Resumo: O breve estudo aborda o conceito de cláusula pétrea e sua relação com a imunidade tributária.
IMUNIDADE TRIBUTÁRIA E AS CLÁUSULAS PÉTREAS
Inicialmente, mister se faz tratar da analiticidade constitucional, objetivando conceituar cláusulas pétreas. Pois bem, a característica analítica da Constituição implica a abordagem exaustiva de normas de caráter fundamental. Nesta seara, Paulo Bonavides disserta com notável propriedade sobre o tema:
“As Constituições se fizeram desenvolvidas, volumosas, inchadas, em conseqüência principalmente de duas causas: a preocupação de dotar certos institutos de proteção eficaz, o sentimento de que a rigidez constitucional é anteparo ao exercício discricionário da autoridade, o anseio de conferir estabilidade ao direito legislado sobre determinadas matérias e, enfim, a conveniência de atribuir ao Estado, através do mais alto instrumento jurídico que é a Constituição, os encargos indispensáveis à manutenção da paz social.”[1]
O caráter analítico constitucional não escapou do crivo da doutrina de Sarlet:
“O procedimento analítico do Constituinte revela certa desconfiança em relação ao legislador infraconstitucional, além de demonstrar a intenção de salvaguardar uma série de reivindicações e conquistas uma eventual erosão ou supressão pelos Poderes constituídos.”[2]
A analiticidade constitucional confere ao Texto proteção sobre determinadas matérias, entre elas a tributária[3], visando à estabilidade da Ordem Jurídica Constitucional para bloquear a atuação do Legislador Infraconstitucional, “por razões de descontentamento e insegurança do povo tanto em relação àqueles que têm a função de elaborar a lei quanto àqueles que têm por função aplicá-la”.[4]
A característica analítica constitucional induz à rigidez constitucional, que impõe um processo mais complexo e dificultoso se comparado à elaboração de veículos normativos infraconstitucionais, no que se refere à sua modificação. Apesar da rigidez constitucional, outra característica é a mutabilidade através de processos legislativos especiais. Versando sobre o assunto, Manoel Gonçalves Ferreira Filho pondera:
“[…] a doutrina polêmica da Constituição pretendia que esta fosse imutável, ou ao menos só se alterasse por um processo especial, distinto de modo ordinário do estabelecido de regras jurídicas. Assim, gozariam de uma estabilidade especial, seriam rígidas. Deveu-se reconhecer, porém, que o conceito Constituição escrita não equivalia ao de Constituição rígida. Na verdade, pôde-se notar que as Constituições escritas, como o Estatuto Albertino, Constituição do reino da Itália, eram modificáveis por meio de leis ordinárias. Desse modo, o conceito Constituição rígida teve de ser restringido, empregando-se o mesmo para designar dentre as Constituições escritas aquelas que só se alteram mediante processos especiais.”[5]
José Afonso da Silva, trabalhando com a aplicabilidade das normas constitucionais, conceitua a rigidez constitucional da seguinte forma:
“O conceito de rigidez, consubstanciado na imutabilidade relativa da constituição, é de fundamental importância na teoria do direito constitucional contemporâneo. Funciona como pressupostos: a) do próprio conceito de constituição em sentido formal; b) da distinção entre normas constitucionais e normas complementares e ordinárias; c) da supremacia formal das normas constitucionais. Constitui, também, suporte da própria eficácia jurídica das normas constitucionais. Se estas pudessem ser modificadas pela legislação ordinária, sua eficácia ficaria irremediavelmente comprometida.”[6]
Trazendo o conceito de rigidez constitucional do Texto de 1988, Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior sustentam[7]:
“A Constituição que exige para sua alteração um critério mais solene e difícil do que o processo de elaboração da lei ordinária. Exemplo de Constituição rígida é a brasileira. Essa rigidez pode ser verificada pelo contraste entre o processo legislativo da lei ordinária e da emenda constitucional. Enquanto aquele se submete às regras da iniciativa geral (art. 61 da CF) e à aprovação por maioria simples, a outra reclama iniciativa restrita (art. 60 da CF) e aprovação por maioria qualificada de três quintos. Vê-se, por esse e por outros aspectos, que é muito mais fácil aprovar uma lei ordinária do que uma emenda constitucional.”[8]
Nessa seara, a rigidez constitucional celebra as chamadas cláusulas pétreas, por traduzir a impossibilidade do Poder Constituinte Derivado Reformador de alterar as disposições constitucionais que exprimam garantias fundamentais:
“O poder constituinte originário também estabeleceu algumas vedações materiais, ou seja, definiu um núcleo intangível, comumente chamado pela doutrina de cláusulas pétreas.[9]
(i) a forma federativa de Estado; (ii) o voto direto, secreto, universal e periódico; (iii) a separação dos Poderes; e (iv) os direitos e garantias individuais.”[10]
Adriana Zawada Melo, em importante lição, assevera sobre as cláusulas pétreas:
“[as] “cláusulas pétreas”, representam o núcleo intangível de uma Constituição, gravado com uma cláusula de eternidade (em alemão, ewigkeitsgarantien), a fim de conferir uma força especial, frente às eventuais reformas, aos princípios de maior importância na manutenção da decisão política fundamental, base de determinada Constituição. Essas cláusulas de garantia ou de irreversibilidade gozam, como diz Oscar Vilhena Vieira, de uma superconstitucionalidade (no sentido de possuir uma rigidez maior), o que impede que os princípios alçados à condição de cláusulas intangíveis, de serem suprimidos ou desfigurados, podendo apenas ser admitida a sua reestruturação ou ampliação”.[11]
Essa imutabilidade representa uma muralha imposta pelo legislador Constituinte originário para preservar a integridade formal e material da Constituição, inibindo modificações constitucionais que possam mutilar ou diminuir a eficácia dos preceitos constitucionais garantidores da harmonia jurídico-social:
“O significado último das clausulas pétreas está em prevenir um processo de erosão da Constituição. A cláusula pétrea não existe tão-só para remediar situação de destruição da Carta, mas tem a missão de inibir a mera tentativa de abolir o seu projeto básico. Pretende-se evitar que a sedução e de apelos próprios de certo momento político destrua um projeto duradouro.”[12]
Nessa seara, Kildare Gonçalves Carvalho disserta sobre o assunto em foco:
“Constituem o chamado cerne imodificável da Constituição, suas cláusulas pétreas. Expressam as opções que o constituinte originário elegeu, traduziu nas regras estruturadoras do edifício constitucional, que tratam do conteúdo, do teor do texto constitucional. (…)
A primeira limitação material, na Constituição de 1988, impede a mudança da forma federativa. Não se pode, portanto, transformar o Estado brasileiro em unitário, mesmo descentralizado.
Em seguida, a Constituição coloca a salvo o voto direto, secreto, universal e periódico, expressão do princípio democrático.
Constitui ainda óbice ao poder de reforma a separação de poderes. Trata-se de proibir a supressão de qualquer dos poderes do Estado – Legislativo, Executivo e Judiciário, bem como de resguardar as atribuições básicas de cada um deles.
Finalmente, os direitos e garantias individuais são imodificáveis por via de emenda à Constituição. Entendemos que se acham abrangidos, pela cláusula de irreformabilidade, quaisquer direitos fundamentais, como, por exemplo, os direitos sociais, bem como outros direitos fundamentais além daqueles declarados no Título II da Constituição.Também os direitos fundamentais decorrentes de tratados internacionais de que o Brasil seja parte, apesar da controvérsia doutrinária e jurisprudencial, têm, em nosso entender, eminência constitucional.”[13]
As cláusulas pétreas exprimem a impossibilidade, instituída pelo legislador constituinte, de modificar regras estruturais ou garantias constitucionais. Essa impossibilidade é vislumbrada nas normas que emitem os efeitos jurídicos da imunidade tributária. As normas imunizantes possuem um antecedente normativo que contém um ou mais direitos fundamentais, e no seu conseqüente há uma garantia de não nascimento da obrigação principal (sem o dever de pagamento de tributo, mas com dever de cumprir os deveres instrumentais). Como as imunidades possuem um antecedente que veicula direitos fundamentais, há nítida relação com a rigidez constitucional, pois as normas imunizantes, ao exprimirem os valores consagrados pelos direitos fundamentais, subsumem ao conceito de cláusulas pétreas[14]. Isto quer dizer que inexiste possibilidade de o legislador ordinário restringir, modificar (diminuir) ou mutilar (totalmente ou parcialmente) os preceitos fundamentais que versam sobre imunidade tributária. Este também é o entendimento de Roque Antônio Carrazza:
“[…] temos por indisputável que desobedecer a uma regra de imunidade equivale a incidir em inconstitucionalidade.
Nem a emenda constitucional pode anular ou restringir as situações de imunidade contempladas na Constituição.
Por muito maior razão, a ação do legislador ordinário, neste campo, encontra limites insuperáveis na Constituição.
Ora, se até o constituinte derivado e o legislador ordinário não podem ignorar as imunidades tributárias, por muito maior razão não poderá fazê-lo o aplicador das leis tributárias, interpretando-as, a seu talante, de modo a costeá-las. (…)
Em termos mais precisos, o direito à imunidade é uma garantia fundamental constitucionalmente assegurada ao contribuinte, que nenhuma lei, poder ou autoridade pode anular.”[15]
Nesta sintonia, José Souto Maior Borges aduz:
“Sistematicamente, através da imunidade resguardam-se princípios, idéias-força ou postulados essências ao regime político. Consequentemente, pode-se afirmar que as imunidades representam muito mais um problema do direito constitucional do que um problema do direito tributário. Analisada sob o prisma do fim, objetivo ou escopo, a imunidade visa assegurar certos princípios fundamentais ao regime, a incolumidade de valores éticos e culturais consagrados pelo ordenamento constitucional positivo e que se pretende manter livre das interferências ou perturbações da tributação.”[16]
Ainda sobre o tema em foco, Regina Helena Costa aduz:
“[…] quando a exoneração tributária é outorgada por uma Constituição, pretende-se seja perene. Se a Constituição é rígida, tal perenidade está assegurada em termos mais consistentes, diante do maior grau de dificuldade estabelecido para sua modificação. (…) No caso da Constituição Brasileira, no que tange às imunidades tributárias, a rigidez constitucional atinge seu grau máximo. Isto porque as normas imunizantes são cláusulas pétreas, autênticas limitações materiais ao exercício do Poder Constituinte Derivado”[17]
Entendidos os direitos fundamentais como cláusulas pétreas[18], os seus efeitos jurídicos também o serão. As imunidades tributárias são conseqüências jurídicas asseguradoras da eficácia de direitos fundamentais e também suportaram serem subsumidas ao conceito de cláusulas pétreas.
Trilhando nesse caminho, o STF entendeu que há vinculação das imunidades tributárias com os direitos fundamentais, donde resulta a impossibilidade da retirada dessas garantias constitucionais do Texto de 1988. Esse entendimento considera a imunidade tributária como garantia individual do contribuinte, conforme regra do artigo 60, § 4º, inciso IV, da Constituição de 1988.
“Ementa: Direito Constitucional e Tributário. Ação Direta de Inconstitucionalidade de Emenda Constitucional e de Lei Complementar. I.P.M.F. Imposto Provisório sobre a Movimentação ou a Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira – I.P.M.F. Artigos 5., par. 2., 60, par. 4., incisos I e IV, 150, incisos III, “b”, e VI, “a”, “b”, “c” e “d”, da Constituição Federal. 1. Uma Emenda Constitucional, emanada, portanto, de Constituinte derivada, incidindo em violação a Constituição originaria, pode ser declarada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua e de guarda da Constituição (art. 102, I, “a”, da C.F.). 2. A Emenda Constitucional n. 3, de 17.03.1993, que, no art. 2., autorizou a União a instituir o I.P.M.F., incidiu em vício de inconstitucionalidade, ao dispor, no parágrafo 2. desse dispositivo, que, quanto a tal tributo, não se aplica “o art. 150, III, “b” e VI”, da Constituição, porque, desse modo, violou os seguintes princípios e normas imutáveis (somente eles, não outros): 1. – o princípio da anterioridade, que e garantia individual do contribuinte (art. 5., par. 2., art. 60, par. 4., inciso IV e art. 150, III, “b” da Constituição); 2. – o princípio da imunidade tributaria reciproca (que veda a União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a instituição de impostos sobre o patrimônio, rendas ou serviços uns dos outros) e que e garantia da Federação (art. 60, par. 4., inciso I,e art. 150, VI, “a”, da C.F.); 3. – a norma que, estabelecendo outras imunidades impede a criação de impostos (art. 150, III) sobre: “b”): templos de qualquer culto; “c”): patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei; e “d”): livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão; 3. Em consequência, e inconstitucional, também, a Lei Complementar n. 77, de 13.07.1993, sem redução de textos, nos pontos em que determinou a incidência do tributo no mesmo ano (art. 28) e deixou de reconhecer as imunidades previstas no art. 150, VI, “a”, “b”, “c” e “d” da C.F. (arts. 3., 4. e 8. do mesmo diploma, L.C. n. 77/93). 4. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente, em parte, para tais fins, por maioria, nos termos do voto do Relator, mantida, com relação a todos os contribuintes, em caráter definitivo, a medida cautelar, que suspendera a cobrança do tributo no ano de 1993. (…)
A Emenda Constitucional nº 3, de 17/03/93, que, no art. 2º, autorizou a União a instituir o IPMF, incidiu em vício de inconstitucionalidade, ao dispor, no parágrafo 2º desse dispositivo, que, quanto a tal tributo, não se aplica ‘o art. 150, III, b e VI, da Constituição, porque, desse modo, violou os seguintes princípios e normas imutáveis (somente eles, não outros): (…). O princípio da imunidade tributária recíproca (que veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a instituição de impostos sobre o patrimônio, rendas ou serviços uns “dos outros) e que é garantia da Federação (art. 60, § 4º, inciso I,e art. 150, VI, a, da CF).”[19]
Relacionando os direitos individuais no campo tributário, Ricardo Alexandre analisa com propriedade o julgamento mencionado:
“No mesmo julgamento em que considerou o princípio da anterioridade garantia individual do contribuinte e, portanto, impossível de ser excetuado via Emenda Constitucional, o Supremo Tribunal Federal considerou também inconstitucional a previsão de que o novel Imposto Provisório sobre a Movimentação Financeira não seria sujeito à imunidade tributária recíproca, que impede que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituam imposto sobre o patrimônio, renda ou serviços uns dos outros
A Regra imunizante é verdadeiro corolário da federação, pois, a título de exemplo, se fosse lícito à União cobrar impostos sobre o patrimônio, renda ou serviço de um Estado, correr-se-ia o risco de utilizar o poder de tributar como mecanismo de pressão da União sobre o Estado, pondo em risco a autonomia, principal sustentáculo da federação, forma de Estado petrificada pelo legislador constituinte originário.
Também se considerou inconstitucional a previsão de que o IPMF não obedecesse à imunidade dos templos de qualquer culto (CF, art. 150, VI, b). A imunidade, denominada religiosa, protege a liberdade de culto, que é um direito individual.
Na mesma linha, também foram considerados protegidas por cláusulas pétreas a imunidade dos livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão (protegendo a livre difusão do pensamento e barateando o acesso à informação, garantias individuais), bem como a proteção a diversas instituições cujas atividades são consectários de outras garantias constitucionalmente protegidas (liberdade sindical, liberdade de criação e filiação a partidos políticos etc)”[20]
Nessa mesma linha de raciocínio, Hugo de Brito Machado aduz, utilizando a imunidade recíproca, como exemplo, que “a regra da imunidade está protegida no art. 60, § 4º, inciso I, da Constituição Federal de 1988, segundo o qual ‘não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir (…) a forma federativa de Estado’”.[21]
Nesse pensar, o legislador infraconstitucional está impedido de limitar os reflexos jurídicos dos direitos fundamentais (imunidades); logo, as normas definidoras de hipóteses imunizantes são imutáveis perante o Texto Supremo, por traduzirem direitos individuais da pessoa humana. Assim, não poderá ocorrer modificação na Constituição de 1988 que vise restringir, delimitar ou até mesmo retirar as imunidades tributárias, mas é viável a possibilidade do Poder Reformador de alterá-las para aumentar o seu grau de eficácia. Entretanto, essa dilação ou acréscimo de garantia constitucional ingressará no Texto Maior com status de cláusula pétrea.
Informações Sobre o Autor
Nilson Nunes da Silva Junior
Mestre em Direito pela UNIFIEO; Especialista em Direito Tributário pelo IBET/SP; Professor de Direito de Direito de Administrativo e Tributário da Anhembi Morumbi; Advogado em São Paulo.