Família: trajetória do fenômeno social e sua perspectiva jurídica

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Resumo: O presente artigo desenvolve criteriosa análise histórica das relações sociais que deram origem à família, desvendando a trajetória jurídica do fenômeno familiar no ordenamento pátrio. O ensaio conduz à conclusão no sentido de que as novas demandas características da sociedade contemporânea impõem a construção de um direito de família moderno e funcional, vigilante sobre os direitos fundamentais, demonstrando, ao fim, que a despeito das constantes e esvaziadas críticas no sentido de que a família apresenta- se hoje como um instituto decaído, esta acompanhou as transformações sociais, preservando a sua essencialidade, funcionando em favor da conservação e da evolução do homem, da sociedade e do Estado, e operando, além disso, como faina que mantém acesa a chama da ciência jurídica, colocando-a em constante processo de mutação e aperfeiçoamento.

Palavra-chave: Família, evolução legislativa, pluralidade.

Abstract: This paper develops careful historical analysis of the social relations that gave rise to the family, unraveling the legal trajectory of the familiar phenomenon in paternal land. The test leads to the conclusion in the sense that the new features of contemporary society demands require the construction of a right of modern, functional family, vigilant on fundamental rights, demonstrating, to the end that despite the constant criticism and emptied towards that the family is presented today as a fallen institute, this followed the social transformations while preserving its essence, working in favor of conservation and the evolution of man, society and the state, and operating, moreover, as drudgery that keeps the flame of legal science, putting it in a constant process of change and improvement.

Keywords: Family, legislative developments, plurality.

Sumário: Introdução. 1. A origem dos laços afetivos e a evolução do conceito familiar. 2. A evolução legislativa do instituto na estrutura organizacional brasileira. 3. A moderna concepção familiar pautada nos valores constitucionais do afeto e da pluralidade. Conclusão.

Introdução

Conforme lições de Fachin, “a família antecede, sucede e transcende o jurídico. Está antes do Direito e nas entrelinhas do sistema jurídico” (FACHIN, 1999, apud FERRARINI, 2010, p. 60).

Deste modo, partindo-se do princípio de que a família é uma realidade histórica a cujo estudo se dedica não apenas a ciência do direito, mas todos os ramos das ciências humanas, e visando a ampla compreensão de como se deu, originariamente, a apreensão jurídica deste instituto, faz-se necessário o resgate de suas transformações ao longo dos tempos, acompanhando as mudanças imprimidas pela crescente influência da Igreja, bem como as variações do contexto cultural no qual as famílias se encontravam inseridas.

Entretanto, em que pese o valor instigante do resgate histórico, no tópico inicial buscar-se-á apontar apenas as etapas indispensáveis à compreensão da família nos moldes em que se apresenta hoje em dia; isto é, no primeiro capítulo far-se-á breve abordagem histórico-filosófica da origem dos laços sociais do homem no chamado “estado de natureza”, passando-se à análise da família patriarcal romana, importante referência para o modelo familiar brasileiro. A partir daí, o estudo da família evolui para a apreensão que lhe foi atribuída no modelo Canônico – retratando a franca expansão do cristianismo, que contribuiu para a queda do Império Romano do Ocidente e inaugurou a Idade Média –, até chegar-se à Idade Moderna, com a queda do Império Romano do Oriente (Bizantino) e a consequente interrupção do comércio entre Europa e Ásia – circunstância que fomentou o período das grandes navegações, culminando no descobrimento do Brasil.

Nessa linha, o segundo item direciona o estudo ao modelo familiar instaurado pela Coroa Portuguesa no Brasil Colônia; ver-se-á, assim, que o modelo português, fortemente influenciado pelo catolicismo, religião oficial de Portugal, inspirou a elaboração do Código Civil de 1916. Nesse sentido, analisa-se, passo a passo, a evolução social da família brasileira até a promulgação da Constituição Cidadã de 1988, responsável pela moderna transformação deste instituto através do novel conceito de pluralidade familiar.

Finalmente, o terceiro tópico de estudo busca ampliar o foco da família, tratando da pluralidade constitucional e contextualizando a dispersão dos laços afetivos através do estudo da trajetória do concubinato à união estável.

1.  A origem dos laços afetivos e a evolução do conceito familiar

Conforme observado por Maria Berenice Dias, ao longo da história tanto o Estado como a Igreja buscaram meios para se apropriar do fenômeno familiar: a Igreja sacralizou o casamento, atribuindo-lhe função reprodutiva; o Estado, por sua vez, institucionalizou a família, visando com isso o conveniente fortalecimento estatal (DIAS, 2001).

Entretanto, em que pesem as restritivas interpretações de ordem política e religiosa, as relações pessoais que dão origem à família são um fenômeno social, um fato natural observado independentemente da qualificação atribuída pelo direito e pela religião. Nesse sentido, as precisas ponderações de Virgílio de Sá Pereira: “Agora, dizei-me: que é que vedes quando vedes um homem e uma mulher, reunidos sob o mesmo teto, em torno de um pequenino ser, que é fruto de seu amor? Vereis uma família. Passou por lá o juiz, com a sua lei, ou o padre, com o seu sacramento? Que importa isso? O acidente convencional não tem força para apagar o fato natural. De tudo que acabo de dizer-vos, uma verdade resulta: soberano não é o legislador, soberana é a vida. […] A família é um fato natural, o casamento é uma convenção social. A convenção é estreita para o fato, e este então se produz fora da convenção. O homem quer obedecer ao legislador, mas não pode desobedecer à natureza, e por toda a parte ele constitui a família, dentro da lei, se é possível, fora da lei, se é necessário.”. (PEREIRA, 1959, p. 89)

Por esta razão, a família deve ser considerada um grupo espontâneo de pessoas, uma realidade viva que ultrapassa sua acepção de caráter institucional e sacramental.

No entanto, sabe-se que eventual análise da família a partir dos conceitos jurídicos modernamente estabelecidos       seguramente      padeceria de influências político-religiosas, motivo pelo qual cumpre que se faça um resgate mais apurado das origens das relações humanas, a fim de que se possa situar e conceituar, de maneira isenta, o fenômeno familiar, reconstruindo-se a linha do tempo que registra a sua formação efetiva, bem como a sua afirmação, em sentido humano, como modelo ideal de convívio social.

Nesse contexto, conforme brilhantemente desvendado por Engels no célebre estudo sobre as origens da família, da propriedade privada e do Estado, desde o início da vida humana as relações dos homens entre si e com os seus bens vêm sofrendo alterações e operando transformações estruturais na sociedade (ENGELS,1984). Assim, nos termos do materialismo-histórico-dialético do pensador alemão, o estudo de diferentes momentos históricos revela não apenas as mudanças sofridas pela produção material, mas também alterações na dinâmica, no funcionamento e na função social da família.

A par dessas informações, cumpre observar que o estudo da natureza das relações humanas revela um estágio primitivo em que os agrupamentos humanos não tinham regras que disciplinassem a conivência. Na “horda”, preconizada por Paulo Nader, o instinto se sobrepunha à razão dos povos nômades primitivos; havia a aproximação entre o homem e a mulher somente com o intuito do acasalamento, originando as relações sexuais promiscuas e indiscriminadas (NADER, 2000).

Nesse sentido, esclarece Shilling: “[…] devido à inerente promiscuidade sexual, que se supunha dominar o comportamento das comunidades primitivas, onde imperava um acasalamento circunstancial, imediato, sem regras ou compromissos estabelecidos, as mulheres, que tinham inúmeros parceiros, eram as únicas a poderem determinar com certeza de quem eram os filhos. Nesse sistema, os homens eram apenas machos reprodutores que não mantinham nenhum vínculo afetivo ou responsável com os recém-nascidos” (SHILLING apud DAL COL, 2002, p. 13)

Como se verifica, nessa fase pré-histórica a noção de família é muito distante da concepção moderna; além da ausência do direito, também ainda não se havia desenvolvido entre os povos primitivos o senso de justiça social, prevalecendo, assim, a vontade do mais forte nas constantes batalhas travadas em busca de alimento e na fuga de seus predadores.

Em suma, apenas em um segundo momento os seres humanos começaram a se reunir em grupos, formando tribos e buscando uma maneira mais segura de vida.

Retornando à exposição do processo evolutivo familiar desenvolvido por Engels, o consagrado pensador alemão destaca a existência de três estágios fundamentais da evolução humana, a saber, o Estado Selvagem, a Barbárie e a Civilização, e relata, passo a passo, o correspondente modelo familiar adotado em cada período (ENGELS, 1984).

Sob essa perspectiva, Engels discorre acerca do Estado Selvagem, a chamada infância do gênero humano, apontando que nesse estágio inicial os homens sobreviviam por meio da apropriação dos produtos obtidos da natureza por meio da caça e da pesca; eram nômades, movidos pelo instinto de reprodução e preservação da vida.

Especula-se que nesse estágio se teriam desenvolvido as primeiras células familiares: as famílias consanguíneas e os matrimônios por grupos; modelos familiares constituídos mediante a promiscuidade sexual, caracterizados pela existência de grupos conjugais distribuídos por gerações, de modo que avós e avôs seriam marido e mulher entre si, assim como os filhos e filhas, netos e netas, primos… Excluindo-se do alcance das relações sexuais recíprocas apenas ascendentes e descendentes.

Avançando-se no estudo da evolução humana, chega-se à chamada Barbárie, período em que se desenvolveu o incremento da natureza com o auxílio do trabalho humano, tanto por meio da domesticação de animais, quanto pelo surgimento da agricultura – frise-se, por oportuno, que, conforme se verá adiante, estas descobertas foram responsáveis por significativas alterações no modelo familiar.

Nessa toada, destaca-se o surgimento de um terceiro modelo familiar, a Família Punaluana; espécie que excluía das relações conjugais ascendentes e descentes, bem como irmãos e irmãs; daí o surgimento, nesse período, de uma raça mais forte física e mentalmente, capaz de imprimir celeridade ao processo de desenvolvimento das sociedades humanas.

Este modelo familiar é explicado por Engels nos seguintes termos:”[…] certo número de irmãs carnais ou mais afastadas eram mulheres comuns de seus maridos comuns, dos quais ficavam excluídos, entretanto, seus próprios irmãos. Esses maridos, por sua parte, não se chamavam entre si de irmãos, pois já não tinha necessidade de sê-lo, mas “punalua”, quer dizer, companheiro íntimo, como quem diz “associé”. De igual modo, uma série de irmãos, uterinos ou mais afastados, tinham em casamento comum certo número de mulheres, com exclusão de suas próprias irmãs, e essas mulheres chamavam-se entre si “punalua”.”(ENGELS, 1984, p.40)

Assim, em virtude da promiscuidade remanescente dos tempos de selvageria e da consequente impossibilidade de que se determinasse com precisão a descendência paterna de cada filho, a família punaluana continuou reconhecendo exclusivamente a filiação materna.

Ademais, observa-se que ainda no período da Barbárie, as relações humanas evoluíram dando origem à chamada Família Sindiásmica; modelo no qual se estabeleceu a proibição do matrimônio entre parentes consanguíneos – circunstância que novamente contribuiu para o surgimento de tribos geneticamente mais fortes. Além disso, outra referência deste modelo familiar consiste na cultura de que o homem vivesse com uma única mulher, sendo-lhe cobrada a rigorosa fidelidade ao marido no período em que persistisse a vida em comum, enquanto, por outro lado, era garantido ao homem o direito à poligamia e à infidelidade ocasional (ENGELS, 1984).

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Arthur Wright, citado por Engels, descreve a situação da mulher no matrimônio Sindiásmico da seguinte maneira: “Habitualmente as mulheres mandavam na casa: as provisões eram comuns, mas ai do pobre do marido ou amante que fosse preguiçoso para trazer a sua parte ao fundo de provisões da comunidade! Por mais filhos ou objetos pessoais que tivesse na casa, podia, a qualquer momento, ver-se obrigado a arrumar a trouxa e sair porta afora. E era inútil opor resistência, porque a casa se convertia para ele num inferno; não havia remédio senão voltar para o seu próprio clã, ou, como costumava acontecer com frequência, contrair novo matrimônio em outro.” (WRIGHT apud ENGELS, 1984, p. 51)

Em face dessas considerações, nota-se que no período em questão ainda havia resquícios do predomínio feminino, amparado pelo anterior modelo de sociedade matriarcal, que assegurava às mulheres o controle social, sobretudo em função da capacidade reprodutiva e dos irrefutáveis laços de filiação estabelecidos com seus descendentes.

Entretanto, o aumento das riquezas no período da Barbárie imprimiu, gradativamente, importantes mudanças na ordem social. Entre elas o aclamado surgimento da família patriarcal; clássico modelo familiar que atribui ao homem a liderança do grupo, quebrando a filiação pela linha feminina e promovendo uma série de avanços que conduziram os humanos da Barbárie à Civilização.

Deste modo, conforme apontado anteriormente, ainda no período da Barbárie o homem havia se apoderado de alguns recursos da natureza, domesticando animais e desenvolvendo técnicas de plantio que solucionaram o problema diário de busca por limentos. Com isso, aos poucos o homem foi abandonando o nomadismo e procurando fixar-se a um só lugar – ver-se-á, mais adiante, que este apoderamento da terra deu origem à propriedade privada, embrião da monogâmica família patriarcal que estabeleceu a supremacia do homem sobre a mulher.

Nessa linha, superado o estágio da Barbárie, inaugura-se o estágio da Civilização, grande inovação desse período histórico, cujos traços principais residem na sobreposição da propriedade privada à coletiva e no fortalecimento da família patriarcal monogâmica.

Acerca da monogamia, Engels assevera que esta surge como decorrência da concentração de riquezas nas mesmas mãos e do desejo de transmitir essas riquezas, por herança, aos filhos deste homem, excluídos os filhos de qualquer outro. E, adiante, complementa: “[…] com o surgimento do costume do cercamento e da delimitação das terras, adotadas pelos homens vitoriosos em combates e guerras, os machos passaram a exigir a fidelidade sexual das mulheres porque não aceitavam ter de legar os seus bens, obtidos com sangue e pela exploração do próximo, a um descendente que não fosse seu filho legitimo, gente do seu próprio sangue.” (ENGELS, 1984, p.60)

Por essa perspectiva, pode-se dizer que a origem da família monogâmica está bem distante dos motivos líricos que inspiraram o famigerado amor romântico, acomodando-se melhor aos interesses patrimoniais masculinos de preservação      dos bens.

Note-se, aqui, que de acordo com o pensamento jusnaturalista essa mesma preocupação com a preservação da propriedade é igualmente responsável, ao lado da conservação da vida e da liberdade, pelo surgimento da ideia do Contrato Social[1], perspicaz arranjo humano que, implementado, deu origem ao Estado.

De qualquer sorte, a despeito dos motivos econômicos pautados na defesa da propriedade privada e do consequente aviltamento da mulher em face da facilitação da infidelidade masculina, o certo é que a família patriarcal monogâmica configura o modelo familiar civilizado que sucedeu a selvageria e a barbárie, atravessou os séculos e deixou como legado uma série de costumes.

Nesse sentido, embora já se tenha apontado aqui que a monogamia e a propriedade privada se desenvolveram de maneira relativamente simultânea, importa, ainda, observar a contemporaneidade de outro acontecimento de acentuado valor histórico, qual seja, a difusão das práticas escravistas – relações de subordinação impulsionadas pelo crescente domínio de territórios e pelo consequente aumento da demanda de mão de obra para ser empregada nos cuidados com a terra e, em caso de guerra, na defesa do território.

Conforme apontado por Engels “a existência de escravidão junto à monogamia, a presença de jovens e belas cativas que pertencem, de corpo e alma, ao homem é o que imprime desde a origem um caráter especifico à monogamia – que é a monogamia só para a mulher, e não para o homem”. (ENGELS, 1984, p.67).

A partir dessas ideias, vê-se que o alargamento da monogamia em favor do gênero masculino deu origem à cultura do chamando Heterismo, odioso modelo de relações humanas opressoras do sexo feminino que bem exprime o antagonismo havido entre homens e mulheres unidos em relação monogâmica.

O Heterismo, assim descrito por Engels, caracteriza-se pela aberta prática de relações extraconjugais dos homens com escravas e mulheres não casadas; permissividade cujas consequências imediatas são a escravização de um sexo pelo outro e o surgimento da prostituição (ENGELS, 1984).

No tocante às origens da prostituição, atividade censurada pela grande maioria dos povos, merecem destaque as ilustrativas palavras de Engels: “A entrega do dinheiro foi, a princípio, um ato religioso: era praticada no templo da deusa do amor e, primitivamente, o dinheiro ia para as arcas do templo […]. O sacrifício da entrega que, no início deveria ser de todas as mulheres, passou a ser exercido, mais tarde, apenas por essas sacerdotisas, em substituição a todas as demais.” (ENGELS, 1984, p.72).

Finalmente, impende observar que o desamparo da esposa, subjugada na sociedade patriarcal e, não raro, sexualmente preterida por seu marido em face da multiplicação das relações extraconjugais deste, deu azo à prática do adultério também pela mulher casada; acontecimento ironicamente desvendado por Engels: “Com a monogamia, apareceram duas figuras sociais constantes e características, até então desconhecidas: o inevitável amante da mulher casada e o marido corneado. Os homens haviam conseguido vencer as mulheres, mas as vencidas se encarregaram, generosamente, de corar os vencedores. O adultério, proibido e punido rigorosamente, mas irreprimível, chegou a ser uma instituição social inevitável junto à monogamia e ao heterismo. No melhor dos casos, a certeza da paternidade baseava-se, agora, como antes, no convencimento moral.”(ENGELS, 1984, p.72).

Destarte, poder-se-ia dizer que foi desse contexto social, no qual a velada infidelidade feminina punha em risco a linha sucessória de seu cônjuge, que adveio a necessária presunção de paternidade dos filhos havidos na constância do casamento; recurso cujo intuito era o de impedir o questionamento acerca da legitimidade da prole, ainda que à custa da violação da verdade biológica.

Em suma, foi esse o modelo familiar patriarcal que se firmou e, com algumas alterações, atravessou os séculos, estendendo-se até o surgimento da civilização romana. Nesse passo, sem que se pretenda aqui discorrer amplamente sobre os três períodos da civilização romana (o da realeza, o republicano e o imperial), uma vez que, juntos, compreendem doze séculos de história, cumpre que se façam algumas importantes considerações acerca do modelo familiar desenvolvido pelos romanos.

De modo geral, tem-se que a família romana seguiu o modelo patriarcal correspondente ao estágio civilização; merecendo destaque, porém, alguns conceitos e costumes incrementados pelos romanos que repercutiram no Direito de muitos Estados, entre eles o Português, o qual, por sua vez, teve seu sistema jurídico e ideologia refletidos no Brasil Colônia.

Pois bem, a família patriarcal romana era composta pelo grupo de pessoas, patrimônio e escravos colocados sob o poder do pater famílias – ascendente comum mais velho que além de desempenhar o papel de chefe da família, exercendo o poder de vida e morte sobre mulher e filhos, também desempenhava as funções de juiz e líder religioso.

Nessa fase inicial existiam dois tipos de parentesco: o parentesco por agnação (agnatio), que resulta da sujeição ao mesmo pater, independentemente da vinculação consanguínea havida entre os membros da família – compreendendo, assim, a mulher, os filhos, ainda que ilegítimos ou adotados, bem como os demais indivíduos sujeitos ao mesmo pater; e o parentesco por cognação (cognatio), que representava o vínculo sanguíneo, baseado na filiação (DAL COL, 2002).

Nessa linha, há de se observar que no período antigo prevalecia entre os romanos o direito costumeiro, que andava lado a lado com a religião e valorizava sobremaneira a função reprodutiva da família.

Nesse sentido, seguem exemplos dos costumes, tais como aquele que impunha à esposa o dever de se entregar ao cunhado ou a outro parente próximo caso o seu marido fosse considerado impotente – circunstância que implicava o reconhecimento da prole como se houvesse sido concebida pela mulher e seu esposo; bem como o exemplo análogo observado quando do falecimento de homem casado que morrera sem deixar filhos, hipótese em que a viúva deveria se casar com o parente mais próximo de seu ex-marido, e o filho concebido desta união seria considerado filho do falecido (MARCELINO, 2007).

Tais costumes, previstos pela Lei das XII Tábuas[2] demonstram o elevado apreço das uniões conjugais na sociedade romana, bem como a valorização dos elementos de fato.

Com efeito, muito embora a sociedade romana tivesse como base o casamento, seus costumes admitiam semelhantes efeitos jurídicos às relações de concubinato[3], dispensando-se, em face da posse do estado de casado, as cerimônias religiosas, que serviam apenas para dar publicidade ao consenso dos nubentes em estabelecer a comunhão de vidas.

Nesse contexto, ganha destaque o valioso legado deixado pelos romanos traduzido na valorização da affectio maritalis et uxório, no sentido de que a vontade duradoura de estabelecer a comunhão assistencial enquanto durasse o matrimônio era o elemento mais importante do casamento, que, no mais das vezes, estabelecia-se sem apego aos formalismos e ao enquadramento jurídico, prevalecendo a concepção realística da plena comunhão de vida, de conhecimento público e animada pela recíproca afeição de serem marido e mulher (AZEVEDO, 2011).

Acerca de uma das tradições dos cidadãos da Roma Antiga, Fustel de Coulanges, citado por Dal Col, conta que no casamento romano a jovem devia ser conduzida até a casa do esposo para que este a tomasse nos braços, simulando o rapto, e a carregasse através da soleira da porta, sem que os pés da moça a tocassem. Depois, devia conduzi-la até o fogo doméstico e, juntos, comerem um bolo de farinha-flor, na presença e sob os olhos de Deus, a partir de quando estariam casados (COULANGES apud DAL COL, 2002, p.25).

Destarte, como restou afiançado por Max Kaser, o casamento romano não era uma relação jurídica, antes, consistia em um fato social produtor de efeitos jurídicos reflexos (KASER, 1968, apud AZEVEDO, 2011).

No tocante ao rompimento do vínculo conjugal, tem-se que a religião romana não era contrária ao divórcio, sendo, portanto, esta prática bastante difundida e aceita no período imperial romano – época em que além das hipóteses de adultério e infidelidade feminina, a simples “insuportabilidade” da vida em comum era considerada causa para que se autorizasse o rompimento do vínculo conjugal.

Como se vê, a não interferência do Estado nas relações familiares e a afeição conjugal consistem em importante herança da civilização romana, em oposição ao formalismo e ao intervencionismo que posteriormente seriam impostos pelo fortalecimento da Igreja Católica.

Mais adiante, com o imperador Constantino e o surgimento da concepção cristã de família, as relações na sociedade romana sofreram alterações que muito lhe aproximaram do modelo familiar adotado modernamente, que se restringe a um grupo de pessoas, não mais compreendendo, portanto, o patrimônio e o grupo de escravos.

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Nesse sentido, ensinam Leon Henri e Jean Mazeud: “Com Constantino (no começo do século IV de nossa era), penetra lentamente na legislação romana uma nova concepção da família, sem conseguir, jamais, por outro lado, que desaparecessem completamente as regras antigas. É a concepção Cristã da família. Nela, a família forma um grupo, não é estendido como na família patriarcal, ao contrário, é restrito: não compreende senão o marido, a mulher e os filhos. Citando o Gênesis (II, 24), Cristo havia dito aos seus filhos: “o homem deixará seu pai e sua mãe, e se unirá a sua mulher (São Mateus, XIX; São Marcos, X, 7). Por isso mesmo, este grupo tem uma coesão que havia perdido a família exageradamente vasta do direito romano. Essa coesão não tem fundamento a autoridade do marido, descansa sobre o sacramento do matrimônio.” (MAZEUD, 1956, apud RIZZARDO, 2009, p.11).

Ainda no que concerne ao advento do Cristianismo e sua adoção como religião oficial do Império Romano, são ilustrativas as palavras do professor Belmiro Pedro Welter, que assim articula: “Com desmembramento do Império Romano, em Ocidente e Oriente, a contar do século V, e com o decorrente desaparecimento de uma ordem secular estável, houve um deslocamento da autoridade e poder de Roma ao Chefe da Igreja Católica Romana, Esta, por sua vez, desenvolveu o direito canônico, estruturado num conjunto normativo dualista – laico e religioso – que irá se manter até o século XX. Como consequência, na Idade Média, o Direito, confundido com a Justiça, era ditado pela Igreja Católica, que, possuindo autoridade e poder, se dizia intérprete de Deus na terra.” (WELTER, 2004, p. 88; grifo do autor).

Assim, vê-se que, enquanto diminuta interferência Cristã entre os romanos, havia a possibilidade de que a família fosse constituída pelo concubinato, união contraída sem formalidades. Ocorre que a decadência econômica e política romana, decorrente na crise do escravismo (que levou à queda do Império Romano do Ocidente em 476 d.C.), abriu espaço para o avanço do Cristianismo, e a consequente interferência religiosa nos costumes, revelada pela sacralização do matrimônio e pelo estimulo à extinção do concubinato ou sua conversão em casamento, estabelecendo-se, para tanto, a distinção entre os filhos havidos em comum com a esposa e os nascidos da concubina.

Nesse contexto, observa-se que a queda do maior império do mundo marcou o início da Idade Média, período em que os costumes romanos foram paulatinamente transformados pelas normas do Direito Canônico, que se mantiveram durante a Idade Média como único direito escrito e influente em praticamente todas as áreas da sociedade.

Nesse diapasão, citam-se as palavras de Montesquieu na obra “Do espírito das leis”, ensaio no qual o filósofo iluminista alertava sobre o perigo de que a religião inspirasse aversão sobre as coisas diferentes, fazendo com que determinadas castas tivessem horror umas pelas outras, estabelecendo-se, com isso, distinções não formadas pela lei civil (MONTESQUIEU, 2006).

No âmbito das relações familiares, uma das principais alterações decorrentes da consolidação do cristianismo como doutrina hegemônica reside na sacralização do matrimônio, revelada pelo formalismo impregnado em sua celebração, pela ideia de indissolubilidade do vínculo conjugal e pelo repúdio às relações de concubinato.

Nesse sentido, o valioso juízo expresso nas palavras de Guilherme Calmon Nogueira da Gama: “De maneira bastante sutil, no decorrer da historia, a igreja passa a disciplinar o casamento com base nos valores éticos e jurídicos. No curso dos séculos, paulatinamente, um dos temas mais tratados pela Igreja foi justamente a família, e em especial, o casamento (denominado de matrimônio, para o Direito canônico). Assim, o matrimônio passou a ser considerado um sacramento, tal como o batismo, a comunhão, a penitência, a extrema-unção. […] A partir de tal época e com base nos argumentos e dogmas instituídos sobre o tema, a Igreja Católica passou a considerar que, sendo o matrimônio um sacramento e sujeito a indissolubilidade, todas as demais uniões entre homem e mulher fora do casamento eram uniões instáveis e precárias, passíveis de pronta dissolução, apresentando-se como mero concubinato e, assim, desqualificado.” (GAMA, 2008, p.153).

Ademais, um olhar crítico sobre as alterações promovidas pelo Cristianismo nos costumes familiares da época revela, ainda, a tendência ao apoderamento, por parte da Igreja, das riquezas produzidas pela família; intenção retratada com propriedade na análise sociológica promovida por Semy Glanz: “Ao longo dos séculos a Igreja acabou alterando as regras, afastando-se do judaísmo e das leis romanas […]. Proibindo o concubinato, o divórcio e a adoção, a Igreja dificultou aos homens casados arranjar herdeiro fora da família, e a riqueza foi passando para a Igreja, em prejuízo dos municípios, especialmente com a riqueza das famílias aristocráticas, permitindo construir igrejas e abadias, enquanto decaíam os teatros e fóruns. Através das mulheres, o Cristianismo transformou as famílias, permitindo que as viúvas não voltassem a casar-se e com isto deixassem as propriedades à Igreja.” (GLANZ, 2005, p. 182).

Em virtude desse rigor eclesiástico, no período compreendido entre o século XIV e início do XV, despontaram inúmeros conflitos entre o Estado e a Igreja. Embate fomentado pela expansão da doutrina protestante, flagrantemente contrária aos rigorosos desmandos papais.

Inaugurava-se, assim, o processo de laicização do poder político e do Direito de Família, movimento que se alastrou pelo mundo, rompendo os ciclos de poder da Igreja e afastando, pelo menos em tese, a ciência jurídica dos dogmas religiosos; repercutindo, ainda, em outros setores da atividade humana, tais como ciência, tecnologia e literatura.

Nesse sentido, ainda que se possam apontar resquícios do Direito Eclesiástico em todos os períodos subsequentes, é de se reconhecer que o Estado secular (laico) começou a dar sinais de seu afastamento das normas de Direito Canônico, sustentando ser de sua competência a regulamentação dos atos da vida civil, entre os quais se encontrava o casamento, que, a partir de então, não mais se revestiria de caráter sacramental, podendo, por bem, ser realizado no âmbito civil ou religioso, conforme melhor aprouvesse aos cônjuges.

Entretanto, em resposta ao protestantismo e ao movimento de secularização (laicização) do Direito de Família, a Igreja Católica contra-atacou, reunindo seus membros e autoridades para a realização do Concílio de Trento. Reação que pretendia ditar os rumos do Direito de Família, reafirmando antigos dogmas da Igreja Católica, tais como o sacramento do matrimônio e a condenação do concubinato em qualquer de suas formas.

Este contragolpe da Igreja foi explicado por Dal Col nos seguintes termos: “A resposta da igreja dominante contra estas posturas reformistas veio incisiva no Concílio de Trento (1542-1563), que reafirmou solenemente o caráter sacramental do casamento, reconhecendo a competência exclusiva da Igreja e das autoridades Eclesiásticas em tudo que se relacionava ao casamento, sua celebração e a declaração de sua nulidade. Caracterizou- se, ainda, o casamento como ato solene, devendo ser precedido de publicidade e só se permitindo a coabitação dos nubentes após terem recebido a benção nupcial.” (DAL COL, 2002, p. 30).

Destaque-se, por fim, que o Concílio de Trento influenciou as bases do Direito de Família de quase todos os países católicos do mundo, entre eles, Portugal.

À vista desses argumentos, embora no presente estudo não se tenha esgotado a análise histórica da instituição familiar no período da civilização, pretendeu-se, fundamentalmente, conduzir o exame da família até o período em que se deu o Concílio de Trento, uma vez que este evento representa um importante marco normativo em matéria de Direito de Família. De modo que, a partir daí, o estudo possa evoluir para a análise legislativa do instituto familiar no ordenamento jurídico brasileiro.

Nesse diapasão, importa destacar que a aceitação do alcance das normas estabelecidas pelo Concílio de Trento no conceito familiar implantado no Brasil pressupõe a compreensão de que nesse panorama já se havia dado a queda do Império Romano do Oriente (dominado pelos turcos-otomanos em 1453), que marcou o fim da Idade Média e o início da Idade Moderna – período de transformações na economia e na sociedade europeia, considerado responsável pela conexão do Velho Mundo às outras partes do globo terrestre por intermédio das grandes navegações e descobrimentos marítimos.

Assim, dentro de uma perspectiva histórica, verifica-se que as normas eclesiásticas    em matéria de família estabelecidas pelo Concílio de Trento compunham o ordenamento jurídico vigente em Portugal, tendo alcançado o Brasil por meio da colonização e preservado sua vigência até a promulgação do Código Civil de 1916 – conforme se verá detalhadamente no próximo tópico de estudo.

2.  A evolução legislativa da família na estrutura organizacional brasileira

Inicialmente, há de se considerar que os três primeiros séculos da história do Brasil são entendidos como um período de subordinação à metrópole portuguesa. Portanto, em função da relação de dependência, natural que as fontes históricas do direito português (derivadas do       Direito       Romano, Germânico e Canônico) alcançassem as terras do Brasil Colônia, seja por meio do reconhecimento da vigência de diplomas portugueses em solo brasileiro, sobretudo, das Ordenações Filipinas, ou ainda por intermédio da reprodução de tais normas no ordenamento local.

Acerca das Ordenações do Reino (Afonsinas, de 1446; Manuelinas, de 1521; e Filipinas, de 1603), é de se destacar, em breves linhas, que estas foram compilações jurídicas organizadas por monarcas da época, com o objetivo de conferir eficácia a uma série de leis extravagantes do Direito Português.

Nesse contexto jurídico, vê-se que à época do descobrimento do Brasil o Direito Português amparava três modalidades de família, assim relacionadas por San Tiago Dantas: “a) casamento como instituição canônica, segundo os preceitos estabelecidos pela Igreja, com consentimento manifestado in facie Ecclesiae; b) união nominada de “marido conhecido” ou “conozudo”, em que o consensus era expresso perante testemunhas, mas não perante autoridade eclesiástica, ou seja, a igreja não intervém no casamento; e c) união nominada de “marido desconhecido” ou “casamento à morganheira”, em que havia o consensus, a vida em comum como marido e mulher, mas não havia testemunhas do estabelecimento do vínculo […].” (DANTAS apud GAMA, 2008, p. 158).

Há de se notar, porém, que, algum tempo depois da descoberta das terras brasileiras, Portugal, na qualidade de país católico, reconheceu em seu ordenamento jurídico a validade das normas referentes ao casamento publicadas pelo já mencionado Concílio de Trento (1563), que lhe conferiam caráter sacramental e atribuíam à Igreja Católica a autoridade para a sua celebração. Portanto, embora em um passado mais remoto houvesse notícia de que a Igreja não se opunha às relações de concubinato, quando não adulterino nem incestuoso, a posterior imposição do dogma sacramental denota a ação moralizadora da Igreja, que, a partir de então, impôs a excomunhão aos concubinos que se mantivessem naquela condição.

Desse modo, a partir do Concílio de Trento as ditas normas fundadas no Direito Canônico, em matéria de Direito de Família, foram introduzidas no Direito Português e posteriormente implantadas na Colônia.

Nesse contexto surgiram as Ordenações Filipinas, que, com algumas alterações, vigoraram no Brasil no período compreendido entre 1603 e 1916, conforme destaca Arnaldo Rizzardo: “As ordenações Filipinas, que vigoraram no Brasil até o advento do Código Civil de 1916, admitiam não apenas o casamento sob a doutrina do Concílio de Trento, mas também aquele em que o consenso entre os nubentes se dava perante testemunhas, mesmo que sem a intervenção da autoridade eclesiástica”. (RIZZARDO, 2009, p. 19).

No que tange à formação do núcleo familiar e aos objetivos perseguidos pela família no período colonial, os precisos esclarecimentos de Ferrarini: “O padrão familiar tradicional era fundado no matrimônio, sendo o vínculo do casamento a única forma legitima de constituição da família. O caráter instrumental que lhe era conferido estava condicionado a interesses extrínsecos, sobretudo do Estado. A família não estava voltada à realização de cada individuo dentro do próprio grupo, mas ao contrário, cada membro era visto como promotor dos interesses desta instituição. O bom funcionamento da família, a sua prosperidade, era de fundamental importância para o desenvolvimento do Estado”. (FERRARINI, 2010, p. 56).

Vê-se, assim, que o modelo familiar ibérico implantado no Brasil pelos portugueses configura um modelo monogâmico, patriarcal e transpessoal (no sentido de que o interesse familiar se sobrepunha à realização pessoal de cada indivíduo). Observa-se, ainda, o relevante papel do casamento, entendido como condição de poder e status social (revelado na consagrada expressão do “pertencer a uma família”), qualidade apreciada, sobretudo, no modelo social patrimonialista de supervalorização da propriedade – circunstância que bem se verifica quando da análise da famigerada “casa grande” dos senhores de engenho, espaço familiar que reunia sob a autoridade do patriarca o conjunto de filhos, mulher e escravos.

Nesse diapasão, pode-se dizer que o modelo elementar da família brasileira estabelecido no período colonial revela a submissão feminina às autoridades estatais, eclesiásticas e, de maneira mais intensa e próxima, ao controle do patriarca, à época, o único indivíduo que gozava de capacidade plena, uma vez que aos demais membros da família não eram conferidas as mesmas prerrogativas. Este condicionamento facilmente se depreende das palavras de Américo Martins da Silva: “O processo de adestramento das mulheres da Colônia começou com o Estado e a Igreja instituindo proibições de todos os tipos, determinando o que era “certo” e o que era “errado” para a mulher direita […]. A campanha do “certo” e do “errado”, porém, era mais profunda. Basta ver que no Brasil de 1650 não existiam tabus como a virgindade obrigatória até o dia do casamento. Quebrado em tempos modernos, esse tabu ainda estava por nascer. Em 1600 e até o século XVIII, era difícil achar alguém que se casasse sem antes ter tido relações sexuais. Mas o motivo era bem diferente do atual. É que, naquela época, ter filhos era muito importante. A mulher precisava provar ao homem que era fértil, engravidando antes do compromisso, uma regra considerada por toda a comunidade – inclusive pela Igreja, desde que tudo terminasse em casamento.” (SILVA, 1996, apud FACHIN, 2011, p. 27-8).

Ademais, o predomínio masculino encontrava amparo na insuficiente participação do governo português, que, em não se fazendo presente, permitia ao patriarca assumir a posição de chefe da sociedade, como ensina Ferrarini: “O poderio patriarcal ganhou espaço na estrutura do Brasil Colônia, onde o governo português não se fazia representar de forma satisfatória. Assim, na ausência de um Estado forte, os proprietários de terras foram tomando os espaços e detendo o poder. Essa família patriarcal, baseada na autoridade masculina, estendeu-se por toda a sociedade brasileira, centralizada no senhor de engenho nos primeiros séculos, e depois nos políticos.” (FERRARINI, 2010, p. 58).

Portanto, no regime econômico colonial a supervalorização da propriedade privada impunha um abismo entre o sistema jurídico português e as relações estabelecidas na Colônia. Exemplo disso é a centralização do poder revelada no regime monopolista de exploração do trabalho e distribuição de terras – execrável modelo patrimonialista que, fatalmente, exercia influência nas relações familiares, dando azo a uma estrutura social marcada pela discriminação e divisão de classes; cenário em que, de um lado, encontravam-se os livres e abastados, e, de outro, os negros, índios e mulheres, submetidos aos desmandos da autoridade patriarcal (FACHIN, 2010).

Nessa perspectiva, o individualismo liberal conduziu a Colônia à violenta exploração dos indígenas e, posteriormente, dos negros e escravos. De se observar, nesse passo, que o tardio escravismo implantado no Brasil Colônia, evidente involução da sociedade ocidental em plena Idade Moderna, redundou noutras práticas igualmente reprováveis, tais como a violenta posse sexual de índias e negras, utilizadas como válvula de escape da libido masculina, promovendo, assim, a humilhação do gênero feminino, tanto em virtude do aviltamento da dignidade das escravas violentadas, quanto em razão do desrespeito às esposas, comumente subjugadas e passivas diante da infidelidade masculina.

Somente no século XIX a abolição da escravatura promoveu alteração nesse quadro de opressão, imprimindo mudanças também no modelo familiar em face da crescente migração de estrangeiros, movidos pelo propósito de compor a mão de obra a ser empregada na lavoura, ocupando o espaço antes destinado ao trabalhador escravo.

Ainda no que diz respeito ao modelo familiar inicialmente implantado nas terras brasileiras, conforme mencionado até aqui, em razão da colonização portuguesa, pautada no Direito Canônico, a família colonial foi fundada mediante preceitos da Igreja Católica, amplamente observados no texto das Ordenações Filipinas. Nesse contexto, verifica-se que muitos dos dogmas religiosos, entre eles a sacralização do matrimônio, não encontraram resistência por parte dos abastados membros da colônia, porquanto suas aspirações patrimonialistas faziam com que bem aceitassem a imposição do casamento e o repúdio às relações de concubinato, a fim de que lhes fosse assegurada a justa transmissão da propriedade por herança (FACHIN, 2001).

Dessarte, o único modelo familiar reconhecido à época era aquele formado por meio do casamento, fosse solenemente, nos moldes da Igreja, fosse pela união nominada “marido conhecido”, celebrada na presença de testemunhas, mas sem a intervenção eclesiástica – esta última modalidade não reconhecida pelo Direito Canônico, muito embora prevista pelas Ordenações.

Nesse sentido, Maria Berenice Dias aponta as características do modelo familiar estabelecido nesse período: “Em uma sociedade conservadora, os vínculos afetivos, para merecerem aceitação social e reconhecimento jurídico, necessitavam ser chancelados pelo que se convencionou chamar de matrimônio. A família tinha uma formação extensiva, verdadeira comunidade rural, integrada por todos os parentes, formando unidade de produção, com amplo incentivo à procriação. Sendo entidade patrimonializada, seus membros eram força de trabalho. O crescimento da família ensejava melhores condições de sobrevivência a todos. O núcleo familiar dispunha de perfil hierarquizado e patriarcal.” (DIAS, 2009, p. 28).

Pois bem, sob outro enfoque, insta observar que a recorrente menção aos textos normativos originados em Portugal mostra que enquanto o Brasil se manteve na condição de Colônia Portuguesa não houve significativas alterações no modelo familiar local; em verdade, sequer foi observada alteração imediata no ordenamento jurídico pátrio quando da Independência do Brasil, em 1822. De modo que as disposições relativas ao Direito de Família constantes das Ordenações Filipinas preservaram sua vigência também no período Imperial.

Nessa linha, a Carta Imperial de 1824 foi igualmente omissa no que diz respeito ao Direito de Família, havendo, entretanto, importante referência ao catolicismo como religião oficial do Império.

Posteriormente, em 1890, a Igreja Católica Apostólica Romana foi despojada de seu poder e influência sobre a regulamentação do casamento em face do Decreto nº 181, de autoria de Rui Barbosa, que disciplinava o casamento civil, fazendo dele a única forma de constituição da família reconhecida pelo Estado – secularização que segue o rumo trilhado na Europa quando da Revolução Francesa (1789) e da promulgação do Código de Napoleão (o Code Civil dos franceses, de 1804), responsáveis em grande parte pelo prejuízo da autoridade eclesiástica.

O abatimento da autoridade da Igreja sobre o casamento no período Republicano é assim retratado por Semy Glanz: “Como se sabe, no Império brasileiro só era reconhecido o casamento religioso. A maioria da população de religião católica casava-se perante a Igreja. Com a proclamação da República, introduziu-se o casamento civil em 1890. A Constituição de 1891 também disse que o casamento era civil e gratuito. Mas pelos costumes, muitos continuaram casando perante a Igreja e descobriram, passados vários anos, que, não sendo o seu casamento civil, não eram casados.” (GLANZ, 2005, p. 163).

Como se pode observar, após a Proclamação da República foi instituído o casamento civil, a partir de quando o Estado deixou de reconhecer as famílias constituídas por uniões de fato, bem como aquelas fundadas exclusivamente por meio de celebração religiosa, evidenciando-se, assim, o moderno interesse estatal em promover o afastamento entre Igreja e família – muito embora o novo modelo de instituição da família, através do casamento civil, ainda fosse sensível a preceitos tipicamente católicos, como a indissolubilidade do vínculo e o estigma lançado sobre as relações havidas fora casamento.

A respeito da controversa manutenção da influência religiosa no casamento civil, a lição de Orlando Gomes: “A autoridade do direito canônico em matéria de casamento foi conservada até a lei de 1890, que instituiu o casamento civil. A despeito de rechaçada, continuou a exercer, indiretamente, grande influência. A lei civil reproduziu várias regras de direito canônico e algumas instituições eclesiásticas se transformaram em instituições seculares, tal como ocorreu, de regra, nos países católicos. Sob influência religiosa, por exemplo, mantem-se o princípio da indissolubilidade do vínculo matrimonial, adotando-se o desquite como forma de dissolução da sociedade conjugal.” (GOMES apud FACHIN, 2001, p.37).

Verifica-se, portanto, que os acontecimentos políticos dessa época, tais como a Proclamação da República e a abolição da escravatura, promoveram o desenvolvimento urbano que, aos poucos, imprimia novos traços no modelo familiar patriarcal.

Nesse sentido, o surgimento e a ampliação da atividade industrial foram responsáveis pela criação de muitos empregos no Brasil, abrindo vagas no mercado de trabalho inclusive para mulheres; fato que, mais adiante, daria origem à luta pela igualdade entre os sexos, uma vez que a inserção da mulher no mercado de trabalho tornava-lhe capaz de cumprir deveres tipicamente masculinos, a exemplo da contribuição com as despesas domésticas, de modo que lhes fosse razoável sustentar a tese da equiparação não apenas no tocante às obrigações, como também em relação aos direitos.

Entretanto, a transição da sociedade agrária patriarcal para a realidade urbana, vinculada à industrialização, ao comércio e à busca por emprego, que possibilitasse uma melhoria de vida, deu-se de forma traumática, sem nenhum preparo cultural (FACHIN, 2001). Assim, pode-se dizer que o nascimento da família moderna não logrou romper de imediato com o modelo patriarcal da família brasileira.

Com efeito, foi sob os influxos desse abalado modelo familiar patriarcal, “recalcitrantemente” na luta para conservar seu poder político e econômico, que veio à luz, em 1º de janeiro de 1916, o Código Civil Brasileiro (Lei nº 3.071/16). A concepção do Código seguia a tendência de sistematização codificadora do século XIX e indicava que o legislador brasileiro, por fim, havia concretizado o elevado propósito de substituir a legislação portuguesa, vigente por meio das perenes Ordenações Filipinas desde 1603.

Nessa esteira, verifica-se que o Código Civil projetado por Clóvis Beviláqua não ousou inaugurar a construção de uma identidade nacional; antes, se ateve a velhos dogmas do Direito Português, não abrindo espaço para a constituição da família por outras formas além do casamento civil; de modo que as uniões de fato, culturais e historicamente presentes em todas as épocas do Brasil, não foram regulamentadas pelo Código, que, ao contrário, reafirmou a imperatividade do casamento civil e estabeleceu uma série de limitações recriminando as relações de companheirismo/concubinato.

Quanto às particularidades do modelo familiar implantado por este Código, merecem destaque as palavras de seu idealizador, Clóvis Beviláqua: “No início do Século XX, quando entrou em vigor o Código Civil em 1916, havia uma preocupação em consolidar o casamento como única forma de constituição de uma família, não se admitindo mais sequer o casamento religioso, e houve então um brutal rigor contra o concubinato e todas as uniões livres, de forma tal que até os filhos gerados nessas condições recebiam qualificação jurídica depreciativa (eram chamados legalmente de filhos naturais ou, se um dos pais fosse casado, seria espúrio, isto é, adulterino).” (BEVILÁQUA apud CHAVES, in WELTER, 2004, p. 376).

Deste modo, ainda que louvável o advento de um diploma normativo pátrio, não se pode olvidar que o regramento civil de 1916, com pequenas alterações, deu continuidade ao histórico domínio do patriarcalismo, conferindo acentuado prestígio às garantias concernentes à propriedade e, assim, menosprezando valores de caráter mais elevado, como a igualdade e a dignidade da pessoa humana.

Esse contrassenso, revelado na defesa de interesses econômicos paralelos aos resquícios do antigo Direito Canônico, é explicitado por Semy Glanz, quando da análise das modificações nas relações de parentesco para fins sucessórios, nos seguintes termos: “O código Civil de 1916 admitia o parentesco e a sucessão até o sexto grau na linha colateral. Houve um caso de enriquecimento ilícito por estrangeiro, que morreu, deixando bens a sobrinhos. Ora, os bens se transmitiam com a morte. Mas o então Governo Provisório, que governava e legislava ditatorialmente, editou um Decreto-lei, pelo qual, reduziu os parentes colaterais sucessíveis até o segundo grau (irmãos), dando-lhe efeito retroativo. Com isto, afastara os sobrinhos (terceiro grau). Tempos depois, alguém reclamou porque entendia que os sobrinhos deveriam herdar e a lei foi alterada. Mais tarde, já com outro presidente provisório, a sucessão foi aumentada para o quarto grau colateral e assim permanece até hoje.” (GLANZ, 2005, p. 123).

Verifica-se, portanto, que quando do advento do primeiro Código Civil vigorava no Brasil um modelo de sociedade extremamente individualista, em que os interesses privados prevaleciam sobre o interesse público; logicamente, os costumes dessa fase liberal do Direito Civil refletiram nos traços da família daquela época, destacando-se, aqui, a discriminação e a exclusão contra as quais as mulheres tiveram que lutar no início do século XX – período em que se deu a insurgência de sua atividade profissional na indústria e a transição da sociedade agrária à urbana. Cenário descrito por Rosana Fachin da seguinte maneira: “No curso do século XX as conquistas femininas gradativamente evoluíram com sua inserção no campo do trabalho, fora do lar. No início do século, ainda e mais do que nunca, encontrava-se sob a égide do marido, sob sua proteção e seu comando, assegurado explicitamente na legislação da época. À medida que aufere sua libertação econômica, a mulher passa a ser sujeito de sua própria história, e como tal a família se modifica engendrando um tempo diverso. Nessa fase, o trabalho da mulher estava relegado à autorização de seu marido e só era justificado conforme os padrões do momento histórico se houvesse necessidade de auxílio no orçamento caseiro.” (FACHIN, 2001, p.52-3).

Nessa toada, há de se notar que, a despeito da bem sucedida conquista feminina de espaço no mercado de trabalho, a herança da sociedade patriarcal ainda impunha reservas à liberdade da mulher casada, a quem competia, em primeiro plano, a administração da casa e a educação dos filhos.

Esse contexto de desigualdade entre os sexos corrobora a tese de que o modelo familiar estabelecido pelo Código Civil desde logo se ressentia da inadequação social, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, acontecimento histórico que redundou na redemocratização mundial – inaugurando a era do constitucionalismo que marcou a transição do Estado Liberal[4] para o Estado Social[5] e contribuiu diretamente para a ruptura do modelo familiar clássico, conforme ilustrado por Ferrarini: “Nessa dimensão vai surgindo uma leitura diferenciada do Direito Privado, com ampla reforma da concepção do Direito Civil. Paulatinamente, a partir da interferência de normas de ordem pública no campo privado, o Direito Civil passa por transformações ao mesmo tempo em que se assiste a passagem do Estado Liberal para o Estado Social.” (FERRARINI, 2010, p.64).

No mesmo sentido, Guilherme Calmon Nogueira da Gama destaca que a fase liberal do Direito Civil foi interrompida em meados do século XX pela publicização do Direito Privado, fenômeno que promoveu a releitura do Direito Civil com base nas normas constitucionais e na tutela da dignidade da pessoa humana como princípio e fundamento da nação, superior a qualquer estimativa econômica ou patrimonial (GAMA, 2008, p. 164).

Dessarte, a profunda alteração nos costumes e o impacto dos valores constitucionais sobre o Direito Civil promoveram a reforma da concepção familiar, que gradativamente foi sendo redesenhada com base na valorização do ser humano, em oposição ao individualismo e à valorização da propriedade privada.

É evidente, no entanto, que o Código Civil de 1916, de feições Liberais e patriarcais, avessas à valorização da pessoa humana, não correspondia aos influxos de seu tempo, motivo pelo qual foi paulatinamente sofrendo consideráveis alterações.

Cumpre notar que esse cenário de reforma foi palco para a pressão social no sentido de que o ordenamento jurídico prestigiasse as classes economicamente mais frágeis e, sobretudo, regulamentasse situações de fato, das quais emanavam consequências jurídicas, mas que vinham sendo ignoradas formalmente pelo legislador – tais como as relações concubinárias e o divórcio.

Nesse sentido, verifica-se que já nas décadas de 40 e 60 surgiram propostas de alteração no Código Civil; merecendo destaque o Anteprojeto de Código Civil de 1963, da lavra de Orlando Gomes, que à época já continha um capítulo destinado aos efeitos jurídicos das relações de concubinato, propondo-se a regulamentar a sucessão da companheira de homem solteiro, desquitado ou viúvo, mediante condições como prazo de convivência ou existência de filhos em comum (AZEVEDO, 2011). No entanto, em que pese a excelência da proposta, em 1964 o Projeto Orlando Gomes foi retirado do Congresso em virtude de questões políticas, características do período da ditadura militar (GAMA, 2008).

De qualquer sorte, a ausência de regulamentação não tinha o condão de reprimir os “avanços” sociais, de modo que aumentava o número de relações concubinárias, sobretudo porque, lamentavelmente, os casamentos eram indissolúveis apenas no papel; no plano dos fatos, as pessoas continuavam rompendo a convivência com os cônjuges e procuravam novos parceiros, com quem constituíam novos núcleos familiares, que o ordenamento jurídico, recalcitrante, não reconhecia e não emprestava efeitos protetivos (CHAVES, in WELTER, 2004, p.392).

Assim, o crescente número de rompimentos conjugais seguidos do estabelecimento de relações concubinárias demandava, com urgência, uma resposta estatal regulamentando os efeitos jurídicos desses arranjos. Solução que adveio, em um primeiro momento, por meio da Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal[6], que conferia à concubina a participação no patrimônio adquirido pelo esforço comum, conforme esclarecido por Marilena Silveira Guimarães: “O código civil de 1916 apenas reconhecia a união formada pelo casamento civil, introduzido no Brasil em 1891, e as relações extramatrimoniais eram denominadas de concubinato, somente referidas na lei para afastar direitos. Foi a jurisprudência que a partir da aceitação do fato social e para evitar o enriquecimento sem causa passou a conceder direitos aos integrantes das relações não formalizadas pelo casamento, considerando o patrimônio de tais uniões como sociedade de fato, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal através da Súmula 380, de 1963. Além da súmula, inúmeras foram as disposições legais que passaram a garantir algum direito às uniões fora do casamento”. (GUIMARÃES, in WELTER, 2004, p. 301).

Com efeito, no tocante à regulamentação do divórcio, somente quando Ernesto Geisel, gaúcho de Bento Gonçalves, com formação Luterana, assumiu a Presidência da República é que foi possível o efetivo enfrentamento da Igreja Católica e o prometido rompimento do dogma da indissolubilidade do matrimônio por meio da Emenda Constitucional nº 9, de 1977, que facultava o divórcio aos casais desavindos que não conseguissem mais se reconciliar. Nesse sentido, leciona Semy Glanz: “Com a emenda constitucional de 1977, que introduziu o divórcio no país, alterou-se a situação. Os casais em que um ou ambos fossem separados de fato ou de direito, poderiam obter o divórcio a vínculo, ou seja, romper o vínculo matrimonial, portanto, casar de novo. Mas a maioria, salvo alguns de classe média e alta, não se aventurava a mover a ação judicial. As classes pobres, não podendo pagar despesas e advogados, embora já houvesse em muitas cidades a defensoria pública, não se interessavam pelo divórcio. Isto porque, bem ou mal, era necessária prova, e uma demanda é sempre difícil. Antes do surgimento do divórcio, encontrava-se na legislação o desquite, única modalidade de separação que, no entanto, impedia novo casamento, sendo as novas uniões taxadas de concubinato – vedado e punido pelo CC de 16”. (GLANZ, 2005, p. 166).

Finalmente, em face dos argumentos até aqui expendidos, percebe-se o quão ricas foram as alterações legislativas refletidas no modelo familiar brasileiro, sobretudo após a Proclamação da República; nesse passo, resta ainda analisar o mais importante marco legislativo na história do Direito de Família pátrio, revelado pela Constituição Federal de 1988, que rompeu definitivamente o modelo patriarcal e patrimonialista consagrado no Código Civil de 1916.

No entanto, em vista da proeminência dos valores jurídicos concretizados pela Lei Maior, a análise da publicização do Direito de Família será promovida no tópico seguinte, que contextualiza a ampliação do conceito de família por meio do estudo da evolução do concubinato à união estável – a partir de então, consagrada constitucionalmente –, trazendo à luz a questão do afeto como valor jurídico, bem como, o moderno conceito de pluralidade familiar.

3.  Análise da moderna concepção familiar pautada nos valores constitucionais do afeto e da pluralidade

Partindo-se da premissa de que a reforma social do século XX alcançou o âmbito das relações familiares, relegando à obsolescência os valores de cunho liberal insculpidos no Código Civil de 1916, no tópico que ora se inicia, desenvolver- se-á uma análise sintética da família à luz da nova ordem jurídica, sabidamente pautada nos valores do afeto e da solidariedade, em oposição ao individualismo e ao patrimonialismo burguês.

Na expressão de Arnaldo Rizzardo, a moderna ordem jurídica extirpa das legislações o conteúdo formalístico e a formação puramente legal da família, outrora limitada ao casamento civil e aos filhos havidos durante a sua vigência, de modo que modernamente não há mais espaço para a valoração dos laços afetivos e familiares enquanto legítimos ou ilegítimos, tampouco para a ideia de subordinação familiar a um determinado membro. Nesse sentido, a percuciente exposição do ex- desembargador gaúcho: “Há consideráveis mudanças nas relações da família, passando a dominar novos conceitos em detrimento de valores antigos. Nessa visão, tem mais relevância o sentimento afetivo que o mero convívio. Em tempos que não se distanciam muito, recorda-se como se insistia na convivência do casal, mantendo-se muitos casamentos apenas formalmente, pois nada mais representavam no seu conteúdo pessoal e afetivo. Desapegando-se as pessoas do temor em ferir os ditames sociais, e despojando-se do respeito às aparências, enveredam para a expansão da verdade através de condutas autenticas. Tem-se ai um fenômeno que explica o maior número de separações, e a redução das uniões oficiais.” (RIZZARDO, 2009, p.13).

Destarte, muito embora não se pretenda aqui esgotar o exame da família contemporânea em seus mais variados aspectos, porquanto inviável percorrer todas as vicissitudes inerentes à estrutura social que se desenvolveu na passagem do Estado Liberal para o Estado Social, espera-se contribuir para a dinâmica discussão das relações sociais no que diz respeito à evolução do concubinato à união estável, trazendo à baila a questão da pluralidade constitucional, de onde exsurgem os modernos contornos da família contemporânea.

Assim, como ponto de partida, há de se considerar que a trajetória percorrida pelas relações de concubinato demonstra que as estruturas sociais, por vezes, se apresentam de maneira cíclica, no sentido de que alguns costumes amparados no passado pelas regras naturais de convívio social foram, com o tempo, sendo excluídos do alcance da tutela jurídica, mas, em um momento posterior, a dinâmica da sociedade fez com que estes mesmos costumes voltassem a ser socialmente aceitos e, com isso, fossem recolocados sob a tutela do ordenamento jurídico (DAL COL, 2002).

Nesse sentido, conforme amplamente ilustrado quando da análise do surgimento dos laços afetivos, as relações de concubinato sempre existiram no meio social, acompanhando a evolução do homem em todos os estágios de seu desenvolvimento.

Ocorre que em um dado momento sobreveio a rejeição do concubinato como fato social; negativa pautada em premissas religiosas e morais que prevaleceram durante um largo período. Tanto o é que no início da vigência do Código Civil de 1916 as famílias constituídas por meio de relações concubinárias eram consideradas ilegítimas, uma vez que afrontavam os valores religiosos preservados pelo modelo social moralista que via por bem esconder suas mazelas a ter de admiti-las e dar- lhes amparo jurídico.

Entretanto, o entendimento firmado no Código Civil 1916 não se sustentou, visto que lentamente foram surgindo correntes doutrinárias e jurisprudenciais que admitiam o concubinato como fonte de direito e lhe atribuíam efeitos jurídicos – muito embora preservassem linguagem pejorativa no trato das relações concubinárias.

Deste modo, o reconhecimento dos efeitos jurídicos do concubinato foi paulatinamente sendo observado nos Tribunais, em decisões que limitavam tais efeitos à esfera patrimonial, dando origem à chamada indenização por serviços domésticos prestados. Nesse sentido, colacionam-se dois excertos de julgados que remontam a década de 50, assim catalogados por Rejane Fillipi: “A todo trabalho lícito, mesmo prestado por uma barregã, deve corresponder justa remuneração. Assim, se a concubina com a sua condição more uxório foi útil ao senhor, se contribuiu para o crescimento de sua riqueza, se colaborou para que amealhasse digna será de toda a mercê.” (Revista Forense apud FILIPPI, 1988, p. 25).

Vê-se, assim, que a indenização por serviços domésticos prestados, pautada na inadmissibilidade do enriquecimento sem causa, tratava-se, em verdade, de ficção jurídica destinada a fazer as vezes da prestação de alimentos, que neste primeiro momento não eram reconhecidos à concubina.

Pode-se dizer, então, que este paliativo amparo no campo do Direito Obrigacional não se prestava a dignificar a parcela humana encerrada em cada um dos núcleos familiares estabelecidos à luz do concubinato, porquanto nessa época tais arranjos afetivos ainda eram desmerecidos enquanto famílias e tidos por ilegítimos, conforme assevera Carmem Lucia Silveira Ramos: “Tais direitos patrimoniais não foram reconhecidos com base no relacionamento pessoal do casal, mas sim em nome de direitos de natureza obrigacional ou reais caracterizados em favor da concubina; o fulcro das decisões assentando-se no enriquecimento ilícito, fundamento que subsistiu por muitas décadas, neste sentido afastando-se o reconhecimento da família sem casamento como realidade familiar, exceto em hipóteses casuisticamente selecionadas, como no caso de garantia de direitos previdenciários ou indenização por acidente de trabalho, de sentido protecionista e direcionado para os excluídos.” (RAMOS apud RUZYK, 2005, p. 162).

Nesse sentido, ainda cuidando-se de aspectos meramente econômicos, ante a inércia do legislador, em 03 de abril de 1964, o Supremo Tribunal Federal editou a supramencionada Súmula 380, que garantia a dissolução judicial da sociedade de fato havida entre os concubinos, e assegurava a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum na constância da relação.

No entanto, cabe ressaltar que, de início, a Súmula 380 admitia duas interpretações acerca do alcance da expressão “esforço comum”; segundo a corrente mais rígida, tal expressão pressupunha trabalho remunerado fora do lar, demandando provas da efetiva contribuição financeira para a constituição do patrimônio; a corrente mais branda, por outro lado, admitia a participação feminina tão somente por meio do labor doméstico.

Assim, após um largo período de dissenso, cerca de 20 anos, a jurisprudência acabou por se firmar no sentido de que fosse admitida a contribuição de maneira indireta para a formação do patrimônio amealhado na constância da sociedade de fato.

Observa-se, assim, que as uniões afetivas vinham sofrendo constantes e substanciais alterações, imprimidas pela jurisprudência e pelo legislador ordinário, eventos que denotavam a insustentabilidade da concepção patriarcal e patrimonialista da família estabelecida pelo Código Civil de 1916.

Nessa linha, a inclusão feminina no mercado de trabalho, a introdução da lei do divórcio e o novo paradigma de valorização pessoal do indivíduo, com base na defesa da igualdade e da dignidade da pessoa humana, revelavam a incompatibilidade do Código Civil com a ideologia estabelecida na era do Constitucionalismo.

Nesse contexto, surge a Constituição Federal, de 05 de outubro de 1988, que inaugura o período igualitário do Direito de Família e promove a derrocada do modelo familiar patriarcal estabelecido pelo Código Civil de 1916. Com efeito, a Carta Política amplia o conceito de família, a fim de resolver o problema da inadequação entre o ordenamento jurídico e os vínculos familiares marginalmente estabelecidos, conforme afirma Humberto Theodoro Junior: “Os preconceitos contra a família fora do matrimônio foram totalmente rompidos pela Constituição de 1988. A família que a Carta Magna considera célula da sociedade e que se acha sob especial proteção do Estado não é apenas gerada pelo casamento, mas também a que se estabelece pela união estável entre o homem e a mulher e a que se forma entre qualquer dos pais e seus descendentes, pouco importando a existência ou inexistência de matrimonio civil.” (THEODORO apud DAL COL, 2002, p. 52).

Nesse diapasão, em um só golpe a Constituição Federal modifica o conceito de família, reconhecendo no instituto a base da sociedade e erigindo a União Estável à categoria de entidade familiar, digna de especial proteção do Estado, conforme dispõe no § 3º de seu artigo 226, verbis: “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (…) § 3º Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.”  

Vê-se, assim, que o legislador constituinte concedeu proteção às relações de concubinato, enquanto Uniões Estáveis, a partir de quando se afasta qualquer tipo de preconceito e discriminação característicos do período em que a família se limitava àquela constituída pelo casamento.

Nesse sentido, as lições de Ruzyk: “A nova ordem constitucional, ao consagrar a proteção da família na pessoa de cada um de seus membros, rompe com a racionalidade dos modelos fechados, abraçando a concepção plural de família que sempre esteve presente na sociedade, ainda que sujeita à estigmatizações e à marginalidade. A família na Constituição de 1988 não tem por fonte primária exclusiva um ato formal, solene, encoberto pelo manto exclusivo da legitimidade jurídica, mas, sim, nasce e se mantém nos acordes do “leimotiv” do afeto.” (RUZYK, 2005, p. 163).

Logo, elevada a União Estável à categoria de família, fazia-se necessária a atuação do legislador ordinário para colocar em prática a proteção estatal, não mais limitando seus efeitos à esfera obrigacional. Nessa toada, o status familiar das Uniões Estáveis foi regulamentado por meio das Leis nº 8.971/1994 e 9.278/96, que incumbiram ao juízo de família a competência jurisdicional para tratar das ações relativas à União Estável; previram direitos e deveres para ambos os conviventes; dispuseram sobre o direito a alimentos, no caso de dissolução; entre outras diretivas estabelecidas para a solução das controvérsias que se haviam criado na jurisprudência.

Deste modo, verifica-se que a Carta Constitucional constituiu marco no que diz respeito à regulamentação do direito das famílias, coroando o processo evolutivo que aboliu a hierarquia em razão do sexo na sociedade conjugal, desfazendo a distinção entre os filhos e albergando na categoria de entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes – nos termos de seu artigo 226, § 4º –, a assim designada família monoparental.

Partindo-se destas colocações, pode-se afirmar que ao consagrar a família plural eudemonista (fundada no afeto), o fenômeno da publicização do Direito Privado colocou sob a guarda constitucional todas as relações juridicamente relevantes, inclinando-se, assim, a romper os limites do positivismo jurídico, porquanto ao soerguer a bandeira constitucional contra todas as formas de preconceito abre-se espaço para a constituição e o reconhecimento de outras espécies de famílias fundadas no afeto e na dignidade da pessoa humana (DIAS,2009).

Entender em sentido contrário representa caminhar na contramão dos valores constitucionais, que reconhecem na dignidade da pessoa humana o suporte do   Estado Democrático de Direito; destacando-se, oportunamente,     que o “superprincípio” da dignidade atua como vetor para a aplicação dos direitos fundamentais no âmbito do Direito de Família. Do qual se extrai, pois, a sagração dos direitos fundamentais da pessoa humana como novos e únicos valores seguros a efetivar os princípios democráticos, igualitários, solidários e humanistas do ordenamento jurídico também no âmbito das relações familiares, as quais têm no centro da tutela jurídica a busca pela realização plena e pela felicidade de cada indivíduo (GAMA, 2008).

Conclusão

Conforme observado ao longo do estudo, a adaptação do Direito às modernas demandas sociais é fenômeno constante, sobretudo em se tratando do Direito de Família, seara em que os influxos sociais e os modernos parâmetros de convivência impõem a adequada concepção das normas jurídicas para o reconhecimento da família contemporânea.

Frisa-se que a ampliação do foco no estudo da família se propõe ao reconhecimento do homem como razão do Direito, a fim de que democraticamente lhe seja colocado à disposição um complexo de normas jurídicas que lhe permitam fruir os seus Direitos Fundamentais também no âmbito das relações familiares.

Deste modo, espera-se haver demonstrado que o amparo às novas estruturas familiares é condição para a promoção da dignidade da pessoa humana, sobretudo diante da conjuntura pluralista inaugurada pela Constituição Cidadã, que reconhece a transição da família outrora vista enquanto instituição, maculada e fechada em si, para a contemporânea família enquanto instrumento, vivo e atuante para o desenvolvimento da personalidade dos seus membros.

 

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Notas:
[1] De acordo com John Locke, “o maior e principal objetivo dos homens ao se reunirem em comunidades é a conservação da vida, da liberdade e dos bens” (LOCKE, 2005, p.92).
Para os jusnaturalistas, de início o homem vivia em um "estado de natureza" antecessor do "estado social”. De acordo com as teorias contratualistas, sustentadas, fundamentalmente, por Thomas Hobbes, Jean Jacques Rousseau e John Locke, a passagem do estado de natureza à sociedade civil se realizou através do Contrato Social – acordo que transferiu a um terceiro, soberano, a autoridade sobre o direito natural e concedeu-lhe poder para dirigir a sociedade (a partir de então, sociedade civil), por meio do monopólio do uso da força em defesa da vida, da liberdade e da propriedade privada; surgindo, assim, a figura do Estado.
Além disso, merecem destaque as palavras de Norberto Bobbio acerca do modo pelo qual foi concebido o Contrato Social. Nesse sentido, assevera Bobbio: “Segundo o pensamento jusnaturalista, o poder civil originário forma-se a partir de um estado de natureza através de procedimento característico do contrato social. Mas existem duas maneiras de conceber esse contrato social. Como primeira hipótese, que podemos chamar de Hobbesiana, aqueles que estipularam o contrato renuncia completamente a todos os direitos do estado natural, e o poder civil nasce sem limites: qualquer limitação futura será uma autolimitação. Como segunda hipótese, que podemos chamar de Lockiana, o poder civil é fundado com o objetivo de assegurar melhor gozo dos direitos sociais (como vida, a propriedade, a liberdade) e, portanto, nasce originariamente limitado por um direito preexistente. Na primeira hipótese, o direito natural desaparece completamente ao dar a vida ao Direito Positivo; na segunda, o Direito Positivo é o instrumento para a completa atuação do preexistente Direito Natural”. (BOBBIO, 1997, apud DAL COL, 2002, p.7).

[2] A Lei das Doze Tábuas (LEX DUODECIM TABULARUM ou DUODECIM TABULAE) foi um marco na história do Direito Romano, considerada a primeira lei escrita, tratava de maneira geral de instituições como a família e vários rituais para negócios formais. O regulamento consistia, literalmente, em doze tabletes de madeira afixados no Fórum romano, de modo que todos pudessem lê-las e conhecê-las. Ocorre que por volta do ano 390 a.C. o texto original das Doze Tábuas se perdeu, não havendo nos dias de hoje nenhum registro oficial, apenas antigos fragmentos e citações Disponível em: <http://www.recantodasletras.com.br/textosjuridicos/2649327> Acesso em 15/07/2011.

[3] Nesse sentido, destaca Ribeiro*: “também encontramos no Direito Romano a figura do concubinatus, admitida com as Lex Iulia de adulteriis, Julia de maritendisordinibuse, LexPapiaPoppaea, formando um quase-casamento, distinto das justae nuptiae por não garantir os efeitos decorrentes do casamento e por não apresentar o consensus nuptialisou affectio maritalis, mas garantindo o surgimento de efeitos legais como a regularização da prole comum. *RIBEIRO, Simone Clós Cesar. As inovações constitucionais no Direito de Família. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/3192>. Acesso em 20/07/2011.

[4] O Estado Liberal resulta, fundamentalmente, da Constituição dos Estados Unidos da América, de1787, e da Revolução Francesa, 1789, responsáveis pela promoção do ideal burguês de liberdade como fundamento central da organização do Estado; o modelo Liberal sustenta-se na separação dos poderes e objetiva garantir aos indivíduos o direito à vida, à liberdade e à propriedade em face do Estado, valendo-se, para tanto, de imposições negativas ao poder público, isto é, demandando do Estado uma postura de abstenção, no sentido de não interveniência no livre exercício destes direitos por parte de seus destinatários.

[5] O Estado Social, por outro lado, adveio da Revolução Russa, de 1917, da Carta Mexicana do mesmo ano, e da Lei Fundamental de Weimer, de 1919, despontando como resultado de um movimento que buscava não apenas a liberdade, mas, sobretudo, o bem estar do cidadão; superando, assim, a contradição entre a igualdade formal e a desigualdade social características do modelo Liberal. Portanto, o modelo social amplia as funções ao Estado, impondo-lhe a promoção de direitos sociais prestacionais, tais como trabalho, educação e previdência.

[6] STF, Súmula 380: “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”.


Informações Sobre o Autor

Lizarb Cilindro Cardoso

Advogada. Especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário pela Univiçosa – MG. Bacharel em Direito pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande FURG – RS


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