Resumo: O presente artigo trata de uma grande controvérsia doutrinária e jurisprudencial que há anos perdura em nosso ordenamento: qual é o prazo para que se pleiteie a restituição de indébitos referentes a tributos sujeitos a lançamento por homologação, cinco ou dez anos? Buscou-se demonstrar ambas as teses, destacando os pontos mais relevantes de cada uma, analisando-se, ainda, os impactos da LC 118/05 sobre o tema. Ao final, tratou-se do julgamento em curso no Supremo Tribunal Federal, o qual promete colocar fim em uma das maiores e mais longas controvérsias jurisprudenciais do ordenamento pátrio.
Sumário: 1.Introdução. 2.Art. 3º da Lei Complementar 118: Interpretação ou mudança do dispositivo legal? 3.Interpretação autêntica e Irretroatividade das Leis. 4.A tese pacificada na Corte Especial do STJ x tese da Fazenda Pública. 5.Decisão parcial do Supremo (RE-566.621).
Após anos de controvérsia judicial acerca do prazo de que gozaria o contribuinte para restituição de tributos pagos indevidamente, foi editada a Lei Complementar 118 de 2005, que tentou colocar uma pá de cal na discussão, fixando que o prazo de cinco anos mencionado pelo art. 168 do Código Tributário Nacional (prazo para restituição do indébito) iniciar-se-ia do pagamento antecipado (art. 150, §1º, CTN), no caso dos tributos sujeitos a lançamento por homologação.
Todavia, longe de pacificar a questão, a LC 118/05 atraiu críticas severas de grande parte da doutrina pátria, vez que, à época de sua edição, já prevalecia no âmbito do Superior Tribunal de Justiça a interpretação segundo a qual o prazo de cinco anos fixados pelo art. 168 do CTN para que se pleiteasse a restituição do indébito, no caso de tributos sujeitos a lançamento por homologação (inciso I do dispositivo legal), apenas teria início após a homologação do lançamento pelo Fisco.
A tese respaldava-se na expressão utilizada pelo inciso I como marco do termo a quo do prazo de restituição: a extinção do crédito tributário. Entendendo o Superior Tribunal de Justiça que apenas a homologação tácita ou expressa do lançamento extinguia definitivamente o crédito tributário, o termo inicial do prazo de restituição seria a data da homologação.
Como, em regra, a homologação se dá de maneira tácita após o transcurso do quinquênio fixado no §4º do art. 150 do CTN, a tese prevalecente no STJ acabou por consagrar, por via indireta, o prazo de 10 anos para que o contribuinte requeresse a restituição de tributos por homologação. Era a pacificação da chamada tese dos “cinco mais cinco” – cinco anos referentes ao prazo de homologação, aos quais se somavam mais cinco anos do prazo para que se pleiteasse a restituição.
A grande polêmica trazida pela Lei Complementar 118 está em seu art. 4º, que, ao expressamente se referir ao dispositivo do CTN que trata de leis interpretativas, teve como objetivo implementar a interpretação do legislador acerca do art. 168, I, do CTN retroativamente.
É dizer, após os 120 dias de vacatio legis da Lei, a Administração Pública e o Poder Judiciário deveriam considerar como termo a quo do prazo de cinco anos para a restituição a data do pagamento antecipado realizado nos moldes do §1º do art. 150 do CTN, sendo irrelevante, para tanto, a data da homologação – tácita ou expressa.
Como efeito prático, caso levada a efeito a Lei em sua integralidade, o prazo para restituição do indébito em caso de tributos sujeitos ao lançamento por homologação seria de cinco anos do pagamento (fim da tese dos “cinco mais cinco”), aplicando-se a interpretação, inclusive, às ações judiciais em curso, desde que ainda não transitadas em julgado.
Alega a doutrina, em tese já confirmada pela Corte Especial do E. Superior Tribunal de Justiça, que o Congresso Nacional, ao editar a LC 118, teria violado o inciso XXXVI do art. 5º da CRFB (“a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”). Afirmou-se que não se trataria de lei verdadeiramente interpretativa, mas que, ao contrário, teria trazido modificação da regra de restituição de indébito, sendo vedada sua aplicação retroativa em virtude do princípio da irretroatividade das leis.
A tese defendida pela Fazenda Pública há muito – segundo a qual o prazo para a restituição sempre teve como termo a quo a data do pagamento antecipado, no caso de tributos sujeitos a lançamento por homologação, razão pela qual a LC 118/05 apenas teria assentado a interpretação mais adequada do art. 168, I, do CTN, sem alterações substanciais –, vinha sendo amplamente rejeitada, como se adiantou, por quase a totalidade da doutrina e da jurisprudência.
Ocorre que, recentemente, a submissão da questão ao Supremo Tribunal Federal demonstrou a complexidade da questão, sendo que a tese defendida, no caso, pela União teve quatro votos favoráveis em um julgamento parcial em que já proferidos nove votos. Não obstante a tese dos contribuintes conte com um voto a mais, começa a ser delineada uma decisão final que, ainda que decida pela inconstitucionalidade da LC 118/05 (caso mantida a maioria até agora configurada), não a pronunciará com a mesma extensão que fez o Superior Tribunal de Justiça.
O objetivo do presente artigo é justamente analisar a questão mais de perto, fugindo do lugar-comum que se limita a repetir a natureza modificativa e a inconstitucionalidade da LC 118/05, sem ponderar diversos fatos relevantes para a solução da controvérsia e sem cotejar o rigor técnico de ambas as teses.
2. Art. 3º da Lei Complementar 118: Interpretação ou mudança do dispositivo legal?
A primeira grande controvérsia acerca da disposição contida no art. 3º da LC 118 se refere à sua natureza. É que, não obstante o art. 4º se refira a ele como norma interpretativa, grande parte da doutrina lhe atribui caráter inovador e modificativo do ordenamento jurídico, o que inviabilizaria a aplicação do art. 106, I, do CTN, que assim dispõe:
“Art. 106. A lei aplica-se ao ato ou fato pretérito:
I – em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados;”
Não obstante a força do argumento – vez que, de fato, considerando-se o entendimento do E. STJ à época da edição da Lei, o prazo aplicado pelo Judiciário passaria de dez anos a cinco –, entende-se que a LC 118 limitou-se sim a trazer apenas uma interpretação de normas do CTN.
Na verdade, a análise dos argumentos apresentados pelos críticos da Lei Complementar revela que o que se combate não é o seu caráter interpretativo, e sim a possibilidade de uma nova interpretação trazida pelo legislador (a chamada interpretação autêntica) modificar direito que os contribuintes entendiam deter em virtude de pacificação da jurisprudência no âmbito da Corte Superior de Justiça.
É que, analisando-se o dispositivo, chega-se à conclusão que ele não traz qualquer alteração ao texto do CTN. É dizer, não houve alteração dos dispositivos, mas tão-somente consolidação da leitura conjunta que se faz dos art. 168, I, e 150 §§1º e 4º do CTN.
Tornando ainda mais clara a questão, o art. 168, desde a publicação do CTN, em outubro de 1966, estabelece que o “direito de pleitear a restituição extingue-se com o decurso do prazo de cinco anos, contados: I – nas hipóteses dos incisos I e II do artigo 165, da data da extinção do crédito tributário;”.
O texto continua o mesmo; o que vinha ocorrendo desde a década dos noventas é que a Administração interpretava o dispositivo de uma forma, enquanto o Judiciário de outra. Assim, havia divergência de interpretações sobre qual seria o termo inicial, pois o prazo, como se frisou, sempre foi de cinco anos. Portanto, a LC 118, ao explicitar que o termo inicial seria o dia do pagamento antecipado, apenas empregou força normativa à interpretação já consolidada no âmbito administrativo e que, diga-se de passagem, prevaleceu no Judiciário até os anos noventa.
Uma crítica a posição ora defendida – natureza interpretativa da LC 118 –, que se põe ao lado do argumento de que teria havido modificação de direitos dos contribuintes, é a de que leis interpretativas não poderiam inovar o ordenamento. Segundo essa doutrina, às leis desta espécie apenas seria permitido explicitar pontos controversos e obscuros de outras leis, sem que, com isto, se introduza modificações no ordenamento. Em face dessa última característica – inaptidão para modificar o direito positivo – é que se permitiria a retroação da interpretação autêntica.
Problema decorrente desta tese é que ela se espelhava em uma visão positivista do direito, segundo a qual ao intérprete não era reservado nenhum espaço criativo. Cabendo ao aplicador da lei unicamente a atividade de declarar o direito posto aplicável à espécie, não haveria espaço para inovação na atividade de interpretação das normas.
Porém, com a consagração do modelo pós-positivista, abriram-se os olhos para o mundo jurídico como ele realmente é: o intérprete, ao aplicar o dispositivo legal ao caso concreto, participa da criação da norma jurídica. Sobre o tema, Humberto Ávila, em sua festejada obra “Teoria dos Princípios”, deixa bem assentado que:
“É preciso substituir a convicção de que o dispositivo identifica-se com a norma, pela constatação de que o dispositivo é o ponto de partida da interpretação; é necessário ultrapassar a crendice de que a função do intérprete é meramente descrever significados, em favor da compreensão de que o intérprete reconstrói sentidos, que o cientista, pela construção de conexões sintáticas e semânticas, que o aplicador, que soma àquelas conexões as circunstâncias do caso a julgar; importa deixar de lado a opinião de que o Poder Judiciário só exerce a função de legislador negativo, para compreender que ele concretiza o ordenamento jurídico diante do caso concreto.” [i]
O trecho demonstra claramente que a atividade interpretativa tem uma carga criativa na medida em que promove a integração do dispositivo legal, fazendo surgir uma norma (regra ou princípio). Portanto, não se pode negar que a interpretação pode sim trazer alterações normativas, visto que, de um mesmo dispositivo, podem surgir normas diversas.
É justamente este fenômeno que justifica as mudanças na jurisprudência. Por vezes verifica-se que o Supremo Tribunal Federal, intérprete máximo da Constituição, substitui entendimentos vetustos e consolidados de um mesmo dispositivo por releituras que modificam substancialmente as consequências jurídicas de um texto legal imodificado. Como se admitir, sem alteração de texto, as mudanças trazidas pela Corte Maior? A única resposta possível é aquela esposada no trecho transcrito: a (re)leitura dos dispositivos legais, a interpretação, auxilia na criação da norma.
Exemplo marcante é o da prisão do depositário infiel que, apesar de prevista expressamente na Constituição e ter sua aceitação pacificada durante anos na jurisprudência, a partir de uma releitura do ordenamento pátrio – abrangendo-se, no termo, os tratados internacionais incorporados – pelo STF, foi banida do Direito brasileiro.
Frise-se que não se discute, neste momento, a possibilidade de a alteração de interpretação ser aplicada a fatos pretéritos. O que se busca demonstrar é que a LC 118/05, de fato, apenas tentou consolidar uma das interpretações possíveis do art. 168, I, do CTN. Ainda que se possa questionar a abrangência da interpretação adotada pela Lei (se atingiria fatos anteriores ou não), não se pode negar que esta não trouxe qualquer alteração aos dispositivos do CTN. Da mesma forma, e por consequência lógica, se não houve alteração do dispositivo, não existiu alteração do prazo previsto no Código Tributário Nacional.
O que houve, isto sim, foi a sedimentação da leitura acerca do termo inicial do prazo para se pleitear a restituição. Portanto, levou-se a efeito uma interpretação autêntica – porque realizada pelo legislador – acerca do termo inicial do prazo quinquenal.
Prova maior do que se defende, é que o próprio Judiciário, interpretando o mesmo dispositivo ora em comento (art. 168, I, CTN), até o final da década de noventa, sempre entendeu que o prazo de cinco anos para a restituição do indébito se iniciava da data do pagamento indevido – e não da data da homologação. Nesse sentido confira-se:
“TRIBUTÁRIO – CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA INCIDENTE SOBRE A REMUNERAÇÃO PAGA A AUTÔNOMOS, AVULSOS E ADMINISTRADORES – COMPENSAÇÃO COM A CONTRIBUIÇÃO INCIDENTE SOBRE A FOLHA DE SALÁRIOS – POSSIBILIDADE, OBSERVADA A DECADÊNCIA QUINQUENAL – INAPLICABILIDADE DO DISPOSTO NO ART. 8º DA LEI 8.212/91. 1. Sendo inconstitucional a contribuição previdenciária prevista no art. 3º, inciso I, da Lei 7.787/89, correta a sentença que determinou a restituição dos valores indevidamente recolhidos, sendo cabível a utilização do instituto da compensação com outra contribuição previdenciária a cargo do contribuinte. 2. Por tratar-se de ação de repetição de indébito, ainda que processada mediante compensação, aplicável à espécie o disposto no art. 168 do CTN, contando-se o prazo decadencial da data do pagamento, ainda que sujeito este à condição resolutória de posterior homologação pela autoridade fiscal. 3. (…)
5. Recurso do INSS parcialmente provido. Remessa oficial não
conhecida.” (AC 96.01.48983-5/MG, Rel. Juiz Osmar Tognolo, Terceira Turma,DJ p.46197 de 20/06/1997)
“EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. FINSOCIAL. ACORDÃO OMISSO QUANTO AS PARCELAS ALCANÇADAS PELA DECADENCIA. RECONHECIMENTO. 1. O PRAZO PARA PLEITEAR A RESTITUIÇÃO, QUE E DE DECADENCIA, COMEÇA A CORRER DO PAGAMENTO INDEVIDO (ARTIGO-168, INCISO-1, CTN), NÃO PODENDO SER REPETIDOS OS VALORES, CUJO RECOLHIMENTO SE VERIFICOU EM DATA ANTERIOR A CINCO ANOS DA PROPOSITURA DA AÇÃO. 2. EMBARGOS ACOLHIDOS”. (TRF4, EDAC 89.04.16825-2, Segunda Turma, Relator Rubens Raimundo Hadad Vianna, DJ 03/06/1992)
Também no âmbito do próprio STJ, prevalecia o entendimento:
“PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DECLARATORIOS (ART. 535, CPC). EMPRESTIMO COMPULSORIO SOBRE AQUISIÇÃO DE COMBUSTIVEIS. DIREITO A RESTITUIÇÃO. PRAZO DECADENCIAL. CTN, ARTS. 165 E 168. DECRETO-LEI 2.288/86. 1. O PRAZO DECADENCIAL CONTA-SE A PARTIR DO PAGAMENTO INDEVIDO, EXCLUIDAS AS PARCELAS ANTERIORES AO QUINQUENIO DECORRIDO DA PROMOÇÃO JUDICIAL DA AÇÃO DE RESTITUIÇÃO. 2. EMBARGOS ACOLHIDOS.” (EDcl nos EDcl no REsp 43.562/PR, Rel. Ministro MILTON LUIZ PEREIRA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 24/08/1994, DJ 19/09/1994 p. 24656)
A demonstrar que o entendimento encontrava-se pacificado na jurisprudência da época, no mesmo sentido, os julgados do TRF da 1ª Região (AC 94.01.20814-0/BA de 22/09/1994, EDAC 96.01.26255-5/MG de 29/11/1996), do TRF da 4ª Região (AC 90.04.22782-2 – DJ 11/11/1992 e AC 90.04.08742-7 – DJ 17/07/1991) e do STJ (REsp 44.278/RS – DJ 27/06/1994 e REsp 50.400/SP – DJ 22/05/1995).
Apenas a partir de 1995 é que ganhou força na 2ª Turma do STJ a tese que, anos mais tarde, viria a ser sedimentada pela Corte Especial do mesmo STJ, segundo a qual, o prazo para a restituição do indébito conta-se não do pagamento, mas sim da sua homologação (tácita ou expressa), vez que seria esta a data da extinção definitiva do crédito tributário.
Como se nota – ainda antes de se adentrar no mérito de ambas as teses – a LC 118 apenas fez o caminho inverso realizado anos antes pelo STJ: enquanto nos anos noventa, o STJ modificou a tese pacífica de que o termo inicial da restituição era a data do pagamento antecipado descrito no §1º do art. 150, o legislador, em 2005, visou a restaurar a interpretação que vigeu do advento do Código Tributário Nacional, em 1966, até meados da década de 1990.
Diante do exposto, conclui-se, inexoravelmente, que a LC 118/05 tem nítido caráter interpretativo. Concluir de forma diversa seria o mesmo que admitir que o STJ, ao dar abrigo à tese dos “cinco mais cinco”, não teria exercido sua atividade de intérprete da legislação infraconstitucional, mas sim papel de legislador positivo – o que não se admite, ao menos nesta extensão, ao Judiciário.
Demonstrada natureza interpretativa do art. 3º da LC 118/05, passa-se à análise da admissibilidade da interpretação autêntica no ordenamento brasileiro, bem como dos limites a ela impostos.
3. Interpretação autêntica e Irretroatividade das Leis.
Analisando-se o voto condutor do eminente Ministro Teori Zavascki constata-se que a linha de pensamento adotada concluiu que a inconstitucionalidade do art. 4º da LC 118/05 (que determina a aplicação da Lei a fatos pretéritos) decorre da natureza inovadora de seu art. 3º.
Destarte, segundo o STJ, a pretexto de ser interpretativa, a Lei Complementar modificou a norma vigente, vez que retirou no mundo jurídico uma das interpretações possíveis do art. 168, I, CTN, sendo esta justamente aquela consagrada pelo Superior Tribunal de Justiça.
O grande obstáculo apontado seria a tentativa de se alterar a jurisprudência por lei; tal expediente implicaria violação à separação de poderes consagrada no art. 2º da Constituição da República. Assim, concluiu a decisão:
“Em outras palavras: não pode ser considerada interpretativa a lei que tem o evidente objetivo de modificar a jurisprudência dos Tribunais. Somente a jurisprudência é que pode, legitimamente, alterar a jurisprudência.”[ii]
Em que pese a força da argumentação, entende-se que a própria conclusão do voto contraria a ideia central de que apenas a jurisprudência possa rever o posicionamento adotado pelos tribunais.
É que, se ao legislador fosse vedado editar norma tendente a modificar a forma de aplicação de dispositivo contido no ordenamento, é dizer, se ao Legislativo fosse vedada a atividade de interpretar as leis, deveria o julgamento do STJ concluir não apenas pela inconstitucionalidade do art. 4º da LC 118, mas também de seu art. 3º.
Diz-se isso porque o art. 4º apenas explicitou o caráter interpretativo da norma, estendendo a sua aplicação a fatos pretéritos; o dispositivo que realmente introduziu mudança na leitura do art. 168, I, fixando qual deveria ser o termo a quo do prazo prescricional, foi o art. 3º da Lei Complementar 118.
Portanto, o art. 3º fez justamente aquilo que o voto condutor do Ministro Zavascki estatuiu que o ordenamento proíbe: restabeleceu o entendimento pretérito, segundo o qual o prazo para que se pleiteie a restituição do indébito é de cinco anos, contados do pagamento, e não de “cinco mais cinco” como interpretava o STJ. Ou seja, a lei modificou o entendimento jurisprudencial, resgatando a interpretação dada pelo Judiciário até os anos noventa, sem alterar um só prazo ou dispositivo estabelecido no CTN.
Quer se mostrar, com a argumentação aqui exposta, que, na verdade, a declaração de inconstitucionalidade proferida pelo E. STJ não se fundamenta na impossibilidade de o Legislativo editar texto de lei tendente a interpretar outro dispositivo legal. O que se entendeu inconstitucional foi a tentativa de o legislador alterar o entendimento jurisdicional, aplicando a nova interpretação a fatos pretéritos (no caso, pagamentos pretéritos).
Portanto, a controvérsia não gravita em torno da possibilidade da interpretação autêntica, mas sim da viabilidade de esta atingir fatos ocorridos antes da edição da norma interpretativa.
Até porque, a interpretação de um dispositivo legal por outro de mesmo patamar jamais poderia configurar uma afronta à Constituição, pois, como leciona Canotilho acerca do papel do legislador: “Neste caso, ele é seu criador, admitindo-se que, se ele pode criar e revogar uma lei, por maioria de razão a poderá interpretar”[iii].
No mesmo sentido, o Supremo Tribunal Federal já externou a admissibilidade da interpretação autêntica no ordenamento pátrio:
“É plausível, em face do ordenamento jurídico constitucional brasileiro, o reconhecimento da admissibilidade das leis interpretativas, que configuram instrumento juridicamente idôneo de veiculação da denominada interpretação autêntica. As leis interpretativas – desde que reconhecida a sua existência em nosso direito positivo – não traduzem usurpação das atribuições institucionais do Judiciário e, em consequência, não ofendem o postulado fundamental da divisão funcional do poder”. (STF, ADIn 605-3 DF- rel. Min. Celso de Mello)
Nada mais natural: se ao legislador confere-se a competência de alterar os dispositivos legais que integram o direito positivo, não se poderia admitir que a fixação de interpretação a ser seguida por meio lei fosse considerada, a priori, inconstitucional, mormente quando presente relevante controvérsia. Disso não decorre a violação do princípio da separação de poderes, visto que, ao Judiciário, sempre caberá a atividade de controle da norma produzida (ainda que interpretativa).
Demonstrado o cabimento de norma interpretativa, ainda que altere posição prevalente na jurisprudência, resta analisar o ponto crítico da controvérsia, qual seja, a possibilidade de a interpretação autêntica trazida no art. 3º ser estendida a todos os pagamentos indevidos, ainda que efetivados em data anterior à edição da LC 118/05.
A premissa básica estabelecida pelo acórdão do STJ é a de que ao legislador não foi atribuído o poder de legislar para o passado. Destarte, a intepretação legislativa, ao modificar o entendimento jurisprudencial consolidado no âmbito do STJ, teria violado o princípio da irretroatividade das normas, o qual estaria previsto no inciso XXXVI do art. 5º da CRFB/88 (a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada).
Nessa esteira, assentou a Corte Superior de Justiça:
“A atividade legislativa está submetida à cláusula constitucional do respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada (art. 5º, XXXVI), razão pela qual as modificações do ordenamento jurídico, impostas pelo Legislativo, têm, em princípio, apenas eficácia prospectiva, não podendo ser aplicadas retroativamente”[iv].
A propósito do tema – aplicação da lei no tempo – Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald elucidam as hipóteses em que se admite a retroatividade da lei:
“A partir da intelecção do preceito legal [art. 6º da LICC] – agasalhado constitucionalmente – é possível afirmar, seguramente, que as leis não têm retroatividade. Assim sendo, a lei nova é aplicável aos casos pendentes e futuros. Excepcionalmente, no entanto, admitir-se-á a aplicação da lei nova aos casos passados (a retroatividade) quando: a) houver expressa previsão na lei, determinando a sua aplicação aos casos pretéritos (ou seja, no silêncio da lei, prevalece a irretroatividade) e b) desde que essa retroatividade não ofenda o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada[v].”
No mesmo sentido, confira-se trecho do voto proferido pelo eminente Ministro Celso de Melo, relator na ADI 605:
“Cumpre assinalar, desde logo, que os sucessivos ordenamentos constitucionais brasileiros – com a ressalva da Carta Política do Império do Brasil e da Constituição Republicana de 1891 – jamais proclamaram, em nosso sistema jurídico, de modo absoluto e incondicional, o princípio da irretroatividade. (…)
A Constituição Federal de 1988, fiel à tradição surgida com a Constituição de 1934 – só rompida com a Carta autoritária de 1937 – institucionalizou, em seu art. 5o, XXXVI, norma de sobredireito, destinada a compor regra de solução dos conflitos de leis no tempo. Ao tornar intangíveis à ação normativa do Estado apenas as situações jurídicas definitivamente consolidadas – tais as emergentes da coisa julgada, do direito adquirido e do ato jurídico perfeito -, o legislador constituinte admitiu, por implicitude, ainda que em caráter excepcional, a projeção retroeficaz das leis”.
No caso da Lei Complementar 118/05, verifica-se que o seu art. 4º preenche o primeiro dos requisitos exigidos, uma vez que ao se referir ao art. 106, I, do CTN, prevê expressamente a sua aplicação aos fatos pretéritos.
Isso posto, resta definir se o segundo requisito também estaria presente, ou seja, se haveria respeito ao ato jurídico perfeito, à coisa julgada e ao direito adquirido.
De início já se descarta a ofensa à coisa julgada, uma vez que todos os processos transitados em julgado, nos quais se aplicou a tese dos “cinco mais cinco”, não seriam atingidos pela interpretação trazida pela LC 118/05.
Da mesma forma, como bem salientou a União, em Memorial apresentado ao Supremo Tribunal Federal, não há ofensa ao ato jurídico perfeito, in verbis:
“Por certo, a Lei Complementar 118/2005 não ofende o ato jurídico perfeito, posto que, in casu, não se cuida de ato jurídico perfeito e acabado, apto a gerar eventual direito adquirido. No presente caso, trata-se de eventual direito subjetivo regido diretamente por lei, e não de um negócio jurídico, como bem explicita o mestre José Afonso da Silva, in Curso de Direito Constitucional Positivo, 23ª edição, Malheiros Editores, 2003:
`O ato jurídico perfeito, a que se refere o art. 153, § 3º [agora, art. 5º, XXXVI], é o negócio jurídico, ou o ato jurídico stricto sensu; portanto, assim as declarações unilaterais da vontade como os negócios jurídicos bilaterais, assim os negócios jurídicos, como as reclamações, interpretações, a fixação de prazo para aceitação de doação, as comunicações, a constituição de domicílio, as notificações, o reconhecimento para interromper a prescrição ou com sua eficácia (ato jurídico strictu sensu)´.”
Por derradeiro, também não se entende existir, no caso, ofensa ao direito adquirido, vez que não se pode alegar direito adquirido à determinada interpretação jurídica. Prova disso é que nada impedia que, antes do advento da LC 118, o próprio STJ revisasse sua jurisprudência, retomando o entendimento que prevaleceu na Corte Superior até o final do século passado, ou seja, de que o prazo para restituição se inicia do pagamento antecipado.
Nessa situação hipotética, tornar-se-ia a aplicar o prazo de cinco anos, em substituição à tese dos “cinco mais cinco”, a todos os processos em curso, sem que se cogitasse eventual ofensa ao direito adquirido dos litigantes à interpretação jurisprudencial anterior.
Da mesma forma, ainda que tivesse havido efetiva alteração do prazo previsto no art. 168, I, do CTN (e não mera interpretação acerca de seu termo a quo), não se poderia falar em violação a direito adquirido. É que não existe direito adquirido em relação a um prazo prescricional em curso, vez que este configura mera expectativa de direito.
A própria Ministra Ellen Graice, na relatoria do RE 566621/RS (julgamento parcial), que discute a constitucionalidade da LC 118/2005, não obstante conclua pela aplicação do art 3º tão somente às ações ajuizadas posteriormente à vacatio legis da referida Lei Complementar, esclarece que não, in casu, violação a direito adquirido:
“Info 585 – Prazo para Repetição ou Compensação de Indébito Tributário e Art. 4º da LC 118/2005 – 2 (…) Afirmou que a alteração de prazos não ofenderia direito adquirido, por inexistir direito adquirido a regime jurídico, conforme reiterada jurisprudência da Corte. Em razão disso, não haveria como se advogar suposto direito de quem pagou indevidamente um tributo a poder buscar ressarcimento no prazo estabelecido pelo CTN por ocasião do indébito.” (…)RE 566621/RS, rel. Min. Ellen Gracie, 5.5.2010. (RE-566621)
Destarte, havendo expressa previsão na Lei Complementar 118 acerca de sua retroatividade e não havendo ofensa ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido ou à coisa julgada, entende-se que a sedimentação da interpretação do art. 168, I, do CTN, por ela trazida não ofende direito subjetivo dos contribuintes protegido constitucionalmente, razão pela qual, data venia, os fundamentos adotados pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça não se mostram suficientes para a declaração de inconstitucionalidade do art. 4º da LC 118/2005.
4. A tese pacificada na Corte Especial do STJ x tese da Fazenda Pública
A inconstitucionalidade do art. 4º da LC 118/05 foi declarada pela Corte Especial do STJ em decisão assim ementada:
“CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. LEI INTERPRETATIVA. PRAZO DE PRESCRIÇÃO PARA A REPETIÇÃO DE INDÉBITO, NOS TRIBUTOS SUJEITOS A LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO. LC 118/2005: NATUREZA MODIFICATIVA (E NÃO SIMPLESMENTE INTERPRETATIVA) DO SEU ARTIGO 3º. INCONSTITUCIONALIDADE DO SEU ART. 4º, NA PARTE QUE DETERMINA A APLICAÇÃO RETROATIVA. 1. Sobre o tema relacionado com a prescrição da ação de repetição de indébito tributário, a jurisprudência do STJ (1ª Seção) é no sentido de que, em se tratando de tributo sujeito a lançamento por homologação, o prazo de cinco anos, previsto no art. 168 do CTN, tem início, não na data do recolhimento do tributo indevido, e sim na data da homologação – expressa ou tácita – do lançamento. Segundo entende o Tribunal, para que o crédito se considere extinto, não basta o pagamento: é indispensável a homologação do lançamento, hipótese de extinção albergada pelo art. 156, VII, do CTN. Assim, somente a partir dessa homologação é que teria início o prazo previsto no art. 168, I. E, não havendo homologação expressa, o prazo para a repetição do indébito acaba sendo, na verdade, de dez anos a contar do fato gerador. 2. Esse entendimento, embora não tenha a adesão uniforme da doutrina e nem de todos os juízes, é o que legitimamente define o conteúdo e o sentido das normas que disciplinam a matéria, já que se trata do entendimento emanado do órgão do Poder Judiciário que tem a atribuição constitucional de interpretá-las. 3. O art. 3º da LC 118/2005, a pretexto de interpretar esses mesmos enunciados, conferiu-lhes, na verdade, um sentido e um alcance diferente daquele dado pelo Judiciário. Ainda que defensável a ‘interpretação’ dada, não há como negar que a Lei inovou no plano normativo, pois retirou das disposições interpretadas um dos seus sentidos possíveis, justamente aquele tido como correto pelo STJ, intérprete e guardião da legislação federal. 4. Assim, tratando-se de preceito normativo modificativo, e não simplesmente interpretativo, o art. 3º da LC 118/2005 só pode ter eficácia prospectiva, incidindo apenas sobre situações que venham a ocorrer a partir da sua vigência. 5. O artigo 4º, segunda parte, da LC 118/2005, que determina a aplicação retroativa do seu art. 3º, para alcançar inclusive fatos passados, ofende o princípio constitucional da autonomia e independência dos poderes (CF, art. 2º) e o da garantia do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI). 6. Argüição de inconstitucionalidade acolhida.” (AI nos EREsp 644.736/PE, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, CORTE ESPECIAL, julgado em 06/06/2007, DJ 27/08/2007 p. 170)
Conforme exposto no tópico anterior, a análise detida do voto condutor, proferida pelo ínclito Ministro Teori Albino Zavascki, revela que o ponto nevrálgico da discussão não foi a precisão técnica da tese prevalecente no STJ (termo inicial da contagem do prazo de restituição iniciado a partir da homologação do lançamento), mas sim a possibilidade de o legislador dar ao dispositivo “um sentido e um alcance diferente daquele atribuído pelo Judiciário”.
Diz-se isso com tranquilidade, porquanto o próprio Ministro Relator ressalvou o seu entendimento de que a melhor interpretação seria aquela dada pela LC 118/05 e defendida pelo Fisco. Não obstante, reconhecendo que o entendimento predominante no STJ indicava a primazia da tese dos “cinco mais cinco”, o ilustre Ministro Zavascki entendeu que não poderia o legislador tentar substituir a função constitucional do STJ de interpretar, definitivamente, os dispositivos infraconstitucionais.
Defendendo a vedação constitucional ao que se considerou uma violação da separação de poderes pelo Legislativo, concluiu o voto condutor:
“Ainda que defensável a ‘interpretação’ dada, não há como negar que a lei inovou no plano normativo, pois retirou das disposições normativas interpretadas um dos seus sentidos possíveis, justamente aquele tido como correto pelo STJ, intérprete e guardião da legislação federal. Se, como se disse, a norma é aquilo que o Judiciário, como seu intérprete, diz que é, não pode ser considerada simplesmente interpretativa a lei que atribui a ela outro significado. Em outras palavras: não pode ser considerada interpretativa a lei que tem o evidente objetivo de modificar a jurisprudência dos Tribunais. Somente a jurisprudência é que pode, legitimamente, alterar a jurisprudência.”[vi]
Tal ponto – possibilidade de interpretação pelo legislador e seus limites – foi tratado no tópico anterior, cabendo agora uma breve análise sobre a coesão técnica do posicionamento adotado pelo E. STJ e daquele defendido pelo Fisco.
O entendimento adotado pela Colenda Corte Superior de Justiça apoiava-se no seguinte raciocínio:
“a) o art. 168, I, do CTN prevê que o prazo para a restituição do indébito tributário inicia-se a partir da extinção do crédito tributário;
b) No caso dos tributos sujeitos ao lançamento por homologação, o pagamento antecipado (art. 150, §1º, CTN) extingue o crédito tributário com condição resolutória, que consistiria na homologação do lançamento pelo Fisco, expressa ou tacitamente;
c) o art. 156, VII, do CTN exigiria, para extinção definitiva do crédito tributário, a conjugação do pagamento com a homologação do lançamento;
d) considerado extinto o crédito apenas nessa data (da homologação que segue o pagamento), aí se encontraria o termo a quo do prazo para que se pleiteasse a restituição (lembrando que o art. 168, I, determina a contagem do prazo a partir da extinção do crédito).”
Objetivando reforçar a tese, os Ministros, ainda em 1995, utilizavam-se de engenhoso raciocínio. Segundo eles, sendo o lançamento atividade privativa da autoridade administrativa, apenas a partir dele é que se poderia falar em crédito tributário definitivamente constituído. Portanto, se nos casos do art. 150, o lançamento decorre da homologação tácita ou expressa do pagamento antecipado, como se admitir que o crédito tivesse sido extinto por tal pagamento antes mesmo de ser constituído?
No entendimento dos eminentes Ministros, até a atividade de homologação pelo Fisco, não haveria a constituição do crédito (vez que esta decorreria exclusivamente do lançamento), razão pela qual não se poderia falar em início do prazo para que pleiteasse a restituição.
A tese foi repetida ao longo dos anos, perdendo-se de vista a fundamentação que lhe deu origem. Isso porque o entendimento claramente não acompanhou a evolução jurisprudencial do próprio STJ no que diz respeito à constituição do crédito tributário.
É que, quando da sua criação, prevalecia a posição de que o lançamento era o meio único de constituição do crédito tributário. Logo, se apenas o ato vinculado do lançamento constitui o crédito e, no caso dos tributos sujeitos a lançamento por homologação, tal atividade só ocorre após o pagamento antecipado, a homologação teria o condão de, confirmando o pagamento, constituir e extinguir o crédito tributário. Tratava-se de verdadeira ficção que buscava adequar a realidade fática à redação do CTN.
Não obstante, com o decorrer dos anos, o Superior Tribunal de Justiça passou a entender o lançamento apenas como meio por qual se chega à constituição do crédito tributário. É dizer, a constituição do crédito, não obstante usualmente seja atingida pela atividade vinculada do lançamento, prescinde deste no caso dos tributos sujeitos à homologação.
Nessas hipóteses (tributos sujeitos a declaração do sujeito passivo e pagamento antecipado – art. 150 do CTN), passou a entender o STJ que a declaração prestada pelo contribuinte tem a natureza de confissão de dívida, constituindo definitivamente o crédito tributário (independentemente de lançamento pela autoridade), ensejando a sua cobrança imediata nos casos em que não haja pagamento.
Em outras palavras, o lançamento é ato privativo da autoridade fiscal, sendo atividade vinculada que visa à apuração dos elementos que constituem a obrigação tributária. Apesar disso, doutrina e jurisprudência passaram a admitir, pacificamente, que o lançamento tributário não é a única forma de constituição do crédito tributário, o qual pode ser constituído por confissão do sujeito passivo.
Sobre os efeitos da entrega da declaração pelo sujeito passivo, confira-se decisão recente do Superior Tribunal de Justiça:
“TRIBUTÁRIO – PRAZO PRESCRICIONAL – PARCELAMENTO DEFERIDO PELO FISCO – INADIMPLÊNCIA NA 3ª PRESTAÇÃO. 1. “A apresentação, pelo contribuinte, de Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais – DCTF (instituída pela IN-SRF 129/86, atualmente regulada pela IN8 SRF 395/2004, editada com base no art.5º do DL 2.124/84 e art. 16 da Lei 9.779/99) ou de Guia de Informação e Apuração do ICMS – GIA, ou de outra declaração dessa natureza, prevista em lei, é modo de constituição do crédito tributário, dispensada, para esse efeito, qualquer outra providência por parte do Fisco. A falta de recolhimento, no devido prazo, do valor correspondente ao crédito tributário assim regularmente constituído acarreta, entre outras conseqüências, as de (a) autorizar a sua inscrição em dívida ativa; (b) fixar o termo a quo do prazo de prescrição para a sua cobrança; (c) inibir a expedição de certidão negativa do débito; (d) afastar a possibilidade de denúncia espontânea.” (REsp 671.219/RS, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, julgado em 19.6.2008, DJ 30.6.2008.). 2. [transcrito abaixo] 3. (…) Agravo regimental improvido.” (AgRg no REsp 732.845/SP, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 19/02/2009, DJe 17/03/2009)
Como fica claro, sem que a Corte notasse, seu posicionamento posterior condenou a fundamentação de que o prazo de restituição não poderia ser contado do pagamento antecipado porquanto o crédito só restaria constituído após o lançamento por homologação pelo Fisco.
Ora, se o crédito é constituído pela declaração do sujeito passivo, o pagamento antecipado extingue este mesmo crédito que já existe desde a apresentação da declaração. A homologação posterior – tácita ou expressa – apenas confirma a correspondência entre o tributo constituído pela declaração e o pagamento realizado, colocando fim à possibilidade de o Fisco constituir (aí sim, por lançamento) eventuais diferenças não declaradas pelo sujeito passivo.
É justamente em função deste entendimento que o STJ entende que, a partir da entrega da declaração pelo contribuinte, deixa de incidir o prazo decadencial sobre a parcela declarada, falando-se apenas na fluência de prazo prescricional para a cobrança do crédito. Apresentada a declaração, o prazo de cinco anos contados do fato gerador (§4º do art. 150) representaria o prazo decadencial para lançamento de tributo não declarado (e, portanto, não constituído pelo sujeito passivo). O item “2”, extraído do julgado acima, bem esclarece o ponto:
“2.No caso dos autos, tendo a empresa declarado sua dívida de ICMS em 14.8.1990 referente aos meses 3 e 7/90, nesta data constituiu-se o crédito tributário, dispensando o lançamento por parte da Fazenda (exceto se o contribuinte declarou a menor, necessitando de lançamento suplementar por parte do Fisco). Assim, não há que falar em prazo decadencial, pois o crédito tributário já foi constituído pela entrega da declaração. A contribuinte pleiteou, ainda, o parcelamento do débito sendo-lhe deferido em set/90, começando a pagar a primeira das 24 parcelas em out/90”.
Como o pagamento antecipado se destina à quitação do crédito constituído pela declaração do sujeito passivo, cai por terra um dos argumentos centrais da tese dos “cinco mais cinco” na repetição do indébito: a de que o pagamento antecipado não poderia extinguir um crédito que apenas se constituiria com a homologação tácita posterior (ressalte-se que tal entendimento foi defendido, inclusive, na decisão da Corte Especial ementada no início do tópico, pelo Ministro Francisco Peçanha Martins).
Superado o óbice, passa-se a fundamentar porque se entende que o prazo para a restituição deva ser contado da data do pagamento antecipado.
A União – maior litigante na seara tributária do país – sempre defendeu que o prazo de cinco anos, no caso dos tributos sujeitos à atividade de homologação, contar-se-ia do pagamento antecipado, utilizando-se, para lastrear sua fundamentação, da interpretação dos dispositivos trazidos pelo próprio Código Tributário Nacional, quais sejam, artigos 165, I; 168, I; 156, I; 150, § 1º; 117, II, in verbis:
“Art. 165 – O sujeito passivo tem direito, independentemente de prévio protesto, à restituição total ou parcial do tributo, seja qual for a modalidade do seu pagamento, ressalvado o disposto no § 4º do art.162, nos seguintes casos:
I – cobrança ou pagamento espontâneo de tributo indevido ou maior que o devido em face da legislação tributária aplicável, ou da natureza ou circunstâncias materiais do fato gerador efetivamente ocorrido.
Art. 168 – O direito de pleitear a restituição extingue-se com o decurso do prazo de 5 (cinco) anos, contados:
I – nas hipóteses dos incisos I e II do art.165, da data da extinção do crédito tributário.
Art. 156 – Extinguem o crédito tributário:
I – o pagamento.
Art. 150 – O lançamento por homologação, que ocorre quanto aos tributos cuja legislação atribua ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa, opera-se pelo ato em que a referida autoridade, tomando conhecimento da atividade assim exercida pelo obrigado, expressamente a homologa.
§ 1º O pagamento antecipado pelo obrigado nos termos deste artigo extingue o crédito, sob condição resolutória da ulterior homologação do lançamento.
Art. 117. Para os efeitos do inciso II do artigo anterior e salvo disposição de lei em contrário, os atos ou negócios jurídicos condicionais reputam-se perfeitos e acabados:
(…) II – sendo resolutória a condição, desde o momento da prática do ato ou da celebração do negócio.”
Consoante a disciplina inserta nos supracitados artigos, conclui-se que o termo a quo da prescrição é a data da extinção do crédito tributário, o qual é extinto, pela redação do artigo 150, §1º, do CTN, com o pagamento antecipado.
Tem-se, portanto, a consagração do princípio da actio nata, segundo o qual a contagem do prazo prescricional se inicia com o nascimento da pretensão, no caso, a de exigir a restituição dos valores pagos indevidamente. Tal entendimento, como já adiantado, é exposto de forma brilhante pelo eminente Ministro Zavascki no voto condutor do julgamento da Corte Especial que concluiu pela inconstitucionalidade do art 4º da Lei Complementar 118/05:
“Essa jurisprudência [referindo-se à jurisprudência sedimentada no STJ] certamente não tem a adesão uniforme da doutrina e nem de todos os juízes. Em muitos casos, eu mesmo já manifestei minha discordância pessoal em relação a ela, como, vg., no voto vista proferido no ERESP 423.994, 1ª Seção, rel. Min. Peçanha Martins, onde apontei sua fragilidade por desconsiderar inteiramente “um princípio universal em matéria de prescrição: o princípio da actio nata, segundo o qual a prescrição se inicia com o nascimento da pretensão ou da ação (Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, Bookseller Editora, 2.000, p. 332)”. “Realmente”, sustentei, “ocorrendo o pagamento indevido, nasce desde logo o direito a haver a repetição do respectivo valor, e, se for o caso, a pretensão e a correspondente ação para a sua tutela jurisdicional. Direito, pretensão e ação são incondicionados, não estando subordinados a qualquer ato do Fisco ou a decurso de tempo. Mesmo em se tratando de tributo sujeito a lançamento por homologação, o direito, a pretensão e a ação nascem tão pronto ocorra o fato objetivo do pagamento indevido. Sob este aspecto, pareceria mais adequado ao princípio da actio nata aplicar, inclusive em se tratando de tributo sujeito a lançamento por homologação, o disposto art. 168, I, combinado com o art. 156, I, do CTN, ou seja: o prazo prescricional (ou decadencial) para a repetição do indébito conta-se da extinção do crédito (art. 168, I), que, por sua vez, ocorre com o pagamento (art. 156, I). Observe-se que, mesmo em se tratando de tributo sujeito a lançamento por homologação, o pagamento antecipado também extingue o crédito, ainda que sob condição resolutória (CTN, 150, § 1º).”[vii]
A condição resolutória imposta ao pagamento antecipado (150, §1º,CTN) em nada afeta o raciocínio aqui exposto. É que, nessa condição, o fato jurídico produz efeitos desde a sua implementação, ou seja, no caso de tributo sujeito a lançamento por homologação, os efeitos da extinção do crédito tributário se produzem desde o pagamento antecipado.
Apenas ulterior acontecimento é que poderia desfazer os efeitos já existentes do pagamento, ou seja, a não homologação do crédito apurado pelo contribuinte teria o condão de desfazer os efeitos do pagamento antecipado. Não se pode confundir pagamento antecipado previsto para os tributos sujeitos a lançamento por homologação, nos quais a constituição decorre de atividade do sujeito passivo (declaração), com pagamento provisório em que inexiste a produção dos efeitos do pagamento.
Os efeitos da condição resolutiva foram confundidos com o de condição suspensiva, como se a ocorrência da homologação fosse pressuposto para o início dos efeitos do pagamento. Ora, realizado o pagamento antecipado, este já produz todos os seus efeitos jurídicos (como é natural das condições resolutórias e previsto pelo inciso II do art. 117 do CTN), inclusive a extinção do crédito tributário, marco inicial do prazo da ação de repetição de indébito.
Com efeito, após o pagamento, o crédito já é considerado como quitado, gerando, inclusive, o direito do contribuinte de obter certidões de regularidade fiscal, sem qualquer ressalva. Apenas a apuração de eventual irregularidade no prazo previsto para homologação terá o condão de impugnar a suficiência do pagamento para extinção do crédito devido, resolvendo, ainda que parcialmente, os efeitos até então produzidos pelo pagamento antecipado.
Ora se tal pagamento tem o condão de produzir todos os efeitos a ele inerentes, mormente os relativos à extinção do crédito, natural que o prazo para que se pleiteie a restituição se inicie da data de sua realização, e não cinco anos depois, com a sua provável homologação tácita.
Por tudo que se expôs, entende-se demonstrada a maior solidez da argumentação jurídica que defende que a contagem do prazo para que se pleiteie a restituição a partir do pagamento antecipado pelo sujeito passivo.
Caberá ao Supremo Tribunal Federal, na decisão definitiva do processo relatado no tópico abaixo, decidir se a tese encampada pela Lei Complementar 118/05 atingirá os fatos pretéritos (pagamentos anteriores à vigência da lei) ou não.
Conforme se adiantou, não obstante os argumentos em contrário, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça decidiu pela inconstitucionalidade do art. 4º da Lei Complementar 118/05. No voto do Ministro Zavascki, consignou-se a forma de contagem do prazo para restituição de indébito relativo a tributo sujeito a lançamento por homologação:
“Assim, na hipótese em exame, com o advento da LC 118/05, a prescrição, do ponto de vista prático, deve ser contada da seguinte forma: relativamente aos pagamentos efetuados a partir da sua vigência (que ocorreu em 09.06.05), o prazo para a ação de repetição do indébito é de cinco a contar da data do pagamento; e relativamente aos pagamentos anteriores, a prescrição obedece ao regime previsto no sistema anterior, limitada, porém, ao prazo máximo de cinco anos a contar da vigência da lei nova.”[viii]
Destarte, pragmaticamente falando, decidiu-se que as ações ajuizadas até 08.6.2010 estariam sujeitas ao prazo prescricional de 10 (dez) anos. Isso porque, quanto aos pagamentos anteriores ao vigor da LC 118/05, haveria a incidência da tese dos “cinco mais cinco”, aplicando-se, aos pagamentos realizados posteriormente a 09.6.2005 (data da vigência da LC 118), a forma de contagem trazida pela referida Lei Complementar, ou seja, cinco anos contados da data do pagamento antecipado.
Por sua vez, as ações ajuizadas posteriormente a 08.6.2010 sofreriam a total incidência da LC 118/05, com aplicação do prazo prescricional de cinco anos, quaisquer que sejam as datas dos pagamentos antecipados.
Para chegar à referida fórmula, o STJ aplicou, analogicamente, o disposto no art. 2.028 do Código Civil, que assim dispõe:
“Art. 2.028. Serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada.”
A questão parecia estar pacificada, conferindo aos contribuintes a aplicação do prazo de dez anos por longos cinco anos após a vigência da LC 118.
Portanto, apesar de a referida Lei Complementar prever que o prazo de cinco anos se iniciasse da data do pagamento antecipado, a decisão do STJ garantiu que a contagem do prazo apenas se iniciasse a partir da homologação (tácita ou expressa) para todas as demandas propostas até 08.6.2010. Dessa forma definiu-se que, por cinco anos – entre 09.6.2005 e 08.6.2010 –, deveria prevalecer a interpretação até então acolhida pela jurisprudência do STJ, mesmo que contra legem.
Ocorre que, com a submissão de Recurso Extraordinário ao Supremo Tribunal Federal, a questão ganhou novos contornos.
É que, não obstante o julgamento pelo Excelso Pretório ainda seja parcial, já se demonstrou, no RE 566.621, que a tese prevalecente no C. STJ provavelmente não subsistirá, vez que, dos nove votos proferidos, apenas o do E. Ministro Celso de Mello respalda a tese de que todos os pagamentos anteriores à vigência da LC 118/05 estariam sujeitos à tese dos “cinco mais cinco”.
Diz-se provavelmente porquanto sempre há a possibilidade de os Ministros retratarem seus votos, modificando-os. Todavia, a prática demonstra que raras são as vezes em que isso acontece.
Continuando, dos outros 08 (oito) votos, quatro acolheram a tese da Fazenda Nacional de que a LC 118/05, longe de trazer novo prazo, apenas realizou interpretação autêntica para confirmar aquilo que o CTN já estabelecia desde a sua edição: o prazo para que se pleiteie a restituição é de cinco anos e deve ser contado da data do pagamento antecipado. Ressalte-se, de passagem, que a tese era albergada pelo próprio STJ até 1995.
Os outros quatro votos, entre os quais se inclui o da eminente Relatora, Ministra Ellen Gracie, não obstante confirmem a tese da inconstitucionalidade da retroatividade da LC 118/05, reconhecem que o prazo de cinco anos, contado do pagamento antecipado, deva incidir em relação a todas as demandas ajuizadas após o período de 120 dias de vacatio legis da Lei Complementar 118, ou seja, 09/6/2005.
Entendeu a Relatora que o período de 120 dias de vacância teria sido suficiente para que os contribuintes, tomando ciência da nova Lei, ajuizassem suas demandas, interrompendo o prazo prescricional.
Assim, o prazo de cinco anos contados do pagamento antecipado deve ser aplicado a todas as demandas ajuizadas após 09 de junho de 2005. No voto, aplicou-se o Enunciado da Súmula 445 do STF (“A Lei nº 2.437, de 7-3-55, que reduz prazo prescricional, é aplicável às prescrições em curso na data de sua vigência (1º-1-56), salvo quanto aos processos então pendentes”).
Portanto, restando apenas dois votos a serem proferidos, parece que, mesmo na hipótese de a Fazenda Pública não ter sua tese totalmente acolhida, o entendimento do Supremo Tribunal Federal será no sentido de que a tese dos “cinco mais cinco” apenas é aplicável às ações ajuizadas até 09 de junho de 2005.
A fim de melhor se elucidar a questão, transcreve-se parte do informativo 585 do STF, que trouxe os votos supracitados:
“Prazo para Repetição ou Compensação de Indébito Tributário e Art. 4º da LC 118/2005 – 1 a 4
O Tribunal iniciou julgamento de recurso extraordinário interposto pela União contra decisão do TRF da 4ª Região que reputara inconstitucional o art. 4º da Lei Complementar 118/2005 na parte em que determinaria a aplicação retroativa do novo prazo para repetição ou compensação do indébito tributário [LC 118/2005: “Art. 3o Para efeito de interpretação do inciso I do art. 168 da Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional, a extinção do crédito tributário ocorre, no caso de tributo sujeito a lançamento por homologação, no momento do pagamento antecipado de que trata o § 1o do art. 150 da referida Lei. Art. 4o Esta Lei entra em vigor 120 (cento e vinte) dias após sua publicação, observado, quanto ao art. 3o, o disposto no art. 106, inciso I, da Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional.”; CTN: “Art. 106. A lei aplica-se a ato ou fato pretérito: I – em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados;”]. A Min. Ellen Gracie, relatora, reconhecendo a inconstitucionalidade do art. 4º, segunda parte, da LC 118/2005, por violação ao princípio da segurança jurídica, nos seus conteúdos de proteção da confiança e de acesso à Justiça, com suporte implícito e expresso nos artigos 1º e 5º, XXXV, da CF, e considerando válida a aplicação do novo prazo de 5 anos tão-somente às ações ajuizadas após o decurso da vacatio legis de 120 dias, ou seja, a partir de 9.6.2005, desproveu o recurso. Asseverou, inicialmente, que a Lei Complementar 118/2005, não obstante expressamente se autoproclamar interpretativa, não seria uma lei materialmente interpretativa, mas constituiria lei nova, haja vista que a interpretação por ela imposta implicara redução do prazo de 10 anos — jurisprudencialmente fixado pelo STJ para repetição ou compensação de indébito tributário, e contados do fato gerador quando se tratasse de tributo sujeito a lançamento por homologação — para 5 anos, estando sujeita, assim, ao controle judicial.
Em seguida, reputou que a retroatividade determinada pela lei em questão não seria válida. Afirmou que a alteração de prazos não ofenderia direito adquirido, por inexistir direito adquirido a regime jurídico, conforme reiterada jurisprudência da Corte. Em razão disso, não haveria como se advogar suposto direito de quem pagou indevidamente um tributo a poder buscar ressarcimento no prazo estabelecido pelo CTN por ocasião do indébito. Ressaltou, contudo, que a redução de prazo não poderia retroagir para fulminar, de imediato, pretensões que ainda poderiam ser deduzidas no prazo vigente quando da modificação legislativa. Ou seja, não se poderia entender que o legislador pudesse determinar que pretensões já ajuizadas ou por ajuizar estivessem submetidas, de imediato, ao prazo reduzido, sem qualquer regra de transição, sob pena de ofensa a conteúdos do princípio da segurança jurídica. Explicou que, se, de um lado, não haveria dúvida de que a proteção das situações jurídicas consolidadas em ato jurídico perfeito, direito adquirido ou coisa julgada constituiria imperativo de segurança jurídica, concretizando o valor inerente a tal princípio, de outro, também seria certo que teria este abrangência maior e que implicaria resguardo da certeza do direito, da estabilidade das situações jurídicas, da confiança no tráfego jurídico e do acesso à Justiça. Assim, o julgamento de preliminar de prescrição relativamente a ações já ajuizadas, tendo como referência novo prazo reduzido por lei posterior, sem qualquer regra de transição, atentaria, indiscutivelmente, contra, ao menos, dois desses conteúdos, quais sejam: a confiança no tráfego jurídico e o acesso à Justiça. Frisou que, estando um direito sujeito a exercício em determinado prazo, seja mediante requerimento administrativo ou, se necessário, ajuizamento de ação judicial, haver-se-ia de reconhecer eficácia à iniciativa tempestiva tomada pelo seu titular nesse sentido, pois tal restaria resguardado pela proteção à confiança. De igual modo, não seria possível fulminar, de imediato, prazos então em curso, sob pena de patente e direta violação à garantia de acesso ao Judiciário.
Considerou, diante do reconhecimento da inconstitucionalidade, que o novo prazo só poderia ser validamente aplicado após o decurso da vacatio legis de 120 dias. Reportou-se ao Enunciado da Súmula 445 do STF [“A Lei nº 2.437, de 7-3-55, que reduz prazo prescricional, é aplicável às prescrições em curso na data de sua vigência (1º-1-56), salvo quanto aos processos então pendentes”], e relembrou que, nos precedentes que lhe deram origem, a Corte entendera que, tendo havido uma vacatio legis alargada, de 10 meses entre a publicação da lei e a vigência do novo prazo, tal fato teria dado oportunidade aos interessados para ajuizarem suas ações, interrompendo os prazos prescricionais em curso, sendo certo que, a partir da vigência, em 1º.1.56, o novo prazo seria aplicável a qualquer caso ainda não ajuizado. Tal solução deveria ser a mesma para o presente caso, a despeito da existência do art. 2.028 do Código Civil – CC, haja vista que este seria regra interna daquela codificação, limitando-se a resolver os conflitos no tempo relativos às reduções de prazos impostas pelo novo CC de 2002 relativamente aos prazos maiores constantes do CC de 1916. Registrou que o legislador, ao aprovar a LC 118/2005 não teria pretendido aderir à regra de transição do art. 2.028 do CC. Somente se tivesse estabelecido o novo prazo para repetição e compensação de tributos sem determinar sua aplicação retroativa, quedando silente no ponto, é que seria permitida a aplicação do art. 2.028 do CC por analogia. Afirmou que, ainda que a vacatio legis estabelecida pela LC 118/2005 fosse menor do que a prevista na Lei 2.437/55, objeto da Súmula 445, ter-se-ia de levar em conta a facilidade de acesso, nos dias de hoje, à informação quanto às inovações legislativas e repercussões, sobretudo, via internet. Por fim, citou a LC 95/98 que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, nos termos do art. 59 da CF, cujo art. 8º prevê que a lei deve contemplar prazo razoável para que dela se tenha amplo conhecimento, reservada a cláusula “entra em vigor na data de sua publicação” para as leis de pequena repercussão. Concluiu que o art. 4º da LC 118/2005, na parte que em estabeleceu vacatio legis alargada de 120 dias teria cumprido com essa função, concedendo prazo suficiente para que os contribuintes tomassem conhecimento do novo prazo e pudessem agir, ajuizando ações necessárias à tutela dos seus direitos. Assim, vencida a vacatio legis de 120 dias, seria válida a aplicação do prazo de 5 anos às ações ajuizadas a partir de então, restando inconstitucional apenas sua aplicação às ações ajuizadas anteriormente a essa data. No caso concreto, reputou correta a aplicação, pelo tribunal de origem, do prazo de 10 anos anteriormente vigente, por ter sido a ação ajuizada antes da vigência da LC 118/2005.
Os Ministros Ricardo Lewandowski, Ayres Britto, Celso de Mello e Cezar Peluso acompanharam a relatora, tendo o Min. Celso de Mello dissentido apenas num ponto, qual seja, o de que o art. 3º da LC 118/2005 só seria aplicável não às ações ajuizadas posteriormente ao término do período de vacatio legis, mas, na verdade, aos próprios fatos ocorridos após esse momento. Em divergência, o Min. Marco Aurélio deu provimento ao recurso, no que foi acompanhado pelos Ministros Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes. Entendeu que o art. 3º não inovou, mas repetiu rigorosamente o que contido no Código Tributário Nacional. Afirmou se tratar de dispositivo meramente interpretativo, que buscou redirecionar a jurisprudência equivocada do STJ. O Min. Dias Toffoli, por sua vez, acrescentou não vislumbrar na lei atentado contra o direito adquirido, o ato jurídico perfeito, ou a coisa julgada. Observou que a lei pode retroagir, respeitando esses princípios. Em seguida, o julgamento foi suspenso para aguardar-se o voto do Min. Eros Grau. RE 566621/RS, rel. Min. Ellen Gracie, 5.5.2010.” (RE-566621)
Quanto às duas principais teses desenvolvidas nos votos de oito dos nove Ministros, tecem-se breves considerações.
No que tange àquela capitaneada pelo Ministro Marco Aurélio, desnecessários maiores esclarecimentos, porquanto, correspondendo à posição defendida pela Fazenda Pública perante o STJ, já se trouxeram, nos tópicos anteriores, os pontos considerados relevantes.
Com efeito, tratando-se de divergência acerca da interpretação de normas federais (ainda que ocorrida no âmbito jurisprudencial), não haveria inconstitucionalidade na LC 118/05, em face da admissão, pelo nosso ordenamento, de leis meramente interpretativas. Ademais, como se demonstrou em tópico anterior e bem apontou o Ministro Toffoli, ao contrário do que entendeu a Corte Especial do STJ, não houve ofensa a direito adquirido, ato jurídico perfeito, ou a coisa julgada, restando imaculada a norma que emana do inciso XXXVI do art. 5º da CRFB/88.
Quanto ao defendido pela Relatora, Ministra Ellen Gracie, entende-se que o entendimento perfilhado dá maior solidez à tese da inconstitucionalidade da retroatividade da LC 118/05. Isso porque, mesmo sem o acesso ao inteiro teor do voto, tem-se, pelas transcrições trazidas pelo informativo de jurisprudência do STF, que os dois, data venia, frágeis fundamentos fixados na decisão da Corte Especial do STJ não foram acolhidos (impossibilidade de modificação de interpretação jurisprudencial por lei e ofensa ao inciso XXXVI do art. 5º da CRFB).
As falhas de ambos os fundamentos foram demonstradas no bojo do presente artigo, razão pela qual se discordou da decisão proferida pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça.
Não obstante, os fundamentos trazidos pela Ministra Ellen Gracie – necessidade de observância do princípio da segurança jurídica e da confiança no tráfego jurídico e do acesso à justiça –, por certo ensejam maior reflexão, dando à tese da inconstitucionalidade do art. 4º maior fôlego e solidez jurídica.
De outro lado, a regra de transição estabelecida no voto da Relatora indubitavelmente melhor coaduna os interesses das partes envolvidas.
Ao contribuinte teria se garantido o prazo de 120 dias, após a entrada em vigor da LC 118/05, para propositura da demanda de restituição, respeitando, portanto, as expectativas existentes até a edição da referida Lei Complementar.
À Fazenda Pública – responsável, lembre-se, pela gestão do interesse da coletividade –, por sua vez, garantiu-se a aplicação de idêntico prazo prescricional por ela adotado na cobrança de seus créditos para o caso de restituição do indébito ao contribuinte. Dessa forma, buscou-se consagrar a isonomia na relação entre Fisco e contribuinte, tendo-se em mente o princípio da legalidade, já que a posição adotada pela Ministra Ellen Gracie, ao contrário daquela fixada no âmbito do STJ, garantiu a aplicação imediata (e não retroativa) da Lei Complementar 118/05. Assim, afastou-se a interpretação contra legem de todas as ações ajuizadas após a entrada em vigor da LC 118.
Cabe agora aguardar os dois votos remanescentes, a fim de que se obtenha o posicionamento final da jurisprudência pátria acerca do prazo prescricional de restituição do indébito referente a tributos sujeitos a lançamento por homologação, cujos pagamentos tenham ocorrido até a edição da LC 118/05.
Não obstante, ressalvada improvável hipótese de reviravolta no julgamento parcial do Supremo, tudo indica que a tese do STJ será suplantada, prevalecendo ou a total constitucionalidade da LC 118/05 (aplicando-se o prazo de cinco anos a todas as ações pendentes), ou a inconstitucionalidade da retroatividade prevista em seu art. 4º, a qual implicaria a aplicação da tese dos “cinco mais cinco” apenas às demandas propostas até a data de entrada em vigor da citada Lei Complementar (09.6.2005).
Aguarda-se, ansiosamente, o desfecho de uma das maiores e mais longas controvérsias de nosso ordenamento.
Informações Sobre o Autor
João Paulo Giordano Fontes
Especialista em Direito Processual pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Procurador da Fazenda Nacional lotado em Varginha/MG. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Estado de Minas Gerais (UFMG).