Sumário: 1. A idéia de Justiça Fiscal. Tributação e distribuição de riquezas. 2. O princípio da solidariedade social e o dever fundamental de pagar tributos. 3. A tributação e o financiamento das políticas públicas com vistas à realização dos direitos fundamentais. 4. Conclusão. Referências bibliográficas:
1) A idéia de Justiça Fiscal
A justiça fiscal pode ser entendida como princípio básico e estruturante do Direito Tributário, do qual decorrem outros princípios (tais como a capacidade contributiva e a seletividade), como pode também ser analisada como princípio hermenêutico, servindo como norte para a interpretação e aplicação das normas tributárias.[1]
O conceito de justiça, indiscutivelmente, encontra-se no cerne do estudo do Direito. Embora sua importância tenha sido de certo modo mitigada pelo discurso positivista, em nenhum momento histórico houve sua total negação, mas tão somente fases distintas quanto a sua compreensão.
De fato, pode-se distinguir as chamadas teorias clássicas da justiça (apresentadas por Aristóteles, Kant, Jeremy Bentham, entre outros), das modernas teorias da justiça (pode-se mencionar John Rawls, Buchanan e Dworkin). Ademais, destaca-se o ceticismo quanto ao conceito de justiça desenvolvido na teoria de Hans Kelsen, representando momento intermediário entre ambas.
No que diz respeito às modernas teorias da justiça, estas representam uma retomada da centralidade da questão do justo no estudo do Direito, existente nas teorias clássicas, mas com um enfoque ético-prático.[2]
No presente estudo, tomaremos por base a teoria apresentada por Jonh Rawls acerca da justiça, destacando aspectos que servem a uma fundamentação ética da tributação.
Inicialmente, cabe ressaltar que Jonh Rawls, em um primeiro momento, buscou desenvolver uma teoria ético-política de justiça, o que pode ser percebido em sua obra “Uma Teoria da Justiça”[3]. Já a partir de “O Liberalismo Político”[4], incluindo o clássico “Justiça como Equidade”[5], o autor passa a defender uma concepção apenas política de justiça.
Segundo ele, essa concepção possui como objetivos a “estrutura básica” da sociedade, ou seja, suas instituições políticas, sociais e econômicas, não se sustentando em “doutrinas abrangentes” (religiosas, morais, filosóficas etc), embora possa se enquadrar em algumas de suas idéias – ou seja, pode haver o apoio de tais doutrinas, sem que haja dependência quanto às mesmas.
Nesse sentido, defende a manutenção de um “pluralismo razoável” na sociedade, essencial à caracterização da democracia, uma vez que seria impossível se chegar a um consenso diante de doutrinas abrangentes[6]. De fato, para Rawls, a questão de haver um acordo na sociedade quanto ao que é justo mostra-se relevante, na medida em que sua concepção política de justiça pressupõe uma aceitação da sociedade quanto a certas idéias fundamentais, ou aos chamados “elementos constitucionais essenciais”.
Assim, Rawls defende a idéia de um “consenso sobreposto” acerca do Estado, pelo qual está implícito na cultura pública da sociedade que o poder político possui legitimidade. Ou seja, dentro dessa visão política, o exercício do poder coercitivo somente se realiza uma vez que há o endosso da própria sociedade, que mantêm estáveis suas estruturas básicas, pelo fato de seus cidadãos acreditarem que são justas tais instituições sob as quais foram criados.
Ao desenvolver sua teoria da justiça como equidade, Rawls apresenta um modelo liberal baseado em um contrato social, pelo qual os princípios de justiça mais razoáveis seriam os decorrentes de acordo mútuo entre pessoas em condições equitativas. Logo, a função desses princípios seria definir os termos equitativos de cooperação social – afinal, em uma “sociedade bem-ordenada”, todos aceitam os mesmos princípios de justiça, que fornecem um ponto de vista aceitável para todos.
Para que seja possível o estabelecimento desses princípios, Rawls desenvolve a idéia do chamado “véu da ignorância”, pelo qual nenhum participante conhece sua posição na sociedade. Assim, com esta imparcialidade, é possível que os indivíduos alcancem resultados justos, por meio da colaboração.
Assim, Rawls apresenta dois princípios básicos de justiça: toda pessoa tem direito a uma estrutura de liberdades básicas[7] (a); as desigualdades sócio-econômicas devem se referir a posições acessíveis a todos e beneficiar ao máximo os menos favorecidos (b).
Analisando esses princípios, pode-se dizer que a teoria da justiça como equidade representa uma alternativa à visão utilitarista de justiça, uma vez que entende não ser possível que uma sociedade seja justa com base no sacrifício de alguns[8]. Para Rawls, a existência de desigualdades sócio-econômicas, bem como a concessão de certos privilégios a determinados grupos, é até aceitável, mas desde que se busque o oferecimento de oportunidades iguais para todos e desde que isto represente também a melhoria das condições para o todo, sobretudo aos menos favorecidos – princípio da diferença.
Um exemplo de aplicação dessa teoria na seara tributária seria a possibilidade de concessão de isenções fiscais como forma de incentivo a empresas que pretendem se instalar em regiões menos desenvolvidas, o que enseja conseqüências desejáveis como a criação de novos empregos destinados à população local, a melhoria do sistema de transporte público etc.
No que diz respeito ao Direito Tributário, pois, deve-se sempre ter em mente a noção de justiça fiscal como um de seus fundamentos éticos, que relaciona a atividade tributária com a perseguição de determinados fins e valores.
2) Tributação e distribuição de riquezas:
Como visto, a tributação deve ser analisada como mecanismo de promoção da justiça em uma sociedade. Entre os principais fatores dessa concepção, sem dúvidas, está o papel de distribuição de riquezas que exerce a atividade tributária.
De fato, a distribuição de riquezas representa meio de realização dos princípios da igualdade, da liberdade e da dignidade da pessoa humana, intrínsecos à noção de justiça. Nesse sentido, cabe transcrever a lição de Paulo Caliendo[9]: “Por sua vez, a tributação significa o modo de financiamento dos direitos fundamentais e da busca dos recursos necessários à realização dos valores da liberdade e da igualdade. Trata-se de um instrumento para alcançar a justiça e não de um mecanismo a ser utilizado para opressão e manutenção da desigualdade social.”
Em uma sociedade democrática e minimamente organizada, a idéia de justiça envolve uma distribuição de recursos e encargos, não sendo possível que se fale em justiça distributiva sem se passar pela noção de redistribuição.
Aqui, sem a pretensão de esgotar o tema, impõe esclarecer que o conceito de redistribuição envolve uma série de fatores, tais como a determinação dos sujeitos contribuintes e beneficiados, dos bens a serem protegidos, dos critérios a serem adotados no processo de distribuição e, ainda, de quais os mecanismos sociais aptos à realização dessa redistribuição de riqueza.
Pois é justamente nesse último ponto que se insere a tributação: como elemento pragmático apto a promover a efetivação da justa distribuição de riquezas.[10]
Por certo, a forma como essa distribuição de riquezas por meio da tributação será realizada é que irá variar, de acordo com o modelo de Estado adotado. De fato, há modelos pelos quais há significativa arrecadação e prestação de serviços por parte do poder público (como por exemplo o Estado do Bem-Estar Social). Em contrapartida, nos estados estritamente liberais, nos quais se observa menor intervenção estatal, esse papel de distribuição de riquezas pela tributação não se mostra tão acentuado.[11]
No que diz respeito ao modelo de sociedade apresentado por Jonh Rawls, apontado no ítem anterior do presente estudo, também cabem algumas considerações acerca da justiça distributiva.
Segundo o autor[12], o maior problema da justiça distributiva na sua Justiça como Equidade estaria em como ordenar as instituições da estrutura básica em um sistema equitativo de cooperação social ao longo do tempo.
A resposta a essa questão envolve o que Rawls chama de justiça procedimental pura: a observância de um procedimento justo leva a um resultado também justo. Assim, uma vez que nesse modelo de sociedade a estrutura básica se mostra justa, de acordo com princípios equitativos de justiça, se todos seguirem suas regras a distribuição de riquezas se mostrará igualmente justa.
Ou seja, os cidadãos inseridos nesse sistema compreendem seu papel na realização da cooperação social, não se opondo ao pagamento dos tributos previamente estipulados como forma de participação na distribuição de riquezas. Dessa forma, é possível que sejam implementadas metas de cooperação social ao longo do tempo.
Além disso, para Rawls, o funcionamento de uma sociedade com base na justiça distributiva deve se pautar em expectativas legítimas dos cidadãos, por exemplo, e não em doutrinas abrangentes, como as questões de mérito moral, que se afastam de uma concepção política de justiça, conforme dito no tópico anterior.
Na prática, pode-se apontar alguns mecanismos utilizados na atividade tributária que contribuem especificamente para a distribuição de riqueza entre a sociedade, decorrentes do princípio da capacidade contributiva.
Inicialmente, cite-se o fenômeno da seletividade, pela qual há incidência de alíquotas menores sobre os produtos considerados mais essenciais à população. Assim, o efeito econômico da tributação se mostra menos impactante para as classes sociais mais carentes.
Outro importante mecanismo para a distribuição de riquezas é a aplicação da chamada progressividade, segundo a qual há o aumento da alíquota na medida em que o contribuinte demonstra incremento do seu poder econômico.
Por sua vez, a proporcionalidade se apresenta também como meio de distribuição de renda, na medida em que representa uma maior arrecadação de receita quanto maior for a base de cálculo do tributo.
Por fim, merece destaque o papel das contribuições sociais como forma de promoção da redistribuição de recursos, uma vez que se destinam precipuamente aos setores mais necessitados da sociedade. Como será abordado no próximo tópico, as contribuições sociais possuem forte ligação com o princípio da solidariedade social, servindo como meio de promoção da dignidade humana, através da realização de direitos fundamentais.
3) O princípio da solidariedade social e o dever fundamental de pagar tributos
Não obstante sua importância, a disciplina dos deveres fundamentais vem sendo pouco abordada pela doutrina, que confere considerável destaque à temática dos direitos fundamentais. Entretanto, aos poucos se pode perceber uma evolução quanto à matéria, permitindo que se estabeleça alguns conceitos básicos acerca do tema.
Inicialmente, destaca-se a definição de deveres fundamentais apresentada por José Casalta Nabais[13], que os aponta como “deveres jurídicos do homem e do cidadão que, por determinarem a posição fundamental do indivíduo, têm especial significado para a comunidade e podem por esta ser exigidos.”
Seriam, pois, posições jurídicas passivas (exprimem a situação de dependência do indivíduo perante o estado/comunidade), autônomas (em relação aos direitos fundamentais), subjetivas (são imputadas subjetivamente ao indivíduo pela constituição), individuais (referem-se aos indivíduos – não necessariamente pessoas humanas), universais (valem para todos os indivíduos, em regra), permanentes (são duradouras, irrenunciáveis para o legislador) e essenciais (são fundamentais para a sociedade)[14].
Por sua vez, Ingo Wolfgang Sarlet apresenta classificação dos deveres fundamentais que distingue os deveres relacionados diretamente com os direitos fundamentais (deveres conexos ou correlatos) daqueles que não estão ligados a nenhum direito subjetivo (deveres autônomos)[15].
Em seu estudo, o doutrinador português com pertinência ressalta que não se deve confundir o conceito de deveres fundamentais com outras espécies aproximadas, tais como os deveres constitucionais organizatórios, os limites aos direitos fundamentais, os deveres correlativos de direitos fundamentais, as garantias institucionais de deveres fundamentais, as sujeições constitucionais, os ônus, as tomadas a cargo de serviços e as tarefas constitucionais stricto sensu[16].
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 prevê de maneira esparsa alguns deveres fundamentais, não havendo uma disciplina sistematizada como ocorre para os direitos fundamentais – não obstante o Capítulo I do Título II seja intitulado “Dos direitos e deveres individuais e coletivos”.
Como exemplo de deveres fundamentais, pode-se apontar o dever de observância da função social da propriedade (artigo 5º, inciso XXIII), o dever fundamental de solidariedade social e o dever fundamental de pagar tributos, estes últimos diretamente relacionados ao presente trabalho.
No que diz respeito ao dever fundamental de solidariedade social, sua principal previsão na CRFB/88 está no artigo 3º, inciso I, que apresenta a solidariedade entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.
Trata-se de um dever imposto a toda a sociedade, do qual decorrem outros deveres fundamentais, entre eles o dever fundamental de pagar tributos.[17]
No que diz respeito à teoria de justiça apresentada por Jonh Rawls, esta se coaduna perfeitamente com a idéia de solidariedade social. De fato, sua noção de justiça envolve um conjunto de normas e instituições estabelecidas em uma sociedade plural, o que torna inafastável o conceito de solidariedade.
Nesse sentido, pode-se perceber em seus dois princípios de justiça, anteriormente apresentados, a importância da solidariedade social:
a) Quanto ao primeiro princípio de justiça, segundo o qual toda pessoa tem direito a uma estrutura de liberdades básicas, este se relaciona com a solidariedade na medida em que demonstra o valor equitativo de tais liberdades, que devem ser garantidas a todos os cidadãos.
b) Em relação ao segundo princípio, pelo qual as desigualdades sócio-econômicas devem se referir a posições acessíveis a todos e beneficiar ao máximo os menos favorecidos, a noção de solidariedade se mostra ainda mais evidente, posto que estabelece a necessidade de uma igualdade equitativa de oportunidades.
O princípio da diferença, ao estabelecer que as desigualdades sócio-econômicas em uma sociedade são justificáveis desde que sirvam também para a melhoria das condições dos menos favorecidos, pode inclusive ser considerado o ponto de maior aproximação da teoria de Rawls com a idéia de solidariedade social, promovendo noções de fraternidade e reciprocidade entre os cidadãos.[18]
O dever fundamental de pagar tributos, por sua vez, possui forte relação com o chamado Estado Fiscal, caracterizado pelo financiamento de suas principais necessidades financeiras por meio da instituição de tributos.
Nesse sentido, a tributação não deve ser encarada como expressão do poder soberano do Estado em face dos indivíduos, mas sim como atividade necessária ao bom funcionamento da própria sociedade organizada que ele representa.
Quer dizer, a cobrança de tributos não representa uma transferência coercitiva de riqueza, justificada pelo poder de tributar, sendo melhor definida como uma contribuição de cada cidadão para que se busque a concretização dos direitos fundamentais previstos na Constituição.
A esse respeito, leciona Casalta Nabais[19]: “Noutros termos, o imposto não pode ser encarado, nem como um mero poder para o estado, nem simplesmente como um mero sacrifício para os cidadãos, mas antes como o contributo indispensável a uma vida em comum e próspera de todos os membros da comunidade organizada em estado.”
De fato, a arrecadação obtida por meio da atividade cobrança de tributos mostra-se, no Brasil, como a principal fonte dos recursos que são utilizados para a manutenção da administração do Estado, bem como para o financiamento dos direitos fundamentais (sobretudo os direitos sociais, que demandam prestações positivas por parte do poder público).
Assim, tendo-se em mente a idéia de solidariedade social (esta entendida como um dever fundamental), parece lógico que se conclua pelo dever de que cada pessoa contribua, na medida de sua capacidade financeira[20], para o custeio das despesas geradas em benefício de toda a sociedade.
Nesse ponto, é possível afirmar que o dever fundamental de pagar tributos se justifica inclusive pela vasta previsão de direitos fundamentais constante na CRFB/88. Por certo, a implementação desses direitos requer a aplicação de recursos financeiros oriundos dos cofres públicos, que, como dito, são alcançados sobretudo por meio da atividade tributária. Dessa forma, para que seja possível a concretização de tais direitos, o pagamento de tributos pelos indivíduos mostra-se essencial, justificando a caracterização de um dever fundamental.
Além disso, também é possível apontar como pressuposto desse dever fundamental o fato de a CRFB/88 conferir grande destaque às normas relativas à tributação. Afinal, ao apresentar um título especial denominado “Da Tributação e do Orçamento” (Título VI – artigos 145 a 169), infere-se que o pagamento dos tributos administrados de acordo com tais normas não é algo facultativo, mas sim um dever de todo cidadão.
No entanto, cabe ressaltar que a instituição e cobrança dos tributos constitucionalmente previstos necessita de legislação prévia regulamentando a matéria, não sendo possível a aplicação imediata das referidas normas. Em outras palavras, pode-se afirmar que os deveres fundamentais, entre eles o dever fundamental de pagar tributos, não são auto-aplicáveis[21].
Por outro lado, também não se pode conceber os deveres fundamentais como normas meramente programáticas, pois, como toda norma de cunho constitucional, possuem força normativa.
Outro ponto que merece ser destacado, conforme explicitado anteriormente, é que os deveres fundamentais não possuem necessariamente um direito a eles correlato, embora isso possa ocorrer em certos casos. Dessa forma, o dever fundamental de pagar tributos não implica na existência de um direito do contribuinte em exigir determinada prestação por parte do Estado[22].
Não obstante, é certo que a tributação apenas se justifica na medida em que serve como fonte de arrecadação de recursos a serem implementados na manutenção da máquina administrativa e na realização das políticas públicas. Consequentemente, a má aplicação dos valores recolhidos por meio da cobrança de tributos implica na ilegitimidade dos atos administrativos envolvidos.
Nesse sentido, cabe ressaltar a importância do controle a ser exercido em matéria de orçamento e políticas públicas, a fim de garantir que a utilização dos recursos arrecadados seja efetivamente dirigida aos fins constitucionalmente previstos.
3) A tributação e o financiamento das políticas públicas com vistas à realização dos direitos fundamentais:
Como é sabido, a realização das políticas públicas tendentes à concretização dos direitos fundamentais envolve o dispêndio de recursos públicos – limitados -, o que exige por parte do Poder Público e de toda a sociedade um controle da eficiência em sua execução. Nesse contexto, mostra-se também relevante a análise acerca da obtenção de tais recursos, que ocorre sobretudo com base na tributação, tida como principal fonte de financiamento dos direitos fundamentais.
De fato, o poder de tributar conferido ao Estado pode ser fundamentado de diversas maneiras. Entretanto, cada vez mais, a doutrina vem enfatizando a relação da tributação com os direitos fundamentais.
Sobre esse aspecto, cabe destacar a precisa classificação apresentada por Paulo Caliendo[23] no que diz respeito às formas de justificação do Direito Tributário, que seriam: i) expressão de poder (pensamento conceitual); ii) sistema jurídico (pensamento normativo); e iii) sistema de direitos e deveres fundamentais (pensamento sistemático).
De acordo com o pensamento conceitual, a tributação está vinculada ao poder político, à idéia de soberania do Estado, e não à existência de normas disciplinadoras da matéria. Para os teóricos que defendem esse pensamento, a Constituição representa um diploma essencialmente político, com a função de distribuir o poder de tributar entre os entes federativos.
Já pelo pensamento normativo, há o reconhecimento de que o Direito Tributário está inserido em um sistema maior, qual seja, o Direito Constitucional. Aqui, a Constituição é vista como norma jurídica responsável pela repartição de competências, em uma perspectiva formal.
Por sua vez, o pensamento sistemático consagra a relação entre a tributação e a realização dos direitos fundamentais, representando uma evolução em relação aos modelos anteriores.
Segundo este pensamento, a própria tributação é considerada como um dever fundamental, posto que a Constituição estabelece valores a serem observados tanto pelo poder público como por toda a sociedade.
No Brasil, diversos doutrinadores vêm adotando essa visão sistemática do Direito Tributário, pós-positivista, seguindo uma tendência do direito comparado.
Nesse sentido, destaca-se Ricardo Lobo Torres que apresenta um conceito constitucional de tributo, que seria “o dever fundamental, consistente em prestação pecuniária, que, limitado pelas liberdades fundamentais, sob a diretiva dos princípios constitucionais da capacidade contributiva, do custo/benefício ou da solidariedade e com a finalidade principal ou acessória de obtenção de receita para as necessidades públicas ou para atividades protegidas pelo Estado, é exigido de quem tenha realizado o fato descrito em lei elaborada de acordo com a competência específica outorgada pela Constituição”.[24]
De fato, não se pode considerar a tributação como mera expressão do poder estatal, mas sim como forma de realização dos valores constitucionalmente previstos. Ao tratar do tema, afirma Paulo Caliendo: “…a tributação significa o modo de financiamento dos direitos fundamentais e da busca dos recursos necessários à realização dos valores da liberdade e da igualdade”.[25]
Deve-se ter em mente que, para que se estabeleça uma sociedade democrática organizada, a redistribuição de riquezas de mostra necessária, a fim de se minimizar as desigualdades sociais.
A tributação, por certo, possui papel essencial na construção de uma sociedade pautada na noção de justiça distributiva, uma vez que, juntamente com as questões orçamentárias, envolve as atividades de arrecadação de recursos e tomada de decisões acerca da aplicação dos mesmos.
Além disso, não se deve afastar a idéia de Justiça Fiscal da tributação, sendo essencial que se relacione as normas tributárias com os valores constitucionais, tendentes à construção de uma sociedade mais justa. De fato, pode-se perceber tal influência na disciplina de princípios tributários como os da isonomia, capacidade contributiva, entre outros.
Nesse ponto, cabe destacar a tradicional classificação que distingue os tributos vinculados dos não vinculados. Entre os primeiros, estão aqueles cujo produto da arrecadação terá como destino a prestação de serviços específicos e divisíveis (como as taxas). Já o segundo grupo diz respeito a tributos cuja função é financiar serviços universais e indivisíveis – tais como a saúde e a educação, bem como atividades estatais em geral (como os impostos).
Tal distinção mostra-se relevante na medida em que a idéia de redistribuição de riquezas é mais evidente no caso dos tributos não vinculados, nos quais o financiamento dos direitos fundamentais por aqueles que possuem maior capacidade contributiva ocorre de maneira mais direta.
No que diz respeito à prestação de serviços universais e indivisíveis pelo Estado, com base sobretudo no produto da arrecadação de tributos, merece destaque o modelo vivenciado pelo chamado Estado de Bem-Estar Social (welfare state), no qual havia considerável intervenção estatal com vistas à garantia de direitos fundamentais essenciais, tais como saúde e educação.[26]
Entretanto, diversas críticas foram apontadas a esse tipo de Estado, que, na prática, de fato não se mostrou suficientemente adequado aos anseios da sociedade. Entre elas, está o demasiado crescimento da máquina estatal, com a conseqüente burocratização e desperdício de recursos públicos para sua própria manutenção; aumento excessivo dos gastos públicos, gerador de inflação e endividamento estatal; aumento da carga tributária, de modo a desincentivar a produção interna; entre outras. Em contrapartida, houve uma superação da crise do Estado de Bem-Estar Social quando se reconheceu que não é possível permitir que o mercado conduza livremente a tarefa de redistribuição de renda, sobretudo diante de modelos essencialmente capitalistas.
Por sua vez, o modelo conhecido como Estado Fiscal também não se mostrou suficiente na solução da questão da arrecadação e financiamento dos direitos fundamentais. Nesse tipo de Estado, há um grande destaque para a cobrança de tributos não vinculados, como forma de expressão da soberania estatal, uma vez que este é o responsável por realizar as principais prestações tendentes à realização dos direitos fundamentais básicos dos cidadãos. Todavia, tal sistemática de distinção entre as esferas da sociedade e do Estado não se coaduna com a moderna concepção de Estado Social e Democrático de Direito.
De fato, mais adequada é a idéia representada pelo chamado Estado Tributário, no qual há maior destaque para a busca pela efetiva promoção dos direitos fundamentais do que para a questão de seu financiamento em si.[27]
Assim, o Estado Tributário caracteriza-se pela instituição de tributos vinculados e não vinculados, além de benefícios fiscais. Há o reconhecimento de que Estado e sociedade devem atuar de maneira conjunta para a realização dos valores constitucionalmente previstos, sendo necessário que se compatibilize a participação estatal com a liberdade de atuação dos indivíduos nas questões sócio-econômicas.
No Brasil, pode-se citar como exemplos dessa concepção as previsões constitucionais acerca da progressividade, da proporcionalidade e da seletividade de alguns tributos (artigos 153, § 2º, inciso I; 153, § 3º, inciso I; 153, § 4º, inciso I; 155, § 2º, inciso III; 156, § 1º etc.), bem como as imunidades das instituições de assistência social, previstas no artigo 150, inciso VI, alínea c e § 4º, e 195, §7º, ambos da Constituição Federal.
Outro ponto relevante acerca da tributação como meio de financiamento dos direitos fundamentais é a questão das contribuições sociais, que, como visto, têm como princípio justificador a solidariedade social, prevista no artigo 3º, inciso I, da CRFB/88 como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.
Tal princípio, de fato, exerce influência não apenas no campo das contribuições, mas em todo o Direito Tributário, uma vez que representa legítima expressão do exercício da cidadania em um Estado Democrático de Direito, no qual é imperativa a repartição de funções entre seus componentes.
Nesse sentido, é cabível que se considere o pagamento de tributos como verdadeiro dever fundamental do cidadão, que irá ensejar, dentro de um sistema constitucional, o financiamento e a realização dos direitos fundamentais.
4) Conclusão:
Como visto, a tributação é o principal meio de financiamento dos direitos fundamentais, a serem implementados pelo Poder Público por meio de políticas públicas tendentes à sua concretização. Nesse sentido, deve ser considerada não como mera expressão de poder estatal, mas sim como instrumento para a realização de direitos e princípios constitucionalmente previstos.
De fato, a instituição de tributos tem entre seus fundamentos as noções de justiça fiscal e distribuição de rendas, representando meio de realização dos princípios da igualdade, da liberdade e da dignidade da pessoa humana, intrínsecos à noção de justiça.
Tendo-se em mente a idéia de solidariedade social, essencial ao Estado Democrático de Direito, o pagamento de tributos, na medida da capacidade contributiva de cada indivíduo, pode ser considerado como um dever fundamental, que representa forma de exercício da cidadania em uma sociedade organizada.
Entretanto, para que na prática tal sistemática se mostre satisfatória, caracterizando uma boa administração pública, é imprescindível que haja o controle da eficiência na obtenção dos recursos públicos, inclusive no que diz respeito ao estabelecimento de uma carga tributária razoável ao contribuinte, bem como na sua aplicação em políticas públicas, o que passa pelo controle acerca das escolhas feitas pelo administrador.
Informações Sobre o Autor
Samantha Corrêa
Procuradora da Fazenda Nacional. Graduada pela UERJ. Pós-graduada pela UGF. Mestranda pela PUC/RS