Resumo: o presente artigo tem por objetivo confrontar parte dos novos dispositivos trazidos pela lei especial, na medida em que, na prática, operadores do direito têm observado conflitos em nosso ordenamento jurídico, os quais ferem certos princípios assegurados pela Constituição Federal. O artigo pautar-se-á, primordialmente, em análise exploratória de material bibliográfico e documental, abordando conceitos elaborados por diversos doutrinadores frente a Lei nº 12.850/2013 (Da Organização Criminosa) no que tange, principalmente, a aplicabilidade do princípio da presunção de inocência.
Palavras-chave: justiça consensuada – colaboração premiada – Lei 12.850/2013 – valoração de prova – princípio da presunção de inocência.
Sumário: Introdução. 1. Análise do histórico legislativo da colaboração premiada. 2. Considerações da Lei nº 12.850/2013. 3. A Lei nº 12.850/2013 e a colaboração premiada como meio de prova. 4. A Lei nº 12.850/2013 e o princípio da presunção de inocência. Disposições finais. Referências
INTRODUÇÃO
O processo penal é um instrumento dado pelo Estado que possibilita a corroboração da existência de um crime, bem como do sujeito responsável pela autoria do delito. Existe na ação penal a figura do juiz, sujeito imparcial e equidistante, e a das partes, acusação e acusado. Sendo um instrumento de reconstrução e aferição de culpabilidade, o processo penal deve valer-se de provas na medida em que segue uma estrutura prevista no Código de Processo Penal, exigindo o cumprimento de uma série de atos determinados para se chegar a uma sentença condenatória ou absolutória.
Ocorre que, até a década de 1990, eram muitos os processos que tratavam de crimes e contravenções com uma pena em abstrato inferior a um ano, tendo, consequentemente, um prazo exíguo para solucionar tais conflitos sem que houvesse a prescrição da pretensão punitiva, extinguindo-se sua punibilidade exclusivamente em virtude da lentidão dos atos processuais. Com a principal finalidade de solucionar tal infortúnio, em 1995 foi editada a Lei nº 9.099, instituindo o disposto no artigo 98, I, da Constituição Federal que determinou a criação de Juizados Especiais, aplicando princípios como os da celeridade, economia processual, informalidade, oralidade e simplicidade. Um benefício trazido por esta lei é a transação penal, instituto que permite um acordo entre a acusação e a defesa para infrações de menor potencial ofensivo, pois tais não teriam um grau de reprovação tão grande comparado a certos crimes. Este acordo faz com que a pena não seja privativa de liberdade, mas restritiva de direitos ou multa, tendo que, posteriormente, receber a homologação do juiz.
O sistema processual penal tem, portanto, sentido a necessidade de impregnar soluções diferentes as do modelo tradicional, buscando maior eficiência para, na prática, satisfazer-se com a justiça. A Lei nº 9.099/95 estabelece mecanismos que estão em conformidade com os princípios que a gerou, mas que facilmente ferem àqueles trazidos pela Constituição Federal e assegurados pelo Código de Processo Penal, como a ampla defesa, o contraditório, o devido processo legal que nos remete, em tese, à verdade real (estando esta de forma implícita no artigo 5º, LIV, da Constituição Federal). Nesse sentido, entende-se o motivo de o instituto da transação penal receber tamanhas críticas vindas de grandes doutrinadores, em que a notitia criminis trazida pelo termo circunstanciado não passará por um processo de investigação para que os fatos sejam apurados, provas sejam colhidas e, assim, um inquérito policial seja remetido à julgamento no Judiciário. Todo este procedimento será substituído pelo termo circunstanciado podendo haver uma precária classificação jurídica feita pela Autoridade Policial, em que praticamente todos designarão uma audiência com a finalidade de se aplicar a transação penal. Entretanto, conforme explica Leonardo Sica (apud VIEIRA, 2006, p.28), muitos destes casos são fatos “atípicos ou sem quaisquer indícios de autoria ou da materialidade”, ou seja, muitos preferem receber uma “pena restritiva ou multa, por ser a resposta mais célere”, enquanto que, se permanecesse nos ditames do processo penal, este desencadearia uma absolvição.
Luiz Flávio Gomes (2010) é um dos grandes doutrinadores que abordam profundamente o assunto de justiça consensuada, em que explica:
“Justiça consensuada é um gênero que comporta quatro espécies: (a) Justiça reparatória (que se faz por meio da conciliação e da reparação dos danos. Exemplo: juizados criminais); (b) Justiça restaurativa (que exige um mediador, distinto do juiz; visa a solução definitiva do conflito, que é distinta de uma mera decisão); (c) Justiça negociada (que se faz pelo plea bargaining, tal como nos EUA); (d) Justiça colaborativa (que premia o criminoso quando colabora consensualmente com a Justiça criminal). “ (GOMES, 2010)
A delação premiada faz parte da Justiça colaborativa, sendo este um acordo entre o órgão acusador (Ministério Público) e o acusado para que, constituído este sinalágma, determinados efeitos sejam produzidos.
1. Análise do histórico legislativo da colaboração premiada
A expressão “delação premiada” é bastante utilizada entre os operadores do processo comunicacional. Contudo, a acepção “colaboração premiada” é trazida pela Lei 12.850/2013, e parece ser o termo mais apropriado na medida em que este permite abranger os demais resultados que a colaboração pode trazer, estando estes previstos em seu artigo 4º como a recuperação do produto (IV) e a localização de eventual vítima se a sua integridade física estiver preservada (V). O agente que cometeu o delito se dispõe a “colaborar” com a Justiça revelando informações que eventualmente seriam descobertas. Nessa esteira, é oportuno refletir sobre a motivação que engendra o sujeito em fazê-lo, tendo em vista a recompensa esperada que acompanha a palavra “premiada”. Este artigo fará referência a todos os resultados trazidos pela lei 12.850/2013, dando mais ênfase, entretanto, no inciso I, sendo a “identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas”. Neste, o sujeito renuncia à uma possível impunidade para acolher uma punição certa, não apenas confessando a prática de um crime, mas ainda “delatando” os demais responsáveis.
Mesmo antes da Lei nº 12.850 entrar em vigor no ano de 2013, a prática da colaboração na intenção de obter um benefício já podia ser encontrada de forma esparsa para determinados crimes, como na Lei nº 7.492/1986 (Lei dos Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional) que trouxe, após a alteração imposta pela Lei nº 9.080/1995, a penalização do controlador e administrador de instituição financeira que, nos crimes previstos naquela, fossem cometidos em quadrilha ou coautoria, sendo que o coautor ou partícipe através de confissão espontânea, revelando à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa, teria a sua pena reduzida de um a dois terços (artigo 25º, § 2º).
A Lei dos Crimes Contra a Ordem Tributária e Econômica e Contra as Relações de Consumo, Lei nº 8.137/1990, também faz alusão a uma delação premiada em seu artigo 16º, dizendo que “qualquer pessoa poderá provocar a iniciativa do Ministério Público nos crimes descritos nesta lei, fornecendo-lhe por escrito informações sobre o fato e a autoria, bem como indicando o tempo, o lugar e os elementos de convicção”, e informa em seu parágrafo único que nos crimes previstos nesta Lei, cometidos em quadrilha ou coautoria, o coautor ou partícipe, através de confissão espontânea, revelando à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa, teria a sua pena reduzida de um a dois terços. Este parágrafo foi incluído em 1995, pela Lei nº 9.080.
Pouco tempo depois, a Lei nº 8.072/1990 (Lei dos Crimes Hediondos) e o Código Penal sofreram alterações por conta da Lei nº 9.269/1996. Precisamente, o artigo 159 do CP, que discorre sobre extorsão mediante sequestro, teve a redação do §4º determinada por esta lei, em que “se o crime é cometido em concurso, o concorrente que o denunciar à autoridade, facilitando a libertação do sequestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços”, prejudicando a alteração do artigo 7º da Lei dos Crimes Hediondos. Esta alteração claramente procura ter do autor do crime de extorsão mediante sequestro, uma espécie de “arrependimento posterior”, tendo em vista que este é um crime formal (consuma-se com a privação da liberdade da vítima) e que o arrependimento posterior, previsto no artigo 16º do Código Penal, não seria possível já que um dos requisitos objetivos de tal instituto seria a falta de violência ou grave ameaça à pessoa. É evidente que o coautor necessita trazer a notitia criminis à polícia para obter tal benefício. Caso contrário, ou seja, na hipótese de esta conhecer o crime antes da denúncia do “arrependido”, terá este de se contentar com a obtenção das atenuantes já previstas no Código Penal.
“Além da alteração do art. 159 do Código Penal, houve a inserção do instituto no art. 8º da mesma Lei, mas com abertura maior nos termos de pré-requisito e maior exigência de resultados. Deve a delação permitir o desmantelamento da organização que pratica os crimes descritos no caput, sendo o único resultado admitido em lei para concessão do benefício. Novamente encontra –se o problema da ascendência infra-organização: não sabendo o delator de informações relevantes, como nomes dos líderes, endereços, etc., não possui ele qualquer chance de preencher o requisito do resultado, se adequando tão-somente ao instituto das atenuantes, já previstas no Código Penal. “ (GROSSI, 2015, p.14)
Pode-se encontrar, ainda, traços de uma delação premiada na Lei nº 9.613/1998, Lei de Lavagem ou Ocultação de Bens, Direitos e Valores, em seu artigo 1º, § 5º, mas nesta, diferentemente da Lei nº 12.850 que logo abordaremos, há a possibilidade de uma autoria única. Se não, vejamos:
“Art. 1o Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal
§ 5º A pena será reduzida de um a dois terços e começará a ser cumprida em regime aberto, podendo o juiz deixar de aplica-la ou substituí-la por pena restritiva de direitos, se o autor, coautor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais e de sua autoria ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime. ”
Vale observar que em 2012 entrou em vigor a Lei nº 12.683, que alterou a Lei nº 9.613/1998, “para tornar mais eficiente a persecução penal dos crimes de lavagem de dinheiro. ”
O Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas, Lei nº 9.807/1998, trouxe um capítulo que explica o método a ser utilizado para proteção do réu que opte em colaborar e, em seu artigo 13º, permite que ao juiz, “de ofício ou a requerimento das partes, conceder o perdão judicial e a consequente extinção da punibilidade ao acusado”, impondo a condição de que este seja primário e que colabore de forma voluntária e efetiva com a investigação e o processo criminal, permitindo alcançar resultados como a identificação dos demais coautores (I), a localização da vítima (II) ou a recuperação do produto do crime (III). Além disso, o parágrafo único desse mesmo artigo ainda sujeita o réu, quando perdão judicial, à avaliação feita pelo juiz de sua personalidade e a “natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso. ” Todavia, quando condenação, o artigo 14º prevê que o condenado “terá pena reduzida de um a dois terços” além de seu artigo 15º apresentar as “medidas especiais de segurança e proteção a sua integridade física, considerando ameaça ou coação eventual ou efetiva. ”
A Lei que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – SISNAD, Lei nº 11.343/2006, traz características de uma delação premiada em seu artigo 41º, em que o “indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime (…) no caso de condenação, terá pena reduzida de um terço a dois terços. ”
Como pode-se ver, leis anteriores já previam a colaboração premiada, tratando desde as consequências penais que o colaborador sofreria, como a redução ou a isenção de sua pena, até quais seriam os requisitos para a sua aceitação. Todavia, elas não previam um procedimento específico a ser adotado, não trazendo nenhuma segurança, nesse sentido, àquele que desejasse colaborar, na medida em que “procedimento”, principalmente no Direito Penal, é uma “garantia”, levando em consideração que uma ação que exceda a previsão legal pode afetar bens jurídicos tutelados de extrema importância, como a liberdade. Daí a necessidade de uma lei que tratasse especificamente desse assunto. Além das consequências materiais em relação à pena, esta lei também deveria trazer as consequências processuais tanto ao colaborador quanto à sua contraparte que celebrasse o acordo.
2. Considerações da Lei nº 12.850/2013
A Lei 12.850 de 2 de agosto de 2013 “define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal. ” Esta lei, basicamente, revogou ou ampliou os textos anteriores que tratavam do mesmo assunto sendo que, o que antes era esparso com pouquíssima abordagem ao procedimento a ser adotado, nesta encontra-se uma espécie de regime geral de colaboração, sendo uma lei mais detalhada que possibilita que regras, por analogia, sejam aplicadas à todas as hipóteses em que for possível e desejável a colaboração premiada.
Primeiramente, se faz necessário diferenciar o concurso de pessoas (o qual tradicionalmente é estudado na parte geral do Direito Penal) de associação e organização criminosa:
Tratando-se de concurso de pessoas, diz o artigo 29 do Código Penal, caput: “quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade” e este é aplicado, em regra, aos delitos de concurso eventual, onde encontra-se uma estrutura de duas ou mais pessoas que concorrem para a prática de uma mesma infração penal.
A formação de quadrilha ou bando está prevista no artigo 288 do Código Penal, que exige a associação de três ou mais pessoas no intuito específico de cometer crimes, sendo claro que o bem jurídico tutelado por e ele é a paz pública. Este artigo foi alterado pela Lei 12.850/2013 no número de integrantes (antes exigia no mínimo quatro pessoas e atualmente exige no mínimo três) e aumento de até a metade da pena em caso de associação armada (antes exigia a aplicação em dobro da pena), incluindo como causa de aumento a participação de menor de idade. Estas não foram as únicas alterações feitas pela lei neste artigo, sendo que ela também modificou o nomen iuris: o que antes era conhecido como “quadrilha ou bando” passou a ser denominado como Associação Criminosa. Esta, diferentemente do concurso de pessoas, é um crime de concurso necessário, não bastando apenas a reunião destas, conforme explica a ministra do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, em sua decisão por absolver os oito réus que haviam sido condenados pelo crime de quadrilha na Ação Penal 470:
“O ponto central da minha divergência é conceitual”, afirmou. “Não basta, para a configuração desse delito, que mais de três pessoas, unidas ainda que por tempo expressivo, pratiquem delitos. (…) É necessário que essa união se faça para a específica prática de crimes. ” (grifo nosso)
Vale lembrar que a associação criminosa se consuma a partir da união dos sujeitos somado ao liame subjetivo dos mesmos, não necessitando a prática de crime algum além da intenção de praticá-los.
Por sua vez, a distinção entre associação (artigo 288 do Código Penal) e organização criminosa (artigo 2º da Lei 12.850/2013) se dá na medida em que, por mais que ambos se tratem de concurso necessário, o modo de constituição do grupo criminoso é diferente. Nesse sentido, Beril e Landeosi:
“Nesta senda, a Lei que define as organizações criminosas, qual seja, a Lei 12.850/2013, tem-se que a organização criminosa exige a reunião de, pelo menos, quatro pessoas, estruturalmente ordenado e caracterizado pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, sob um comando individual ou coletivo, com o fim de cometimento de infrações penais que tenham penas máximas superiores a quatro anos. Por sua vez, a associação criminosa (art. 288 do CP) é menos sofisticada, bastando três pessoas e não exigindo estrutura ordenada, nem divisão de tarefas, como também prescinde de um líder. “ (Beril & Landeosi Advogados Associados, 2015)
A Lei nº 12.850/13 trata, em seu artigo 3º, de qual o momento processual para se utilizar de determinados meios de provas para que se comprove, condene e penalize uma organização criminosa. Vejamos:
“Art. 3o Em qualquer fase da persecução penal, serão permitidos, sem prejuízo de outros já previstos em lei, os seguintes meios de obtenção da prova:
I – colaboração premiada;
II – captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos;
III – ação controlada;
IV – acesso a registros de ligações telefônicas e telemáticas, a dados cadastrais constantes de bancos de dados públicos ou privados e a informações eleitorais ou comerciais;
V – interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas, nos termos da legislação específica;
VI – afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal, nos termos da legislação específica;
VII – infiltração, por policiais, em atividade de investigação, na forma do art. 11;
VIII – cooperação entre instituições e órgãos federais, distritais, estaduais e municipais na busca de provas e informações de interesse da investigação ou da instrução criminal. ”
Pode-se ver que a colaboração premiada nada mais é que um meio de obtenção de prova, discorrendo a Lei nº 12.850/2013 na Seção I sobre o assunto.
3. A Lei nº 12.850/2013 e a colaboração premiada como meio de prova
O artigo 4º da Lei em questão permite que o juiz, “a requerimento das partes” conceda o perdão judicial, reduza a pena privativa de liberdade em até 2/3 ou a substitua por restritiva de direitos. O trecho “a requerimento das partes” seria, na verdade, o acordo que a Polícia Federal realiza com o indiciado ou que o Ministério Público realiza com o acusado, somente sendo reconhecido e aplicado em uma sentença, sendo que essa pode exigir uma prévia ação penal. Vale dizer que existe uma discussão a respeito da constitucionalidade de a Polícia Federal ter permissão para realizar tal acordo, devido o impacto que este terá posteriormente, levando em consideração que o Ministério Público é o titular da ação penal e seria, então, o órgão competente para discutir, independentemente da fase processual, os termos, as cláusulas, a utilidade de tal acordo etc. Claro está que o juiz não participará dessa fase de negociação, isso para que seja possível a permanência de sua imparcialidade.
Após a celebração do acordo, o § 6º do artigo 4º determina que o juiz o homologue, em que deverá bastar-se a verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade. Para que esta última se confirme, poderá o juiz ouvir a parte sem que o Ministério Público esteja presente para, assim, convicto da existência dos requisitos necessários, homologar o acordo podendo, ainda, adequá-lo ao caso em concreto, geralmente modificando questões relativas a erro, dolo etc. Após, o sujeito passará a prestar uma série de depoimentos, existindo os chamados “anexos”, que nada mais são do que celebrações prestadas pelo sujeito ainda em um âmbito de colaboração. Diz a lei que esses depoimentos prestados pelo colaborador, além de reduzidos à escrita, também devem ser gravados para que uma futura consulta seja possível.
Apesar desta limitação ao poder do juiz sobre o acordo, este é significativo, tendo em vista que a parte acusadora é quem o celebra, mas, posteriormente, a mesma solicitará a aplicação do acordo ao juiz. Em outros países, como nos Estados Unidos da América, há, por exemplo, o Plea Bargaining, sendo este um instituto de origem na common law, em que o Ministério Público negocia com o acusado que apresenta informações tão relevantes ao Ministério Público que o faz deixar de acusá-lo formalmente, conceder uma pena mais branda ou algum outro benefício nesse sentido. Nota-se que em outros sistemas há uma disponibilidade da ação penal, uma possibilidade de o titular desta não seguir com o processo em relação àquela pessoa. Contudo, no que se refere ao acordo de colaboração premiada realizado no Brasil, sendo este regulamentado pela Lei nº 12.850/2013, há a dependência do reconhecimento do mesmo na sentença elaborada pelo juiz que, sendo esta condenatória, irá aplicar ao colaborador uma pena em concreto utilizando-se do sistema trifásico e, na mesma sentença, informará que “deixará” de aplica a mesma pois o acordo de colaboração premiada, antes homologado por ele, será reconhecido. Então, na prática, quem deverá estar satisfeito com o acordo em si não são as partes, mas sim o juiz, que analisará o processo e o aplicará. Percebe-se a tamanha insegurança que o colaborador possui no sentido de que, mesmo negociando com o Ministério Público, fechando o acordo, recebendo a homologação do mesmo pelo juiz, colaborando fielmente (ao menos ao seu ver) com o proposto, pode o juiz, no momento da sentença, entender que os elementos que o colaborador apresentou são insuficientes, não aplicando os benefícios da colaboração premiada, ao menos em seu todo.
O acordo de colaboração premiada deve gerar uma série de efeitos materiais e processuais. Tendo o colaborador identificado os demais coautores ou partícipes, revelado a estrutura hierárquica da organização, servindo tais informações para prevenir práticas de outros crimes, permitindo a recuperação total ou parcial do proveito das infrações e, sendo o caso, a localização da vítima com a sua integridade física preservada, o Ministério Público poderá solicitar a aplicação de benefícios ou de efeitos materiais. O primeiro deles é que haja a aplicação do acordo que prevê a redução da pena privativa de liberdade, ou a substituição desta por uma restritiva de direitos ou mesmo o perdão judicial. Dentro desses efeitos que poderão ser obtidos, tais quais já eram previstos pelas leis anteriores, a lei nº 12.850/2013 prevê efeitos processuais. Isso significa que o Ministério Público pode não oferecer a denúncia contra o sujeito em questão. Este assunto é abordado pelo artigo 4º, § 4º da referida lei:
“§ 4o Nas mesmas hipóteses do caput, o Ministério Público poderá deixar de oferecer denúncia se o colaborador:
I – não for o líder da organização criminosa;
II – for o primeiro a prestar efetiva colaboração nos termos deste artigo. ”
Nesses casos, pode haver uma suspensão do prazo para o oferecimento da denúncia, suspendendo, inclusive, o prazo prescricional, enquanto o Ministério Público recolhe e analisa as provas fornecidas pelo colaborador. Muitos operadores do Direito discutem se esta imunidade não fere o princípio da obrigatoriedade da ação penal, pois tal princípio exige que todo crime de ação penal pública tenha o inquérito policial instaurado ou que a ação penal seja promovida, mesmo quando crimes que dependam de representação do ofendido. Há quem sustente que, nesses casos, a opção mais adequada frente ao ordenamento jurídico seria que o Ministério Público pedisse o arquivamento do inquérito policial, tendo em vista o artigo 28 do Código de Processo Penal. De qualquer forma, seria necessária uma fundamentação específica para tanto, e nesse sentido Vasconcellos explica:
“Em que pese a lacuna da Lei 12.850/2013, surge como opção a aplicação por analogia do parágrafo único do art. 87 da Lei 12.529/2011 (que regula o acordo de leniência em meio ao Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência), extinguindo a punibilidade do agente delator. “ (VASCONCELLOS, 2015)
Um outro efeito processual importante apresentado pela Lei nº 12.850/2013, é o de considerar o colaborador uma fonte de obtenção de prova. Sendo assim, o colaborador não poderá usufruir, por exemplo, do direito ao silêncio, por mais que muitos operadores do direito afirmem que o mesmo é irrenunciável. Não poderia ser de outra forma, visto que todo e qualquer tipo de prova deverá ser submetida ao contraditório da parte que por ela é prejudicada.
4. A Lei nº 12.850/2013 e o princípio da presunção de inocência
Como visto, a Lei nº 12.850/2013 considera o colaborador como um meio de obtenção de prova. Entretanto, é de se ressaltar que a condenação baseada apenas em afirmações proferidas por colaboradores é, por expressa disposição legal, insuficiente à condenação. Nesse sentido, a própria lei em questão se manifesta em seu art. 4º, § 16º: “Nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador”. É necessário que a delação do colaborador seja vista com muita reserva, não devendo esta ser desprezada, mas também não podendo ser supervalorizada. Sobre este assunto, ensina Vicente Greco Filho:
“Finalmente, o § 16 do art. 4º prevê regra de orientação ao juiz, impedindo-o de proferir sentença condenatória com fundamento exclusivamente das declarações do agente colaborador, devendo o juiz basear-se, também, em outros elementos probatórios, o que não será difícil de ocorrer, porque se a colaboração for eficiente, levará à colheita de outras provas. A acusação isolada de alguém que se diz membro da organização criminosa e nada informa além disso, a não ser as suas acusações, não passa de elemento evidentemente sem valor probatório isoladamente. “ (GRECO, 2014, p. 43)
Desta forma, não pode o corréu delatado ser condenado quando ausente provas que corroborem com as informações trazidas ao processo pelo delator. A absolvição do delatado, nesse caso, deve se impor, visto que para que haja uma condenação deve-se ter provas irrefutáveis da autoria do delito, e uma condenação baseada exclusivamente na colaboração premiada é uma gritante violação da garantia constitucional da presunção de inocência e da legislação federal vigente.
“A delação premiada, como se vê, por força da lei, é prova, porém, meramente indiciária, porque se não corroborada por outras provas seguras (que estejam além da dúvida razoável), não vale nada para o fim da condenação (nem sequer do próprio réu, que para colaborar deve confessar participação no delito). Essa é a regra da corroboração. ” (GOMES, 2015)
A corroboração de fatos trazidos ao processo por meio da colaboração premiada, seria possível por intermédio de outros meios de obtenção de prova como documentos, perícias, interceptações telefônicas e depoimentos. Seria possível, então, uma delação comprovada por outra delação? Nesse sentido, explica Gustavo Badaró:
“Mas, uma questão interessante é se serão suficientes para justificar uma condenação duas ou mais delações com conteúdos concordes. É o que se denomina mutual corroboration ou corroboração cruzada. Ou seja, o conteúdo da delação do corréu A, imputando um fato criminoso ao corréu B, ser corroborado por outra delação, do corréu C, que igualmente atribua o mesmo fato criminoso a B. ” (BADARÓ, 2015)
Não se pode corroborar uma delação por intermédio de outra, pois ainda haveriam dúvidas quanto a veracidade da primeira. “Neste, como em outros casos, deve se optar por absolver um delatado culpado, se contra ele só existia uma delação cruzada, a correr o risco de condenar um delatado inocente. ” (BADARÓ, 2015)
Observa-se que a palavra do delator, por si, não é suficiente para uma condenação. A questão é que a lei expressamente diz não ser suficiente para uma “sentença” condenatória. Seria ela suficiente, então, para a apreensão dos bens do delatado? Ou para uma prisão preventiva? Isso não seria possível, uma vez que a intenção do legislador perante a Lei nº 12.850/2013 é bem mais complexa do que uma leitura restrita desta poderia sugerir. Entende-se que a colaboração premiada é um meio de obtenção de prova, um indício para se chegar a uma prova real, na medida em que se não possuir outras que fundamentem tal indício, a prisão preventiva, por exemplo, seria uma clara violação ao princípio da presunção de inocência. Ainda mais quando analisado que o corréu colaborador não é uma testemunha comum, na medida em que possui interesse processual direto no processo para o qual “colabora”.
DISPOSIÇÕES FINAIS
O Direito Processual Penal, bem como o sistema jurídico brasileiro como um todo, tem, de certo modo, sentido a necessidade de impregnar soluções diferentes as do modelo tradicional. Entretanto, é necessária uma certa cautela para que uma justiça célere, na finalidade de proporcionar uma razoável duração do processo, não provoque uma condenação injusta.
A elaboração da Lei nº 12.850/2013 foi fundamental para trazer uma maior segurança jurídica, não apenas àqueles que desejassem obter o acordo de colaboração premiada, mas também aos próprios órgãos do Estado que o negociam e aplicam. Entretanto, nota-se que muitas são as dúvidas quanto ao procedimento quando posto em prática e a constitucionalidade dos atos previstos na lei especial.
É muito importante avaliar a motivação do delator em colaborar com a justiça, pois este possui interesse direto no processo e, sabendo que sua confissão e delação serão utilizadas como meio de obtenção de prova, pode este ter previamente esquematizado um modo de afastar ou amenizar sua punição, imputando-a a outros que não responderão pela prática do crime na medida de sua culpabilidade.
Por outro lado, o colaborador que procurou a justiça “arrependido”, apresentou novos fatos ao processo (muitas vezes trazendo a própria notitia criminis ao conhecimento do Estado) e reuniu provas suficientes para a comprovação do que alegou, não pode sofrer com uma sentença incongruente ao acordado anteriormente com a contraparte. Ninguém é obrigado auto incriminar-se produzindo provas contra si mesmo, sendo que estas devem ser obtidas de forma livre e voluntária do réu, de tal forma que este saiba exatamente quais serão as consequências jurídicas disso.
Certo é que a própria legislação especial em seu artigo 4º, § 16º, reconhece a insuficiência corroborativa das declarações do sujeito colaborador, e são diversos os motivos. No entanto, o principal deles se dá em não tomar medidas extremas, que ferem diretamente bens jurídicos importantíssimos tutelados pelo direito, seja através de uma sentença penal condenatória como em uma prisão preventiva, pois o princípio da presunção de inocência está entre as principais garantias do cidadão brasileiro e, sendo este um Estado Democrático de Direito, deve evitar todo e qualquer tipo de ação que, equivocadamente, pratica ao buscar a paz social.
Informações Sobre os Autores
Gustavo Previdi Vieira de Barros
Advogado criminalista, graduado em Direito e mestre em Direito Penal. Professor de Direito Penal e de Direito Processual Penal da Universidade Paulista
Larissa Sitta Rodrigues da Silva
Acadêmico de Direito na Universidade Paulista