Destruição impossível – em defesa da Constituição de 1988

O ritmo das privatizações já foi bem mais intenso, na maior parte dos Países. Não se tratava da construção de outro “modelo” de sociedade, muitas vezes. Era, sim, em sua essência, um simples movimento de transferência da riqueza pública para mãos privadas. Frequentemente, ainda que nem sempre, existiu séria controvérsia, inclusive judicial, sobre a regularidade de tais transferências.

Examinando a situação mais geral, de outros países, o conhecido autor norte-americano, Noam Chomsky, que esteve presente em mais de um momento do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, chegou a resumir que:“Afecta a la economia, esto está claro, pero su elemento más importante es que afecta a la democracia. Todos los elementos están destinados a reducir la posibilidad de una participación democrática. De modo que el término “liberalización financiera” significa que las decisiones están en manos de los inversores. La  población puede votar por lo que se le dé la gana, pero la economia será destruida si a las instituciones financieras internacionales no les gusta su votación. Tomemos el caso de las privatizaciones. Las privatizaciones no tienen ninguna motivación económica, le permiten a un grupo de gangsters corruptos comprar activos estatales por poca plata. Pero sí tienen el efecto de reducir, de achicar, la arena pública. Colocan las decisiones sobre cuestiones como el agua o lo que sea en las manos de tiranías privadas, que no son responsables ni frente al público ni frente al país. Esto recorta la democracia”.

No quadro atual, os aprendizados mais recentes do Direito Constitucional já perceberam que este ramo do Direito não pode mais se ocupar somente da organização do Estado. A destruição de certos espaços coletivos e o alargamento exagerado de algumas poucas individualidades não pode ser aceita, diante dos conhecimentos já adquiridos pelo Direito. O atento professor de Caxias do Sul, Wilson Steimmetz, em estudo específico sobre o tema, também expressou que: “Ora, no mundo contemporâneo, o Estado não é o único sujeito capaz de condicionar, restringir ou eliminar a liberdade das pessoas (indivíduos ou grupos). Nas relações horizontais, entre particulares, também se verifica, amplamente, a capacidade de alguns sujeitos condicionarem, restringirem ou eliminarem as liberdades de outros sujeitos”.

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Aqueles que lutam(mos) para fazer a roda da história girar mais velozmente encontram(amos) dificuldades imensas. Nem sempre é fácil saber distinguir as necessidades pessoais de insuficiente capacidade de adaptação às regras atuais, por um lado, e, por outro lado, a possibilidade de efetivamente serem construídas outras e superiores regras. Imensamente maior, todavia, deve ser o esforço daqueles que teimam em travar a roda da história. Nem se pode imaginar o pouco sono daqueles que, inclusive, tentam fazê-la girar para o passado.

Lembrando Kelsen e sua resistência ao nazismo, o cuidadoso Promotor de Justiça em Uruguaiana, Cláudio Ari Mello, lembrou que: “No entanto, o minimalismo constitucional foi rigorosamente predominante pelo menos até a década de cinqüenta no cenário europeu e no Direito brasileiro. A posição que a constituição ocupa na teoria pura e a própria definição que recebe de seu autor são um reflexo fiel da função das constituições no período de hegemonia política, jurídica e ideológica do positivismo legal. No Brasil, por exemplo, somente após a Constituição Federal de 1988 uma nova geração de juristas formada já após o regime militar passou a produzir uma teoria constitucional crítica voltada à superação dessa concepção macroestrutural de constituição“.

Repetimos que os aprendizados do Direito Constitucional, também no Brasil, já são expressivos. De certo modo, já se expandiram para os demais ramos do Direito. O novo Código Civil tem implícita certa idéia com razoável força transformadora, ou seja, a busca de maior “socialibilidade“, na expressão de Miguel Reale. Destes avanços não deve e tampouco se pode retroceder. Na verdade, novos avanços já podem ser vislumbrados, no horizonte um pouco menos próximo. Mario Garmendia Arigón, do Uruguai, já sabe, por exemplo, que “Uma das grandes inovações que o Direito do Trabalho introduziu na teoria geral do Direito consiste, sem dúvida, na nova e diferente dimensão que propõe para o ideal de justiça e, conseqüentemente, para a noção de igualdade. …a noção de igualdade deixa de ser premissa das relações jurídicas, para passar à condição de meta ou finalidade para a qual deve apontar a ordem jurídica…”.

Em 1988, na verdade, concretizou-se uma experiência incomum, no Brasil. Mesmo em outros Países, não são habituais os processos constituintes com tamanha participação popular, através da sociedade expressivamente organizada. Naquele momento, dois ilustres professores na PUC-RS, Juarez Freitas e Alexandre Pasqualini, sentiram e conseguiram expressar que: “A inclinação social do homem é uma força inata decorrente da própria condição humana. Assim, a criação do Estado é legítima e natural. (…) Conclusivamente, diríamos que as várias posições doutrinárias, aqui e ali, acertam. No entanto, talvez, pequem nas abordagens de estimativa jusfilosófica, por uma espécie de superficialidade abstrata, fruto da extrema limitação com que normalmente se defrontam os juristas, em decorrência dos ditames da época. Para nós, conquanto úteis, as várias correntes, o Poder Constituinte originário é bem mais do que uma opção pelo fato ou pelo direito. Com efeito, a ótica excludente de alguns autores demonstra uma certa incapacidade para ver e vivenciar o poder como movimento“.

Nos momentos posteriores a 1988, poucos foram os novos avanços sociais. A Justiça do Trabalho, por exemplo, ao longo de mais de uma década, foi objeto de perigoso debate no Congresso Nacional. Na maior parte deste período, estiveram em pauta projetos que a enfraqueciam ou mesmo a extinguiam. Apenas mais recentemente, a Justiça do Trabalho terminou sendo fortalecida com o acréscimo de sua competência, através da reforma do Poder Judiciário, Emenda 45, de 2004. Tornou-se visível, até mesmo, que outras formas de trabalho, ainda que não sob os conceitos de “empregado“, necessitam de tutela estatal.

Sendo assim, não se percebe a conveniência de algumas propostas de nova constituinte, hoje. Ademais, a Constituição atual pode ser arranhada; melhor que não o seja. De qualquer modo, os aprendizados de 1988 não serão apagados; estão vivos na memória popular, ainda que não tenham esta aparência e não sejam visíveis aos desatentos.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Ricardo Carvalho Fraga

 

Juiz do Trabalho no TRT RS
Coordenador do Fórum Mundial de Juízes

 


 

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