Comentários ao crime de estupro de vulnerável

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Resumo: A exemplo dos demais bens jurídicos tutelados em nosso ordenamento penal, a dignidade sexual, quando violada, reclama do Estado a perfeita aplicação da norma jurídica, valendo-se, para tanto, do que contempla o Código Penal no Título VI. Recentemente, o mencionado Título foi significativamente alterado pela Lei nº 12.015, de 07 de agosto de 2009. Foi feita, pois, uma verdadeira reforma na disciplina legislativa dos crimes sexuais no Brasil. Houve, entre outras mudanças, a revogação do artigo 224 do Código Penal, bem como a criação do delito de estupro de vulnerável (art. 217-A), com a fusão dos conceitos de atentado violento ao pudor e de estupro em apenas um dispositivo penal. Partindo da análise do contexto em que essas mudanças foram realizadas, o escopo do presente artigo é tecer alguns comentários sobre os principais aspectos penais do novo crime de estupro de vulnerável, sem a pretensão de esgotá-los, posto que infindáveis as discussões.

Palavras-chave: Estupro de Vulnerável; Presunção de Violência; Lei nº 12.015/09.

Abstract: Similarly to other legal goods treated in our criminal order, sexual dignity, when violated, demands the perfect application of the existing law, using the provisions which can be found in the Criminal Code, Title VI. Recently, the above mentioned Title has been significantly modified by the Law nº 12.015, published on the August 7, 2009. There has been a substantial change in the legislative discipline concerning the sexual felonies in Brazil: article 224, from the Penal Code, have been revoked; there was the creation of the vulnerable rape crime; the concepts of violent attempt against modesty and rape have been fused in one criminal device. Analyzing the context in which these changes took place as a starting point, this research aims, to examine the main criminal aspects of the vulnerable rape crime in the revised criminal code, without the pretension to exhaust the subject, for endless are the discussions about it, be in the doctrine, be in the jurisprudence.

Keywords: Vulnerable rape crime; violence presumption; Law 12.015/09.

Sumário:  Introdução. 1. Presunção de violência. 2. motivos ensejadores à prática do estupro de vulnerável 3. Dados e estatísticas à exploração sexual da criança e adolescente. 4. Principais objetivos da Lei nº 12.015/09. Considerações finais. Referências bibliográficas. Páginas da Internet.

Introdução 

A Lei nº 12.015 de 07 de agosto de 2009, dentre outras inúmeras modificações que proporcionou na disciplina dos crimes sexuais, revogou o artigo 224 do Código Penal. Previa o extinto dispositivo três hipóteses em que se presumia a violência para a configuração dos então denominados crimes contra os costumes: vítima não maior de 14 anos; vítima alienada ou débil mental, com ciência do agente; vítima que, por qualquer outra causa, não pudesse oferecer resistência. Era a chamada violência ficta ou presumida.

Tratava-se de uma presunção legal do emprego de violência, pois, se não havia a capacidade para consentir ou resistir, pressupunha-se que o ato era violento. Diferia da violência real, pois naquela não havia efetiva coação física ou moral.

Assim, a tipificação do crime de estupro ou atentado violento ao pudor contra pessoas que se encontravam nessas circunstâncias era feita por extensão: artigos 213 ou 214 combinado com o artigo 224.

Essa técnica legislativa trazia muita polêmica. A maior delas era a discussão acerca da natureza da presunção de violência: seria absoluta ou relativa?

Alguns defendiam tratar-se de presunção absoluta, ou seja, caso um agente mantivesse conjunção carnal ou qualquer ato libidinoso diverso com pessoa que se enquadrasse em uma das hipóteses previstas no antigo artigo 224, do Código Penal, estar-se-ía diante de um crime contra os costumes: estupro ou atentado violento ao pudor, conforme o caso.

De outro lado, outros defendiam tratar-se de presunção relativa, ou seja, a simples prática de conjunção carnal ou ato libidinoso diverso com pessoa com as características apontadas no artigo 224, do Código Penal, não seria condição sine qua nom para a configuração de um crime contra os costumes.

Nesse contexto foi editada a Lei nº12.015/09 que, dentre as inúmeras alterações que proporcionou, como mudar o nome do Título VI para crimes contra a dignidade sexual,  revogou o artigo 224 do Diploma Criminal. 

Todavia, apesar de ter revogado o mencionado dispositivo que trazia a presunção de violência, o legislador não deixou de conferir especial tutela penal no campo sexual às pessoas incapazes de externar seu consentimento racional e seguro aos atos sexuais, pois criou o delito de estupro de vulnerável, previsto no artigo 217-A do Código Penal.

Verifica-se, destarte, que não ocorreu o fenômeno da abolitio criminis, ao contrário, com o novo dispositivo o legislador conferiu especial defesa à vítima que tem menor possibilidade de reação, sem mais falar em presunção – termo que sempre gerou polêmica em Direito Penal. Visou garantir a defesa pública onde está comprometida a defesa particular do ofendido, tendo em vista que este não tem capacidade para consentir validamente ou não tem capacidade de resistência.

Verifica-se que o incapaz de consentir validamente para o ato sexual obteve uma denominação própria: vulnerável (considerados assim o menor de 14 anos; o enfermo ou deficiente mental sem discernimento para a prática do ato; ou aquele que, por qualquer outra causa, não puder oferecer resistência). O novo dispositivo reproduziu o disposto no artigo 224, mas substitui os inadequados termos “alienada ou débil mental” por “enfermo ou deficiente mental”, acrescentou a exigibilidade desta pessoa não possuir o necessário discernimento para a prática do ato, bem como eliminou a expressão “violência presumida”.

Todavia, apesar das alterações, ainda é ponto de discórdia se a prática de atos libidinosos com os chamados vulneráveis configurariam de forma absoluta ou não a prática da infração criminosa.

1. Presunção de violência

Com a revogação do artigo em análise, a lei pretendeu encerrar a polêmica que havia nos Tribunais, principalmente os Superiores, no que dizia respeito à natureza da presunção de violência. Discutia-se se referida presunção era absoluta (não comportando prova em contrário) ou relativa (possibilitando a prova em contrário).

Tal debate era mais intenso no contexto da idade.

Em defesa da presunção absoluta (juris et de jure) de violência, argumentava-se que era sempre inválido o consentimento de um menor de 14 anos, mesmo que tivesse um desenvolvimento físico e psíquico avançado para sua idade, em razão de a menoridade da vítima ser elementar do tipo penal.

Para os que assim pensavam, não existiria dado mais objetivo do que a idade.

Com efeito, o Código Penal sempre utilizou, em inúmeros dispositivos, a idade como parâmetro, seja para aumentar a pena, seja para qualificar um delito, seja para calcular a prescrição. Assim, porque não utilizá-la de forma absoluta para estabelecer um crime como se faz em todas as demais situações?

A relatividade gerava insegurança jurídica e feria as finalidades da pena: retribuição e prevenção.

Por outro lado, em defesa da presunção relativa (juris tantum) de violência, argumentava-se que o dispositivo tinha como intuito proteger o menor sem qualquer capacidade de discernimento e com incipiente desenvolvimento orgânico. Se a vítima, a despeito de não ter completado 14 anos, apresentasse evolução biológica precoce, bem como maturidade emocional, não haveria por que impedir a análise do caso concreto de acordo com suas peculiaridades.

Em relação ao vulnerável menor de 14 anos, apesar de a nova Lei ter extirpado o termo presunção, trazendo um tipo penal claro e objetivo, a jurisprudência ainda oscila.

2. Motivos ensejadores à pratica do estupro de vulnerável

O legislador, todavia, não deixou dúvida sobre sua intenção: criar um novo tipo penal protegendo, de forma absoluta, a dignidade sexual do menor de catorze. Verifica-se tal intento não apenas pela leitura do novo artigo criado, mas também pela razão que motivou todas estas mudanças, qual seja, acabar com a exploração sexual infantil.

Com efeito, a exploração sexual é uma das maiores formas de violação de direitos humanos existentes na atualidade. No Brasil, tal prática movimenta vultosas somas de dinheiro e faz inúmeras vítimas, que têm suas vidas e sonhos destruídos, causando, inclusive, repercussão negativa no cenário mundial.

Ademais, pesquisas comprovam que a exploração sexual está intimamente ligada a outras mazelas da sociedade moderna, como a violência sexual, a violência doméstica, o consumo de álcool e de drogas ilícitas. As histórias de vida e o dia-a-dia de pessoas em situação de exploração sexual comercial apresentam uma série de violações de direito e, nesse cenário de vulnerabilidade e exposição a variados riscos, é quase inevitável o incremento de outras ilicitudes, como o estupro, a violência doméstica, o tráfico de entorpecentes.

Algumas redes de exploração sexual empregam substâncias que causam dependência física como estratégia para deixar as pessoas ainda mais vulneráveis e suscetíveis ao comércio sexual. Outra situação comum é o incentivo ao consumo de álcool e de drogas a fim de estimular a ida a casas de programas e aumentar o lucro desses estabelecimentos. Além disso, tendo em vista que o consumo de entorpecentes enfraquece a percepção e a sensibilidade, ele acaba sendo uma alternativa para a pessoa conseguir enfrentar aquela situação de exploração sexual. 

Embora não exista um panorama global da relação entre a exploração sexual comercial e o uso de drogas, pesquisas desenvolvidas em diversas localidades apresentam evidências da gravidade desse problema.

3. Dados e estatísticas à exploração sexual da criança e adolescente

Um estudo realizado pela Organização Internacional do Trabalho no Chile em 2007 revelou que 57% das meninas e 41% dos meninos explorados também consomem drogas[1]. Tais números preocupam, mas são ainda mais críticos em outros países, como Bangladesh, onde cerca de 75% dos meninos explorados sexualmente fazem uso de alguma substância que promova dependência, de acordo com estudo produzido pela ECPAT Internacional sobre a exploração sexual infantil masculina no país[2].

No Brasil, é possível encontrar situações semelhantes. Do universo de 328 crianças e adolescentes participantes de uma pesquisa realizada em 2007 na cidade turística de Fortaleza por órgãos governamentais do município e do estado, 73,2% dos entrevistados usam algum tipo de droga. E tão preocupante quanto o número de vítimas de exploração sexual que consomem drogas é o nível de toxicidade das substâncias às quais elas têm acesso. De acordo com a pesquisa em Fortaleza, quase 20% faz uso contínuo do crack.

 Em Recife, esse número pode ser ainda maior. Um estudo desenvolvido em 2008 pela ONG Centro de Prevenção às Dependências, sob encomenda do Ministério do Turismo, constatou que 93% dos meninos e meninas nessa situação podem ter experimentado a substância[3].

Segundo dados da UNICEF são inúmeros os casos de exploração sexual, não sendo possível uma exata contabilização, uma vez que os crimes sexuais estão entre os menos notificados, não apenas no Brasil, mas no mundo todo[4].

Diante desse panorama assustador, em 2004, por solicitação do então Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e como ação prioritária do governo, alguns ministérios passaram a atuar em favor da proteção e no enfrentamento da exploração sexual contra crianças e adolescentes.

Atendendo a esta solicitação, o Ministério do Turismo lançou, no final do mesmo ano, o Programa Turismo Sustentável e Infância (TSI), com os objetivos de prevenção e de enfrentamento da exploração sexual de crianças e adolescentes no turismo, possuindo como princípios o desenvolvimento sustentável, a responsabilidade social corporativa e os direitos da criança[5].

Aliada a estas medidas, a gravidade da situação motivou a instauração, no Congresso Nacional, de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) com a finalidade de investigar as situações de violência e as redes de exploração sexual, sobretudo de crianças e adolescentes, nos diversos estados membros da federação. Essa CPMI encerrou oficialmente seus trabalhos em agosto de 2004 e trouxe à tona relatos assustadores, culminando na edição do Projeto de Lei nº 253/04, o qual após algumas alterações veio a se converter na Lei nº 12.015, de 07 de agosto de 2009.

4. Principais objetivos da Lei nº 12.015/09

A nova legislação surgiu com o intuito de atualizar e conferir tratamento normativo adequado às questões relacionadas aos crimes sexuais, visando, entre outros exemplos, acabar com a violência e a exploração sexual infantil.

Verifica-se, destarte, que o objetivo da nova Lei foi acabar com a polêmica que sempre circundou o tema presunção de violência, extirpando o termo presunção e estabelecendo, de forma absoluta, o crime para aquele que mantém conjunção carnal ou pratica outro ato libidinoso com menor de catorze anos.

Outrossim, outra mudança proporcionada pela Lei nº12.015/09, foi quanto à enfermidade ou deficiência mental. A nova redação passou a exigir a ausência de discernimento para a configuração do delito previsto no artigo 217-A, estupro de vulnerável. Assim, a enfermidade ou deficiência mental deve mostrar-se uma barreira à percepção do ofendido. Caso isso não ocorra, não estará configurado o delito. Não basta a simples enfermidade ou deficiência, deve haver também a falta de discernimento.

De qualquer modo, em todos os casos, seja menor de 14 anos, enfermo ou deficiente mental, sem discernimento, ou acometido de outra causa que retire a capacidade de resistência, é fundamental a abrangência do dolo do agente.

É mister a ciência do autor do crime em manter relação sexual com uma pessoa em quaisquer das situações descritas como elementar do tipo penal em análise. Se tal não se verificar, ocorre erro de tipo, afastando-se o dolo e não mais sendo possível a punição, uma vez que inexiste a forma culposa.

Considerações finais

Verifica-se que a reforma legislativa teve o objetivo, em um momento nacional de violência de todas as formas, de preocupação com o respeito à dignidade da pessoa humana, de combate à pedofilia, exploração e violência sexual em especial, de atualizar e conferir tratamento normativo adequado às questões relacionadas aos crimes sexuais.

Com efeito, ao criminalizar e penalizar a prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso com os chamados vulneráveis, o legislador buscou tutelar sua dignidade sexual e, sobretudo, priorizar uma das finalidades da pena, qual seja, a prevenção.

Assim, considerando que o legislador revogou o artigo 224, do Código Penal e extirpou do ordenamento jurídico o termo presunção de violência; considerando que criou um dispositivo próprio, o qual não exige para a caracterização do crime o emprego de violência ou de grave ameaça, ou seja, para a subsunção à conduta típica basta a prática de conjunção carnal ou outros atos libidinosos com aquelas pessoas que a lei considera vulnerável; considerando o estudo sobre exploração sexual infantil que embasou a realização da Lei nº 12.015/09, parece claro o intento do legislador de proibir completamente o relacionamento sexual com o vulnerável.

Referências
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Notas:
[1] ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Pesquisa sobre a exploração sexual de adolescentes no Chile. Disponível em: http://white.oit.org.pe/ipec/documentos/est_demanda_esci_cl.pdf. Último acesso em 02/02/2011.

[2] END CHILD PROSTITUTION CHILD PORNOGRAPHY AND TRAFFICKING OF CHILDREN FOR SEXUAL PURPOSES (ECPAT). Informe da ECPAT sobre a exploração sexual de meninos em Blangladesh. Disponível em: http://www.humantrafficking.org/uploads/publications/Bangladesh_Part1.pdf. Último acesso em 02/02/2011.

[3] DIOGENES, Gloria. Os sete sentimentos capitais – Exploração sexual comercial de crianças e adolescentes. 1ª ed. São Paulo: Annablume. 2008, p. 51.

[4] UNICEF. Disponível no site www.unicef.org.br . Ultimo acesso em 22/12/2015.

[5] MINISTÉRIO DO TURISMO. Programa Turismo Sustentável e Infância. Disponível em: http://www.turismo.gov.br/turismo/programas_acoes/programa_sustentavel_infancia/atuacao.html. Último acesso em 02/02/2011.


Informações Sobre os Autores

Lígia Maria de Oliveira Nazar

Doutoranda em Direito Político e Econômico pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Mestre em Direito Penal pela PUC-SP. Docente em Direito Penal no Centro Universitário Estácio de Sá e Universidade Paulista – Unip. Advogada

Milena Faria Derato Giora

Mestre em Direito da Sociedade da Informação pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas – UniFMU. Especialista em Direito Tributário pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Docente em Direito Penal Direito Tributário e ética pela UniFMU. Advogada