1. FAMÍLIA E FILIAÇÃO: UMA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO[1]
1.1 Um pouco de história
Os primeiros agrupamento humanos, constituíam-se de forma natural e espontânea, caracterizando-se pelo nomadismo, pela promiscuidade sexual e pela ausência de comando institucionalizado. Com o evoluir dos tempos, estes agrupamentos passaram a estabelecer moradas permanentes e viver da agricultura, fazendo surgir uma sociedade basicamente rural, onde a família funcionava como unidade de produção. Assim, quanto mais componentes, maior a força de trabalho, o que assegurava melhores condições de sobrevivência a todo o grupo. Era o casamento religioso a única forma de constituição familiar. Com a Revolução Industrial a família transformou-se em um novo modelo de organização, onde a grande prole cede espaço a um número mais restrito de filhos, a família passa a apresentar-se pela união de um homem, uma mulher e seus filhos.[2]
Nesse contexto, a família adquiriu relevância jurídica tornando necessário revestir de previsibilidade o instituto familiar, representando-a através de um significado. Ocorre que, a noção de família está ligada a evolução da sociedade, ou seja, conceituar o instituto familiar é sobretudo falar da própria humanidade, não como entidade matrimonial, mas sim como intrumento gerador de desenvolvimento do indivíduo.
Assim, o conceito de família transforma-se de acordo com a cultura da época, dos usos e costumes locais e de cada credo, não podendo jamais ser forjado em aço, mas sim, em material resistente e ao mesmo tempo flexível para que possa adaptar-se aos nuances da vida, pois segundo Pontes de Miranda, a família,
ora significa o conjunto das pessoas que descendem de tronco ancestral comum, tanto quanto essa ascendência se conserva na memória dos descendestes, ou nos arquivos, ou na memória dos estranhos; ora o conjunto de pessoas ligadas a alguém, ou a um casal, pelos laços de consangüinidade ou de parentesco civil; ora o conjunto das mesmas pessoas, mais os afins apontados por lei; ora o marido e a mulher, descendentes e adotados; ora, finalmente, marido mulher e parentes sucessíceis de um e de outra.[3]
Como se vê, definir a família não é tarefa tão simples quanto parece, pois ela está em um constante renovar, sendo concebida, em cada época, como um organismo mais amplo ou como uma tendência mais restrita, enquadrando-se a inúmeras formas de organização humana, embora mantendo como referencial básico, a união matrimonializada, constituída pelos pais e filhos, retratando o padrão organizacional da família romana.
Foi somente com a Constituição Federal de 1988, que se ampliou a idéia de família, dissociando-a do casamento e reconhecendo “como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” (art. 226, §4º da CF), bem como, “a união estável entre o homem e a mulher”(art. 226, §3º da CF), outorgando, aos companheiros, direitos relativos a sucessão, alimentos e filiação, aproximando o direito da realidade que se impunha.
Todavia, o estudo da família continuou ligado ao casamento, tornando-a legítima ou ilegítima, segundo a oficialidade outorgada pelo Estado ou pela religião. É através da influência socioreligiosa que se concebia o casamento como único laço legítimo de constituição familiar, onde o homem detinha o papel de provedor e a mulher mera reprodutora.
Por outro lado, ao Estado coube o dever de proteger o grupo familiar, manifestando-se no sentido de tutelar e resguardar o grupo familiar, seja através da legislação, da doutrina ou da jurisprudência objetivando assegurar a dignidade de seus membros e principalmente a proteção dos filhos.
Do vínculo jurídico, representado pelo casamento civil, estruturou-se o parentesco, que por um breve momento durante a história, se deu através da
ancestralidade feminina; o matriarcado, onde a mulher responsabilizava-se pela organização da família e economia doméstica. O declínio do matriarcado, foi um período em que se alterou a organização econômica e da subsistência da sociedade da época, outorgando ao pai e marido, a direção unitária da família, pelo que explica Luiz Edson Fachin:
A partir do momento em que o Direito e o Estado lato sensu se apropriam sob a autoridade masculina da ordem e das idéias, desmorona o parentesco da linhagem feminina, que passa a ser agrupado em torno da instituição, que tem como chefe, senhor e sacerdote, o pai e marido, originando-se daí o pátrio poder.[4]
Nesse momento histórico é que surge o patriarcalismo, onde o pai exercia autoridade absoluta sobre seus familiares, estabelecendo o vínculo, exclusivamente, através do casamento, mantendo-se um caráter jurídico, econômico e religioso cuja autoridade suprema era exercida pelo pater familias. Dessa concepção, surge a prática dos casamentos por conveniência impulsionado por motivos patrimoniais.
Nesse período, o matrimônio conferia ao marido a manus sobre a mulher, mantendo-a sob “domínio”. Posição esta, que perdurava mesmo ao tornar-se viúva, perdendo toda e qualquer autoridade que detivesse, até mesmo a autoridade doméstica. Subordinada ao pater, tanto em sua família de origem como na família de seu marido, a mulher jamais chegava a ter capacidade civil plena. Aqui o casamento, formava uma unidade patrimonial representada pela figura masculina.
Na tradição patrilinear, advinda do direito romano, o filho nascido na constância do casamento pertence a família do pai e o vínculo de parentesco maternal, mesmo que produza efeitos jurídicos, não o introduz na família de sua mãe. É o que comenta Pontes de Miranda, “Na família romana, o filho é estranho à família de origem da mãe. Da própria mãe ele só é parente porque ela se acha sob o poder do pai”.[5]
O patriarcado foi uma época em que os poderes do “pai de família” transcendiam toda e qualquer moral entendida nos dias de hoje, ou seja, o pai tinha poderes plenos de morte sobre seus filhos, como também de expô-los ou até mesmo vendê-los como escravos. Portanto, a mulher e os filhos viviam em situação de desigualdade sob posse do marido e pai.
No Brasil, não foi diferente, nesse período a relação entre os membros da família era hierarquizada, mantendo o pai no centro da administração familiar. Foi somente em 1988, com a Constituição Federal, que se dissolveu o patriarcado, processando-se profundas modificações na família brasileira, a qual deixou de fundar-se na hierarquia patriarcal, admitindo o vínculo de parentesco tanto perante o pai, como perante a mãe.
Inicia-se um processo onde a família se afasta da estrutura do casamento, transformando o conceito de entidade familiar e, também, ampliando a idéia de filiação, a qual outorgou a todos os filhos direitos e deveres, não mais importando sua origem. Dessa forma, a família patriarcal e hierarquizada, sede lugar a família igualitária, que transcende os mares de sangue para fundar-se no afeto e na dedicação. Renova-se, então, o significado e o sentido da família, é o que relata Eliane Goulart Martins Carossi:
A família, antes tida como instituição social única, a ter o objetivo da procriação, ganhou alcance maior, sendo um lugar de confiança, respeito, afeição e companheirismo entre pais e filhos, não necessariamente constituída pelo casamento. A dimensão é maior devido à comunhão de espírito e de vida, nem sempre algo palpável e mensurável, mas resultante dos princípios de igualdade e dignidade da pessoa humana.[6]
A impossibilidade de se identificar, com relativa segurança, os pais biológicos, fez com que o ordenamento jurídico, tradicionalmente, se apoiasse em um sistema de presunções, o qual procurava definir a filiação através do fato natural da procriação, embora as novas formas de reprodução as tornaram ultrapassadas e carentes de uma definição legal.
1.1.1 A presunção pater is est quem nuptiae demonstrant (pai é aquele que as núpcias demonstram)
A presunção jurídica da paternidade advém de fontes romanas, as quais objetivavam garantir a defesa da família calcada no casamento, apoiando-se na presunção de coabitação e fidelidade da mulher bem como no reconhecimento antecipado realizado pelo marido ao casar, onde todo filho havido pela mulher, na constância do casamento, tem por pai o marido. Esta imposição legal procura justificar-se na necessidade de proteção à filiação, como também atender à estabilidade social.
Há de se convir que nem sempre esses objetivos foram plenamente alcançados, é o que se denota pelos dizeres de Maria Cláudia Crespo Brauner, “esta presunção, muitas vezes, impôs aos filhos uma paternidade fictícia e, a outros, impediu que se lhes declarasse a verdadeira paternidade” [7], é de se concluir, que a lei estava a punir quem não incorria em culpa.
No modelo patriarcal, a presunção de paternidade exercia função determinante quanto a certeza e segurança da sucessão de bens, o que não se admitia em outras entidades familiares fora do matrimônio. A principal pretensão era evitar o surgimento de novos herdeiros aptos a partilhar o patrimônio do pai, o que demonstrava uma supremacia dos interesse patrimoniais disfarçado sob o manto da proteção familiar.
A tecnologia genética fez com que a presunção de paternidade fosse examinada sob um ângulo biotecnológico, o que culminou no atual Código Civil, ampliando, em seu artigo 1.597, os casos de presunção de paternidade, disciplinando a reprodução artificial, a exemplo do que já vem ocorrendo nas legislações estrangeiras. Assim, na Inglaterra, o doador de esperma não tem qualquer direito ou dever em relação à criança, sendo-lhe preservado o anonimato. Nos Estados Unidos, e Austrália o marido que consentir na inseminação será considerado o pai da criança. A legislação canadense confere a paternidade ao marido ou companheiro, no caso de inseminação heteróloga, se houver consentimento. Na Alemanha, o consentimento deverá ser escrito, não podendo ser impugnado pelo pai.[8]
Através da nova ordem legal a presunção pater is est reconfigura-se frente a ordem afetiva presente no estado de filiação, é como ressalta Paulo Luiz Netto Lôbo, “Hoje, presume-se pai o marido da mãe que age e se apresenta como pai, independentemente de ter sido ou não o procriador”[9], enfim o direito de família passou da legitimidade para a afetividade.
1.1.2 A presunção da maternidade
Na Roma Antiga, no que cerne a maternidade, a filiação não se presumia, visto o fato biológico aparente de gravidez e parto. Daí surgindo o adágio de que a mãe é sempre certa (mater semper certa est). Hoje, com a legitimidade da filiação, mãe é a mulher cujo nome consta no registro de nascimento. Embora o Código Civil tenha disciplinado a inseminação artificial no que se refere à paternidade, silencia quanto às situações relativas às formas de reprodução, no contexto da maternidade jurídica.
Contudo, a reprodução artificial, trouxe uma nova idéia ao processo natural de gestação, que deu origem a duas situações distintas:
a gestação de substituição; onde a mulher gesta, em seu útero óvulo fertilizado de outra mulher. É a chamada fecundação in vitro, onde o óvulo da mulher é fecundado pelo semên do marido e posteriormente é implantado no útero de outra mulher. As caracterísiticas genéticas, são sem dúvida, transmitidas pela doadora do óvulo;
a doação de óvulo; quando o óvulo de outra mulher é fertilizado pelo semên do marido e implantado no útero da esposa;
No direito comparado, encontramos posicionamentos como o francês, austríaco e alemão onde presume-se mãe a mulher que deu à luz, já a legislação inglesa permite a barriga de aluguel, devendo a criança ser entregue a quem pretendeu o nascimento. No Canadá e na Espanha veda-se a locação de útero. Para a legislação americana, mãe é quem deu à luz, mas havendo locação de útero, o casal contratante deverá adotar a criança logo ao nascer.[10]
Hoje, tornou-se impossível operar o Direito de Filiação tendo por base, exclusivamente, a presunção de maternidade, visto os novos métodos biogenéticos de reprodução, assim como ocorreu com a presunção de paternidade. Há de se perceber que a genética, a serviço da justiça, ultrapassou as normas, transcendeu conceitos e reclama mudanças.
Dessa forma, diferentemente da família tradicional, cujo objetivo era a procriação, insurge-se no novo século novos modelos familiares, os quais buscam principalmente o amor, a solidariedade e a confiança. Pondo fim, a um sistema de presunções que, por muito tempo, “organizou” a família.
1.2 A família em transformação
A construção familiar do passado, reflete nas relações familiares do futuro, podendo ser considerada como modelo a ser seguido, ou afastado definitivamente.
Na antigüidade, constituía-se a família, através de celebrações religiosas ou por simples convivência, já o século XVIII retratava a família clássica, ou seja, aquela centralizada na grande família. Esse modelo perdurou até o início do século XX quando passou por sua mais significativa transformação, um novo modelo familiar começa a tomar forma, é o que demonstra Luiz Edson Fachin: “A grande família cede lugar à família nuclear, com o fenômeno da industrialização e da urbanização”[11], por certo, foi a urbanização o fator que mais contribuiu para as mudanças no meio familiar.
As transformações também foram marcadas pela primeira e a segunda guerra mundial, as quais trouxeram a humanidade, além de traumas e seqüelas, uma nova perspectiva familiar, onde as mulheres tiveram que abandonar “o lar” para manter a si e a seus filhos enquanto os “chefes de família” estavam nos campos de batalha. Os métodos contraceptivos também auxiliaram nesta mudança, permitindo que o casal passasse a planejar a quantidade de filhos e a época de tê-los.
Com a Revolução Francesa, em 1789, toma forma uma nova consciência, que desatou as amarras que uniam a família e a sociedade aos velhos conceitos de formação familiar, abrindo as portas para que a família navegasse rumo a uma nova era.
Iniciou-se, então, uma fase de “equilíbrio” familiar onde a igualdade entre os cônjuges culminou por reduzir o autoritarismo patriarcal, o que deu fim a hierarquia familiar. No que tange aos filhos, determinou-se a igualdade em qualquer situação, proibindo-se qualquer discriminação. Soma-se a este “equilíbrio”, os deveres de ordem social dos pais para com seus filhos,
Dessa transformação resultou a convivência, na sociedade brasileira dos seguintes modelos familiares:
patriarcal, que tem o pai como centro e a ele cabe todo o poder;
monoparental, formada por um dos genitores e o filho ou filhos;
nuclear, constituída pelos pais e sua prole;
eudemonista ou afetiva, que centra suas relações no afeto entre os membros; original, no sentido de não se adequar aos conceitos clássicos, como a “família homossexual”.
Assim, a família abandona o antigo conceito patriarcal, que primava pela proteção do patrimônio para tornar-se uma família que impõe um espírito de coletividade, transmitindo valores e enfatizando o afeto, a compreensão e a igualdade entre seus membros. Esses termos são afiançados por Juliane Mayer Grigoleto:
E é dessa forma que a família ganha uma nova acepção. A família não é somente formada por ascendentes, descendentes, não se origina exclusivamente pelo matrimônio, poder-se-ia dizer que a família atual busca a realização plena dos seus membros, envolvendo mais a afetividade que a propriedade. Nasce assim o conceito de família eudemonista ou família afetiva, que transforma o conceito da família, posto que por esta acepção a família se torna o refúgio das pessoas contra as pressões econômicas e o que mais conta é a intensidade das relações pessoais entre seus membros.[12]
Inicia-se assim, um período de modificação de hábitos e atitudes familiares, onde, a felicidade dos indivíduos que vivem em família torna-se mais importante do que a sua forma de constituição.
Enfim, o afeto, torna-se elemento indispensável não só na formação familiar, como também nas relações entre pais e filhos que se asseveram na convivência constante e espontânea, fazendo com que o afeto se torne tão sólido que o sentido da palavra afetividade torna-se “pequeno”, frente a grandiosidade do próprio sentimento.
1.3 A evolução legislativa
No compasso da transformação familiar seguiu-se a evolução do sistema jurídico, o qual deve interpretar a família de acordo com os fatos sociais. Como relata Luiz Edson Fachin “O transcurso do tempo e as alterações sociais geraram mudanças na estrutura do Direito, da família e de suas funções”.[13]
No Brasil, o período chamado Pós Independência, vigorou na recém nascida República, por determinação legal, as Ordenações Filipinas, promulgadas pelos reis de Portugal, até a feitura de um Código Civil determinado pela Constituição do Império, onde somente o casamento civil é que legitimava a família, conforme relata Ney Almada “A evolução democrática das leis foi característica da transição do reino português ao império brasileiro”.[14]
Outorgada em 1824, pelo Imperador D. Pedro I, a primeira Constituição Nacional, tratou apenas da família imperial brasileira, situação esta que não era novidade no cenário mundial, visto que Constituição francesa, em 1791, ao manter a monarquia privilegiou unicamente a família real.[15] Aqui, com a república, o
catolicismo deixou de ser a religião oficial operando-se a separação entre Estado e Igreja surgindo, então, a necessidade de legitimar a formação familiar através do casamento civil. A importância dedicada a família, surgiu somente com a Segunda Constituição, é o que escreve Maria Cláudia Crespo Brauner:
A primeira referência de família no Direito Positivo Brasileiro foi o artigo 144 da Constituição Brasileira de 16 de julho de 1934: “A família constituída pelo casamento indissolúvel, está sob proteção especial do Estado.[16]
A partir desse momento, as Constituições condicionaram a idéia de família a do casamento, onde os filhos “legítimos” eram subordinados ao pai, sendo limitado seus direitos, resumindo-se em educação, criação e sustento. Já, os filho havidos “fora do casamento”, eram discriminados tanto pela lei como pela sociedade, esta subordinação também se estendia a mulher que deveria, unicamente, cuidar da casa, dos filhos e de seu marido.
Foi somente com a Lei 4.121 de 1.962[17], conhecida como o Estatuto da Mulher Casada, que se modificou a posição da mulher na sociedade conjugal, além de exercer o pátrio poder conjuntamente com o marido e adquirir capacidade civil, esta lei criou a figura dos bens reservados a mulher. Quanto aos filhos, a Lei 883 de 1949 trouxe o reconhecimento do filho ilegítimo, através de ação judicial. Em 1977, a implementação da Lei do Divórcio, pôs termo ao vínculo matrimonial, e também conferiu aos filhos o direito de postular alimentos em face de seus genitores.
Já o Código Civil de 1916, inspirou-se nos valores e no modelo do Código Civil Francês, absorvendo os conceitos de legitimidade da família e dos filhos, tomando por princípio fundamental a defesa da instituição matrimonial, bem como adotando como regra de proteção à filiação a presunção pater is est. Ocorre que a adoção deste sistema não foi capaz de sanar as lacunas existentes entre a paternidade jurídica e a paternidade biológica, fazendo emergir ao sistema codificado a chamada “mentira jurídica”, que desprezava a realidade em favor da paz familiar.
O que transformou a idéia de família legítima foi a atual Constituição, que abrangeu, além da família fora do casamento e a igualdade entre os cônjuges, proibiu qualquer tratamento discriminatório aos filhos, independo de sua origem. Outrossim, as normas constitucionais consolidaram o afeto como elemento fundamental no estabelecimento da filiação e formação da família, pois como trata o assunto Fabrício Silveira Barros a Constituição Federal,
mudou os conceitos de família então vigentes, passando a valorizar o elemento afetivo e sociológico da filiação. Além disso, acrescentou, entre outros, os princípios da igualdade entre os filhos e o da dignidade da pessoa humana para alicerças a família sociológica.[18]
Com isso, o estado passou a reconhecer, outras entidades familiares, as quais não se originam no casamento, quais sejam: a união de fato (art. 226, §3º, da CF), a família monoparental (art. 226, §4º, da CF) e a família adotiva (art. 227,§6º, da CF). Estes dispositivos trouxeram ao direito uma nova forma de interpretação das normas em relação à família, ou seja, o direito retratando os fatos sociais. Cabe ressaltar, que a atual Constituição não se funda no elemento biológico na formação da família, ao contrário, seu fundamento é amplo, sem restrições de constituição, protegendo a família que se une em comunhão de afeto. Essa transformação, significa resolver a estrutura do sistema patriarcal.
Afirmando-se nas normas constitucionais promulgou-se o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069 de 1990, que disciplinou os interesses da criança, fazendo com que o filho deixasse de ocupar a posição de objeto, para ocupar a posição de sujeito na relação familiar e jurídica (art. 15 do ECA).
Nesse compasso, a legislação clássica foi surpreendida pela engenharia genética e a concepção sociológica, culminando em um sistema jurídico interessado em interpretar as normas de acordo com o dia-a-dia das pessoas. Portanto, em uma era globalizada espera-se um direito mais vivo e menos positivado.
O atual Código Civil, em vigor a partir de janeiro de 2003, possibilitou ao Direito de Família um renascimento para os fatos sociais, isso se denota pela modificação da expressão pátrio poder em poder familiar, seguindo-se do reconhecimento da igualdade da filiação, bem como pela adoção como forma de filiação irretratável. Embora tenha silenciado o código, a respeito da posse de estado de filho, a doutrina referindo-se as legislações estrangeiras, assim como a jurisprudência pátria, abriram espaço para a filiação socioafetiva.
Assim, na Alemanha, a legislação privilegiou a paternidade biológica, enquanto na França, a paternidade afetiva se impôs como regra.[19] Um composto destas legislações é a utopia desejada para a legislação brasileira, ou seja, independentemente da origem, o filho deve ter o direito de investigar sua ancestralidade biológica, em qualquer espécie de reprodução humana, conjuntamente, assegurada a prevalência do interesse superior do menor considerando-se a primazia da verdade afetiva sobre a biológica.
O novo Código Civil, em seu artigo 1.605, mesmo que implicitamente, abriu as portas do Judiciário para o reconhecimento da posse de estado de filho que se desvincula da origem biológica, bastando a aparência dos papéis sociais de pais e filhos. Por outro lado, a jurisprudência reconhece a posse de estado, como característica fundamental no processo de determinação de paternidade, assegurando a criança e ao adolescente o direito de ter como pais aqueles que lhe garantem amor, sustento e proteção.
Esta nova realidade fez surgir um novo modelo familiar, aquela que tenta conciliar os laços de afetivos com a liberdade individual, como bem explica Eliane Goulart Martins Carossi, “Com a evolução dos tempos, os princípios conservadores foram dando lugar a outros mais democráticos e compatívies com a situação vivenciada nas relações afetivas da família”.[20] Desse modo, fato incontroverso são os casais que convivem em união estável que, embora não matrimonializada, a relação familiar em nada diferencia-se das famílias “legítimas”, mesmo ignoradas
pelo Código Civil de 1916, germinou da jurisprudência, a proteção jurídica, culminando por ingressar na legislação civil atual, que não mais tem o casamento como instituto único de definição da entidade familiar.
Assim, a sociedade vem demonstrando um amadurecimento não só jurídico mas também social, no que se refere ao respeito e ao reconhecimento das novas formas de constituição da família. Percebe-se isso faticamente, quando Maria Eugênia Vieira Martins, trava uma batalha jurídica para ver reconhecido o direito de manter consigo Francisco, o Chicão, filho de sua companheira Cássia Eller. Embora a decisão judicial tenha homologado um acordo entre as partes, sem força jurisprudencial, acredita-se que a semente fora lançada ao solo. Outrossim, a opinião pública, despida de qualquer preconceito, reconheceu o laço de afeto que existia entre ambos, o que garante estar assegurado ali, o bem estar daquela criança.[21]
A jurisprudência, por sua vez, assumiu um papel relevante quanto a formação da família e, em especial quanto a determinação da filiação, é o que comenta Luiz Edson Fachin, “a jurisprudência brasileira, durante a evolução histórica do instituto de filiação no século XX, sempre esteve avante, realizando interpretação construtiva, colmatando lacunas, relativizando rigores”.[22] Foi, a partir do reconhecimento jurisprudencial, que os vínculos de filiação passaram a ser determinados para além da descendência genética, valorizando o afeto como elemento determinante quando se busca unir pais e filhos.
A evolução jurisprudencial se manifestou, também, no que diz respeito a posse de estado de filho como representação fática da filiação sócioafetiva, bem como quanto a investigação de paternidade. Claro exemplo, é a decisão prolatada pela Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no julgamento da Apelação Cível nº 70005246897, em 12 de março de 2003, a qual ganhou a seguinte ementa:
INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. INVESTIGANTE QUE JÁ POSSUI PATERNIDADE CONSTANTE EM SEU ASSENTO DE NASCIMENTO. INTERPRETAÇÃO DO ART. 362, DO CÓDIGO CIVIL DE 1916. MUDANÇA DE ENTENDIMENTO DO AUTOR DO VOTO VENCEDOR. Os dispositivos legais continuam vigorando em sua literalidade, mas a interpretação deles não pode continuar sendo indefinidamente a mesma. A regra que se extrai da mesma norma não necessariamente deve permanecer igual ao longo do tempo. Embora a norma cotinue a mesma, a sua fundamentação ética, arejada pelos valores dos tempos atuais, passa a ser outra, e, por isso, a regra que se extrai dessa norma é também outra. Ocorre que a família nos dias que correm é informada pelo valor do AFETO. É a família eudemonista, em que a realização plena de seus integrantes passa a ser a razão e a justificação de existência desse núcleo. Daí o pretígio do aspecto afetivo da paternidade, que prepondera sobre o vínculo biológico, o que explica que a filiação seja vista muito mais como um fenômeno social do que genético. E é justamente essa nova perspectiva dos vínculos familiares que confere outra fundamentação ética à norma do art. 362 do Código Civil de 1916 (1614 do novo Código), transformando-a em regra diversa, que objetiva agora proteger a preservação da posse do estado de filho, expressão da paternidade socioafetiva. Posicionamento revisto para entender que esse prazo se aplica também à impugnação motivada da paternidade, de tal modo que, decorrido quatro anos desde a maioridade, não é mais possível desconstituir o vínculo constante no registro, e, por conseqüência, inviável se torna investigar a paternidade com relação a terceiro.DERAM PROVIMENTO, POR MAIORIA, VENCIDO O RELATOR. (APELAÇÃO CÍVEL Nº 70005246897, SÉTIMA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR JOSÉ CARLOS TEIXEIRA GIORGIS, JULGADO EM 12/03/2003).[23]
Trata-se do reconhecimento dos tribunais de uma situação se que coloca como base das relações familiares, valorizando o elemento afetivo como instrumento sólido e capaz de determinar a filiação sob pilares de proteção aos interesses da criança e ao adolescente.
2. OS VÍNCULOS DE FILIAÇÃO: EM BUSCA DA VERDADE REAL
2.1 Os vínculos de filiação
Por muito tempo, a filiação definiu como pai, o homem/marido que através da cópula fecundava a mulher/esposa e esta, como mãe, carregava em seu ventre o ser, gerado por óvulo seu, e que, por fim, o punha no mundo, impondo assim duas verdades; a verdade biológica que é a geração de uma nova vida e, a verdade legal (a ficção jurídica) aquela que o Direito define como legítima.
Essas verdades foram tratadas como regra por um longo período, até que através da própria biologia, que assim determinava a filiação, revolucionou os conceitos, até então intocáveis, introduzindo na vida familiar a genética, a qual detinha o “poder” de identificar “os filhos” de um casal.
Ocorre que, no passo em que a ciência médica aprimorava seus conhecimentos quanto a biotecnologia, a sociedade não permaneceu estanque, transcendendo, também, certos conceitos quanto a filiação. Trazendo a memória a história infantil, “A Lebre e a Tartaruga”, onde a tecnologia genética é representada pela agilidade da lebre, que ultrapassou os velhos conceitos de filiação, transformando o núcleo familiar em um instituto biológicamente estabelecido. Por outro lado, a tartaruga com seus passos lentos mas constantes, equipara-se a família, onde suas transformações e mudanças ocorrem de forma mais demorada mas não menos significativas, consolidando os laços de afeto e carinho entre seus membros.
Advinda das relações de fato, a verdade socioafetiva, trouxe a filiação novos posicionamentos, onde as relações são direcionadas pelo desejo, e não mais por regras ditadas pelo matrimônio, desvinculando-se, por consequência, das noções de legitimidade e ilegitimidade.
Nessa senda, podemos perceber que a filiação independe do vínculo genético é o que se percebe pela conceituação de Paulo Luiz Netto Lobo: “Filiação é a relação de parentesco que se estabelece entre duas pessoas, uma das quais é considerada filha da outra (pai ou mãe)”[24], essa mesma idéia se percebe nas palavras de Silvio Rodrigues, “filiação é a relação de parentesco, em primeiro grau e em linha reta, que liga uma pessoa àquelas que a geraram, ou a receberam como se as tivesse gerado”[25], demonstrando que pais não são, somente, aqueles que geraram o filho, mas aqueles que o desejaram e o receberam em sua família.
As novas técnicas de reprodução, surpreenderam os velhos conceitos de filiação, provocando um desmoronamento dos preceitos anteriormente tão bem cultivados. A recente doutrina, orienta a filiação como vínculo de vontade onde o pai ou a mãe assumem as responsabilidades e deveres decorrentes da filiação, por ato de afeto e bem querer, havendo ou não vínculo de afeto entre eles.
Assim, é preciso que o pai deseje ser pai, e para isso deverá adotar seu filho biológico. Se assim não o fizer será somente um pai-jurídico, que assumirá obrigações e deveres decorrente de lei.
2.1.1 Filiação do casamento e filiação havidos de uniões não matrimonializadas
Segundo a orientação romana, diz-se legítimos, os filhos havidos na constância do casamento, ou seja, o marido é considerado o pai de todos os filhos gerados pela sua esposa. Fazendo nascer, através do registro civil de nascimento, a filiação jurídica. Era em nome da preservação e valorização do casamento, que repudiava-se os filhos havidos fora da relação matrimonial.
Para os filhos havidos do casamento, operava-se a presunção pater is est quem nuptias demonstrant, instituída através do Código Civil de 1916, que estabelecia os critérios para definição da filiação legítima. É através desta presunção, que os filhos do matrimônio dispunham de situação privilegiada, por serem titulares de direitos como filhos legítimos. Doutra forma, cabia a contestação à paternidade somente se, intentada pelo suposto pai, dentro do prazo estabelecido pela lei civil então vigente, através de ação judicial. Nesse período, a verdade biológica é desconsiderada em favor da defesa de interesses relacionados a própria família.
Por outro lado, os filhos nascidos fora da relação matrimonializada, durante o patriarcado, eram excluídos da cidadania jurídica, ou seja, não detinham qualquer direito frente a “família legítima” de seu pai. Justificava-se esta medida em nome da “honra e da paz familiar”, dando asas a chamada, “mentira jurídica”. Na realidade, esta não era a única razão para que se mantivesse tal posição, havia todo um patrimônio familiar a ser protegido.
O Código Civil de 1916 definia a filiação ilegítima como natural e espúria, outorgando a primeira a possibilidade de legitimação através do casamento, o que para a segunda, não era possível. Foi somente com o Decreto 4.737/42, que o reconhecimento da paternidade tornou-se possível, mas somente após o desquite, e com a Lei nº 883/49, sempre após o término da sociedade conjugal, proibindo também a referência à legitimidade ou ilegitimidade dos filhos no registro de nascimento.
Mais tarde, em 1977, autorizou-se o reconhecimento do filho adulterino mesmo na constância do casamento, embora somente produzisse efeitos post mortem. Instituindo, também, a igualdade plena entre os filhos legítimos e adulterinos, inclusive no que pertine a sucessão hereditária. Em 1984, permitiu-se o reconhecimento pelo pai, desde que este estivesse separado de fato a mais de cinco anos.
A Constituição Federal de 1988, deu fim a fixação da paternidade fundada na condição de nascimento da criança, ou seja, instaurou direitos e proibiu a discriminação no que se referia a filiação.
2.1.2 Vínculos de filiação decorrente de laços consangüíneos
Diferentemente do século passado, no qual se definia a filiação através de presunções, hoje pode-se comprovar a filiação cientificamente, através do exame de DNA[26], o qual é capaz de determinar em praticamente 100%, a origem genética do indivíduo, é o que comenta Maria Helena Diniz, “o DNA é o componente mais íntimo da bagagem genética que se recebe dos genitores, conservando por toda a vida e que está presente em todas as células do organismo”.[27]
Esse período influenciou o sistema jurídico de forma a direcionar o conceito de filiação para uma base indiscutivelmente biológica, é o que sem dúvida se percebe na definição de filiação dita por Maria Helena Diniz, “filiação é o vínculo existente entre pais e filhos; vem a ser a relação de parentesco consangüíneo em linha reta de primeiro grau entre uma pessoa e aqueles que lhe deram a vida”.[28]
Foi através desta afirmação, que ocorreu a superação da verdade jurídica pela verdade biológica da filiação, objetivando conceder a cada indivíduo o direito de conhecer sua origem genética, a qual irá garantir a tutela do seu direito à personalidade para identificar seus ascendestes genéticos, sem prejuízo de estar inserido no contexto familiar.
Através da descoberta do laço genético determinou-se a paternidade e/ou a maternidade do indivíduo, não sendo mais admitido que a pessoa permaneça sem identificação da filiação. Assim, segundo Rodrigo da Cunha Pereira, “[…], a partir do final de 1992, todos os registros civis de crianças que não constarem o nome do pai, o Estado mandará averiguar quem é o genitor”.[29] Desse modo, tornou-se oficiosa a averiguação da paternidade.
A inseminação artificial heteróloga, prevista no art. 1.597, V do Código Civil, é a fecundação do óvulo da mulher pelo sêmen de outro homem (doador anônimo), que não seu marido, sob sua anuência. Não podendo este negar a paternidade em razão da origem genética, tampouco recorrer a investigação de paternidade. Essa determinação também se estende para o filho. É de se observar que a pessoa que procura os dados genéticos do doador do sêmen, quando concebido através de inseminação artificial heteróloga, poderá fazê-lo para fins de determinação de personalidade e ancestralidade genética, e não para averiguar a paternidade, assim como poderá acontecer frente ao material genético feminino.
Portanto, o exame de DNA, assumiu o papel de prova na investigação da paternidade, excluindo ou demonstrando a filiação biológica, entretanto, passou-se a questionar a intransponibilidade do exame, sob argumento de que não poderia ser considerado prova única em detrimento de um conjunto probatório interligado e coerente. É o que declara Maria Cláudia Crespo Brauner, “ora, pode-se perceber que adotando-se exclusivamente o critério biológico como determinador da filiação, este apresenta-se insuficiente para expressar o conteúdo que se espera de uma relação de pai e filho”[30], frente a isto o Direito passou a ampliar o conceito de filiação para além dos laços sangüíneos.
2.1.3 Vínculos de filiação decorrentes da posse de estado de filho
Há vínculos que não se justificam pelo casamento ou por laços genéticos, mas sim traduzidos por sentimentos e afetos, expressando as relações entre pais e filhos através da posse de estado de filho, donde emerge a filiação sócioafetiva, assim, segundo Maria Cláudia Crespo Brauner,
A posse de estado de filho a que nos referimos, é aquela que se exterioriza pelos fatos, quando existem pais que assumem suas funções de educação e de proteção dos filhos, sem que a revelação do fator biológico da filiação seja primordial para que as pessoas aceitem a desempenhem a função de pai ou de mãe.[31]
O direito de filiação se apresenta como uma situação de estado exercida por um indivíduo. Já o estado de filiação, segundo Edmilson Villaron Franceschinelli “(…) é a situação de fato em que se encontra uma pessoa na qualidade de filho, ou é a situação que vincula a pessoa a uma família e do qual originam-se efeitos e conseqüências jurídicas”.[32] Cabe lembrar que a posse de estado, não refere-se a domínio, mas sim, vínculo de amor, que objetiva a felicidade mútua de pais e filhos. É dessa forma, que a posse de estado pode fundar-se em situações que estejam presentes a filiação biológica e o afeto, ou somente em uma relação essencialmente afetiva.
Encontramos a definição de posse do estado de filho nos escritos de Orlando Gomes, “a posse do estado de filho constitui-se por um conjunto de
circunstâncias capazes de exteriorizar a condição de filho legítimo do casal que o cria e educa”.[33] Percebe-se que o douto autor calca sua definição baseada em circunstâncias alheias a genética. Nesse sentido, reafirma Luiz Edson Fachin, “ no fundamento da posse de estado de filho é possível encontrar a verdadeira paternidade, que reside antes no serviço e no amor que na procriação”.[34]
É através da posse de estado de filho que se estabeleceu um novo critério definidor da filiação, o qual se baseia na exteriorização da convivência familiar e na afetividade espontânea, cultivada entre as pessoas que vivem em família. Tal situação se observa no julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no recurso de apelação nº 70006047971, do acórdão que teve como relatora a desembargadora Maria Berenice Dias, julgado em junho de 2003, que prescreve; “gerou o apelante a posse do estado de filiação por parte do menor, em que desimporta a verdade biológica. Cresceu o menor tendo o recorrente como seu pai, desfrutando da condição de filho que de forma espontânea e por puro afeto lhe outorgara”.[35]
A posse de estado se revela, faticamente, através de três elementos, a nominatio, que é a utilização do nome do pai, a tractatus relaciona-se ao comportamento, ou seja, ser tratado e educado como filho, e por fim a reputatio, a qual se revela pela notoriedade, ou seja, a demonstração social da paternidade, como define Belmiro Pedro Welter, “é passar a ser tratado como filho”.[36]
Presentes estes elementos, a filiação afetiva emerge no mundo jurídico, de forma a “legalizar” situações de fato, o qual deverá basear-se em atos inequívocos, públicos e de certa continuidade, onde o tratamento de filho demonstra realização de atos de proteção e amparo econômico (sustento, vestuário ou educação), como também pela afetividade demonstrada entre pais e filhos (carinho, amor, respeito). É o que comenta Sérgio Rezende de Barros :
Enquanto a família biológica navega na cavidade sangüínea, a família afetiva transcende os mares do sangue, conectando o ideal da paternidade e maternidade responsável, hasteando o véu impenetrável que encobre as relações sociológicas, regozijando-se com o nascimento emocional e espiritual do filho, edificando a família pelo condão umbilical do amor, do afeto, do desvelo, do coração e da emoção, (re)velando o mistério insoldável da filiação, engendrando um verdadeiro reconhecimento do estado de filho afetivo.[37]
Assim, o estado de filiação é gerado pela própria situação de fato e, ao Direito coube tutelar este preceito, abrindo as portas da justiça para que se declare uma relação já existente. Segundo comenta Edmilson Franceschinelli, “A declaração da filiação pode ocorrer pelo registro de nascimento ou por qualquer outro ato juridicamente válido, (…)”.[38] Não sendo o estado de filiação declarado espontaneamente pelos pais, a posse de estado de filho assumirá o status de prova, para que se estabeleça tal situação jurídica.
Assim, o estado de filiação desligou-se da origem biológica e da legitimidade para assumir uma visão mais ampla, compreendendo, direitos e deveres tanto aos pais quanto aos filhos. Preocupando-se, sobretudo, com o direito da criança e do adolescente à ter assegurada a sua felicidade e bem estar.
A história, por um longo período assentou os vínculos de filiação sob os
aspectos de legítimidade e ilegitimidade, demonstrando que a origem genética não compunha a essência das relações familiares.
Com o adveto do exame em DNA, passou-se a garantir com absoluta certeza, a origem genética de um indivíduo, solucioando durante um certo período os conflitos em torno da filiação. Entretanto, surgiram questionamentos quanto a aceitação única e exclusiva do resultado do exame em detrimento de um conjunto probatório. Estes questionamentos trouxeram à luz uma nova visão, onde a paternidade vai além de um determinismo biológico. Como explica Alessandra Moraes Alves de Souza e Furtado “[…], os doutrinadores mais modernos começaram a tratar da verdadeira questão que envolve as Ações de Investigação de Paternidade, qual seja: o que é ser pai?”.[39]
A melhor resposta para esta questão, está na maneira com que a sociedade contemporânea se apresenta, outorgando aos pais um papel social que vai além da contribuição genética. São eles, os responsáveis pela inserção do indivíduo à
cultura, integrando-o ao processo da vida. Esta posição baseia-se na idéia que ser pai/mãe é mais importante como função do que como genitor/genitora, é o personagem que constrói uma relação de amor, dedicação e carinho, com o filho, esteja presente o vínculo biológico ou não. Portanto, a formação psíquica do indivíduo, independe que esta seja ministrada pelo pai/mãe biológico, mas sim através de um pai/mãe afetivo, ou seja, aqueles que exercem a função de pais, apresentando o indivíduo a cultura, e aos valores éticos, o que traz a realidade a filiação socioafetiva, conforme explica Alessandra Morais Alves de Souza e Furtado:
[…], estudos da área da Psicologia têm dito que o pai traduz-se, na verdade, no lugar em que ele ocupa, ou seja, para além de sua pessoa o pai deve ser encarado pela função que exerce. Diante disso, a verdade biológica perde sentido e ganha corpo a paternidade socioafetiva, em que os laços de afeto preponderam sobre os de sangue.[40]
Embora, tenha a ciência a capacidade de identificar a origem genética dos indivíduos, não pode garantir qualquer laço além da menção na certidão de nascimento, porque o verdadeiro vínculo de filiação não se estabelece através de um documento, mas sim através da vontade de ser pai ou mãe, realçando sua função social. Para Sérgio Rezende de Barros, “nem todo o progresso técnico na área de ciências da vida significa sempre progresso humano e benefício real para as pessoas”[41], por esse motivo, o direito procura a verdade real da filiação.
Dessa forma, esgota-se a dimensão biológica da filiação, porque impossível defini-la, unicamente, com base no resultado de exame genético, em detrimento de um contexto familiar cultivado diariamente de forma sólida e duradoura, pois como resalta Sérgio Rezende de Barros:
O ato de ser pai não se limita à procriação, mas exige amar, compartilhar, cuidar, construir uma vida juntos. E se a procriação é apenas um dado, a efetiva relação paterno-filial exige mais do que apenas os laços de sangue. Assim, por meio da posse de estado de filho vai se revelar essa outra paternidade, fundada em laços de afeto.[42]
Através da desbiologização da paternidade, o direito pode buscar uma paternidade afetiva e social, em favor das relações entre os casais e seus filhos, firmando a construção familiar sobre bases culturais e afetivas, dependentes de convivência e responsabilidade.
3. O AFETO COMO ELEMENTO DEFINIDOR DA FILIAÇÃO
3.1 A filiação socioafetiva
É aqui, que a tartaruga vence a lebre[43], ao final da jornada, a família representada pela tartaruga, ultrapassou os conceitos da genética, a lebre; não como objeto de ciência mas como instituição formada por entes que se amam e direcionam suas vidas para a conquista da felicidade mútua, independentemente dos laços que os unem.
A afetividade, após ter assumido relevância de estudo na área social, educacional e psicológica adentrou no mundo jurídico como forma de explicar a família contemporânea, a qual não se funda somente sobre laços de sangue, ela se completa através da vontade dos indivíduos, pois, segundo Paulo Luiz Netto Lôbo, “O afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência familiar e não do sangue”.[44]
É o afeto que reúne em família, pessoas que convivem diariamente em
virtude de um tronco ancestral comum, ou mesmo em razão de um destino comum,
assim, segundo Sérgio Rezende de Barros, “é o afeto que define a entidade familiar”.[45] Desse modo, é sob a égide do afeto que se edifica a família sociológica. Isso significa dizer que, segundo Maria Cláudia Brauner, “a família sociológica, é a família onde predominam os laços de afeto e solidariedade entre pais e filhos e esta situação passa a ter, enfim, para o mundo jurídico, uma significação”.[46]
A filiação social é manifestação da vontade, erguida sob pilares de convivência, carinho e responsabilidade, que resultam na formação social, cultural e principalmente moral, não só do filho mas também dos pais que ensinam e aprendem as regras de bem viver e, como diz Ney Almada, “tudo isso, independe do vínculo genético”.[47]
A jurisprudência se manifestou no que diz respeito ao afeto como elemento definidor da filiação, expressando esse entendimento no julgado do TJRS, em 2002, em Apelação nº 70005246897, que teve como revisor e voto vencedor o desembargador Luiz Felipe Brasil Santos,
ocorre que a família nos dias que correm é informada pelo valor do AFETO. É a família eudemonista, em que a realização plena de seus integrantes passa a ser a razão e a justificação de existência desse núcleo. Daí o prestígio do aspecto afetivo da paternidade, que prepondera sobre o vínculo biológico, o que explica que a filiação seja vista muito mais como um fenômeno social do que o genético.[48]
Embora, os exames de DNA, possam identificar quem são os pais de
sangue da criança, estes resultados não podem assegurar a existência de laços afetivos entre estes indivíduos .
A filiação socioafetiva emerge ao mundo dos fatos sob diversas perspectivas, as quais privilegiam a convivência familiar como fato gerador da filiação, uma delas é a adoção, que prescreve ato de vontade dos interessados, estabelecendo-se em virtude de decisão judicial. Outra forma é aquela que chamamos de “filho de criação”, onde os pais criam uma criança por mera opção, estando ausentes os vínculos biológicos e jurídicos, o que os une em família é o afeto desprendido na criação e educação desta criança. No reconhecimento voluntário, ocorre a declaração, perante o Cartório de Registro Civil, de forma livre e espontânea de alguém como seu filho. Por fim, com a chamada “filiação à brasileira”, configura-se uma filiação simulada quando ausente a maternidade ou a paternidade biológica, a pessoa registra o indivíduo como seu filho, vindo a formar uma relação de parentesco irrevogável.
Inegável reconhecer que a maternidade e a paternidade se revelam através da vontade de ter alguém como seu filho, dispensando a ele, de forma espontânea, não só os cuidados básicos com saúde, alimentação e vestuário, mas atentando principalmente para a formação ética, social e moral do indivíduo. Essa função, outorgada aos pais, poderá ser exercida independentemente da presença dos vínculos genéticos, mas jamais na ausência do afeto. Assim, na lição de Fabrício Silveira Barros,
o afeto revela os pais do coração, e a posse de estado de filho é o instituto que retrata essa relação construída quotidianamente no amor e no carinho. Sendo assim, pais são aqueles que desejaram o filho, e não aqueles que somente geraram ou que a lei os trata como tais.[49]
Dessa forma, cumpre dizer que o vínculo familiar não se define, somente,
através de relações de parentesco determinadas pela lei ou pelo sangue, é a vontade de estar em família que faz com a as pessoas convivam harmoniosamente, independentemente dos laços que os unem.
3.2 A desconstituição da filiação e o direito à personalidade
A engenharia genética, através do exame de DNA substituiu o sistema de presunções que reinava nas ações que objetivavam a determinação ou a desconstituição da filiação tornando-se, por muito tempo, prova única no deslinde de ações dessa natureza, como declara Alessandra Moraes Alves de Souza e Furtado:
A difícil decisão de dar um pai ao filho, enfrentada pelos juízes de todo País, como que por encanto, parecia ter sido resolvida. Maravilhados com a perspectiva de pôr fim às incertezas advindas das Ações de Investigação de Paternidade, os operadores do Direito de Família agarraram-se ao exame de DNA como se esse fosse um milagre enviado pelos céus.[50]
Todavia, a filiação fundada no exame genético, foi questionada ao ser confrontada com a realidade fática, pelo que passou-se a demonstrar em juízo, através de um conjunto probatório coerente a fragilidade deste exame, quando analisado sob uma ótica afetiva de formação familiar, apesar de ter-se tornado um grande aliado do Direito quando procura-se determinar quando “alguém é filho de”, ou “é ou não pai/mãe de”, o exame de DNA não poderá, nas palavras de Alessandra Moraes Alves de Souza e Furtado ser, “considerado como prova única e indiscutível”[51], mesmo porque, a verdade genética hoje, não consegue manter em si toda a complexidade que envolve as relações entre pais e filhos.
Diante disso, a realidade social, impôs aos operadores do Direito, a busca de novos referenciais para a identificação dos vínculos familiares, como o reconhecimento do aspecto afetivo da filiação e a posse do estado de filho, do contrário, o judiciário corre o risco de assumir um papel de simples homologador de exames genéticos.
Dessa forma, ao Direito não cabe simplesmente desconstituir ato de pura vontade onde o pai declara a paternidade no registro de nascimento de seu filho. Assim, a ação deverá fundar-se na prova inequívoca de falsidade de declaração, pois as conseqüências da anulação atingirão não só a família, mas toda a relação e certeza do ato jurídico estariam comprometidos. A negatória de paternidade ou a anulatória de registro civil, quando interposta pelo pai registral, somente poderão fundar-se em vício de consentimento. Já, a ação proposta pela mãe poderá fundar-se, unicamente, na falsidade do termo de nascimento ou nas declarações nele contidas (art.1.608, CC). Contudo, diante de tais situações, cabe considerar que se alguém se fez pai/mãe, registrando-se como tal e, principalmente agiu toda a vida como se pai/mãe fosse, pai/mãe é, independentemente da existência de vínculos sangüíneos.
A ação Anulatória do Registro Civil, interposta a fim de desconstituir a paternidade erroneamente declarada, muitas vezes, se dá quando os supostos pais e o suposto filho já conviveram por muito tempo, estando consolidada uma relação afetiva. A possibilidade de anulação do registro de nascimento, no que se refere a paternidade, atinge o direito de personalidade da criança e, principalmente, de uma
hora para outra ver-se desconstituída de uma história em comum. Essa situação é demonstrada através dos dizeres de Alessandra Moraes Alves de Souza e Furtado:
Ao adentrarem as portas do Judiciário aqueles que um dia foram pai e filho, que se viram um no outro, passam a condição de requerente e requerido, de suposto pai e suposto filho, e à Justiça cabe dar uma solução a esses dois indivíduos para que eles possam continuar a construir sua história e, entretanto, por mais que a Justiça se humanize, a ela não será possível jamais resgatar as dores advindas de uma ação dessa natureza”.[52]
Por outro lado, a ação de investigação de paternidade, confere ao filho, o reconhecimento judicial de sua identidade genética, quando não o detenha, podendo ser proposta a qualquer tempo. Nessa linha, não se pode negar o direito de que alguém investigue a sua origem biológica, pois esta faz parte de sua personalidade, na espécie direito à vida, pois conforme o artigo 2º do Código Civil, todo homem ao nascer com vida, é considerado, pessoa natural dotado de personalidade e sujeito das relações jurídicas. A personalidade civil é um direito personalíssimo, inalienável e imprescritível assegurado à criança e ao adolescente através do artigo 27 do ECA, podendo ser exercido sem qualquer restrição, iniciando-se com a oficialização do nome civil, que identifica o indivíduo social e juridicamente.
O direito ao reconhecimento da origem genética, não significa a predominância da filiação biológica em face da filiação sócioafetiva. O que se garante é assegurar ao indivíduo, exclusivamente a sua ancestralidade, sem que isso implique na desconstituição da filiação. Pelo que, uma ação dessa natureza tem seus efeitos sob a personalidade da pessoa, o que por um lado atende a verdade biológica e por outro faz desmoronar a construção de uma vida.
3.3 O direito da criança e do adolescente à vida familiar e o princípio do respeito a dignidade humana.
Somos produtos de nossas experiências de vida, nas quais a família ocupa papel de destaque na formação psíquica do ser humano. É no convívio familiar que toda pessoa tem lapidada a sua personalidade e seu caráter, determinando os valores que farão parte de toda a sua vida. Portanto, é a família que molda o ser humano, isso vem demonstrado nas palavras de Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves,
para chegarmos até aqui, adultos com uma formação intelectual, com alguma experiência de vida e com espaço profissional definido, todos nós contamos com o inestimável apoio dos nossos afetos, pais irmãos, tios avós, enfim de todo um contexto familiar, onde estabelecemos as primeiras e principais relações afetivas, que nos deram a sustentação educacional e moral, forjado a nossa personalidade e fortalecendo o nosso caráter.[53]
Em busca da proteção à família, concretiza-se na ordem legal, o direito da criança à convivência familiar, representada pela idéia de filiação socioafetiva, porque é o afeto o elemento que permite a realização dos direitos fundamentais da pessoa humana, em especial da criança e do adolescente, é o que relata Maria Dinair Acosta Gonçalves:
A definição dos fins e as exigências do bem comum implicam em garantir a permanência da Criança e do Adolescente em convívio com uma família, reafirmando ser esse núcleo, com base no afeto e respeito à pessoa em peculiar estágio de desenvolvimento, hábil a fixar diretrizes de participação sadia do ser no mundo.[54]
Conta a história que até o século II a.C., não havia o período que hoje chamamos de adolescência, passava-se da infância para a fase adulta num salto. O processo da industrialização, modificou a família, a escola e a sociedade da época, o que fez surgir a infância e a adolescência escolar.
No início do século XX, surge a importância do papel da família na educação e no desenvolvimento da criança e do adolescente, a qual torna-se, juntamente com a sociedade, elemento de formação da cidadania. É na família, que o ser humano aprende o respeito ao outro e, onde adquire a consciência de seus próprios direitos e deveres.
Consolidou-se dessa forma, a primazia na defesa dos interesses dos filhos, onde a convivência familiar, geradora da posse do estado de filiação, é elemento determinante na caracterização da filiação socioafetiva. Delegando a parentalidade, o respeito aos vínculos de afeto, que vão estruturar a vida psíquica da criança, procurando atender às suas necessidades físicas e emocionais. Assim, os pais que educam com amor, ajudam a criança a descobrir a sua individualidade.
A Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente priorizaram os cuidados aos menores visto a sua peculiar condição de pessoas em vias de desenvolvimento, assegurando-lhes a vida em família e garantindo-lhes os direitos fundamentais inerentes a pessoas humana. Dessa forma, escreveu Maria Berenice
Dias, Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, a respeito da polêmica que envolveu a guarda do filho da cantora Cássia Eller, quando de sua morte, em face da disputa judicial travada entre o avô materno e a companheira da mãe,
[…] mas fica tranquilo, Chicão. A justiça serve para definir as coisas da melhor maneira e sempre visando ao teu melhor interesse. É isso que está na lei e esta é a obrigação de qualquer juiz. Hoje, cada vez mais se está emprestando relevância ao que se chama “filiação sócio-afetiva”, mais do que ao “vínculo biológico”, e ninguém pode negar que a Eugênia é a mãe do teu coração. Chicão, a Constituição Federal te assegura, com absoluta prioridade, o direito à convivência familiar e o Estatuto da Criança te garante o direito de ser ouvido. Por favor, exerce o teu direito, pois tens o dever de ser feliz”.[55]
Por direitos humanos, entende-se a atenção às necessidades da pessoa humana, para que ela possa viver com dignidade. Para isso, é necessário que se atente para o direito a vida, a saúde, a moradia, a educação, e a convivência familiar entre tantas outras do plano material, bem como pelas necessidades de ordem social, afetiva, intelectual e espiritual.
Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela ONU, declara em seu artigo primeiro que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”[56]. Mais tarde, em 1988, a legislação brasileira (art. 1º, inciso III, CF), relacionou, como um dos princípios fundamentais da República Brasileira “a dignidade da pessoa humana”, estendendo-se especialmente à criança e ao adolescente (art. 227, CF).
Dessa forma, lê-se no preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos da Criança e do Adolescente;
Convencidos de que a família, como grupo fundamental da sociedade e ambiente natural para o crescimento e bem-estar de todos os seus membros, e em particular das crianças, deve receber a proteção e assistência necessárias a fim de poder assumir plenamente suas responsabilidades dentro da comunidade; Reconhecendo que a criança, para o pleno e harmonioso desenvolvimento de sua personalidade, deve crescer no seio da família, em um ambiente de felicidade, amor e compreensão.[57]
A valorização da convivência familiar decorre não só da letra da lei, mas da vontade do indivíduo de estar e permanecer a pessoas que lhe garantem afeto, proteção e respeito. Portanto, assegurar a criança e ao adolescente o direito de estar em família é, sobretudo garantir a sociedade um futuro calcado na cidadania e na dignidade da pessoa humana.
Da análise histórica sobre o conceito de família, partiu-se de um contexto onde o instituto familiar sofreu forte influencia de uma sociedade patriarcal e hierarquizada, que se estruturava sobre o vínculo matrimonial de natureza indissolúvel, no intuito, mesmo que duvidoso, de manter a paz familiar. Nesse período, a filiação se estruturava em um sistema de presunções que sufocava a verdade em nome de uma segurança fícta objetivando, principalmente, manter incólume o patrimônio do pai.
Ocorre, que a “mentira jurídica” que se criou nesse período, não mais suportou a realidade social, principalmente pela eclosão dos estudos científicos na área da genética, o que trouxe a lume o questão da filiação definida através da identificação sangüínea, juntamente com o direito à personalidade e à dignidade, garantidas constitucionalmente à toda pessoa humana.
Da verdade jurídica imposta pelas presunções, passando pela verdade biológica marcada pelas descobertas científicas, chega-se a verdade socioafetiva, representada pela posse de estado de filho, o que define o afeto como matéria-prima fundamental nas relações de filiação.
A partir da jurisprudência, o legislador traçou o caminho para que a posse de estado de filho fosse inserida, mesmo que timidamente, no ordenamento jurídico brasileiro, para enfim tocar as bordas da realidade e permitir que a ordem jurídica trate da filiação como ramo do Direito de Família que prima pelos princípios da dignidade da pessoa humana orientado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, outorgando a estes o direito de viverem com aqueles que lhe garantem não só o sustento material, mas também amor, carinho e respeito.
Nessa nova perspectiva familiar, o objeto fundamental é a realização pessoal de seus membros que, unidos por sentimento afins dedicam carinho e amor a uma criança, independentemente de imposição legal ou do vínculo sanguíneo; o afeto é fruto de ato voluntário.
A origem genética, por si só, não é elemento suficiente para que se fundamente a filiação, é necessário que se reúna um conjunto de valores que presentes no campo das relações humanas privilegiem a convivência e a construção permanente dos laços afetivos. Fazendo-se concluir que nem a verdade biológica, nem a verdade afetiva devem ser consideradas como critério absoluto quando o assunto em pauta é a definição da filiação, ou seja, uma poderá ser desconsiderada em favor da outra, segundo cada situação, no intuito de assegurar o bem estar e a felicidade do menor.
É de se reconhecer que não há espaço delimitado para o estudo do tema, pelo fato de que a família ao deixar de representar, única e exclusivamente, uma linhagem sangüínea, torna-se uma comunidade de afeto, onde cada indivíduo tem ali o seu “porto seguro”, destinado a garantir a toda pessoa, respeito e dignidade para que possa desenvolver seu papel na sociedade de forma segura e responsável, baseada em valores assimilados pelo coração.
[1] Monografia apresentada ao curso de Direito, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito, no Campus Universitário da Região dos Vinhedos da Universidade de Caxias do Sul na área de Direito Civil, em dezembro de 2004. Orientadora: Dra. Maria Cláudia Crespo Brauner.
Informações Sobre o Autor
Sidamaia de Quevedo Vedoi
Bacharel em Direito