Controle externo da execução orçamentária

Vem surgindo, atualmente,  discussões quanto à conveniência de integrar os Tribunais de Contas ao Poder Judiciário como cortes especializadas, para dar-lhes maior eficiência em suas decisões. Essa possibilidade foi por nós aventada nos idos de 1996 em palestra que fizemos no IV Seminário de Direito Administrativo realizado pela Editora NDJ, porque estávamos convencidos da absoluta ineficiência dos mecanismos de controle e fiscalização da execução orçamentária. De lá para cá nada mudou, aliás, até agravou com a leniência de alguns tribunais de contas, que detectam irregularidades nas contas apresentadas pelos governantes, porém recomendam sua aprovação pelo Legislativo como se tratassem de órgãos políticos e não técnicos.

Pela sua atualidade, transcrevemos na íntegra a referida palestra e ao final dela, teceremos algumas considerações à luz de reflexões posteriores.

“O nosso tema versará sobre o controle externo da execução orçamentária com o auxílio do Tribunal de Contas.

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Antes, porém, convém fazer uma pequena introdução acerca do instituto do orçamento público.

O orçamento, entre nós, é uma lei ânua de caráter concreto, estimando a arrecadação de receitas e fixando pormenorizadamente as despesas. Não é e nem deve ser um mero documento de caráter contábil e administrativo mas, um instrumento representativo da vontade popular.

De fato, o sistema orçamentário plasmado pela Constituição Federal, coerente com os postulados democráticos, obriga o governante a planejar e elaborar uma política de ação governamental detectando e elegendo as prioridades da pluralista sociedade brasileira, em constante transformação, dentro das reais possibilidades financeiras do Estado. Exige do governante, por assim dizer, a postura de um estadista. Esse plano de governo é referendado pelos governados no momento em que o Congresso Nacional aprova o orçamento, que outra coisa não deve ser, senão o espelho das atividades que o governo deseja implementar. Do contrário as eleições seriam desnecessárias e os inúmeros partidos políticos, de diferentes matizes e de programas distintos, perderiam a razão de sua existência.

Pretender que as despesas sejam feitas quando, onde, como e para que fim, tudo ao talante do Executivo, nos moldes dos “fundos” que vêm sendo instituídos, é o mesmo que negar ao povo o direito de autorizar as despesas, o qual, surgiu nas sociedades modernas como conseqüência natural da conquista do direito de autorizar previamente as receitas.

A manipulação de verbas, na fase de elaboração orçamentária, ao sabor dos interesses políticos do momento, distanciando-se do prometido plano de ação governamental, espelhado em campanhas políticas, tem levado as comunidades mais conscientizadas à idéia de um “orçamento participativo” em que o povo atuaria diretamente junto ao Legislativo. Nada há na Constituição que impeça o Legislativo de contar com a participação do povo, desde que respeitada a iniciativa de lei pelo Executivo (art.165, III da CF) e as emendas modificativas sejam feitas nos limites das prerrogativas parlamentares (§ 3º, do art. 166 da CF). Nada impede, também, de o Parlamento realizar sessões de audiência pública com o fito de colher os subsídios necessários ao legítimo exercício de pressões políticas, direcionando os recursos na fase de elaboração do projeto de lei orçamentária.

O nosso orçamento está longe de corresponder às reais necessidades da sociedade. Mais se assemelha a uma peça que ornamenta as bibliotecas. O governo prega uma coisa e o exame do orçamento revela outra coisa. Mas, o pior é que o orçamento, que já não é tão representativo como deveria ser, acaba por sofrer desvios ao longo de sua execução, por ineficiência dos mecanismos de controle e fiscalização previstos na Constituição, tema de nossa exposição.

A Carta Magna prevê três tipos de controle: o privado, o interno e o externo.

A respeito do controle popular e do controle interno, para não nos alongarmos, diremos apenas o seguinte: O chamado controle privado veio expresso, pela vez primeira, no § 2º do art. 74 da Constituição Federal de 1988, facultando a qualquer cidadão denunciar irregularidades ou ilegalidades perante as Cortes de Contas. De certa forma, essa faculdade já estava implícita no consagrado direito de petição. Até hoje não tomamos conhecimento de alguém que, sem ser detentor de mandato eletivo, já tivesse exercitado essa prerrogativa. O controle interno, por sua vez, que se assenta no princípio da hierarquia, claudica sempre que as irregularidades tenham origem nos altos escalões governamentais, como é de praxe.

Resta o controle externo a ser exercido pelo Congresso Nacional com o auxílio do Tribunal de Contas da União, conforme artigos. 70 a 73 da CF, tema de nossa exposição.

Esse controle abarca a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas.

Os parlamentares não são necessariamente versados em matérias de direito, economia, contabilidade, administração, finanças públicas etc., pelo que, contam com o auxílio do TCU, cuja competência vem definida no art. 71 da CF. Compete ao Tribunal de Contas, dentre outras atribuições, apreciar as contas anuais do Presidente da República, realizar inspeções e auditorias nas unidades administrativas dos três Poderes, representar ao Poder competente sobre irregularidades ou abusos apurados etc etc.

A atuação do Tribunal de Contas, nem sempre atinge o resultado desejado. Seu desempenho é passível de várias críticas, quer pela forma de investidura de seus membros, quer pela morosidade de sua atuação, quer pelo caráter não vinculativo de seus pareceres.

É verdade que a questão da investidura dos Ministros do TCU sofreu um avanço na Constituição de 1988 (§§ 1º e 2º do art. 73)[1], que eliminou o critério de livre indicação pelo Presidente da República, contribuindo para eliminar a elevada dose de suspeição que contaminava a legitimidade do julgamento das contas prestadas pelo governante. Entretanto, os seus membros continuam sendo recrutados, sem o desejável concurso público específico ou genérico, através de um critério que não elimina de todo o subjetivismo de quem os nomeia.

É sabida a morosidade de atuação do Tribunal de Contas, deixando de detectar as irregularidades praticadas a tempo de viabilizar a reposição dos danos causados ao erário público. Com o passar do tempo tudo cai no esquecimento, segundo a máxima “o tempo apaga os vícios”. Às vezes, uma irregularidade posterior de maior grandeza tem o condão de minimizar a anterior, ou de fazê-la cair no esquecimento, propiciando a formação de um clima para implantação de um círculo vicioso.

Com a eliminação do controle prévio, que estava na Constituição de 1946 (art. 77, §§ 1º e 2º), o qual, tornava obrigatório o registro do contrato para ulterior realização da despesa, para tornar eficiente a atuação do Tribunal só restaria a otimização de seu controle concomitante, isto é, aquele exercido no curso da realização da despesa, possibilitando a sua sustação sempre que detectada qualquer irregularidade. Ocorre que, na maioria das vezes, a atuação do Tribunal está voltada para o controle posterior e assim mesmo com muito atraso. Em nível estadual, em nosso Estado, por exemplo,  existem contas de governantes da década de setenta que ainda não foram apreciadas!

Outra ineficiência do TCU é a que diz respeito ao parecer meramente opinativo. Limita-se a julgar as contas e não as pessoas. Lembramos, porém, que hoje, o Tribunal de Contas tem o poder de proferir decisão imputando débito ou multa ao responsável pela ilegalidade de despesas ou irregularidade de contas, à qual a Constituição confere eficácia de título executivo (§ 3º do art. 71). Sua atuação serve, também, para dar embasamento aos processos de responsabilização a serem aplicados pelas instâncias próprias. Porém, se formos pesquisar o percentual de recuperação de despesas consideradas ilegais pelo TCU verificar-se-á que os malbaratadores de verbas públicas ficam, em sua maioria, impunes sob todos os aspectos. E isso porque a eficácia de suas decisões fica, na maioria das vezes, na dependência de atuação de outros órgãos do Executivo ou do Legislativo.

Apesar de investidos das mesmas garantias, prerrogativas, impedimentos, vencimentos e vantagens dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça (§ 3º do art. 73 da CF) os membros do TCU estão longe de exercer uma função judicante que, entre nós, se constitui em  prerrogativa exclusiva do Poder Judiciário que, em tese, poderá invalidar qualquer decisão da Corte de Contas, mesmo aquela em que a Constituição confere eficácia de título executivo. É o que decorre do princípio constitucional de acesso ao Poder Judiciário (art. 5º, XXXV), que é uma garantia individual erigida em nível da cláusula pétrea.

A rejeição de contas pelo Tribunal de Contas pode não implicar sua rejeição pelo Congresso Nacional. Assim, o pronunciamento de técnicos, obtido com a mobilização de imensos recursos materiais e pessoais, pode ser ignorado por leigos, que detêm o poder decisório sobre a matéria, de forma monopolizada. Talvez, a solução seria a de integrar o Tribunal de Contas ao Poder Judiciário como uma Corte especializada, tomando-se o cuidado necessário na escolha do critério de sua composição por exigir, não só, conhecimentos técnicos especializados, como também, grande sensibilidade política, sob pena de criar impasses político-institucionais a todo o momento.

Concluindo, os frágeis mecanismos de controle da execução orçamentária, previstos na Constituição, ao invés de serem fortalecidos, vêm sendo sistematicamente enfraquecidos ou inviabilizados, quer através da tradicional delegação de poderes para o Executivo proceder a transposições e transferências de verbas orçamentárias, quer através da instituição de fundos sob os mais diversos argumentos, todos eles inconvincentes, para dizer o menos. Como fruto do tempo tomado ao Congresso Nacional, para a superação da crise político-institucional que havia se instalado no País, surgiu a simbiótica “Emenda Revisional” de nº 1/94 instituindo o maior fundo de que se tem notícia na história da República, sob a denominação de Fundo Social de Emergência, cujos recursos foram desviados em mais de 40%, como se constatou mais tarde. Esse mesmo fundo foi prorrogado, desta feita, pela Emenda Constitucional nº 10/96, rebatizado  de Fundo de Estabilização Fiscal. O governo luta, atualmente, para nova prorrogação desse fundo. No plano infraconstitucional, com a implantação da CPMF, cujos recursos serão integralmente canalizados para o Fundo Nacional da Saúde[2], inaugurou-se um ciclo de instituição de mini-fundos. Fala-se, agora, em criar um Fundo Rodoviário para recuperação das rodovias. Logo virão o Fundo Educacional, o Fundo Cultural, o Fundo de Segurança Pública, o Fundo Turístico etc. E assim, de fundo em fundo o orçamento anual, que deveria ser um autêntico instrumento de exercício da cidadania, vai sendo emburrado cada vez mais para o fundo do poço.

Enquanto isso o Congresso Nacional se omite na sua missão de elaborar normas de lei complementar, disciplinando as condições para constituição e funcionamento de fundos como determina o inciso III do § 9º do art. 165 da CF. Em outras palavras, o Parlamento assiste passivamente, ou melhor, ajuda a esvaziar o legítimo poder de que se acha investido para, em nome da sociedade, controlar e fiscalizar a execução orçamentária, o que soa bastante estranho”.

Texto acrescido:

É verdade que a atuação dos tribunais de contas em geral  é insatisfatória e suas decisões são, na maior das vezes, ignoradas, apesar de o texto constitucional conferir eficácia executiva às multas por eles impostas. Consta que menos de 1% das multas aplicadas, por exemplo, pelo TCU são efetivamente arrecadadas, a exemplo das multas aplicadas pelas Agências Reguladores que não param de crescer, suprindo ou substituindo atribuições dos respectivos Ministérios, alguns deles, sem ter o que fazer.

Contudo, não são apenas as decisões das cortes de contas que são ignoradas. As do Judiciário também vem sendo sistematicamente ignoradas, quando se tratar de condenações contra o poder público. Daí a montanha de precatórios considerados ‘impagáveis’, objetos de sucessivas emendas caloteiras, cada vez mais ousadas, como aquela Pec de nº 12/06 em tramitação no Congresso Nacional, que mais se assemelha a uma obra de Satanás furibundo.

Logo, integrar as cortes de contas ao Poder Judiciário, sob esse prisma, nada mudaria.

Mas, a principal dificuldade que vejo nessa integração é a diferenciação de critérios de julgamento de um e de outro órgão. Enquanto o Judiciário julga as pessoas sob critérios técnico-juridicos, o Tribunal de Contas julga as contas sob critérios político-jurídicos. Não há, nem poder haver abstração do aspecto político na fiscalização e controle da execução orçamentária. O princípio da fixação de despesas não pode ser absoluto, representando uma camisa de força manietando a ação governamental em face de alterações conjunturais supervenientes à aprovação da lei orçamentária anual. É claro que a flexibilidade, às vezes, necessária não pode significar caminho aberto para abusos e atos de corrupção, nem para bandalheiras ou roubalheiras noticiadas pela mídia.

O certo é que o julgamento de contas dos governantes requer muita sensibilidade política, sob pena de criar impasses políticos-institucionais a todo momento, conspirando contra a normalidade do Estado de Direito, o que aconteceria se essas contas fossem julgadas por juizes togados, na base do dura lex, sede lex. Haveria, pois o incontornável problema do critério de seleção e investidura dos juízes dos Tribunais de Contas integrados ao Judiciário. Adotar o critério atual para nomeação de Ministros do TCU ou de Conselheiros de Tribunais de Contas Estaduais, que já gozam das mesmas prerrogativas, garantias e vantagens dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça e dos Desembargadores estaduais, respectivamente, em nada mudaria. Porém, as decisões, pelo prisma político, por eles tomadas no julgamento de contas poderia contaminar o Judiciário como um todo, que teria o seu caráter político cada vez mais acentuado, o que seria uma infelicidade muito grande para os jurisdicionados já esmagados pelo Estado extremamente agigantado. Hoje, Tribunais Superiores, não raras vezes, julgam pelo prisma financeiro do Estado como se as finanças públicas fossem o fim do Estado, e não meio, para realização do bem comum. Claríssimo que esse quadro seria agravado com a integração de magistrados que fazem e julgam contas.

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Por tudo isso, entendo que deve ser mantido o Tribunal de Contas da União com a estrutura que foi criada pelo Decreto nº 966-A de 7-9-1890, porém com alterações nos critérios de nomeação de seus membros e de rejeição pelo Parlamento do parecer prévio do Tribunal acerca das contas anuais do Chefe do Executivo.

O TCU seria composto por nove Ministros entre os possuidores de notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros ou de administração pública (art. 73 da CF), indicados em listas tríplices respectivamente pelos Conselhos Federais representativos dos advogados, dos contadores, dos economistas e dos da administração. Quanto à rejeição do parecer prévio do Tribunal de que cuida o art. 71, I da CF seria exigido quorum especial além da devida fundamentação à luz da realidade espelhada no processo de prestação de contas.

SP, 25.4.06.

 

Notas:
Palestra proferida no IV Seminário de Direito Administrativo realizado em São Paulo, pela Editora NDJ, em 27-11-12996.
[1] . Do total de nove membros, um terço é escolhido pelo Presidente da República com aprovação do Senado, dentre os auditores e membros do Ministério Público junto ao Tribunal, indicados em lista tríplice pelo Tribunal. Dois terços são escolhidos pelo Congresso Nacional.
[2] Esse FNS que foi recriado de forma irregular pela Lei n. 9.276, de 9 de março de 1996, estará extinto em 31 de dezembro de 1996 por força a MP nº 1.493-9/96, portanto, antes da entrada em vigor na CPMF, fato que nos causa perplexidade.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Kiyoshi Harada

 

Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

 


 

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