensável e, no mínimo, necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos[18].
Nesse contexto é que haverá a necessidade da atuação habilidosa do magistrado, inclusive por meio de manifestações institucionais, se houver tal necessidade, e, em última instância, a invocação do predito princípio da ponderação. Sonegar a informação, nunca.
Vale lembrar que o art. 792 do Código de Processo Penal enuncia que as audiências, sessões e os atos processuais serão, em regra, públicos e se realizarão nas sedes dos juízos e tribunais, com assistência dos escrivães, do secretário, do oficial de justiça que servir de porteiro, em dia e hora certos, ou previamente designados. E a exceção vem disposta no parágrafo primeiro do mesmo artigo, donde se lê: “Se da publicidade da audiência, da sessão ou do ato processual, puder resultar escândalo, inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem, o juiz, ou o tribunal, câmara, ou turma, poderá, de ofício ou a requerimento da parte ou do Ministério Público, determinar que o ato seja realizado a portas fechadas, limitando o número de pessoas que possam estar presentes”.
No âmbito jurisprudencial, o Supremo Tribunal Federal tem proferido várias decisões compatíveis com essa nova visão de respeito ao princípio da publicidade como regra nos processos judiciais. Veja que, até mesmo em casos de acordos de delação premiada, que, nos termos do art. 5º, inciso II, e art. 7º da Lei n. 12.850/2013, prevêem algumas hipóteses de segredos de justiça, a referida Corte tem mitigado tal restrição e prestigiado o amplo acesso ao processo nos chamados maxiprocessos, como bem se observou no caso da Petição n. 7.003/2017, pelo Relator[19], Ministro Edson Fachin.
5 O sigilo no inquérito policial
A vetusta doutrina acerca da questão de acesso ao inquérito policial preconizava que referido procedimento preliminar gozava, por natureza, de caráter sigiloso, não submetido, assim, à publicidade aplicada ao processo penal, o que, a nosso sentir, parece encontrar guarida em interpretações que antecedem à Constituição de 1988 e, especialmente, seu conteúdo sistemático sobre direitos e garantias fundamentais e sobre a publicidade dos atos da Administração Pública.
Some-se que o entendimento deste jaez parte da premissa de que, no inquérito policial, o modelo ainda é inquisitório porque conduzido diretamente pela autoridade investigante. Ocorre que o sistema inquisitório nada tem a ver com o fato de a investigação ser conduzida diretamente pela autoridade que coleta os elementos informativos, e sim com um modelo histórico, secreto, violento, sem compromisso com a forma, onde o investigado era objeto, e não sujeito de direitos. Atualmente, a investigação preliminar brasileira é democrática e presidida por autoridade que só desempenha tal função, sempre sob o controle do juiz, que garante todos os direitos do investigado (CF, art. 5º, XXXV).
Assim, é chegada a hora de refletir-se com mais profundidade sobre essa equivocada visão de que o inquérito policial é inquisitivo. O sistema de persecução penal atual conta com a investigação exercida pela autoridade policial (Lei Federal n. 12.830/2013), a contar o Ministério Público como titular da ação penal pública, e o Estado-juiz como garantidor dos direitos e garantias fundamentais e responsável pelo julgamento da ação penal.
Portanto, no âmbito da investigação convencional, por meio de inquérito policial, o princípio da publicidade deve, hodiernamente, servir como bússola orientadora da Polícia Judiciária, a partir de interpretação conforme a Constituição dos termos do art. 20 do Código de Processo Penal, segundo o qual a autoridade assegurará, no inquérito, o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade.
É claro que a autoridade investigante deve impulsionar a investigação preliminar com a cautela necessária a não tornar inócuo todo o trabalho desenvolvido, daí por que o supracitado art. 20 alude ao sigilo necessário à elucidação do fato, porém essa dosagem deve ocorrer, atualmente, na exata quantidade ao esclarecimento do que se investiga e sempre a respeitar-se os direitos do investigado e de seu defensor, tal como garantido pelo art. 7º, inciso XIV, da Lei n. 8.906/1994 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil), ao assegurar ao defensor o direito de examinar em qualquer distrito policial, inclusive sem procuração, os autos de prisão em flagrante e do inquérito, acabado ou em trâmite, ainda que conclusos à autoridade policial, podendo tirar cópias e tomar apontamentos.
Neste particular, merece destaque a Súmula Vinculante 14, do Supremo Tribunal Federal, a assegurar ao defensor, no interesse do representado, acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgãos com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.
Isso porque, conforme destacou o Ministro Cezar Peluso, do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC n. 88.190, há diligências que devem ser sigilosas, sob risco de comprometimento do bom sucesso da investigação, mas não se deve descurar que a posterior formalização documental desse resultado não pode jamais ser subtraída do investigado e de seu defensor, à luz da Constituição da República, sobretudo ante sua garantia de ampla defesa e contraditório, ainda que diferido.
6 O sigilo no procedimento investigatório criminal do Ministério Público
Com o julgamento do Recurso Extraordinário n. 593.727, em 14 de maio de 2015, no Plenário do Supremo Tribunal Federal, em sede de repercussão geral, a Corte Constitucional reconheceu, por maioria de votos, a legitimidade do Ministério Público para promover, por autoridade própria, investigações de natureza penal e fixou parâmetros para atuação do parquet.
Os Ministros frisaram que, em todos os casos, direitos e garantias fundamentais de investigados devem ser preservados e que atos investigatórios devem observar a reserva constitucional de jurisdição, bem como as prerrogativas profissionais garantidas aos advogados, como acesso aos elementos de prova que digam respeito ao direito de defesa, destacando, ainda, o permanente controle jurisdicional destes atos.
No âmbito funcional dos órgãos de execução do Ministério Público, as investigações desenvolvidas pelo Parquet se orientavam por regulamento próprio, qual seja a Resolução n. 13, do Conselho Nacional do Ministério Público, cujo art. 13 determinava que os atos e peças eram públicos, salvo disposição “legal” em contrário, ou por razões de interesse público, ou por conveniência da investigação. O art. 14 da mesma Resolução especificava a exceção da publicidade ao preceituar que o presidente do procedimento investigatório criminal poderia decretar o sigilo das investigações, no todo ou em parte, por decisão fundamentada, quando a elucidação do fato ou interesse público exigir, garantida ao investigado a obtenção, por cópia autenticada, de depoimento que tenha prestado e dos atos de que tenha, pessoalmente, participado.
Atualmente, a Resolução n. 13 do CNMP está expressamente revogada pela Resolução n. 181, de 7 de agosto de 2017, sendo que seu art. 15 contempla idênticas disposições, pelo que, em se tratando de investigações criminais desenvolvidas pelo Ministério Público, a regra deve ser a publicidade.
Como se apercebe, tanto a (revogada) Resolução 13, quanto a (vigente) Resolução 181 garantem a publicidade constitucional. Em ambas, o método de interpretação deve ser conforme a Constituição; é dizer, não há espaço para decisões ministeriais lacônicas, vazias de conteúdo a explicitar a razão da quebra da publicidade, visto que a exceção que caminha para o sigilo de uma investigação deve sempre vir acompanhada de decisão assaz convincente.
Por fim, a sociedade brasileira passou a acompanhar, na modernidade, os acordos de colaboração premiada em maxiprocessos de organizações criminosas, que são elaborados por colaboradores com o Ministério Público ou com a Polícia Judiciária, e homologados judicialmente, e que são de interesse de toda a nação.
Portanto, esse atual interesse público à informação não pode ser desprezado e deve ser repensado nos procedimentos onde os termos de acordo são negociados, para que se pondere, em casos concretos, o acesso ao seu conteúdo, sem prejuízo de eventual comprometimento das investigações em andamento, como já é previsto no § 2º[20] do art. 7º da Lei n. 12.850/2013.
CONCLUSÕES
1. Com o advento da Emenda Constitucional n. 45/2004, que alterou a redação do inciso IX do art. 93 da Constituição Federal, é imprescindível que haja lei (anterior) que defina hipótese de sigilo de investigação criminal ou de segredo de justiça, a ser aplicada em caso concreto, para que se possa vedar a publicidade do processo (em sentido lato), visto que o “interesse público à informação” erigiu-se a cânon constitucional.
2. As hipóteses legais de restrição de acesso ao processo, por representarem exceção ao princípio constitucional de publicidade do processo, comportam interpretação restritiva, a não se admitir, portanto, interpretações extensivas da letra da lei.
3. A garantia (-princípio) constitucional do “interesse público à informação” não mais pode ser arredada por singela e desprovida fundamentação de invocação da tutela do direito à intimidade.
4. O afastamento da publicidade no procedimento investigatório criminal e no processo penal deve ser realizada, de forma excepcionalíssima, por meio de decisão assaz fundamentada, em equação clara e objetiva (princípio da ponderação), a externar os motivos que levam o responsável pela investigação ou o juiz a obstar o acesso público à persecução criminal, sob pena de flagrante violação ao princípio constitucional da publicidade do processo e dos atos praticados pelo Poder Judiciário.
Informações Sobre o Autor
Carlos Alberto Garcete de Almeida
Mestre em Direito Constitucional PUC/RJ, Doutor em Direito Processual Penal pela PUC/SP, Professor de Direito Processual Penal ESMAGIS/MS, Juiz de Direito da 1a Vara do Tribunal do Júri em Campo Grande-MS