É a lesão que transformou o
famoso “negócio da China” em negócio jurídico anulável.
Ocorrem defeitos do negócio jurídico
quando surgem imperfeições decorrentes de anomalias na formação da vontade ou
em sua declaração. Deixando claro que nosso direito pátrio prestigia com maior
vigor a intenção das partes do que exatamente a declaração da vontade destas,
ou seja, a linguagem com qual está vestida.
Há seis defeitos do negócio jurídico
e que o torna anulável, a saber: o erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão
e fraude contra credores.
É curial observar o prazo
decadencial de 4 (quatro) anos para se anular o negócio jurídico defeituoso
conforme expõe o art. 178 do C.C.
Não se confunde vício de
consentimento com vício social. A vontade viciada sempre acarreta o negócio
anulável. O vício de consentimento impede que a vontade seja livre, espontânea
e de boa fé, o que fatalmente prejudica a validade do negócio jurídico. Para a
vontade ser jurígena (gerar os efeitos jurídicos desejados) é imprescindível
que seja livremente manifestada, de forma espontânea e de boa fé.
Por outro lado, o vício social
contém a vontade manifestada que não tem realidade, a intenção pura e de boa fé
que enuncia. De fato, para a sociedade, a vontade tem aparência enquanto que
para as partes, notadamente àquela que age com má fé, a mesma vontade ganha
outro significado. Entre os vícios sociais temos a simulação (que causa a
nulidade do negócio jurídico) e a fraude contra credores.
No defeito social, assevera Ulhoa há
uma intenção subsidiária. O mesmo doutrinador propõe distinguirmos os defeitos
internos do consentimento onde a vontade não se constrange como nos casos de
erro e da lesão. Dos defeitos externos que, na maioria das vezes, a vontade é
constrangida por ato de pessoa plenamente identificável. São três os defeitos
externos do consentimento: o dolo, a coação e o estado de perigo.
O erro é a falsa representação da
realidade, o sujeito engana-se sozinho. Já a ignorância é o completo
desconhecimento da realidade, embora tanto o erro como a ignorância acarrete
efeitos iguais, quais sejam, a anulabilidade do negócio jurídico, não obstante
possuírem conceitos distintos.
Não é qualquer erro que é capaz de
anular o negócio jurídico, há de ser erro substancial ou essencial e escusável
conforme prevê o art. 139 do C.C.
O erro substancial abraiga umas
sub-espécies tais como: o error in
negotio (incidente sobre a natureza do negócio); o error in corpore( no objeto principal do negócio); o error in substantia or in qualitate; o error in persona (na pessoa) e, por fim, o error iuris.
O erro de direito (error iuris) é o falso conhecimento,
ignorância ou interpretação errônea da norma jurídica aplicável ao negócio
jurídico. Ocorre quando o agente emite a declaração de vontade no pressuposto
falso de que procede de acordo com o preceito legal. O erro de direito era
admitido como substancial quando fosse o motivo principal do negócio jurídico e
não houvesse a intenção, por parte doa gente, de descumprir a lei.
O art. 3º da LICC diz que a alegação
de ignorância da lei não é admitida quando apresentada como justificativa para
seu descumprimento. Significa dizer, ao revés, que pode ser argüida se não
houver tal nefasto propósito.
Além de ser essencial e escusável
conforme o padrão do homo medius, e o
caso concreto, há ainda de ser efetivo e real, sendo a causa do negócio
jurídico.
Há a possibilidade de
convalescimento do erro conforme se prevê o art. 144 do C.C. em razão do
princípio da conservação dos atos e negócios jurídicos (pás de nullité sans grief)
e ainda pelo princípio da segurança jurídica.
Às vezes o erro surge devido ao meio
de comunicação empregado para a transmissão de vontade negocial, assim diante
de mensagem truncada, há o vício e, ipso facto, a possibilidade de anulação do
negócio jurídico.
Outras vezes o erro decorre de culpa
in eligendo ou in vigilando de quem escolhe o mensageiro para levar a declaração
de vontade. Não raro encontram-se discrepâncias graves entre a declaração de
vontade emitida e a vontade finalmente comunicada.
O segundo defeito do negócio
jurídico é o dolo que é cometido, por exemplo, por quem induz alguém a erro. O
dolo é definido como ardil, artifício ou expediente usado para induzir alguém à
prática de um ato que o prejudica e aproveita o autor do dolo ou a terceiro. Na
verdade, o dolo é causa do vício da vontade.
O dolo no âmbito civil não se
confunde com aquele previsto no âmbito penal ( art. 18, I do CP onde agente
atua com a vontade predestinada a causar o delito ou assumiu o risco de
produzi-lo.
A grande maioria das ações
anulatórias em geral é mesmo com base no dolo em face da grande dificuldade de
se provar processualmente o erro. O dolo anulador do negócio jurídico é sempre
o dolo principal, é o dolo malus.
Porque o dolus bonus é moderadamente
aceitável, embora o CDC condene explicitamente a propaganda enganosa.
Registre-se que o dolus pode ser comissivo ou omissivo
(chamado de dolo negativo), pois fere frontalmente o princípio da boa fé
objetiva presente tanto no C.C. como no CDC.
É possível ainda, o dolo de terceiro
(art. 148 C.C.) como o do representante (art. 149 C.C.). Porém, o dolo
bilateral (art. 150 C.C.) pode não gerar a anulabilidade do negócio jurídico,
pois prevalece o princípio de que ninguém poder valer-se da própria torpeza
para auferir vantagens.
O terceiro defeito é a coação que
representa toda ameaça ou pressão exercida sobre a pessoa para obrigá-la,
contra sua vontade, a praticar ato ou realizar negócio jurídico. Há a coação
física (vis absoluta) e a coação
psicológica (vis compulsiva) que
diferem não só pelo meio empregado, mas sobretudo, por seus efeitos.
Vejamos que a coação é o mais grave
dos defeitos dos negócios jurídicos e especialmente na coação física temos na
verdade a inexistência do negócio jurídico, pois não há manifestação de vontade
livre, espontânea e de boa fé. Não há vontade jurígena.
Já na coação psicológica há a
manifestação de vontade, embora não corresponda à intenção real do coacto, o
que certamente redunda num negócio anulável.
Exigem-se certos requisitos para
tipificação da coação (art. 153 do C.C.) e para ser considerada como defeito:
deve ser determinante do negócio; deve ser grave e injusta; deve dizer respeito
ao dano atual ou iminente e deve ameaçar a pessoa, bens da vítima ou pessoas de
sua família (essa tomada na acepção alto sensu , art. 151 C.C.).
É possível que a coação seja
exercida por terceiro sem que a parte a que aproveite dela tivesse ou devesse
ter conhecimento, mas nessa hipótese prevista no art. 155 do C.C., o negócio
subsistirá não sendo anulado. Não se considera coação a simples ameaça , o
exercício normal de direito e nem temor reverencial.
Estado de perigo é uma inovação
trazida pelo Código Civil de 2002 juntamente com a lesão, embora já fossem
defeitos dos negócios jurídicos conhecidos tanto pela doutrina como pela
jurisprudência.
Enquanto na coação a violência
decorre de pessoa interessada na prática do negócio jurídico, no estado de
perigo a violência decorre das circunstâncias de fato, que exercem forte
influência na manifestação de vontade do agente.
O estado de perigo é espécie de
estado de necessidade e constitui uma situação de extrema necessidade que
conduz a pessoa a celebrar negócio jurídico que assume obrigação
desproporcional e excessiva.
Os exemplos clássicos temos o
náufrago que promete pagar uma fortuna a quem lhe salvar de afogamento, ou
ainda, dentro da famosa literatura inglesa em Shakespeare quando Ricardo III
brada aos berros: “Meu reino por um cavalo!”.
No estado de perigo a pessoa é
compelida a efetivar depósito ou prestar garantia (caução) sob forma de emissão
de cheques ou notas promissórias (ou outros títulos cambiais) para, por
exemplo, prover atendimento clínico-hospitalar emergencial ou ainda para obter
internação de paciente que corre grave perigo de vida.
Nem sempre a extrema necessidade
produz negócios anuláveis, pois temos outros exemplos como a passagem forçada,
a gestão de negócios, o casamento nuncupativo, o depósito necessário (do
hóspede de sua bagagem nos hotéis) e o pedido de alimentos.
Mas, se essa extrema necessidade é conduzida
por outrem, para provocar a chamada usura real, temos aí, outro tipo de defeito
de negócio jurídico, a lesão.
A lesão pode decorrer também da
inexperiência do declarante e, se caracteriza pelo desequilíbrio das prestações
assumidas pelas partes.
Admite a lesão, a bem do princípio
da conservação dos negócios jurídicos a suplementação da contraprestação,
tornando assim sanado o vício do consentimento.
O estado de perigo é previsto no
art. 156 do C.C. e o dano não precisa ser inevitável para sua caracterização.
Para haver os efeitos anulatórios do estado de perigo é necessário conhecimento
da outra parte contratante das circunstâncias sofridas pelo declarante da
vontade negocial.
Para Flávio Tarturce o estado de
perigo é forma especial de coação, pois o negociante temeroso de sofrer grave
dano acaba por celebrar negócio jurídico mediante prestação exorbitante. Assim,
a venda celebrada e motivada pelo desespero da pessoa que quer, por exemplo,
salvar o filho, é negócio jurídico anulável.
A lesão é prevista no art. 157 e,
possui espécies como a lesão enorme (superior a metade do valor da coisa) e a
lesão enormíssima (de origem canônica que corresponde a superior a 2/3 do valor
da coisa). Além da desproporção das prestações assumidas, vale-se o sujeito da inexperiência
ou da premente necessidade do outro.
É a lesão que transformou o famoso
“negócio da China” em negócio jurídico anulável.
Aliás, é possível que ao revés de
anulação negocial, se obtenha uma revisão contratual. Embora que a lesão ela se
caracteriza por ser contemporânea ao momento da celebração do negócio jurídico
comutativo, enquanto que a revisão contratual pressupõe onerosidade excessiva
percebida no momento da execução do contrato.
A consagração do instituto da lesão
dentro da sistemática privada deve-se pelos princípios da boa fé objetiva e do
equilíbrio econômico das prestações e, mitiga o princípio da força obrigatória
dos contratos.
A autonomia privada constitui-se em
princípio para a promoção dos valores sociais segundo a ordem pública constitucional,
sendo assim não se pode dar guarida a contraprestações injustas, portanto, a
lesão está subjacente à idéia de justiça contratual.
A fraude contra credores é vício
social e corresponde a todo ato suscetível de diminuir ou onerar seu patrimônio,
reduzindo ou eliminando a garantia que este representa para o pagamento de suas
dívidas, é praticada pelo devedor insolvente ou por este ato reduzido à
insolvência.
Há dois elementos característicos: eventus damni (a insolvência) e o consilium fraudis (conluio
fraudulento).Podemos ao analisar certo contrato presumi-lo como fraudulento,
por exemplo, se este ocorre na clandestinidade, se há continuação da possa de
bens alienados pelo devedor; se há falta de causa do negócio; se há parentesco
ou afinidade entre o devedor e o terceiro; se ocorre a negociação a preço vil;
e pela alienação de todos os bens.
A ação que pode socorrer os credores
em caso de fraude é a ação pauliana ou revocatória e, pode incidir não só nas
alienações onerosas, mas igualmente nas gratuitas (doações). Há o ônus de se
provar o consilium fraudis e eventus damni (art. 158 do C.C.).
Há a tipificação de fraudes aos
credores também quando ocorre a remissão de dívidas (perdão) ou a concessão
fraudulenta de garantias tais como penhor, hipoteca e anticrese (art. 1563 do
C.C.) ou pagamento antecipado de dívidas. Somente nas alienações onerosas se
exige provar o consilium fraudis ou a má fé do terceiro adquirente.
A ação pauliana visa prevenir a
lesão aos direitos dos credores, e acarreta anulação do negócio. Embora maior
parte da doutrina defenda que ocorra ineficácia relativa do negócio se
demonstrada a fraude ao credor, então a sentença declara a ineficácia doa to
fraudatório perante o credor, permanecendo o negócio válido entre os contratantes.
No entanto, na opinião do grande
processualista Cândido Rangel Dinamarco, tal sentença tem cunho constitutivo
negativo e decreta ineficácia superveniente.
É curial esclarecer que a ação
pauliana não é ação real, nem quando referir-se aos bens imóveis; trata-se de
ação pessoal, pois visa anular o negócio fraudulento restaurando o status quo ante do patrimônio do
devedor.
Não se pode confundir de modus in rebus a fraude aos credores com
fraude à execução. Posto que essa última, é instituto do direito processual,
pressupõe a demanda em andamento e devedor devidamente citado, também por ter
requisitos o eventual consilium fraudis e o prejuízo do credor.
A fraude à execução independe de
ação revocatória e, apenas é aproveitada pelo credor exeqüente. E, por fim,
acarreta a nulidade absoluta onde a má fé é presumida ( in re ipsa). Ao passo que
a fraude aos credores acarreta a nulidade relativa do negócio jurídico e, é
aproveitada indistintamente por todos credores.
Apesar da controvérsia, prevaleceu
no STJ o entendimento que não é possível a discussão de fraude aos credores em
sede de embargos de terceiro, sendo necessário, portanto, o ajuizamento da
competente ação pauliana (Súmula 195 do STJ de 1997).
Informações Sobre o Autor
Gisele Leite
Professora universitária, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, pedagoga, advogada, conselheira do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas.