Breves considerações sobre o art. 108 do Código Tributário Nacional

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Sumário: 1. Introdução; 2. A Interpretação e o Intérprete; 3. A Integração do Direito; 3.1. A Analogia; 3.2. Os Princípios Gerais de Direito Tributário e de Direito Público; 3.3. A Eqüidade; 4. Conclusão.

1.INTRODUÇÃO

Um exame mais atento das normas sobre integração e interpretação dispostas no Livro II, Título I, Capítulo IV do CTN nos leva à conclusão que tais disposições se mostram ambíguas e contraditórias, e, portanto, dispensáveis.

É de se notar que o CTN separou em capítulos distintos as normas de aplicação e as normas de interpretação e integração, distinguindo o momento hermenêutico e o trabalho pragmático e funcional, visando a atuação do direito em cada caso concreto. No entanto, tal diferenciação não deve prosperar, pois interpretação e aplicação não se realizam de forma autônoma, distanciada, mas consubstanciam um processo unitário.[1] No tocante à integração é preciso salientar que a interpretação é um antecedente lógico, pois só após exame exegético é que será possível a constatação ou não de lacuna, propiciando a aplicação do direito.

No Direito antigo não se distinguiam integração e interpretação o que somente ocorreu com a obra de Savigny[2], quando se separou a interpretação, apreensão do sentido da lei, da integração, processo de preenchimento de lacunas. Outros autores aprofundaram esta idéia, sendo fundamental a obra de Larenz que estabelece uma fronteira para a interpretação, quando percebe que a linguagem tem uma capacidade expressiva, qual seja, o “sentido literal possível”[3], entendido como aquilo que do ponto de vista lingüístico é determinante para a apuração do sentido da lei. Assim, a distinção dirige-se no sentido de que na interpretação o operador do direito usa recursos como dados históricos, a lingüística, valores de natureza política e ética, enquanto na integração os instrumentos são de natureza lógica como a lacuna e o argumento a contrario, trabalhando fora da órbita do texto da norma. Entretanto, a distinção não é tão clara assim, apresentando uma fronteira pouco nítida entre os dois processos.

Socorre-nos a idéia de Larenz afirmando que sempre se reconheceu que mesmo uma lei cuidadosamente pensada pode não atender à demanda dos casos concretos, tendo em vista a riqueza da vida cotidiana. De outro lado, se reconhece há muito a competência dos tribunais em colmatar lacunas, devendo a Dogmática Jurídica fornecer instrumentos eficientes para que o juiz possa completar sua tarefa adequadamente. Tem-se então, um desenvolvimento judicial do Direito. Nesse passo, afirma o autor que “a interpretação da lei e o desenvolvimento judicial do Direito não devem ver-se como essencialmente diferentes, mas só como distintos graus do mesmo processo de pensamento”.[4] Conclui-se que, na verdade, os processos de interpretação e integração não podem ser vistos de forma autônoma, mas sim como uma unidade, que visam a aplicação da lei ao caso concreto.

O legislador complementar, ao elaborar o CTN, não demonstrou grande preocupação com estes dois temas. É o que se pode depreender do pensamento de Gilberto Ulhôa Canto[5], um dos autores do seu anteprojeto, quando afirma que o anteprojeto teve apenas uma preocupação didática, minuciosa, exteriorizando o pensamento determinante do texto legal, com o objetivo orientar e esclarecer o sentido das normas. Quando comenta as normas de interpretação e integração, informa que tem muito pouco a dizer sobre interpretação e integração da legislação tributária, concluindo que a integração tem pouco campo de emprego no Direito Tributário, sendo sua aplicação limitada. Sua preocupação dirige-se ao § 1º do art. 108 do CTN, que veda a utilização da analogia que resulte na exigência de tributo não previsto em lei. Percebe-se que legislador do CTN procura limitar o trabalho do aplicador do Direito, estipulando normas de interpretação e integração do direito tributário, impedindo que o intérprete utilize todo o instrumental teorético construído pela Dogmática Jurídica historicamente.

Desse modo, concluímos que andou mal o legislador complementar quando separou os dois processos, interpretação e integração, tendo em vista a sua unidade. O Direito se concretiza quando da aplicação da lei, que nada mais é do que sua realização, sua normatividade, que se obtém mediante processos dialéticos entre a norma e o fato, o ser e o dever-ser, entre o direito e a realidade.

Explanadas estas premissas com que iremos trabalhar, parte-se em seguida para o exame da interpretação das leis, levando em consideração as noções do processo de compreensão e pré-compreensão desenvolvidas por Gadamer.

2.A INTERPRETAÇÃO E O INTÉRPRETE

Interpretar, no sentido clássico, é “determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito”.[6] Os autores do século XVIII e XIX se preocuparam suficientemente com a interpretação das leis, e em especial Savigny, um dos fundadores da Escola Histórica do Direito. Savigny equipara o Direito positivo ao Direito legislado, afirmando que a legislação acontece no tempo, o que o conduz a garantir uma concepção histórica do Direito que se conjuga com a história do Estado e a história dos povos, tendo em vista que a lei é advém de uma atividade do Estado[7]. Distingue, portanto, uma elaboração interpretativa de uma elaboração histórica e de uma elaboração filosófica (sistemática) do Direito. Desse modo, o processo de interpretação para Savigny consiste em reconstruir o pensamento expresso na lei, necessitando que o intérprete se coloque na posição do legislador, permitindo que se forme o sentido da lei. Para se conseguir este objetivo a interpretação precisa de três elementos: um elemento lógico, um elemento gramatical e um elemento histórico, ou seja, ao se buscar ao significado da lei deve se considerar as circunstâncias históricas de seu aparecimento, bem como deve o intérprete conhecer as particularidades e o conjunto da lei, pois o todo do Direito só é reconhecível como um sistema. Acrescente-se, portanto o elemento sistemático, que se refere “ao nexo interno que liga em uma grande unidade todos os institutos e regras jurídicas”.[8]

Em resumo, ao interpretar a lei deve o intérprete reconstruir o pensamento ínsito na lei, colocando-se na posição do legislador e repetir, artificialmente, a atividade deste, permitindo que a lei brote novamente em sua mente. É preciso salientar que Savigny não fala em métodos de interpretação, mas sim em elementos de interpretação, ou seja, de atividades distintas que o intérprete deve desenvolver com vistas ao fim da interpretação.

No fim do século XIX, Jhering propõe um quinto elemento, o elemento teleológico. Para Jhering, o fim é o criador de todo o Direito, pois não existe nenhuma norma jurídica que não leve em consideração a sua finalidade, qual seja, um motivo prático. Ou melhor, toda proposição jurídica deve sua existência a um motivo prático, um fim subsistente em si mesmo. Esclarece Larenz que não são os fins o criador do Direito, “mas apenas o sujeito que estabelece esses fins e que prossegue esses fins pela imposição do Direito”.[9]

Hoje encontramos na maior parte das obras sobre o tema esses “métodos”, mas que já não satisfazem plenamente ao intérprete. Sem dúvida o “método” teleológico é de fundamental importância para o Direito Tributário na atualidade, enquanto os outros perderam relevância de outrora. Sem dúvida, outros autores contribuíram de forma decisiva para o desenvolvimento da hermenêutica jurídica, entre eles Hans-Georg Gadamer, que influenciado incialmente por Wilhelm Dilthey, deu um passo significativo em direção à uma ruptura com a hermenêutica tradicional, quando deixou-se influenciar pelo existencialista Martin Hiedegger.

Gadamer inicialmente é influenciado pela obra de Wilhelm Dilthey, cujo esforço é dirigido a fundar filosoficamente as ciências humanas, buscando seu fundamento nos confins da experiência histórica. O conhecimento, segundo Dilthey, sé será possível pela perspectiva histórica porque nós mesmos somos seres históricos. Todavia, o conhecimento científico historicamente condicionado precisa ser legitimado como ciência objetiva, o que o leva a concluir que “todo momento histórico deve ser compreendido a partir de si mesmo, não podendo ser submetido às medidas de um tempo que lhe é estranho”.[10] O historiador, então, precisa se desvencilhar de sua própria situação histórica para compreender, dotando a consciência histórica de relatividade e justificando a objetividade do conhecimento, significando dizer que “a vida histórica não é desprovida do poder de conhecer historicamente a sua possibilidade de ter um comportamento histórico”.[11] Assim, essa consciência histórica não é apenas um reflexo da vida real, pois ela compreende a si mesma e através de sua história. “A consciência histórica é um modo de conhecimento de si”.[12]

Todavia, critica Gadamer, Dilthey era dependente da hermenêutica romântica, pois sustentava o ideal objetivista, que defendia para as ciências humanas um status igual ao das ciências exatas, mascarando a diferença entre experiência histórica e conhecimento científico. A hermenêutica romântica parte da idéia de que o objeto da compreensão é o próprio texto, sendo intérprete e texto absolutamente contemporâneos. Assim, é possível apreender o passado como se presente fosse, acolher o estranho como se familiar fosse.

Trazendo consigo os ensinamentos de Dilthey, isto é, utilizando a consciência histórica como elemento indispensável para a compreensão, Gadamer inicia a chamada “virada hermenêutica”. A consciência histórica passa a ser elemento indispensável para a compreensão, pois entende a consciência histórica como privilégio do qual o homem é dotado e que lhe permite a plena consciência da historicidade do presente e da relatividade de toda opinião. A consciência moderna percebe a relatividade dos pontos de vista e, portanto assume uma posição reflexiva com relação a tudo que lhe é transmitido pela tradição. Esta posição reflexiva, Gadamer chama de interpretação. E para interpretar necessitamos compreender.

A compreensão para Gadamer tem um caráter circular, que advém do esforço que o intérprete empreende para compreender a coisa. Assim que descobre alguns elementos compreensíveis o intérprete esboça um projeto de significado para todo o texto. Este projeto deve ser corrigido progressivamente, à medida que o intérprete decifra o texto. A estrutura circular permite que o todo seja apreendido do exame das partes, assim como o significado das partes só pode ser definido quando se compreende o todo. Esta noção de estrutura circular já está presente desde a retórica antiga, quando se comparava o discurso perfeito com o corpo orgânico com a relação entre cabeça e os membros. Foi utilizada por Lutero e seus seguidores para compreender o significado da Sagrada Escritura e também por Schleiermacher.

Heidegger, por sua vez, afirma existir uma estrutura anterior à compreensão, ou seja, uma pré-compreensão que o intérprete põe em ação ao desenvolver suas atividades interpretativas. Para explicá-la utiliza a noção do círculo hermenêutico, descrevendo a forma de realização da própria interpretação compreensiva, pois esta estrutura circular tem um sentido ontológico positivo. Toda interpretação correta tem que se proteger contra arbitrariedades e contra a limitação dos hábitos imperceptíveis do pensar, ou melhor, seus conhecimentos e concepções prévias, devendo a interpretação deixar-se determinar pela própria coisa, consistindo nisso, a tarefa primordial da interpretação compreensiva. Gadamer conclui:

Quem quiser compreender um texto realiza sempre um projetar. Tão logo apareça um primeiro sentido no texto, o intérprete prelineia um sentido do todo. Naturalmente que o sentido somente se manifesta porque quem lê o texto lê a partir de determinadas expectativas e na perspectiva de um sentido determinado. A compreensão do que está posto no texto consiste precisamente na elaboração desse projeto prévio, que, obviamente, tem que ir sendo constantemente revisado com base no que se dá conforme se avança na penetração do sentido.[13]

Assim, para Gadamer o processo de compreensão e interpretação é esse constante reprojetar, advindo do movimento da estrutura circular, denominada de círculo hermenêutico.

O autor em foco, no estudo da interpretação jurídica, influenciado pela obra de Hiedegger, confere lugar de destaque à perspectiva do intérprete no exercício interpretativo, considerando o intérprete como centro da atividade interpretativa. Interpretar é assim, um ato produtivo, pois precisamos compreender, e para tal é preciso uma pré-compreensão, ou seja, uma estrutura prévia do sentido que une todas as partes do sistema.

Mas, é a condição de ser-no-mundo do ser-aí (Dasein) que vai determinar o sentido do texto. Streck elucida:

A compreensão que o Dasein tem de si mesmo e que nasce da compreensão do ser, significa dizer que o mensageiro já vem com a mensagem. No conto está o contador. […] O Dasein, o ser-aí, o homem, antecipa as condições de chegada a um sentido do mundo. A compreensão desse sentido do mundo, é dizer, a compreensão do ser, é dado pelo modo de ser-no-mundo; e o Dasein será esse modo de ser-no-mundo.[14]

Assim, o intérprete não é mero figurante e expectador no processo interpretativo que vai desvendar o sentido que o autor do texto verdadeiramente imprimiu, mas sim, o ator principal. A hermenêutica filosófica que Gadamer constrói não se limita a investigar o que intérprete pensa ou quer, mas sim, o que determina seu pensamento, suas idéias.

Voltando à questão principal, é possível reafirmar a essa altura, que as normas sobre interpretação e integração do Direito Tributário, dispostas em capítulo próprio no CTN, são além de ambíguas e contraditórias, insuficientes. É, no mínimo, desaconselhável se estabelecer num texto normativo quais elementos o intérprete deve levar em consideração ao interpretar a norma tributária. Não é por outro motivo que Gilberto Ulhôa Canto, em artigo já mencionado neste trabalho, afirmava que neste ponto o CTN errou, pois se discute “sobre a possibilidade de a lei estabelecer regras de interpretação”, pois, “muitos autores acham que interpretação é operação puramente mental de aplicar a lei”, e, portanto, “a lei não poderia dizer como é que ela deve ser aplicada” [15].

Não obstante um número sem fim de autores que se debruçaram sobre o tema da interpretação do Direito, dedicamos o capítulo a Gadamer por seu pensamento representar uma ruptura da hermenêutica tradicional, apontando para uma nova hermenêutica, inserindo o intérprete como figura central no processo hermenêutico.

Um ponto a ser abordado ainda, é o destinatário da norma estatuída no art. 108 do CTN, objeto de nosso estudo. Aliomar Baleeiro afirma que “o dispositivo se refere à autoridade competente, parecendo alcançar só os agentes do Fisco”.[16] Paulo de Barros Carvalho inclui os juízes, autoridade competente para aplicar a legislação tributária.[17]

Já dissemos que a interpretação e a integração são dois fenômenos que não podem ser diferenciados de forma definitiva. E mais. A compreensão e a aplicação também fazem parte do mesmo processo, de modo que devem ser entendidos como momentos do processo hermenêutico. Gadamer mais uma vez vem em nosso auxílio, ao afirmar “que a aplicação é um momento do processo hermenêutico, tão essencial e integrante como a compreensão e a interpretação”.[18] Assim, podemos concluir que intérpretes são aqueles que aplicam a norma, ou seja, os magistrados, administradores, advogados, contadores, planejadores fiscais, contribuintes. É impossível delimitar todos aqueles que compreendem, interpretam, integram e aplicam a norma. Ricardo Lobo Torres[19] ainda nos lembra de Peter Häberle, que cunhou a expressão sociedade aberta dos intérpretes da Constituição, significando que é a sociedade aberta e pluralista que interpreta a Constituição, constituindo-se numa idéia perfeitamente aplicável no direito tributário. Assim, é a sociedade como um todo que compreende, interpreta, integra e aplica a norma tributária, consistindo um contra-senso se entender que a norma em estudo dirige-se somente à autoridade.

3.A INTEGRAÇÃO DO DIREITO

O positivismo, movimento de idéias que surgiu na Europa no século XIX, pretendeu abolir qualquer idéia metafísica do mundo da Ciência do Direito, restringindo-a ao mundo dos fatos. No campo do Direito, as leis estavam reduzidas aos fatos, remetendo os valores ou exigências éticas ao mundo das crenças pessoais e das convicções morais, não podendo, portanto, ser cientificizados. A ciência do Direito foi então erigida como verdadeira ciência, pois se fundava sobre fatos indubitáveis, tal qual as ciências da natureza.

O Direito do ponto de vista positivista, é entendido então, como um mundo restrito, onde se reconhece como jurídico somente o que está contido nas normas, considerando o que está fora delas como um mundo a-jurídico. O Direito é um todo coerente e fechado. Não há espaços a serem preenchidos. O direito desconhece a lacuna.

Só a partir do início do século XX, é que se passou a admitir que o Direito seria incapaz de conter respostas para todos os casos. O desenvolvimento industrial, o desenvolvimento das ciências de um modo geral, somado-se ao crescimento demográfico, não podia ser acompanhado pela produção legislativa, sobretudo pela dificuldade desta se antecipar àquela. Assim, o Direito passou a admitir a possibilidade de lacunas, incapaz de atender todas as demandas da sociedade, admitindo sua incompletude. Haviam espaços a serem preenchidos. Reconheceu-se, então, aos juízes o poder de colmatarem lacunas.

Para chegar a um conceito de lacuna, Larenz[20] afirma que é preciso distingui-las do silêncio eloqüente e do espaço livre do Direito. Para este autor, o silêncio eloqüente se dá quando o legislador intencionalmente não inclui disposições a respeito de um determinado assunto, preferindo dispor em outro diploma legal e em outro momento. Espaço livre do Direito por sua vez, ocorre quando um setor da vida coletiva deixa de ser regulado, como os fenômenos e modos de comportamento de foro interno, as crenças, opiniões, os pensamentos, entre outros.

Para Canaris, lacuna é “uma incompletude contrária ao plano dentro do direito positivo (isto é, da lei, no quadro do seu sentido vocabular possível e do direito consuetudinário), determinada pelo critério do ordenamento jurídico global vigente”.[21] Larenz entende de modo semelhante, pois o termo lacuna faz referência a um caráter incompleto do ordenamento, acrescentando, com argúcia, que só se pode falar em lacuna da lei quando esta aspira a uma regulação para um determinado setor, que é, em certa medida, completa. Assim, o conceito de lacuna está em estreita relação “com as aspirações a uma codificação global completa do Direito”.[22]

Da lição do mestre conclui-se que a constatação da lacuna de um certo ordenamento jurídico só é possível depois de um exame aprofundado desse mesmo ordenamento jurídico, que deve, previamente pretender uma codificação abrangente.

O art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil estabelece que na omissão da lei, “o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. Nessa esteira, vemos o art. 108 do CTN prever que somente “na ausência de disposição expressa”, poderá a autoridade utilizar a analogia, os princípios de direito tributário e de direito público e a eqüidade. Esse é o tema da nossa reflexão nos tópicos a seguir.

3.1.A ANALOGIA

A analogia é o meio mais freqüente de preenchimento de lacunas. Pode-se dizer que á a transposição de uma regra, dada na lei para uma hipótese legal, numa outra hipótese não regulada na lei. Assim, as duas situações devem apresentar semelhanças, embora estas semelhanças não sejam suficientes para que se dê o preenchimento da lacuna. É preciso também que haja uma concordância nos aspectos decisivos para a valoração jurídica, não sendo suficiente o auxílio de categorias lógicas de identidade e não-identidade, bem como existir o esclarecimento dos aspectos decisivos da valoração expressa na regulação legal. “Na analogia jurídica trata-se sempre, portanto, de um processo valorativo e não unicamente de uma operação mental lógico-formal”.[23] Será fundamental, portanto, se conhecer quais elementos da hipótese legal regulada na lei são importantes para a valoração legal, e porque é que o são, recorrendo-se para tanto aos fins da regulação legal, ou seja, à ratio legis. Somente dessa forma, é possível uma avaliação da norma que será aplicada no caso em que a lei não dá uma resposta imediata com vistas a solucionar o caso concreto.

A essa transposição de uma regra dada para uma hipótese legal para outra semelhante, considerando a ratio legis da lei, dá-se o nome de analogia legis, que sempre se admitiu. Dela se distingue a analogia juris, quando se infere um princípio jurídico legal que se ajusta tanto à hipótese não regulada na lei como às hipóteses reguladas. Novamente Karl Larenz vem em nosso auxílio:

O retroceder de todas as disposições particulares à ratio legis possibilita a formulação de um princípio jurídico geral, que ‘é esclarecedor’ pelo conteúdo de justiça material a ele inerente e se comprova jurídico-positivamente pelos casos regulados na lei em concordância com ele.[24]

Assim, enquanto na primeira hipótese, na analogia legis, se admite a transposição de uma lei aplicável numa dado caso, a um caso semelhante na qual não há previsão legal, na segunda hipótese se admite o preenchimento da lacuna por meio de princípios aplicáveis aos dois casos.

O Direito brasileiro acompanhou o Direito estrangeiro não admitindo a analogia no Direito tributário, conforme o pensamento de Rubens Gomes de Souza, Alfredo Augusto Becker, Alberto Xavier, entre muitos outros. Tal pensamento não se consolidou no direito nacional, conforme o texto de Amílcar Falcão[25]: “A interpretação moderna da lei tributária, pois, admite todos os meios e processos consentidos pelos demais ramos do direito”.  No entanto, continua o autor “cabe excluir a aplicação analógica da lei, toda vez que dela resulte a criação de um débito tributário”, antecipando-se assim, à idéia do parágrafo primeiro do mesmo artigo 108 do CTN, que proíbe a analogia que resulte em tributo não previsto em lei.

Ricardo Lobo Torres explicita parâmetros para a analogia:

A analogia no Direito Tributário deve observar alguns parâmetros importantes: só se utiliza quando insuficiente a expressividade das palavras da lei; é necessário que haja semelhança notável entre o caso emergente e a hipótese escolhida para a comparação; beneficia assim mais o fisco que o contribuinte.[26]

Os tribunais, por sua vez, foram chamados a decidir alguns casos levando em conta a analogia. O Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, entendeu ser impossível a utilização da analogia in malam partem para impor limitação ao direito de compensação de crédito tributário não prevista na legislação tributária, pois o direito à compensação é consectário das cláusulas pétreas constitucionais e suas limitações devem ser interpretadas restritivamente, conforme se percebe a seguir:

EmentaTRIBUTÁRIO. FINSOCIAL. COMPENSAÇÃO. LEI N.º 8.383/91. LIMITAÇÕES DA LEI N.º8.212/91, ALTERADA PELAS LEIS N.ºS  9.032/95 E 9.129/95. INAPLICABILIDADE.1. O art. 66, da Lei n.º 8.383/91, admite a compensação de tributos e contribuições da mesma espécie tributária e mesma destinação, quando pagos indevidamente, como, in casu, o FINSOCIAL, cuja majoração foi declarada inconstitucional pelo STF. […]4. Ora, o pagamento de tributo obedece ao Princípio da Legalidade. Se é considerada a exação inconstitucional, o mesmo princípio (o da legalidade) autoriza o seu não pagamento bem como sua compensação integral.5. Em conseqüência, não é lítico ao intérprete imprimir analogia in malam partem para impor limitação de compensação não prevista em legislação específica, assemelhando, neste ponto, ao regime de contribuições sociais diversas, como a COFINS e o FINSOCIAL.6. O direito à compensação é consectário das cláusulas pétreas constitucionais e suas limitações devem ser interpretadas restritivamente. […]9. Recurso provido para afastar as limitações impostas à compensação do FINSOCIAL com a COFINS.Decisão

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, dar provimento ao recurso, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Humberto Gomes de Barros, José Delgado e Francisco Falcão votaram com o Sr. Ministro Relator. [27]

Os tribunais, assim, não admitem a analogia gravosa, embora esta possibilidade já tenha sido defendida a partir da década de 80, no século passado, na Alemanha, quando admitiram o uso da analogia para a criação do crédito tributário.[28]

Uma dificuldade na aplicação da analogia é a sua distinção em relação à interpretação extensiva. As palavras de Engisch revelam esta dificuldade, quando assevera que

[…] nem sempre é fácil descobrir a correcta linha de fronteira entre a interpretação e a analogia. De um modo geral podemos dizer: a analogia insere-se por detrás da interpretação, por detrás mesmo da interpretação extensiva. Se, para a interpretação, se assenta na regra de que ela encontra o seu limite lá onde o sentido possível das palavras já não dá cobertura a uma decisão jurídica (HECK: “O limite das hipóteses de interpretação é o ‘sentido possível da letra’”), é neste limite que começa a indagação de um argumento de analogia. Seja-nos permitido lembrar uma vez mais o exemplo do avestruz, que nem mesmo com a melhor das boas vontades pode ser enquadrado per interpretacionem no conceito de “quadrúpedes”, pois que a isso se opõe o sentido literal. […] Seguramente, pois, que a linha limítrofe entre a interpretação (especialmente a interpretação extensiva), por um lado, e a analogia, pelo outro, é fluida. [29]

Outra dificuldade na aplicação da analogia é a distinção entre lacuna intra legem, que decorrem das enumerações numerus apertus, admitindo interpretação extensiva, e a lacuna praeter legem, suscetível de integração analógica. O Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, decidiu pela interpretação extensiva da listagem do ISS, com relação a cada um dos itens constantes da lista, asseverando que a lista é numerus clausus, inadmissível, portanto, o acréscimo de qualquer serviço por meio da analogia, conforme a decisão abaixo:

EmentaTRIBUTÁRIO.  ISS.  SERVIÇOS ACESSÓRIOS PRESTADOS POR BANCOS.  NÃO INCIDÊNCIA.  LISTA ANEXA AO DECRETO-LEI Nº 406/68.  TAXATIVIDADE.Os serviços bancários não incluídos na lista anexa ao Decreto-lei nº 406/68 não possuem caráter autônomo, pois inserem-se no elenco das operações bancárias originárias, executadas, de forma acessória, no propósito de viabilizar o desempenho das atividades-fim inerentes as instituições financeiras.A lista de serviços anexa ao Decreto-lei nº 406/68 é taxativa, não se admitindo, em relação a ela, o recurso a analogia, visando a alcançar hipóteses de incidência diversas das ali consignadas. Precedentes.

Recurso improvido, sem discrepância.

Decisão

Vistos e relatados os autos em que são partes as acima indicadas, decide a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao recurso, na forma do relatório e notas taquigráficas constantes dos autos, que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.  Participaram do julgamento os Srs. Ministros HUMBERTO GOMES DE BARROS, MILTON LUIZ PEREIRA, JOSÉ DELGADO e GARCIA VIEIRA.  Custas, como de lei. [30]

Não obstante o entendimento do Colendo Tribunal, as dificuldades persistem quando se trata de lacuna praeter legem.

A utilização da lacuna, a despeito da permissão normativa, é de pequena aplicação no Direito tributário, até mesmo em homenagem ao princípio da legalidade, que confere segurança ao contribuinte. Por sua vez, não admiti-la na atualidade, seria sedimentar um caminho à injustiça. De outro modo, permitindo-se hoje a analogia juris, se confunde com a permissão dos incisos II e III do mesmo artigo 108 do CTN. É o ponto que será analisado em seguida.

3.2.OS PRINCÍPIOS GERAIS DE DIREITO TRIBUTÁRIO E DE DIREITO PÚBLICO

Se atentarmos para a redação do caput do art. 108 do CTN, percebe-se que este estabelece uma ordem no preenchimento de lacunas, tendo em vista que o texto fala em “sucessivamente”, sendo possível afirmar que o diploma complementar prevê uma hierarquia de métodos para preenchimento de lacunas. Tal exigência, entretanto, não resiste a um exame mais aprofundado, pois como já dissemos, a distinção entre tais métodos é muito fluída[31], uma vez que em todos os métodos o raciocínio analógico leva em conta as valorações expressas no texto legal, a ratio legis, bem como os princípios gerais do Direito. A eqüidade por sua vez, abrange os princípios gerais do Direito, visando a aplicação da justiça ao caso concreto. Por fim, esta hierarquização não se sustenta sobretudo porque não prevalece o raciocínio indutivo nem o raciocínio dedutivo.[32]

O art. 108 do CTN recomenda que o intérprete proceda ao preenchimento analógico utilizando os princípios gerais de Direito tributário e de Direito público. Optamos por analisar estes dois incisos num mesmo tópico, em razão da impossibilidade de se delimitar, com precisão, tais princípios. Hodiernamente não se recomenda a distinção por ramos do Direito, até mesmo porque se entende que são princípios do Direito, e, portanto, suscetível de serem utilizados em qualquer ramo do Direito. A doutrina admite que haja uma prevalência dos princípios constitucionais, uma vez que a Constituição é a norma superior do ordenamento jurídico.

A expressão “princípios gerais do Direito” pode ser entendida conforme prevaleça a visão jusnaturalista, quando se permite a utilização de princípios suprapositivos, ou a positivista, que permite a utilização de princípios expressos nas leis vigentes. Os positivistas criaram a distinção entre analogia legis e analogia juris, para condenar esta última, que a doutrina em tempos mais recentes recuperou com vistas à obtenção da ratio legis ou dos princípios gerais do Direito.

Os princípios, na atualidade, estão sendo exaustivamente examinados e debatidos, ganhando relevância, nos últimos tempos, as obras de Larenz, Esser, Dworkin e Alexy, entre tantos outros.

Dworkin, num “ataque geral contra o posistivismo” denomina princípio como “um padrão que deve ser observado […] porque é uma exigência de justiça ou eqüidade ou alguma outra dimensão da moralidade” [33], separando em categorias distintas as regras jurídicas e os princípios, indicando uma diferença entre essa categorias de natureza lógica. As regras, assevera o autor, são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada, de modo que num fato estipulado pela regra se reconhece ou que é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão. Já os princípios têm uma dimensão de peso ou importância e, quando se confrontam deve o intérprete levar em conta a força relativa de cada um, ao contrário dos conflitos entre regras, quando uma delas não pode ser válida.

O pensamento de Alexy também aponta pelo mesmo caminho, quando diz que havendo colisão entre princípios a solução está numa ponderação destes mesmos princípios colidentes, “em função da qual um deles, em determinadas circunstâncias concretas, recebe a prevalência”.[34] No entanto, para Alexy, a diferença entre princípios e regras se dá de duas formas: quanto à colisão, pois os princípios colidentes têm sua realização normativa limitada reciprocamente, enquanto as regras colidentes encontram solução na declaração de invalidade de uma delas; e, quanto à obrigação que instituem, uma vez que as regras instituem obrigações absolutas enquanto os princípios instituem obrigações prima facie, podendo ser derrogadas em função de outros princípios.[35]

Como se depreende do exposto, na atualidade, os princípios jurídicos assumem um lugar de destaque para o intérprete, de modo que todos eles podem e devem ser usados com vistas a solução mais justa.

Concluindo, as palavras de Ricardo Lobo Torres resumem o pensamento atual da doutrina: “Pouco importa que os princípios sejam escritos ou implícitos, positivos ou suprapositivos: podem ser apreendidos pela doutrina, pelo legislador e pela jurisprudência, por indução ou dedução a partir da natureza das coisas ou da idéia do direito”.[36]

3.3.A EQÜIDADE

Nem sempre a relação entre a lei e o caso concreto é uma relação constante e imutável. O legislador, ao elaborar a lei, pretende que aquele texto represente os padrões de conduta das pessoas, que a norma reflita o comportamento médio do homem, ou ao menos o mais freqüente. Todavia, nem sempre isso ocorre, afigurando-se uma realidade discrepante em relação ao preceito legal.[37] Quando isso ocorre, cabe ao juiz aplicar a lei segundo sua forma de ver e entender o fato, ou melhor, deve interpretar a lei levando em consideração o fato e aplicá-la. Pensa-se assim, em eqüidade, na concretização do ideal de justiça ao caso concreto. De forma sucinta, Aliomar Baleeiro[38] afirma que “pela eqüidade, o intérprete e o aplicador não só suprirão a lei silente mas também interpretarão e adaptarão a lei que se apresentar absurda, em sua impersonalidade e generalidade abstrata, para as condições inusitadas do caso especial concreto”.

O CTN, em duas oportunidades – art. 108, IV e art. 172, IV – trata da eqüidade. Cumpre ressaltar, entretanto, que as duas hipóteses são distintas, pois enquanto a primeira se refere à integração do Direito, a segundo nos remete à correção do Direito.

O art. 172 do CTN prevê a concessão de remissão, perdão do crédito tributário, quando recomendem as considerações de eqüidade, levando em consideração as características de natureza pessoal do contribuinte ou materiais do caso particular. A eqüidade prevista neste dispositivo complementar filia-se ao conceito aristotélico de eqüidade como forma de correção do texto legal iníquo frente à situação individual, desenvolvido na Retórica, e que se distingue do conceito de eqüidade como forma de integração do Direito previsto no art. 108 do mesmo diploma legal, examinado na Ética a Nicômaco.[39]

Realiza-se uma correção contra legem, quando a lei se mostra insuficiente em razão do seu caráter geral que não atende à especificidade daquele caso concreto. “Na verdade, o erro não está na lei. O caso prático é que está fora do seu alcance”.[40]

Em se tratando do art. 108, IV do CTN já não podemos falar em correção do Direito e sim, em integração do Direito. E, neste caso, o dispositivo é dispensável, pois para fins de integração a eqüidade precisa fazer uso dos princípios gerais do Direito, já tratados nos inciso II e III do mesmo dispositivo legal.

A eqüidade como método de integração tem pouca aplicação no Direito Tributário, uma vez que se submete ao principio da legalidade, que objetiva conferir segurança jurídica ao sujeito passivo da obrigação tributária. Via de regra, a eqüidade se verifica quando o legislador utiliza conceitos indeterminados, conceitos normativos, que dependem de valoração por parte do intérprete, ou ainda, quando admite a discricionariedade judicial e administrativa, o que na maior parte das vezes não é possível, vez que o legislador, quando se trata de Direito Tributário opta por conceitos determinados, enumerações exaustivas, tudo em homenagem ao princípio da legalidade.

É preciso ressaltar que a eqüidade no Direito Tributário se verifica principalmente no processo legislativo. É na elaboração da lei que o legislador deve se preocupar com a eqüidade devendo incorporar na lei a maior distinção possível das situações particulares, aplicando, para tanto, o princípio da personalização, da seletividade, da progressividade dos tributos mediante o recurso das enumerações exemplificativas, dos conceitos indeterminados, normativos, entre outros. Agindo assim, o legislador pode prevenir eventuais injustiças na aplicação da lei aos casos concretos, pois no processo de elaboração jurídica os valores perseguidos devem ser a dignidade da pessoa, a justiça, o respeito à propriedade privada, entre outros.[41]

Ao comentar o § 2º do art. 108, que veda a eqüidade para dispensar o pagamento de tributo devido, Ricardo Lobo Torresafirma que a norma é contraditória e redundante, pois se a eqüidade é forma de preenchimento de lacuna, não pode obviamente, resultar na dispensa de tributo, pois quando há lacuna, não há tributo e, portanto não cabe falar em dispensa. [42]

Concluindo, o dispositivo em questão – art. 108, IV do CTN – é dispensável não só porque causa confusão com o art. 172 do mesmo diploma complementar, que como vimos, tem fundamento distinto, como também tem pouca utilidade no Direito Tributário, que em nome da segurança jurídica, dá pouca margem à utilização da eqüidade. Ademais, como a eqüidade vai utilizar princípios gerais do Direito para colmatar lacunas, estes poderão ser utilizados de acordo com a autorização expressa no mesmo dispositivo legal.

CONCLUSÃO

Ao iniciar o presente trabalho, afirmamos que o dispositivo em estudo, o art. 108 do CTN, era dispensável, pois não resistia a um exame mais detalhado de suas implicações. É preciso ressaltar que o CTN foi aprovado no ano de 1966, quando o nosso país vivia um estado de exceção, em virtude de um golpe militar. Era o primado da segurança jurídica que se impunha a despeito da justiça, restringindo a liberdade do juiz na interpretação. Neste sentido, as palavras de Karl Larenz:

Uma época que identifica o Direito com a lei e esta com a vontade do legislador, assim como uma concepção instrumental do Direito ou uma concepção para a qual valem mais a segurança jurídica e a calculabilidade das resoluções do que a justiça, propende a reduzir a faculdade do juiz em relação à interpretação das leis e a negar o desenvolvimento aberto do Direito. [43]

Neste caso, o Direito se confunde com a lei. E esta idéia não é nova. No Iluminismo, se pensava que seria possível estabelecer uma clareza e segurança jurídica absoluta mediante normas rigorosamente criadas, garantindo uma absoluta univocidade a todas as decisões judiciais e a todos os atos administrativos.[44] Assim, os juízes eram meros aplicadores do direito, realizando uma função subsuntiva apenas. Este pensamento deveu-se sobretudo à grande desconfiança em relação aos juízes, que em certa época, aderiram às instruções dos senhores da terra, inclusive porque o espírito racionalista da época, que se alinhava com a adoração à lei, permitiu esta vinculação do juiz à lei. Proibia-se que juízes interpretassem e comentassem a lei, tornando-se assim, um escravo da lei. Este espírito adentrou o século XIX e foi utilizado em ocasiões distintas, e principalmente quando se está diante de um estado absolutista.

Tal pensamento não pode subsistir na atualidade, quando se está diante de um Estado Democrático de Direito. O Judiciário conquista, na Constituição da República de 1988, sua autonomia administrativa e financeira, confere garantias funcionais aos juízes, erige como direito fundamental a imparcialidade dos juízes, o due process of law, a ampla defesa e o contraditório, proíbe os tribunais de exceção, e estabelece como um dos fundamentos deste Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana.

Desse modo é possível concluir que todo o processo hermenêutico, incluindo a compreensão, a interpretação, a integração e aplicação do Direito, está vinculado a valores, aos princípios gerais do Direito, podendo também ser compreendido como um dos caminhos para a concretização desses valores. O grande dissídio da atualidade é um desafio para o intérprete: equilibrar justiça e segurança jurídica. De modo semelhante, deve o intérprete equilibrar os princípios jurídicos, harmonizando-os com a idéia de justiça e segurança.

As normas de interpretação do Direito Tributário, em especial a norma do art. 108 do CTN, não acrescentam grande significado para o equilíbrio entre os princípios e as idéias jurídicas fundamentais, já que os valores não podem ser traduzidos de forma normativa e a sua concretização depende da qualidade do ordenamento jurídico e da prática interpretativa.[45] Há na verdade, um descompasso do art. 108 com os valores jurídicos que fundamentam o Estado Democrático de Direito. Produto de uma vontade política que teimou em controlar a atividade dos juízes, o dispositivo está ideologicamente comprometido, e deste ponto de vista é inútil. Pode-se falar então em invalidade, em virtude de sua ineficácia. Para Ricardo Lobo Torres, sua legitimidade está conspurcada exatamente porque permite um desequilíbrio no sistema dos valores jurídicos e dos poderes do Estado.[46]

O equilíbrio entre segurança jurídica e justiça é o desafio maior do intérprete, que deve buscar a justiça com segurança e garantir a ordem jurídica com justiça. O mesmo sucede quando se trata de princípios gerais do Direito, cabendo ao intérprete harmonizá-los, e em se tratando de Direito Tributário, deve harmonizar capacidade contributiva, legalidade, igualdade, tipicidade, entre outros.

 

Referências
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. São Paulo: Malheiros, 2003.
BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1995.
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TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
________ . A Integração entre a Lei e a Jurisprudência em Matéria Tributária. Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas, 3: 7-20, 1993.
Notas:
[1] GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, primeira parte, X.
[2] TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário, p. 33.
[3] LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito, p. 454.
[4] Idem. Ibidem, p. 519.
[5] CANTO, Gilberto Ulhôa. Legislação tributária, sua vigência, sua eficácia, sua aplicação, interpretação e integração. Revista Forense, 267: 25-30, 1979.
[6] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, p.1.
[7] LARENZ. Metodologia da Ciência do Direito, p. 10.
[8] Idem. Ibidem, p. 16.
[9] Idem. Ibidem, p. 59.
[10] GADAMER, Hans Georg. O Problema da Consciência Histórica, p. 30.
[11] Idem. Ibidem.
[12] Idem. Ibidem. p. 31.
[13] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método, p. 402.
[14] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica, p. 170 e 176
[15] CANTO, Gilberto Ulhôa. Legislação tributária, sua vigência, sua eficácia, sua aplicação, interpretação e integração. Revista Forense, 267:30, 1979.
[16] BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro, p.432.
[17] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário, p. 77.
[18] GADAMER. Verdade e Método, p. 460
[19] TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário, p. 111.
[20] LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, pp. 525 e 526.
[21] ENGISCH, Introdução ao Pensamento Jurídico, p. 343.
[22] LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, p. 526.
[23] Idem. Ibidem, p. 541.
[24] Idem. Ibidem, p. 546.
[25] FALCÃO, Amílcar. Revista de Direito Administrativo, 40: 24-37, 1955.
[26] TORRES, Normas de Interpretação e Integração no Direito Tributário, p. 120.
[27] RESp. 415705/Minas Gerais, de 01/04/03, rel. Min. Luiz Fux.
[28] TORRES, Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário, p. 138.
[29] ENGISCH, Introdução ao Pensamento Jurídico, p. 294.
[30] RESp. 192635/Rio de Janeiro, de 29/04/99, rel. Min. Demócrito Reinaldo. Acrescente-se que os arts. 8º, 10, 11 e 12 do DL 406/68 foi recentemente revogado pela Lei Complementar 116 de 31/07/2003, trazendo nova lista de serviços anexa ao diploma complementar. No entanto, a doutrina pátria ainda aplica o entendimento expressado na decisão do Superior Tribunal de Justiça.
[31] TORRES, Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário, p.120; ENGISCH, Introdução ao Pensamento Jurídico, p. 294.
[32] TORRES, Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário, p.116.
[33] DWORKIN, Levando os Direitos a Sério, p. 35 e ss.
[34] ÁVILA, Teoria dos Princípios, p. 29.
[35] Idem. Ibidem, p. 30.
[36] TORRES, Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário, p.130.
[37] PIRES, Contradições no Direito Tributário, p. 30-33.
[38] BALEEIRO, Direito Tributário Brasileiro, p.440.
[39] TORRES, Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário, p. 40; PIRES, Contradições no Direito Tributário, p. 41.
[40] PIRES, Idem. Ibidem, p. 39.
[41] Idem. Ibidem, p. 43.
[42] TORRES, Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário, p.184.
[43] LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, p. 521.
[44] ENGISCH, Introdução ao Pensamento Jurídico, p. 206.
[45] TORRES, Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário, pp. 341-345.
[46] Idem. Ibidem, p. 275.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Débora da Silva Roland

 

Coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Monografia do Curso de Direito da Universidade Santa Úrsula e Professora da SUESC

 


 

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