A aplicabilidade relativa da teoria de Alberico Gentili no Direito Internacional contemporâneo: uma abordagem comparativa

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Resumo: Procurou-se fazer uma abordagem de alguns pontos da teoria desenvolvida por Alberico Gentili para demonstrar que existe uma possibilidade de aplicá-la, mesmo que relativamente, ao Direito Internacional contemporâneo, especialmente quando se trata de conflitos armados. Para tanto, foi preciso apresentar as proposições deste autor sobre o direito de guerra e correlacioná-las às Convenções de Genebra de 1949. Desse modo, buscou-se analisar o uso da força armada na atualidade de maneira comparativa com o período clássico. Nesse sentido, sustentou-se, também, a existência de certa influência de Gentili na formulação e aperfeiçoamento do sistema normativo de guerra atual. A investigação proposta teve como objetivo comprovar que o Direito Internacional, mesmo tendo evoluído significativamente do ponto de vista formal e material, ainda recebe reflexos do passado, o que realça sua proximidade com a história.


Palavras-chave: Alberico Gentili – Direito Internacional – Direito de Guerra – uso da força armada – Convenções de Genebra.


Abstract: It was looked to make a approach of some points of the theory developed for Alberico Gentili to demonstrate that a possibility exists to relatively apply it to the International Law contemporary, especially when is about armed conflicts. For in such a way, was necessary to present the proposals of this author on the war law and to correlate them it the Geneva Conventions of 1949. In this manner, one searched to analyze the use of armed force in the present time in comparative way with the classic period. In this direction, one also supported the existence of certain influence of Gentili in the formularization and perfectioning of current normative system war. The inquiry proposal had as objective to prove that the International Law exactly having evolved significantly of formal and material point of view still receives consequences from the past, what enhances its proximity with history.


Keywords: Alberico Gentili – International Law – war law – use of armed force – Geneva Conventions.


Sumário: 1. Introdução. 2. Sobre Alberico Gentili: vida e trajetória acadêmica. 3. Breve análise da teoria de Alberico Gentili acerca do direito de guerra. 4. Análise do Direito de Genebra enquanto instrumento de proteção às vítimas de conflitos armados a partir da teoria de Gentili. 5. Considerações relativas ao uso da força armada sob a perspectiva da teoria de Gentili. 6. O uso da força armada no contexto do Direito Internacional moderno: a influência da teoria de Gentili. 7. Conclusão.


1 – Introdução


O Direito Internacional desenvolve-se por meio de fatos históricos e seus fundamentos são adequados conforme o momento vivido pela humanidade.  Novos acontecimentos mudam a realidade e refletem-se no futuro, e isso é facilmente comprovado por inúmeros exemplos fáticos. As revoluções burguesas, as guerras mundiais, a quebra da Bolsa de Nova Iorque, a Guerra Fria, os conflitos armados Pós-Guerra Fria, foram alguns casos que mudaram a rotina do mundo e o curso da história.


Sendo assim, esse ramo do direito que se incumbe de lidar com a regulamentação das relações jurídicas entre diferentes Estados e/ou Organizações Internacionais, é, sem sombra de dúvidas, fruto de construções históricas.


Negar a vinculação entre o Direito Internacional e a história representa reconhecer que o presente não se origina dos acontecimentos passados. Tudo o que foi estudado, discutido e inventado teve como fim favorecer o progresso da humanidade, e isso não pode ser relegado ao esquecimento.


Por isso, é muito importante se recorrer ao passado para se buscar as soluções dos problemas do presente. Nessa perspectiva, é que teorias elaboradas em épocas pretéritas são redescobertas na realidade hodierna, e frequentemente contribuem com a mudança de paradigmas.


Na filosofia, por exemplo, é muito comum se recorrer às origens do conhecimento como forma de compreender todas as suas fases. A história, igualmente, favorece ao remodelamento da realidade, e, dessa forma, também é fonte de produção do conhecimento.


Resgatar na teoria de Alberico Gentili e outros importantes teóricos da antiguidade, em especial, Francisco de Vitória, Francisco Suarez, Hugo Grócio e Emmerich Vattel, fundamentos para o Direito Internacional moderno, permite corrigir as deficiências do sistema normativo de guerra e readequá-lo à lógica dos princípios da ordem internacional atual.


Nesse sentido, é que se sustenta a aplicabilidade da teoria de Gentili, com algumas ressalvas, ao Direito de Guerra, pelo fato de muitas de suas idéias terem se tornado incompatíveis com o recente momento histórico. Contudo, não se pode recusar que sua contribuição tenha inspirado Estados e Organizações Internacionais na construção de uma nova conjuntura pautada no ideal de paz e segurança internacional.


Assim, serão analisados alguns aspectos que integram sua teoria, começando-se por uma breve exposição sobre sua vida e trajetória acadêmica, passa por uma crítica ao Direito de Guerra na sua concepção, por uma análise do Direito de Genebra segundo sua teoria, pelas suas considerações acerca do uso da força armada e termina com a demonstração de sua influência no Direito Internacional moderno. Eis o que se faz a seguir.


2 – Sobre Alberico Gentili: vida e trajetória acadêmica


Alberico Gentili (1522-1608), natural do norte da Itália (San Ginesio, Macerata), terminou seus estudos em Perugia, onde obteve o grau de doutor em Direito Romano no ano de 1572. Esse notável pensador do Direito Internacional testemunhou e foi parte ativa do grande movimento de reação contra o predomínio econômico e espiritual do Papado, que se estendeu do princípio do século XVI até as guerras religiosas que culminaram com a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), fenômeno que ficou conhecido como Reforma Protestante.


Enquanto a Itália, Espanha e Portugal mantiveram-se fiéis ao catolicismo, o movimento reformista predominou em territórios germânicos e escandinavos, sendo igualmente adotado em países como: Inglaterra, Escócia e Suíça.


Para conter o avanço do protestantismo – contaminado pelas idéias do movimento humanista, contrárias aos dogmas católicos – o papa Paulo III reorganizou a Inquisição na Itália em 1542, que passou a ser conhecida como Congregação do Santo Ofício, além de ter criado tribunais em diversas repúblicas italianas.


Com idéias heterodoxas, em 1579, Gentili, assim como seu pai, percebeu a necessidade de abandonar a Itália em função da perseguição iniciada pela Inquisição, o que o forçou a se refugiar na Inglaterra, onde chegou em agosto de 1580. Neste país, iniciou suas aulas em St. John’s College, em janeiro de 1581. Em Oxford, recebeu a cátedra de “Regius Professor of Civil Law”, e no ano de 1605 tornou-se advogado da Coroa espanhola junto à Corte do Almirantado de Londres.


Considerado um dos precursores do Direito Internacional, sua obra ficou desconhecida durante muito tempo e somente três séculos depois, a partir de 1874, é que foi redescoberta pelo professor Holland, da Universidade de Oxford.


Autor de mais de 20 obras impressas, Gentili dedicou-se predominantemente a análise de temas ligados ao Direito Privado e ao Direito Internacional.  Seus trabalhos no campo do Direito Internacional abarcaram muitos problemas de sua época, dentre os quais, o princípio da inviolabilidade das embaixadas, o problema das guerras justas (compreendendo a causa da guerra), o modo de fazê-la e os tratados de paz, e, ainda, a introdução nesse ramo do direito da cláusula “rebus sic stantibus”.


Gentili lançou os fundamentos do Direito Internacional como algo distinto da teologia e da filosofia, aduzindo que estas fontes são muito incertas e divergentes para se fornecer os instrumentos de regulamentação e de composição ordenada das relações internacionais. Em seguida serão explicitados pontos importantes de sua teoria no tocante a “guerra justa”.


3 – Breve análise da teoria de Alberico Gentili: Direito de Guerra


Gentili desenvolveu sua teoria examinando a guerra em geral, e, ao mesmo tempo, suas peculiaridades principais. De sorte que constata-se uma profunda análise sobre os legitimados em exercê-la e as causas que podem motivá-la. Nota-se, ainda, uma preocupação acentuada com outros detalhes que compõe o Direito de Guerra, destacando-se o ato formal de declará-la, os meios lícitos e ilícitos empreendidos no curso das hostilidades, as convenções militares, a situação dos prisioneiros, a situação das cidades, dos combatentes e não-combatentes.


Da mesma forma, o autor procura estabelecer os pressupostos que marcam o fim dos combates ao reconhecer os direitos do vencedor sobre os bens e as pessoas da nação vencida, bem como os tratados de paz, aduzindo que a regulamentação do Direito de Guerra advém de fontes de direito específicas, e não de uma ordem jurídica internacional.


A sua contribuição, portanto, aprofunda a idéia de humanização da guerra quando se acolhe o primado de justiça e de piedade no decurso do conflito. Nesse sentido, infere-se que os próprios meios de combate precisam ser justos e flexíveis para não causar sofrimentos cruéis e ásperos ao ser humano desnecessariamente. Essa noção suaviza as práticas de combate disseminadas na antiguidade ao prever uma elementar limitação à guerra, ou seja, só pode ser justa e piedosa.


O uso da força armada passa por uma fase de redimensionamento através das proposições feitas por Gentili, notadamente em relação à possibilidade de efetivá-la para proteger a outrem de agressão concreta ou iminente. Começa a se fortalecer a lógica da cooperação entre Estados para defender interesses alheios.


Destaca-se, ainda, o fato de ser cabível o Estado valer-se da coerção armada para proteger o outro por puro afeto, sem que exista qualquer intenção de obter vantagem particular. Essa idéia é reforçada por Gentili (2006, p. 135), quando este autor afirma que:


“[…] somos um só corpo, do mesmo modo que se um membro quisesse prejudicar a outro os demais viriam em auxílio do membro agredido, uma vez que a conservação de cada membro é conservação de todo o corpo e também do membro que agride, assim os homens virão em socorro de seus semelhantes, não podendo a sociedade humana avançar sem o amor e o auxílio de cada uma das partes.”


Observa-se, portanto, que Gentili construiu regras que tornaram a guerra mais humanizada na medida em que priorizou a restrição aos seus fundamentos, além de ter introduzido uma branda proteção ao indivíduo envolvido direta ou indiretamente no âmbito do conflito, pois reconhece a necessidade de ampará-lo devido ao seu aspecto físico ou mental, como acontece na situação das crianças, mulheres e idosos.


A crítica feita por Gentili aos meios e métodos empregados pelos beligerantes durante a contenda, apesar de ser muito simplória, tem relevância acentuada para a sofisticação da teoria da guerra.


Simultaneamente, verifica-se uma propensão do mencionado autor em alargar a tutela aos direitos humanos. Não se pode olvidar o fato de se admitir a possibilidade de mover uma guerra pelo afeto ao próximo, de modo a protegê-lo das ameaças ou atrocidades perpetradas por outrem.


É possível afirmar que Gentili inaugurou a reviravolta do Direito Internacional e ajudou a romper com a lógica das guerras cruéis e desumanas. Sua oposição à inclusão de inocentes entre os responsáveis pelo estado de beligerância representa uma inédita inovação às regras de combate.


A crítica feita à condenação à morte de indivíduos incapacitados de tomar às armas em razão de limitações físicas ou psíquicas revela seu pioneirismo entre os pensadores clássicos do Direito Internacional.


Além do mais, é nítida a aproximação entre sua teoria acerca do Direito de Guerra e as Convenções de Genebra de 1949, que dispõem sobre a proteção aos indivíduos envolvidos direta e indiretamente nos conflitos armados.


Isto porque, antes mesmo da criação do denominado Direito de Genebra, assim conhecido pela disseminação das referidas Convenções, Gentili apresentou relevantes proposições protetivas aos direitos humanos.


4 – Análise do Direito de Genebra enquanto instrumento de proteção às vítimas de conflitos armados a partir da teoria de Gentili


Após o caos instalado devido às atrocidades cometidas pelos Estados beligerantes na Segunda Guerra Mundial, as principais Convenções internacionais relativas à guerra foram revisadas e atualizadas.


Deste modo, no período pós-guerra, a readequação do sistema normativo de proteção aos indivíduos em função da guerra teve como desdobramento quatro Convenções, a saber: para Melhoria da Sorte dos Feridos e Enfermos dos Exércitos em Campanha; para a Melhoria da Sorte dos Feridos, Enfermos e Náufragos das Forças Armadas no Mar; convenção relativa ao Tratamento dos Prisioneiros de Guerra, e, finalmente, convenção relativa à Proteção dos Civis em Tempo de Guerra.


O Direito de Genebra – consubstanciado nas Convenções de Genebra de 1949 – priorizou a proteção básica às pessoas que não participam efetivamente dos combates, sendo sua principal conquista a inclusão dos civis como parte das classes privilegiadas a serem protegidas.


Leonardo Borges (2006, p. 78) observa que o artigo 3º, comum a todas as referidas Convenções, cuidou de estabelecer proteção às pessoas fora de combate, o que abrange tanto os conflitos internos (não-internacionais) quanto os externos (internacionais). Nesse sentido, qualquer indivíduo que não tenha participado diretamente da guerra, inclusive aqueles que tenham deposto as armas ou ficaram fora de combate, devem ser tratados com humanidade, independente de qualquer razão.


Com razão, a função basilar do Direito de Guerra, oriundo das Convenções de Genebra, consiste em proporcionar amparo às pessoas humanas incluídas involuntariamente no conflito armado pela localização que se encontram. (SWINARSKI, 1990, p. 28)


Interessante especialidade das Convenções de Genebra é destacada por Celso Albuquerque de Mello (TRINDADE, 1992, p. 109) no sentido de que todas as partes signatárias devem observar suas disposições, mesmo inexistindo reciprocidade de uma outra qualquer. Então, os tratados internacionais que versam sobre a questão de guerra e da proteção às suas vítimas não perdem eficácia ainda que todos ou alguns dos Estados-partes tenham deixado de ratificá-los.


O Direito de Genebra apresenta essa peculiaridade reforçada, sobretudo, pelo artigo 2º da I Convenção de 1949:


“Si una de las Potencias en conflicto no es parte en el presente Convenio, las Potencias que son Partes en el mismo estarán, sin embargo, obligadas por él en sus relaciones recíprocas. Estarán, […] obligadas […] con respecto a dicha Potencia, si ésta acepta y aplica sus disposiciones.”[1]


É importante destacar a dissociação entre a obrigação e a reciprocidade de observância e obediência ao teor das Convenções de 1949.


Cançado Trindade (2003, p. 357) demonstra que, quanto ao cumprimento das referidas normas, essas são “[…] exigíveis por todo Estado independentemente de sua participação em um determinado conflito, e cujo integral cumprimento interessa à comunidade internacional como um todo; […]”.


Nesse aspecto, constata-se que as cláusulas das Convenções de 1949 possuem natureza “erga omnes”, o que universaliza o dever de respeito ao Direito de Genebra pelos órgãos e agentes sujeitos à sua jurisdição, especialmente os Estados.


Certamente essa é uma especificidade contida nas Convenções de Genebra e que é ausente em outros instrumentos internacionais que vinculam os sujeitos de Direito Internacional, uma vez que sua aplicação não se condiciona à correspondência das demais partes envolvidas numa hostilidade, e isso é assim em razão do objeto que procuram tutelar: a proteção internacional dos direitos humanos.[2]


A lógica de amparar a vida, a liberdade, a segurança e a propriedade do ser humano remonta a um período histórico bastante remoto, época em que pensadores como Gentili desenvolveram suas idéias. Não foi ao longo do século XX, momento em que a história conheceu as guerras mais temidas da humanidade por conta das inúmeras mortes e da assustadora destruição, que surgiram as restrições à crueldade e ao ostracismo contra a pessoa humana.


Os mecanismos de proteção aos indivíduos envolvidos na guerra foram apenas aperfeiçoados em decorrência das atrocidades causadas pelas grandes potências, mas já existiam ou, pelo menos, foram previstos por teóricos clássicos do direito de guerra.


Assim, faz-se mister verificar as razões apontadas por Gentili de modo a constatar possíveis semelhanças com o emprego da força na contemporaneidade, especialmente pelo Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, que é o órgão legítimo no âmbito dessa organização internacional capaz de aprovar essa medida extremada através de suas resoluções editadas para esse fim específico.


5 – Considerações relativas ao uso da força armada sob a perspectiva da teoria de Gentili


A definição de guerra, segundo Gentili, remete à presença de armas, sendo exigida ainda, que a contenda entre as partes seja pública. Descaracteriza o termo em comento, a ausência de artefatos armamentistas e divergências como: rixas, lutas ou inimizades de cidadãos de diferentes Estados.


Guerras movidas por motivos injustos e que tenham como fundamento a questão religiosa são inaceitáveis, segundo o autor. Qualquer litígio entre Estados cuja causa arvora-se em explicações escusáveis ou em coisas divinas enquadra-se nessa modalidade. O uso da força está condicionado à ocorrência de motivos realmente relevantes e que tenham por fundamento causas justas.


Permite-se, também, a realização de guerra quando houver receio de ataque injusto por algum Estado considerado adversário. A sensação de insegurança e incerteza provocada pela postura adotada pelo suposto agressor é motivo suficiente para guerrear, segundo Gentili, caso se vislumbre certo temor pelas atitudes apresentadas ou direcionadas ao ameaçado.


O estudioso italiano propõe, superficialmente, que o recurso à coerção seja uma medida excepcional, podendo ser empregado quando não houver mais alternativas pacíficas de se buscar a paz. Isso é perceptível pela forma como a força armada é tratada em sua teoria na condição de última opção a ser escolhida pelos beligerantes.


A coerção deixa de ser a forma mais comum de resolução dos impasses entre diferentes Estados e, substituindo esse cenário marcado pela realização frequente de guerras, surge a noção de cooperação internacional como método pacífico de dirimir as pendências que afetam interesses diversos.


Na tentativa de evitar que a violação dos direitos humanos ganhe proporções incontornáveis a ponto de se expandir além das fronteiras nacionais, os Estados procuram estabelecer uma ajuda mútua na esfera internacional em prol de interesses comuns, cujo fim consiste em manter a paz e a segurança.


O uso da força, nessa perspectiva, é reconfigurado pelo direito de guerra proposto por Gentili, e somente deve ser concretizado na medida em que houver de fato uma causa justa e estiverem esgotados os meios alternativos de resolver a contenda. A relativização do uso da força começa a se aplainar a partir da sua teoria, sendo lapidada por outros pensadores que influenciaram significativamente o desenvolvimento do Direito Internacional, como foi o caso de Hugo Grócio.


Na contemporaneidade, o empreendido da força armada depende de anuência da comunidade internacional, cuja decisão é tomada pela entidade incumbida de representá-la: a Organização das Nações Unidas (ONU). Cabe ao seu principal órgão, o Conselho de Segurança, deliberar sobre a necessidade ou não de se recorrer à força armada para encerrar uma ameaça ou agressões a um Estado ou aos direitos humanos.


6 – O uso da força armada no contexto do Direito Internacional moderno: a influência da teoria de Gentili


Conforme dito, com fim da Segunda Grande Guerra, a busca pela paz e segurança internacional passou a ser conduzida pela ONU, organização criada com esse escopo:


“[…] a ONU assumiu suas duas funções principais: a manutenção da paz internacional e a cooperação para o desenvolvimento econômico e social das nações, principalmente apoiando a reconstrução dos países destruídos pela guerra”. (RODRIGUES, 2000, p. 29)


Frustrada a pacificação de eventual contenda internacional pelos meios convencionais, a ONU, sob os auspícios do Conselho de Segurança, possui poderes insculpidos no Capítulo VII de sua Carta constitutiva, para autorizar, mediante recomendações ou resoluções, o uso da força armada no intuito de conter o avanço das hostilidades e o desrespeito aos direitos humanos.


Na realidade, essa prática de invocar o Capítulo VII tornou-se corriqueira para justificar a legitimação da força, embora não haja indicação explícita de sua utilização em determinadas situações, como é o caso da questão humanitária.


Essa permissão de intervir num conflito armado entre forças antagônicas para proteger os direitos humanos escora-se numa interpretação feita pelo Conselho de Segurança ao Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, que dispõe sobre a “Ação relativa a ameaças à paz, ruptura da paz e atos de agressão”, como forma de legitimar essa ação estribada no uso da força armada.


Anteriormente, cabia às partes conflitantes decidir se havia ou não justo motivo para iniciar um combate, conforme indica Gentili. Na modernidade, contudo, a ameaça à paz e à segurança internacional não se limita somente aos envolvidos, abarcando, pois, toda a comunidade internacional.


De qualquer modo, constata-se que o recurso à coerção tornou-se uma exceção e depende da concordância do Conselho de Segurança da ONU para se revestir de legitimidade.[3]


Não resta dúvida que Gentili influenciou essa prática com sua teoria sobre o direito de guerra, sobretudo quando enfatiza que a força armada é legitimada pela presença de fundamentos justos para exercê-la.


Confirma-se essa premissa principalmente em relação às Convenções de Genebra de 1949, já que muitas das suas disposições são frutos das construções teóricas desenvolvidas na antiguidade, e que acabaram sendo absorvidas por esses instrumentos normativos.


Sustenta-se que existe uma grande correspondência entre a teoria de Gentili e as normas previstas nas Convenções de Genebra, destacando-se aquelas relativas à proteção de inocentes, direta ou indiretamente, envolvidos no conflito armado como: crianças, mulheres, idosos, feridos, prisioneiros, religiosos e refugiados.


Muitos aspectos relevantes no âmbito internacional podem ser discutidos e debatidos à luz da concepção de Gentili, em função da consistência e profundidade de sua teoria relativa à guerra.


Guardadas as devidas proporções, Alberico Gentili, enquanto um pensador clássico do Direito Internacional, trouxe inovações que repercutem depois de ter se passado séculos da publicação de sua teoria, e que ainda tem aplicabilidade no contexto do direito de guerra moderno. É claro que muitas de suas proposições tornaram-se obsoletas, mas ainda persistem resquícios de suas idéias até o presente momento.


7 – Conclusão


Diante do exposto, comprovou-se, mesmo que de forma sucinta, que as idéias de Gentili estão atualizadas independentemente das circunstâncias temporais e espaciais.


Durante os séculos XVI e XVII, período em que esteve estudando e produzindo seus textos, sua teoria retratava, além de outras coisas, os meios e métodos utilizados no âmbito dos conflitos armados. Transcorridos alguns séculos desde a publicação de seu último texto, ainda persistem resquícios de suas idéias, principalmente em relação à proteção aos direitos humanos no contexto da beligerância.


Gentili definiu uma série de regras que deveriam ser aplicadas aos conflitos armados, como: a proibição de matar inocentes (não combatentes, crianças, mulheres, idosos, feridos, religiosos e os que estiverem incapacitados para se defrontarem com exércitos inimigos), a noção de guerra justa (somente através de um motivo razoável que é esta se tornaria legítima), a celebração de tratados de paz e demais medidas que se fizerem imprescindíveis ao apaziguamento das hostilidades.


Muitas de suas contribuições não apenas refletiram positivamente na criação de instrumentos normativos de guerra na modernidade, como também foram (relativamente) absorvidas em certas situações.


Certo é que o Direito de Genebra, quando impõe às partes o dever de observar os limites materiais de combate – especialmente quanto à exclusão dos não-combatentes do ataque, à proibição de utilizar armas bacteriológicas ou que causem sofrimento desnecessário e cruel -, teve como norte as proposições acerca da guerra estipuladas pelos teóricos clássicos.


Com sua noção de guerra justa, Gentili também procurou restringir a ocorrência de guerras sem motivos justificados, sendo que o uso da força nos dias atuais, da mesma forma, é medida de exceção e só tem legitimidade se for autorizado pelo Conselho de Segurança nos termos do Capítulo VII da ONU.


É inegável, portanto, que Gentili, assim como os demais pensadores clássicos do Direito Internacional, propiciaram o desenvolvimento da ordem jurídica internacional, notadamente acerca do direito de guerra.


 


Bibliografia

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DINIZ, Arthur José Almeida. Novos paradigmas em direito internacional público. Porto Alegre: S. A. Fabris, 1995.

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______________________. Introdução ao Direito Internacional Humanitário. Brasília, 1988: Escopo.

 

Notas:

[1] “Se uma das potências no conflito não é parte na presente Convenção, as potências que são partes no mesmo estarão, sem embargo, obrigadas por suas relações recíprocas. Estarão, […] obrigadas […] com respeito a dita potência, se esta aceita e aplica suas disposições.” (tradução nossa)

[2] Nesse sentido, Arthur Almeida-Diniz demonstra que: “Sem a proteção efetiva da pessoa humana, considerada esta tanto em seu livre arbítrio e em sua intangibilidade, todas as leis se tornam utópicas, cruéis mesmo. A realização da plenitude do Direito tem sua plataforma de manobra exatamente neste universo: […] o Outro.” (ALMEIDA-DINIZ, 1995, p. 77)

[3] Deve-se destacar que o Conselho de Segurança é um órgão político cuja representação reflete a balança de poder. Os Estados considerados vencedores da Segunda Guerra Mundial (Estados Unidos, Rússia, Reino Unido, França e China) são únicos que detém o direito exclusivo de vetar as decisões tomadas pelo Conselho. Quando se refere a este órgão, indiretamente fica subentendido que as suas decisões são impostas por aqueles Estados, e não pelo Conselho de Segurança propriamente dito. Mônica Teresa Costa Sousa aborda que ainda se discute o fato dos Estados, numa sociedade internacional, serem possuidores ou não do direito de intervir em assuntos internos de um outro Estado sob o fundamento de estar havendo a prática de atos contrários aos direitos humanos, à segurança e à paz internacional. SOUSA, Mônica Teresa Costa. Direito Internacional Humanitário. 2. ed. (ano 2007), rev. e atual.. Curitiba: Juruá, 2008, p. 68. Na mesma esteira, Guilherme Stolle Paixão e Casarões e Rafael Ávila questionam que: “Limitar, contudo, a pouco mais de uma dezena de atores, com ênfase nos P-5, a capacidade de se determinar o que se configura como ameaça à paz e dar-lhes poderes para agir com base nisso, reforça a ideia de que as Nações Unidas, no que tange particularmente ao seu Conselho de Segurança, é muito mais uma representação das velhas dinâmicas de poder – nas quais o realismo político tem muito mais a dizer – do que o triunfo dos interesses coletivos, do Direito Internacional de Estados em bases igualitárias e pacíficas. CASARÕES, Guilherme Stolle Paixão e; ÁVILA, Rafael. Comentários ao artigo 39 da Carta das Nações Unidas. In: BRANT, Leonardo Nemer Caldeira (Org.). VIEIRA, Daniela Rodrigues … [et al.] (Col.). Belo Horizonte: CEDIN, 2008, p. 606.


Informações Sobre os Autores

Luiz Márcio Siqueira Júnior

Mestrando em Direito Público pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). Advogado.

Tatiane Cardozo Lima

Mestranda em Direito Público pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). Pós-graduada em Direito Público pela Faculdade Newton Paiva. Advogada formada pela Universidade Federal de Viçosa (UFV)


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