Da razoável interpretação do direito

O ponto por nós abordado no presente estudo diz respeito a questão polêmica e inquietante que tem, há longa data, atormentado a comunidade jurídica, gerando memoráveis arrazoados. Mais precisamente, a discussão teve origem no dia 08.05.64, quando foi publicada no Diário de Justiça a Súmula de n. 400 do STF, de seguinte teor:

“DECISÃO QUE DEU RAZOÁVEL INTERPRETAÇÃO A LEI, AINDA QUE NÃO SEJA A MELHOR, NÃO AUTORIZA RECURSO EXTRAORDINÁRIO PELA LETRA A DO ART 101, III, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.”

Na época, ainda sob a égide da Carta Constitucional de 1946, competia ao Supremo Tribunal Federal a defesa não só do Texto Maior, mas também da ordem infraconstitucional, através do recurso extraordinário (art. 101, III, daquela Carta). Neste período, já era evidente a incompatibilidade existente entre as atribuições confiadas a Corte Máxima, a exigência de decisões soberanas e qualificadas e os recursos humanos e materiais de que dispunham os Ministros Julgadores. A Corte julgava em média 5.946 processos, quando transferida para a nova Capital Federal em 1960, desencadeando a famosa “crise do Supremo”.

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Vários expedientes foram utilizados pela Augusta Corte, na tentativa de solucionar a crise, destacando-se entre elas a “arguição de relevância”, os óbices regimentais e as orientações jurisprudenciais restritivas ao conhecimento de recursos. A prefalada súmula 400 enquadra-se dentre essas orientações restritivas, autorizando o não-recebimento do recurso, quando a decisão impugnada tiver conferido razoável interpretação à lei.

Nota-se, pois, pela sua própria índole restritiva, que a discórdia gerada é plenamente justificável. Desde o princípio, a crítica nela enchergou uma tentativa de redução do número de recursos, sem a devida cautela e observância da garantia elementar da ampla defesa. José Guilherme Villela referiu-se à “temível Súmula 400, cujo subjetivismo tem dado margem a críticas severas”1.

Mas o certo é que, como todo tema jurídico, não tardaram a surgir correntes favoráveis ao entendimento restritivo, encontrando eco a tese que foi defendida e sustentada livremente pelos patronos dos recorridos. Ao se manifestar sobre o tema, bem o resumiu o Ministro Moreira Alves, referindo-se ao verbete “tão inclementemente atacado pelos patronos dos recorrentes, mas tão tenazmente invocado por esses mesmos causídicos quando advogados dos recorridos”2.

E assim, por mais de duas décadas, a tese consagrada vigorou e foi aplicada, abaixo de críticas e insatisfações. O TST, inclusive, editou, em 1985, através do Enunciado n. 221, previsão símil3.

Com o advento da nova ordem constitucional, voltou à tona o questionamento. Afinal, sobrevive a tese veiculada na Súmula 400?! Queremos crer que não(!), tendo a nosso lado os mais avalizados juristas nacionais.

A Constituição reformou a estrutura do Poder Judiciário, estabelecendo a criação do Superior Tribunal de Justiça. Ficou prevista, desde então, uma nova modalidade de apelo extremo – o recurso especial – que abarcou algumas das hipóteses de cabimento do antigo recurso extraordinário. Foram precisamente delineadas as atribuições das Cortes Federais, caracterizando-se o STJ como Corte Infraconstitucional – responsável pela uniformização jurisprudencial e pelo controle da legalidade das decisões – e o STF como Corte Constitucional – responsável pela guarda da Carta Política.

Nos permissivos constitucionais, ficou estabelecida a possibilidade de apelo extremo quando a decisão regional contrariar dispositivo de lei federal (art. 105, III, “a”) ou dispositivo da Constituição (art. 102, III, “a”).

Assim, utilizando o legislador constituinte o termo “contrariar”, ao invés de violar literalmente ou negar vigência, denotou a sua intenção inequívoca de não admitir a subsistência da tese corroborada pelo verbete sumular em análise. Sobre o tema, são precisos os ensinamentos de Vicente Greco Filho: “Esta Súmula, portanto, ficou, em nosso entender, incompatível com a contrariedade à norma federal, porque contrariar é decidir em desacordo com a mens legis e o comando legal não comporta, objetivamente, duas interpretações contraditórias e igualmente aceitáveis.”4.

Mas, mesmo que se pudesse superar essa interpretação lógica e literal dos permissivos constitucionais, não há como defender a subsistência do verbete. É que a aferição de uma razoável interpretação de lei federal ou de Texto Constitucional, em simples juízo de admissibilidade, é incompatível com os limites deste procedimento. É que, na espécie, restaria inequívoca a incursão no mérito da pretensão recursal, extrapolando as balizas do juízo de mera apreciação de cabimento. Nesse sentido a preocupação externada por Indalécio Gomes Neto, Ministro do TST: “Difícil admitir, contudo, a aplicação do Enunciado de Súmula nº 221 do TST pelo juízo de admissibilidade do Recurso de Revista, pois a afirmação de que se possa fazer no sentido de que a interpretação razoável de preceito de lei, ainda que não seja a melhor, não dá ensejo ao Recurso de Revista, revela um juízo de mérito, que somente ao Tribunal Superior do Trabalho cabe emitir, quando da apreciação do conhecimento”5.

De outra parte, parece-nos evidente que vivendo num sistema federativo, com Cortes Superiores competentes para apreciar recursos destinados a uniformizar a jurisprudência nacional e controlar a legalidade/constitucionalidade das decisões regionais, mostra-se insustentável a tese de que os Tribunais locais possam julgar definitivamente uma questão jurídica com base numa interpretação razoável do direito posto. Isso acarretaria, sem dúvida, na subtração das competências constitucionais conferidas ao STJ e ao STF. Aplicar a Súmula 400, pois, contraria as normas de direito processual constitucional inscritas nos arts. 102 e 105 da Carta de 1988.

É nessa ótica que foram emitidos magníficos pronunciamentos pelos Ministros envolvidos com a questão cotidianamente:

“Hoje, quando a Constituição fixa, como pressuposto do recurso especial pela letra ‘a’ do art. 105, III, haja a decisão recorrida contrariado ou negado vigência à lei, não me parece possível contentar-se o Tribunal para não conhecer do recurso, com a simples razoabilidade da decisão recorrida, ainda que essa interpretação simplesmente razoável seja a melhor”6;

“(…) como se fez distinção entre contrariar e negar vigência, e como contrariar em oposição a negar vigência – que, em matéria de interpretação, significa interpretar desarrazoadamente -, somente pode referir-se a dar interpretação que não seja a melhor, tem-se que o recurso especial para o Superior Tribunal de Justiça será cabível sempre que o recorrente sustentar que a interpretação adotada pelo acórdão recorrido não é a interpretação exata do dispositivo legal, interpretação esta que será a que aquela Corte vier a julgar como sendo a melhor, o que afasta a possibilidade de se admitir a simples razoabilidade da exegese encampada pela decisão recorrida”7.

Aliás, hoje em dia, a quase unanimidade dos juristas comunga deste entendimento e a jurisprudência também conta com posições nesse sentido8.

Por tudo isso, parece-nos inadmissível conferir interpretação apenas razoável, mesmo que esta interpretação seja a melhor dentre as várias possíveis, ao direito nacional.

 

Notas:

1. Recurso Extraordinário (RePro 41/142);

2. Poder Judiciário, in Constituição Brasileira de 1988 – Interpretações, Forense Universitária, 1988, p. 200;

3. “Interpretação razoável de preceito de lei, ainda que não seja a melhor, não dá ensejo à admissibilidade ou ao reconhecimento dos recursos de revista ou de embargos com base, respectivamente, nas alíneas “b” dos artigos 896 e 894 da Consolidação das Leis do Trabalho. A violação há que estar ligada à literalidade do preceito.”

4. Direito Processual Civil Brasileiro, 2º Vol.., Saraiva, 11ª edição, p. 359;

5. “Recurso de Natureza Extraordinária no Processo do Trabalho”, Revista do TST, Brasília, nº 63, 1994, p. 45;

6. Carlos Mario da Silva Velloso, “O Superior Tribunal de Justiça – competência originária e recursal”, in Recursos no STJ, Coord. Salvio de Figueiredo Teixeira, São Paulo, 1991, pp. 39/40);

7. Moreira Alves, “Poder Judiciário, in Constituição Brasileira de 1988 – Interpretações”, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1988, p. 200;

8. “O enunciado n. 400 da Súmula STF é incompatível com a teleologia do sistema recursal introduzido pela Constituição de 1988” (STJ – REsp 5.936-PR, v.u., Min. Rel. Salvio Teixeira, DJU 7.10.91); “Ou bem a decisão se mostra harmônica com a Constituição Federal, ou a contraria, não havendo campo propício a enfoque intermediário” (STF – in RTJ 145/303);

 


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Informações Sobre o Autor

 

Luiz Cláudio Portinho Dias

 

Procurador Autárquico do INSS
membro do IBAP (Instituto Brasileiro de Advocacia Pública).

 


 

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