Resumo: O presente trabalho tem por objetivo apresentar alguns questionamentos à recém instituída civilística constitucionalizada. O conceito atual de Direito Civil-constitucional já não coincide com o conceito dos anos 90, tampouco com aquele dos primórdios do Século XXI. A interpretação do Direito Privado à luz da Constituição pode levar a alguns abusos, a situções de invasão ilegítima na esfera privada, por vezes, mesmo na esfera individual. Hão-de se impor limites à hermenêutica civil-constitucional.
Palavras-chave: Hermenêutica; Direito Civil-constitucional; perigos; limites.
Abstract: The present work is intended to pose some questions about the recently instituted constitutionalized analysis of Private Law. The present concept of a so called constitutionalized Private Law is not the same as it used to be in the 90’s and in the very beginning of the XXI Century. The interpretation of Private Law according to the Constitution may lead to abuses, to situations of illegitimate invasion in the private sphere, even in the intimate. There must be boundaries to the constitutionalized hermeneutics of Private Law.
Key word: Hermeneutics; constitutionalized Private Law; dangers; limits.
INTRODUÇÃO
Fala-se muito no fenômeno da constitucionalização do Direito Civil. Que significa isso? Significa que o Direito Civil se acha contido na Constituição? Significa que a Constituição se tornou o centro do sistema de Direito Civil? Significa que as normas de Direito Civil não podem contrariar a Constituição?
De fato, não significa nada disso. Por constitucionalização do Direito Civil deve-se entender, hoje, que as normas de Direito Civil têm que ser lidas à luz dos princípios e valores consagrados na Constituição, a fim de se implementar o programa constitucional na esfera privada. A bem da verdade, não só as normas de Direito Civil devem receber leitura constitucionalizada, mas todas as normas do ordenamento jurídico, sejam elas de Direito Privado, sejam de Direito Público. Este é um ditame do chamado Estado Democrático de Direito, que tem na Constituição sua base hermenêutica, o que equivale a dizer que a interpretação de qualquer norma deverá buscar adequá-la aos princípios e valores constitucionais, uma vez que esses mesmos princípios e valores foram eleitos por todos nós, por meio de nossos representantes, como pilares da sociedade e, conseqüentemente, do Direito.
Falar em constitucionalização do Direito Civil não significa retirar do Código Civil a importância que merece como centro do sistema, papel este que continua a exercer. É no Código Civil que iremos buscar as diretrizes mais gerais do Direito Comum. É em torno dele que gravitam os chamados microssistemas, como o imobiliário, o da criança e do adolescente, o do consumidor e outros. Afinal, é no Código Civil, principalmente na posse e na propriedade, na teoria geral das obrigações e dos contratos, que o intérprete buscará as normas fundamentais do microssistema imobiliário. É a partir das normas gerais do Direito de Família e da própria Parte Geral do Código Civil que se engendra o microssistema da criança e do adolescente. Também será no Código Civil, mormente na Parte Geral, na teoria geral das obrigações e dos contratos, além dos contratos em espécie, que se apóia todo o microssistema do consumidor. Não se pode furtar ao Código Civil o trono central do sistema de Direito Privado. Seria incorreto e equivocado ver neste papel a Constituição.
No entanto, apesar disso, se a Constituição não é o centro do sistema juscivilístico, é, sem sombra de dúvida, o centro do ordenamento jurídico, como um todo. É, portanto, a partir dela, da Constituição, que se devem ler todas as normas infraconstitucionais. Isso é o óbvio mais fundamental no Estado Democrático.
Vejamos um exemplo de como deve ser essa leitura.
Partamos de um problema concreto, talvez um tanto caricatural, mas esclarecedor: A celebrou com B contrato de prestação de serviços de jardinagem. No contrato havia cláusula que concedia a A, na condição de tomador do serviço, poderes de castigar B fisicamente, caso este cometesse alguma falha. Pergunta-se: é válida a cláusula contratual? Por quê?
Qualquer que seja a posição doutrinária, a resposta genérica será não, não é válida a cláusula. Ao responder o porquê é que as diferenças aparecem.
Antigamente, quando não se falava em Direito Civil-constitucional, a resposta teria como fundamento exclusivo o Código Civil. A cláusula não é válida porque seu objeto é ilícito, e segundo o art. 104, II, do Código Civil, a validade do contrato requer objeto lícito. Esta seria uma possível resposta tradicional à pergunta.
Uma resposta radical, dentro do movimento de constitucionalização do Direito Civil, teria em conta ser a Constituição o centro do ordenamento juscivilístico. Assim, a resposta seria não, a cláusula é inválida, porque contrária ao princípio da dignidade humana, consagrado no art. 1º, III da Constituição.
A resposta que reputo correta, porém, leva em conta o papel central exercido pelo Código Civil, lido, entretanto, à luz da Constituição. Por esse prisma, de acordo com o art. 104, II do Código Civil, a cláusula é inválida por ter objeto ilícito. E o objeto é ilícito porque afronta diretamente o princípio da dignidade humana, consagrado no art. 1º, III, da Constituição. Esta sim é uma leitura correta do problema, sob o enfoque constitucionalizado do Direito Civil. Isso é Direito Civil-constitucional, que parte dos ditames e dos limites do Direito Positivo, para, num enfoque constitucional, resolver o problema.
Outro exemplo que poderíamos dar é o do imóvel residencial da pessoa solteira. Seria ele passível de execução por dívidas?
Segundo uma leitura tradicional, seria, uma vez que a Lei 8.009/90, que trata do assunto, refere-se ao imóvel residencial da entidade familiar. Como não existe família de uma pessoa só (não há conjunto unitário no Direito), então a conclusão óbvia que se segue inexoravelmente é a de que o imóvel da pessoa solteira pode ser penhorado por dívidas. Mesmo porque, se a Lei 8.009/90 se refere a entidade familiar, é porque entendeu não merecer a pessoa solteira a mesma proteção conferida à família. O alargamento da interpretação dessa norma, mesmo com base em valores e princípios constitucionais, não se justificaria, diante da mens expressa da Lei de não estender ao solteiro a mesma dignidade da família. Isso, às vezes, ocorre; na balança de valores e princípios, pode um valor, em tese maior, ceder a um aparentemente menor: é o caso da permissão expressa de lançamento do nome do devedor inadimplente nos órgãos de proteção ao crédito. A dignidade cede ao crédito; por outro lado, pensa-se também na dignidade do credor.
Todavia, numa interpretação civil-constitucional, que parta dos limites da própria Lei 8.009/90, podemos perfeitamente invocar o princípio da dignidade humana (art. 1º, III da CF) a favor da pessoa solteira. É que a Lei em análise, expressamente se refere a dívidas do filius-familias, portanto pessoa solteira, para efeito da impenhorabilidade do imóvel residencial. Com base, pois, nessa disposição legal, lida à luz do princípio constitucional da dignidade humana, pode-se estender a impenhorabilidade ao imóvel da pessoa solteira. Afinal, se é este o princípio que fundamentou a impenhorabilidade do imóvel residencial familiar (Lei 8.009/90), então deverá também fundamentar a proteção ao imóvel do solteiro. Afinal, as pessoas solteiras têm, elas também, dignidade a ser promovida, mas isso a partir de uma “brecha” na própria Lei 8.009/90. Fosse ela taxativa, a dignidade do solteiro deveria ceder ao crédito, como, aliás, ocorre em outros casos.
O que não se pode, definitivamente, é se admitir uma interpretação absolutamente inopinada, descompromissada com os ditames da norma posta, apenas com base nos valores constitucionais, ao sabor do arbítrio do juiz, de forma absurdamente alternativa e, por vezes, até surpreendente. Isso é arbitrariedade, é insegurança jurídica. E, infelizmente, exemplos é o que não falta. Recentemente, tive notícia de uma decisão que obrigava uma pessoa a prestar alimentos a um seu primo, com base no princípio da dignidade humana. Trata-se, a toda vista, de decisão ilegítima, contra legem. O Código Civil e a Lei de Alimentos são claros: a obrigatoriedade de prestar alimentos se limita aos cônjuges, companheiros, descendentes, ascendentes e irmãos. Primos não entram. Quis a Lei que, faltando essas pessoas, a incumbência fosse do próprio Estado, quando muito. Isso ocorre também na esfera trabalhista: é do Estado, não do patrão, o dever de prestar assistência, inclusive salários à mulher que acaba de dar à luz, ou ao enfermo, além de quinze dias, dentre outros casos. A opção é consciente. Não se pode, assim, ferir limites legítimos da Lei, mesmo infraconstitucional, em nome de valores constitucionais, por mais nobres que sejam. A se aceitar a decisão em vista, em breve uma pessoa será obrigada a prestar alimentos aos vizinhos, com base na dignidade humana.
E assim como esses problemas foram solucionados, assim também deverão ser todos os problemas na esfera do Direito Civil, de todo o Direito infraconstitucional.[1]
Como vimos, o Direito Civil-constitucional não se resume à interpretação do Direito civil à luz da Constituição. Devemos entendê-lo também como instrumento de implantação do programa constitucional na esfera privada, sem, no entanto, ferir os limites legítimos impostos pela Lei, e sem suprimir liberdades privadas, como abordado a seguir.
EVOLUÇÃO DA CIVILÍSTICA CONSTITUCIONAL NO BRASIL
A civilística constitucional no Brasil passou por três fases.
A primeira delas teve caráter meramente conteudístico. Em outras palavras, a preocupação era tão-somente a de identificar o conteúdo de Direito Civil na Constituição da República. Identificaram-se normas de Direito Contratual, de Direito das Coisas (principalmente relativas à propriedade), normas de Direito de Família, de Direito das Sucessões e de Direito Empresarial. Este era o chamado Direito Civil-constitucional no fim dos anos 80 e no início dos anos 90.
O grande marco teórico desta fase foi o eminente professor da Universidade de São Paulo, Carlos Alberto Bittar. Após a promulgação da Carta de 1988, veio a lume a obra Direito Civil Constitucional, que visava apontar o conteúdo de Direito Civil no texto constitucional. Assim ficou a primeira fase, adstrita a uma análise de conteúdo somente.
A segunda fase pode ser denominada interpretativa. É totalmente diferente da primeira e teve por escopo inverter a hermenêutica tradicional que, de uma certa forma, interpretava a Constituição à luz do Código Civil. Nesta segunda fase, destacou-se a necessidade e a importância de uma interpretação dos problemas de Direito Privado sob a ótica dos valores e princípios constitucionais.
Na verdade, esta segunda fase ainda não passou, nem passará, enquanto perdurar o Estado Democrático de Direito, que tem por base a Constituição.
O marco teórico desta segunda fase foi a escola do Rio de Janeiro e, principalmente, a obra do também eminente professor da UERJ, Gustavo Tepedino. Seus principais escritos a respeito do tema ainda encontram-se, até hoje, no livro “Temas de Direito Civil”, editado pela Renovar, no fim da década de 90.
Para Tepedino, o centro do ordenamento juscivilístico é a própria Constituição, não o Código Civil.
A escola carioca, diga-se, inspirou-se nas teses de Pietro Perlingieri, civilista italiano de grande envergadura.
Outro marco importante foi a obra do professor argentino Ricardo Luis Lorenzetti, editada pela RT, em 1998, com o nome de Fundamentos do Direito Privado. Esse trabalho teve enorme repercussão em nossos meios acadêmicos, e ainda tem.
Embora Lorenzetti não identifique qualquer centro no sistema, reconhece a importância da Constituição, como irradiadora de valores e princípios que devem guiar o intérprete no Direito Privado.
Por fim, a terceira fase da civilística constitucional pode ser denominada de fase programática.
Nesta etapa, a preocupação já não é tão-somente a de ressaltar a necessidade de uma hermenêutica civil-constitucional, mas também a de destacar a imperiosidade de se implantar o programa constitucional na esfera privada.
Mas que programa constitucional?
Ora, a Constituição, ao elevar a dignidade humana ao status de fundamento da República, traçou um programa geral a ser cumprido pelo Estado e por todos nós. Este programa consiste em promover o ser humano, em conferir-lhe cidadania, por meio da educação, da saúde, da habitação, do trabalho e do lazer, enfim por meio da vida digna. E a própria Constituição, por vezes, fixa parâmetros e políticas para a implementação desse programa. Assim, o Direito Civil-constitucional não se resume mais ao Direito Civil interpretado à luz da Constituição, mas interpretado à luz da Constituição, com vistas a implantar o programa constitucional de promoção da dignidade humana. Em outras palavras, não se trata mais de simplesmente dizer o óbvio, isto é, que o Direito Civil deve ser lido à luz da Constituição, mas antes de estabelecer uma interpretação civil-constitucional que efetivamente implante o programa estabelecido na Constituição. Trata-se de estabelecer um modus interpretandi que parta dos ditames e dos limites da norma posta, numa ótica constitucional, assim promovendo a dignidade humana.
Resta a pergunta: como implementar esse programa?
O Estado e o indivíduo são co-responsáveis nessa tarefa. O Estado deve elaborar políticas públicas adequadas, não protecionistas, que não imbecilizem o indivíduo, nem lhe dêem esmola. Deve disponibilizar saúde e educação de boa qualidade; deve financiar a produção e o consumo; deve engendrar uma política de pleno emprego; deve elaborar uma legislação trabalhista adequada; deve garantir infra-estrutura; deve também garantir o acesso de todos à Justiça; deve criar e estimular meios alternativos de solução de controvérsias; dentre milhares de outras ações que deve praticar.
Os indivíduos, pessoas naturais e jurídicas, também têm sua parcela, não menos importante, na construção de uma sociedade justa. São atitudes condizentes com o programa constitucional pagar bem aos empregados (repartir o pão); agir com correção e não lesar a ninguém, como já dizia Ulpiano, há 1.800 anos; exercer o domínio e o crédito, tendo em vista a função social; dentre outras.
Mas como exigir dos indivíduos a implementação do programa?
Seguramente através do convencimento, dentro de uma política de coersão mínima, ou seja, a coersão entra, quando o convencimento não funcionar. Os estímulos tributários e de outras naturezas são também um bom instrumento de convencimento. O que não se pode adminitir é a invasão violenta, ilegítima, ditatorial na esfera privada, por vezes íntima, em nome da dignidade ou da função social. Isto representaria um retrocesso histórico; estaríamos abrindo mão de liberdades duramente conquistadas. Há que sopesar os dois valores, dignidade e liberdade. Um não pode sobreviver sem o outro. O ser humano só pode ser digno se for livre. Sem liberdade, não há dignidade. Assim sendo, a dignidade há-de ser implementada pelo indivíduo não por força da coersão, mas por força da persuasão, da opção livre, obtida pelo convencimento, fruto da educação. São muito importantes e eficazes as campanhas educativas. Exemplo é a campanha antitabagista, que reduziu consideravelmente o consumo do cigarro, sem se valer praticamente de qualquer tipo de coersão. Para que, então, a violência da coersão, a supressão da liberdade em outras hipóteses? O que vemos hoje é a invasão pura e simples do Estado na esfera individual, por vezes, em nome da diginidade, por vezes, sem nenhuma legitimidade, no fundo só para aumentar sua receita.
LIMITES À INTERPRETAÇÃO CIVIL-CONSTITUCIONAL
Como visto acima, uma interpretação civil-constitucional radical, literal, pode levar a situações limite de supressão das liberdades individuais na esfera privada e, às vezes, mesmo na esfera íntima. Em nome da dignidade, não podemos abrir mão da liberdade tão duramente conquistada. Não há dignidade, sem liberdade. A implementação dos direitos fundamentais na esfera privada deve ser feita de modo racional, sem ferir o espírito legítimo da lei ordinária, sem cassar a liberdade individual.
Temos todos o dever de ficar alertas para o grave perigo de uma hermenêutica civil-constitucional radical e leviana, que conduz inexoravelmente à perda da liberdade. Isso, diga-se de passagem, já vem ocorrendo.
Tudo começou, talvez, com um inocente cinto de segurança. Tão útil, tão benéfico à saúde e à vida, mas tão perverso, quando imposto coercitivamente ao motorista, como se fosse ele um imbecil, sem temor pela própria vida. Em nome da saúde pública, o Estado invadiu a intimidade de nossos veículos, chamando-nos a todos de idiotas e nos impondo violentamente o uso do cinto de segurança. É como se, de fato, não possuíssemos qualquer zelo pela própria vida. Se fosse pela vida do próximo, ainda seria de se entender. Mas, não. O Estado estava muito preocupado com o descaso que nutríamos por nós mesmos. Assim, o cinto de segurança se tornou obrigatório. E nós o que fizemos? Nada? Antes tivesse sido nada; pior, aplaudimos a supressão de nossa liberdade, liberdade de sermos tratados como pessoas conscientes e responsáveis, liberdade de assumir um pequeno risco calculado, em que os únicos prejudicados seriámos nós mesmos. Tudo isso em nome da dignidade, da saúde pública. Como se o cinto de segurança fosse responsável pelas mortes no trânsito. Como se as ruas e estradas mal desenhadas e esburacadas, fruto da incompetência e da corrupção, não desempenhassem o papel preponderante. Como o Estado não tem dinheiro para arrumar as ruas e as estradas, então, que sejamos forçados a usar o famigerado cinto. Pois há que dizer com todas as letras: com o dinheiro que gastamos para construir, mal e porcamente, uma estrada superfaturada, seria possível construir dez highways de dar inveja aos alemães. Com o dinheiro que se gasta para ganhar uma “merdalha” olímpica de mentira e, de verdade, levar uma malta de incompetentes para se divertir em Pequim, ou seja lá onde for, às custas do erário público, seria possível tapar mil vezes os buracos da grande São Paulo. Mas, vivemos na ditadura das mil maravilhas, onde ninguém diz nada, todo mundo aceita impassível os maiores absurdos contra a liberdade, com os aplausos da imprensa e da comunidade acadêmica “civil-constitucional”. Vivas para a dignidade humana!!!
Tudo começou também com uma “revolucionária” Lei regulamentando a união estável. O negócio passou a ser o seguinte: ou você se casa, ou se casa…. Entendeu?
Hoje, no Brasil, temos que ser perfeitos. As câmeras nos vigiam a todo instante. Basta uma “pisadinha” um pouco mais pesada no acelarador, pouco importa em que condições, e “smile! You’re on candid camera!” Pouco depois, vem a inexorável multa. Mas será que este Estado que exige a perfeição, que não admite qualquer deslize, será ele perfeito? Com o cidadão honesto, que transgride minimamente uma norma de trânsito, não há comiseração. Por outro lado, toda a comiseração para os assaltantes, os traficantes, os políticos corruptos, os empresários desonestos, os seqüestradores e por aí vai.
Recentemente, o País assistiu ao seqüestro de duas adolescentes em Santo André. Infelizmente, a Polícia, com medo de agir, acabou por meter os pés pelas mãos, e uma das moças morreu, vindo a outra a sofrer lesões graves. Que dizer do episódio?
– “A Polícia deveria ter atirado no psicopata, quando teve oportunidade”, é o que ouvi muitos dizerem. – “Para isto ela possui atiradores de elite”. Realmente, deveria mesmo. Num país de verdade, numa democracia de verdade, onde o cidadão honesto é protegido, é isso que teria sido feito. Mas no Brasil, em nossa ditadura de bananas, tivesse a Polícia encostado num fio de cabelo do bandido, seriam imprensa, Igreja, MST, ecologistas, Movimento das Donas de Casa, OAB, PT, PCB, PCdoB, PCC, PCCC e sabe-se lá mais o que a defender, com unhas e dentes, o coitadinho do rapaz, que estava apenas expressando o seu amor, já estava prestes a libertar as duas meninas. Pobrezinho, mais uma vítima da truculência policial. É assim que vivemos, é assim que enfrentamos uma guerrilha urbana, com juízes e promotores defendendo o Direito Penal mínimo. “As estatísticas demonstram que o sistema de lei e ordem, de tolerância zero não funciona”. É isso o que dizem. Mas que estatísticas seriam essas? Seguramente não as dos países árabes, não as da China, não as de Cuba, não as da Inglaterra (para citar a mãe da democracia moderna), não as dos Estados Unidos (principalmente de Nova Iorque) e de muitos outros países. Já que nada se pode contra os bandidos, então suprima-se a liberdade dos homens de bem. Daqui a pouco estaremos sendo filmados dentro de nossa casa, em nosso banheiro, em nosso quarto, em nossa mesa, afinal interessa à sociedade (ao Estado) saber se estamos dormindo corretamente, comendo corretamente, se estamos tomando banho e escovando os dentes adequadamente, por questões de saúde pública, de diminuir os gastos com o SUS etc. Mas os gastos com as mordomias, com aviões presidenciais, com medalhas olímpicas (cada uma custou a nós por volta de 53 milhões – para a “tchurma” se divertir em Pequim às nossas custas), ah… isso tudo pode. Aliás, deve ser mesmo com o dinheiro das multas arrecadadas com os “graves crimes” cometidos pelo cidadão honesto, que o Estado financia a bandalheira.
A vigilância exagerada não deixa ninguém respirar. Uma verdadeira invasão na esfera privada e, pior, na esfera íntima. O cidadão passa a viver com medo, não só do bandido, mas do Estado, que tudo vê por suas câmeras, seus alcagüetes e seus agentes. Tudo em nome do bem comum, da dignidade humana, da função social e de outros valores.
Não somos contra a dignidade humana, a função social da propriedade, da empresa, dos contratos e tudo o mais. Mas não podemos deixar que, em nome disso, as liberdades conquistadas a duras penas, por vezes com sangue, sejam sumariamente suprimidas.
Não bastasse o violento confisco da liberdade de ir e vir, agora o foco são as liberdades intelectuais. Atenção! ESTÃO CASSANDO A LIBERDADE DE EXPRESSÃO DENTRO DAS UNIVERSIDADES. Antigamente, quando a universidade não tinha a famosa autonomia consagrada na Constituição, tinha inteira liberdade de expressão. Parece um contrassenso, não é? Mas, fato é que os currículos eram elaborados com liberdade; respeitava-se a autonomia acadêmico-científica; confiava-se na inteligentsia universitária; os professores tinham liberdade de pensar e de publicar. Bastou a Constituição consagrar em seu texto a autonomia das universidades, que toda essa liberdade foi suprimida. Hoje, a universidade está completamente à mercê das comissões de “notáveis” do MEC, da CAPES, do Conselho disso e daquilo. Se o currículo implantado pela universidade não estiver de acordo com a cartilha dos tais “notáveis”, a instituição é punida, execrada, ameaçada, para dizer o mínimo. É como se os “notáveis” dissessem aos acadêmicos: – “Vocês não passam de um amontoado de imbecis, que não têm condições de formular um projeto pedagógico. Sendo assim, copiem nossa cartilha, que tudo estará bem. E não ousem discordar de nós.” É a infantilização, para não dizer imbecilização, da universidade (professores e alunos), que se segue à infantilização (imbecilização) do consumidor, do devedor, do trabalhador, da mulher etc.
Antes os professores publicavam o que quisessem, onde quisessem. Hoje, não. Ai do professor que fugir das tais linhas de pesquisas; ai do professor que publicar em revista científica, que esteja fora da lista de revistas indexadas no sistema QUALIS, imposto violenta e arbitrariamente pelos “notáveis” da CAPES. Isso tudo tem nome: chama-se patrulhamento ideológico, supressão de liberdades, DITADURA. Seria a volta do index librorum prohibitorum? Tenho medo de responder….mas, pelo menos, o index não se disfarçava.
Leis importantes, que poderiam e deveriam ser discutidas com a comunidade por meio de congressos e seminários, são votadas a toque de caixa, como o próprio e deplorável Código Civil. Técnicos de órgãos públicos, como o IBAMA, se achando detentores da verdade, do monopólio do conhecimento, impõem normas agressivas e invasivas à intimidade dos lares, a título de defesa da ecologia, quando nada mais fazem do que promover, quero crer que de boa-fé, os interesses dos traficantes de animais. Recentemente, os técnicos do IBAMA tentaram, espero que continue em vão, restringir a um mínimo os criatórios legalizados e o comércio legítimo de espécies da fauna brasileira. Em nenhum momento a comunidade dos interessados foi convidada à reflexão. A norma é imposta “goela abaixo” de todos. Quem sai ganhando? Ninguém. Talvez os traficantes de aves e de animais silvestres.
A invasão não pára. Não há limites. Em 2006, em nome da celeridade do processo, da efetividade processual, da dignidade humana, impôs-se ao juiz o dever de decretar de ofício a prescrição. A norma, a toda vista, invade a esfera privada, que pertence só ao devedor. A prescrição, ao atingir a responsabilidade do devedor, seja por extinguir a pretensão do credor, ou a subordinação patrimonial do devedor, torna-se meio de defesa do réu. A ele e a mais ninguém interessa. É matéria de ordem privada. O Estado não tem nada a ver com isso. E não se diga que a medida é para agilizar o processo e garantir a dignidade humana, em última análise. Primeiro porque não é isso que vai agilizar a Justiça; segundo que agilizar o processo às custas da liberdade, é pagar um preço muito alto, é atentar contra a dignidade humana, que tem na liberdade seu maior baluarte.
Até no pãozinho francês nosso de cada dia o Estado quis meter o bedelho, agora impondo um percentual de farinha de mandioca na massa. Corremos o risco de não termos mais a opção de escolher nossa comida. Tudo em nome da dignidade e, creio, neste caso, da função social das padarias.
E vem a imprensa e os publicistas defender essas medidas. A nós, cultores do Direito Privado, caberia propugnar vigorosamente pela liberdade, pela autonomia privada, pilares da dignidade. Em vez disso, aplaudimos esse Estado ditador, esse Estado invasivo, e ainda fornecemos a legitimidade: função social, dignidade humana, Direito Civil-constitucional. Mas função social e dignidade humana não é isso, muito antes pelo contrário. É na liberdade que tem início a dignidade. Interpretar o Direito Civil à luz da Constituição, implementar o programa constitucional de promoção da dignidade humana não pode significar o desmantelamento das liberdades privadas, não pode implicar a invasão arbitrária, ditatorial, estúpida e ilegítima na intimidade do indivíduo. Não podemos nos calar, não podemos aceitar tudo isso de braços cruzados. Até quando ficaremos cegos ao que está acontecendo debaixo de nosso nariz?
Será que estou exagerando? Será que minhas preocupações não passam de delírio? Pode ser que tenha exagerado um pouco, aqui e ali, ao longo deste desabafo, mas não creio esteja delirando.
Felizmente, algumas vozes, não só a minha, se levantam. Uma das primeiras foi a do grande jurista mineiro, Prof. João Baptista Villela, que hoje, mais do que nunca admiro. Mas há outras, como o desabafo anônimo, que recentemente li na internet, e que partilho com os leitores, à guisa de conclusão.
“Racismo, sexismo, especismo. Tudo a mesma coisa. No entanto, pessoas que lutam contra o racismo, costumam ser especistas e sexistas. Pessoas que lutam contra o sexismo, costumam ser racistas e especistas. Pessoas que lutam contra o especismo, costumam ser racistas e sexistas. Como entender isso?
A Lógica de Herodes – Lei Seca!
Pois é, o bicho tá pegando! Tá difícil de agüentar esses discursos moralistas, apoiados pela “grande” imprensa, que simplesmente abdicou do conceito de jornalismo e aderiu franca e abertamente à campanha. É, virou campanha mesmo. Fazia tempo que não via tantos jornalistas do horário nobre tão indignados. E a cantilena diária é: olha como diminuíram os acidentes graves depois da lei seca!
Então tenho sugestão ainda melhor: que tal toque de recolher após as 22h? Hein?Reduziria a zero a violência de um modo geral. Assassinatos, roubos e estupros cairiam drasticamente. E estado de sítio, então? Uma beleza! Todo mundo proibido de pegar estrada nos finais de semana. Fiquem onde estão! Nenhum acidente nas estradas. Afinal, o que as pessoas têm que fazer na rua após as 22h? Não é mesmo?
Outra coisa que me revolta: as materiazinhas de jornalistazinhos com os
inspirados títulos do tipo “Soluções criativas para enfrentar a lei seca”.
Aí, tome sugestões cretinas do tipo “galera aluga vans para ir à balada”. Haja paciência. E eu sou obrigado a andar em bando, agora? Nunca andei. Vou ter que andar agora? De turminha? Feito adolescente? Só falta sugerir que todos cantem “Andança” nos trajetos de ida e volta: “Me leva, amor! Amooooooor! Me leeeva amor…” Aos quarenta e tantos anos de idade…
E acabou-se aquela história de tomar um bom vinho tinto no jantar com sua querida companhia e chegar em casa, os dois “meio groguezinhos”, de orelha quente, para uma noite muito especial, aquecida pelos prazeres de Baco.
Não! Se você for parado por uma blitz no caminho, é preso como um bandido!
Crime: duas taças de vinho. Aí vem mais uma “solução criativa”: – Vão de táxi, oras! Nessa hora prefiro me calar para não ser preso por um crime, esse sim, bem mais grave: lesão corporal. Quem sugere uma coisa dessas nunca bolinou ninguém com uma mão no volante e a outra livre para voar. Sou de Áries, porra! E nem todo mundo é obrigado a ser exibicionista, ou leonino, e fazer isso diante dos olhos do motorista atento ao retrovisor. Tenha a santa paciência!
Esse mundo está tomado de moralistas, de gente que já entregou os pontos, pendurou as chuteiras e se horroriza com qualquer pequeno delito. Querem um mundo sem barulhos depois das dez, ninguém dirigindo “meio alto” ao volante, sexo exclusivamente para procriação, estádios de futebol sem cerveja. Que tal umas borboletinhas azuis e cor-de-rosa revoando às margens das estradas e imagens da Virgem Maria descendo dos céus em cascata? Casinhas de chocolate e “waffers” com anjinhos tocando harpas? Se isso é o paraíso, eu quero é o inferno. Deus me livre dessa “sociedade ideal”, a partir de medidas reacionárias e de um sistema de governo que se funda no despotismo.
Querem baixar os índices de violência no trânsito? Ótimo, eu também. Então, fiscalizem e prendam os bêbados de fato, aqueles que bebem em excesso, que fazem pega nas avenidas, andam em alta velocidade. Ou seja: POLÍCIA, TOME VERGONHA E TRABALHE! NÓS PAGAMOS IMPOSTOS PARA ISSO.
Sem essa de “passar a régua”, igualar a todos e tratar-nos como bandidos.
Como essa polícia cretina não sabe em quem atirar, atira em todos. Imagina que, assim, acerta no bandido. Como, de novo incompetente, não sabe prender os beberrões, quer prender a todos. Como não sabe enfrentar e inibir os brigões das torcidas organizadas, proíbe a venda de cerveja nos estádios.
Os bandidos têm demonstrado mais inteligência do que as autoridades. Sinto que querem nos pegar para Cristo. Isso me faz lembrar Herodes. Um otário que usou essa mesma lógica da generalização e ordenou que matassem todas as crianças porque, assim, estaria garantido que mataria um sujeito que, quando crescesse, iria botar pra quebrar. Pois é. O tal sujeito escapou. E botou pra quebrar.
Importante: não bebi nada hoje.”
Informações Sobre o Autor
César Fiuza
Doutor em Direito pela UFMG.
Professor titular na Universidade FUMEC.
Professor Adjunto de Direito Civil nos Cursos de Graduação e de Pós-graduação da PUCMG e da UFMG. Professor colaborador na Universidade de Itaúna.
Advogado militante.