Depósito irregular versus mútuo

1. Introdução

O referido artigo versa sobre tema que, até o presente momento, não foi enfrentado pormenorizadamente pela nossa doutrina, a qual insiste em diferenciar os institutos do depósito irregular e do mútuo, porém sem fundamentos sólidos, como se verá a seguir.

2. Caracterização dos institutos

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2.1. Do Mútuo

De plano, deve-se definir o que seja empréstimo. Na lição de Coelho da Rocha apud Maria Helena Diniz[1]: “[…] empréstimo é o contrato pelo qual uma pessoa entrega a outra, gratuitamente, uma coisa, para que dela se sirva, com a obrigação de a restituir. Consiste na utilização de bem pertencente a outrem, acompanhada do dever de restituição”.

Assim, é que o instituto do empréstimo se subdivide em: comodato (empréstimo de uso) e mútuo (empréstimo de consumo). Aquele se presta a empréstimo de bens infungíveis, enquanto este se refere a empréstimo de bens fungíveis.

O Código Civil define o que é mútuo:

Art. 586. O mútuo é o empréstimo de coisas fungíveis. O mutuário é obrigado a restituir ao mutuante o que dele recebeu em coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade.

Como se depreende do dispositivo, o objeto do mútuo se refere tão somente a bens fungíveis. Nesse passo, o mutuante transfere o domínio da coisa emprestada ao mutuário que, por sua vez, pode dar a esta o destino que lhe aprouver.

Obtempera-se que o mutuário será o beneficiário direto decorrente da relação contratual de mútuo, haja vista que por ser transferida a propriedade do bem, este poderá a consumir, devolvendo ao mutuante outro bem do mesmo gênero, qualidade e quantidade.

2.2. Do Depósito

No capítulo IX do Código Civil, atinente ao contrato de depósito, o art. 627 é claro ao definir o referido instituto:

Art. 627. Pelo contrato de depósito recebe o depositário um objeto móvel, para guardar, até que o depositante o reclame.

Depósito é o contrato pelo qual o depositante entrega um bem infungível ao depositário para que este o guarde e conserve até o momento de sua devolução. Em vista disso, o bem, objeto da relação contratual, não pode ser utilizado pelo depositário, salvo a anuência expressa do depositante.

O beneficiário direto desse contrato é o depositante, visto que esse poderá exigir a qualquer momento a devolução do bem que está sob a guarda e conservação do depositário.

3. A inconsistência do depósito irregular

A maioria da doutrina, como Maria Helena Diniz[2], César Fiuza[3], Sílvio de Salvo Venosa [4], admite a existência do chamado “depósito irregular”. Conforme aduz VENOSA[5]:

No depósito irregular […] aquele que tem por objeto coisas fungíveis ou substituíveis, o depositário pode alienar o que recebeu, desde que restitua, quando solicitado, igual quantidade e qualidade. […] Não existe perfeita identificação entre o depósito irregular e o mútuo, porque o fim econômico é diverso. O depósito é ultimado no interesse do depositante, enquanto no mútuo o interesse é do mutuário.  

Do exposto, deflui-se que o depósito irregular se refere a bens fungíveis. Nesse sentido, essa corrente, com parcos fundamentos, sustenta que por se tratar de contrato de depósito, o beneficiário é o depositante e não o depositário.

De outra banda, é minoritária a tese que sustenta a inexistência do chamado depósito irregular, aduzindo que o depósito dito irregular é, na verdade, o instituto do mútuo. Nesse diapasão, dispõe o Código Civil em seu artigo 645:

Art. 645. O depósito de coisas fungíveis, em que o depositário se obrigue a restituir objetos do mesmo gênero, qualidade e quantidade, regular-se-á pelo disposto acerca do mútuo.

O eminente civilista Washington de Barros Monteiro[6] ensina que:

[…] Depósito irregular […] é aquele em que o depositário pode dispor da coisa depositada, consumindo-a até e restituindo ao depositante, oportunamente, outra da mesma espécie, qualidade e quantidade.

A verdade, porém, como ensina Clóvis, é que o depósito de coisas fungíveis, para serem restituídas outras do mesmo gênero, qualidade e quantidade, é mútuo e não depósito. As coisas fungíveis não se prestam ao depósito, porque pressupõe este coisas individuadas[…].

Outrossim, a jurisprudência vem se inclinando em negar o depósito irregular.

EMENTA: Ação de depósito. Coisas fungíveis. Depósito irregular. Em se tratando de bens fungíveis e consumíveis (cevada), não se configura o depósito regular, aplicando-se as disposições acerca do mútuo – c. civil. artigo 1280. na hipótese, (depósito irregular) fica o depositário autorizado a consumir o bem, com a condição de restituir no mesmo gênero quantidade e qualidade. carência de ação configurada. improveram[7].

EMENTA: Execução. Banco. Penhora de dinheiro.O depósito bancário é depósito irregular, a ele se aplicando as regras do mútuo. Passa o dinheiro à propriedade do depositário, contra quem o depositante terá um crédito. Possibilidade de ser o dinheiro penhorado, já que não constitui reserva bancária, nem pertence a terceiro. Litigância de má-fé. Não a configura o uso normal dos recursos previstos em lei. Igualmente não resulta do fato de a parte pretender que incide norma que a corte considerou inaplicável[8].

Obtempera-se, ademais, que o contrato de mútuo é realizado no interesse do mutuário, enquanto que o depósito regular é realizado no interesse do depositante. No que tange ao depósito irregular, será este realizado no interesse do depositário (mutuário), visto que conforme afirmado, trata-se do instituto do mútuo, transferindo, assim, a propriedade. A fim de ressaltar o referido entendimento, o ilustre civilista Caio Mário da Silva Pereira[9] assevera que:

[…] Para que se tenha como irregular é mister ocorram dois fatores, que se apuram em razão da destinação econômica do contrato: o primeiro material, é a faculdade concedida ao depositário de consumir a coisa; o segundo, anímico, é o propósito de beneficiar o depositário. […].

Além disso, o depósito irregular, por se tratar de mútuo, escapa das disposições específicas aplicadas ao contrato de depósito. Assim, é que a doutrina e a jurisprudência entendem que em se tratando de depósito irregular não se aplicam os dispositivos concernentes ao procedimento especial denominado Ação de Depósito.  A título de ilustração colacionou-se alguns julgados.

EMENTA: Processual civil. Penhor rural. Ação de depósito. Impropriedade da ação. Recurso especial. Ausência de prequestionamento. Não conhecimento. Quando o depósito de coisas fungíveis e consumíveis – como o que se cuida – e mero garantidor de mútuo celebrado, não merece nem a proteção austera decorrente da ameaça de prisão que incide sobre o depositário, nem o rito sufocante que é imposto pelos arts. 901 e seguintes do CPC, daí a impropriedade da ação especial de depósito,  pelo que deve ser reconhecida a carência do autor para a demanda proposta. Impossível o acesso ao recurso especial se o tema nele inserto não foi objeto de debate na corte de origem, quando apreciou a apelação, nem teve a parte o cuidado de opor os necessários declaratórios. Incidentes, assim, os verbetes da sum. 282 e sum. 356/stf.
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recurso especial não conhecido[10].

EMENTA: Processual civil – bens fungíveis e consumíveis – depósito irregular- ação de deposito incabível. Tratando-se de bens fungíveis e consumíveis, dados em garantia de divida, incabível o uso da ação de deposito para o cumprimento de obrigação de devolver as coisas depositadas, cuja propriedade transferiu-se ao depositário. Aplicáveis ao caso as regras do mútuo (art. 1.280, do código civil); inadmissível a prisão do depositário. precedentes do stj. Recurso conhecido e provido[11].

4. Apontamentos finais

Portanto, conforme exposto, o depósito irregular transfere a propriedade do bem móvel fungível ao depositário, na verdade, mutuário, que dele poderá desfrutar da coisa como bem lhe aprouver. Por conseguinte, assume os riscos pela deterioração e perda do objeto do contrato. Todavia, por se tratar de mútuo, o depositário (mutuário) obriga-se a restituir a coisa da mesma espécie, qualidade e quantidade.

Ad instar, por fim, que o depósito irregular é o mútuo. Assim, espera-se que a doutrina analise mais profundamente o tema em foco, a fim de concluir que não há diferenças entre o instituto do mútuo e o chamado depósito irregular.

 

5. Referências bibliográficas
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Vol. 3. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
FIUZA, César. Direito Civil: curso completo. 8. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil – Direito das Obrigações 2ª parte. Vol. 5. 34.ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
NEGRÃO, Theotonio. Código Civil e Legislação em Vigor. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. III. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: contratos em espécie. Vol. 3. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004.
Notas
[1] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 2004, p. 300.
[2] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 2004, p. 338.
[3] FIUZA, César. Direito Civil: curso completo. 2004, p. 526.
[4] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. 2004, p. 260.
[5] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. 2004, p. 260.
[6] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil – Direito das Obrigações 2ª parte. 2003, p. 244 e 245.
[7] Apelação cível nº 598286649, décima câmara cível, tribunal de justiça do rs, relator: Paulo Antônio Kretzmann, julgado em 10/09/1998.
[8] Resp 212886 / ma ; recurso especial 1999/0039717-7 – STJ – Ministro Eduardo Ribeiro (1015).
[9] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 2004, p. 361.
[10]Resp 93032 / rs ; recurso especial 1996/0022560-5. Ministro César Asfor Rocha.
[11]Resp 109654 / go ; recurso especial 1996/0062245-0 – stj. Ministro Waldemar Zveiter.

 


 

Informações Sobre os Autores

 

Renato Braga Vinhas

 

Acadêmico de Direito na Furg/RS

 

Filipe Loureiro Santos

 

Acadêmico de Direito na Furg/RS

 


 

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