Habeas Corpus ou Habeas Omne?

Ele serve para curar, desde dor de dente, enxaqueca, unha encravada, mal olhado, indiciamento em inquérito policial, trancamento de inquérito policial ou investigação do Ministério Público, até, claro, prisão ilegal.

O instituto do habeas corpus foi extremamente desvirtuado das suas origens. Criado ideologicamente pelos barões ingleses que se contrapunham aos mandos e desmandos do Rei João-Sem-Terra da Inglaterra, em meados do ano de 1215, quando, entusiastas dos estudos jurídicos, passaram a questionar e reclamar a respeito de todas as suas liberdades,  comumente  contestada por aquele, que chegou a indagar: “Por que não me pedem também a minha coroa?” Deu-se, daí, o germe do regime constitucional. Nesta ocasião aqueles barões assinaram a famosa Carta Magna (Magna Charta libertatum, seu Concordia inter regem Johannem et Barones proconcessione libertatum ecclesiae et regni Angliae – 15 de junho de 1215).

Ocorre que, por razões mais políticas que jurídicas, esse instituto, maravilhoso “remédio heróico”, tomou proporções indevidas, abraçando situações totalmente descabidas, a ponto de permitirem ensejar a injustificável interferência do Poder Judiciário nas questões da investigação criminal. Nesta fase, não é demais enfatizar, não existe Jurisdição instalada, embora possam haver atos jurisdicionais, apenas quando se pretenda interferência nos chamados direitos e liberdades individuais, constitucionalmente previstos. Então torna-se preciso chamar o Poder Judiciário à decisão para se obter – prisão, busca e apreensão, dados de caráter sigiloso etc. Mas daí a permitir que a investigação criminal seja trancada – impedida em sentido amplo, e não de uma situação concreta, há uma grande diferença. Parece inafastável possa e deva o Poder Judiciário decidir a respeito de requerimentos, da Polícia e do Ministério Público de determinados procedimentos, inseridos no âmbito da investigação; mas não se consegue entender seja possível “fechar” toda a investigação, quando, para os órgãos de persecução, e especialmente para o Ministério Público – o opinio delicti e dominus litis, existam evidências suficientes e necessárias para o prosseguimento.

Apenas a título de citação e registro, constata-se que no Direito Norte Americano, o instituto de Habeas corpus, inserido no título 28, §§ 2241 a 2255, estabelece o seu cabimento tão somente a pessoas presas, cujas prisões sejam caracterizadas ilegais nos termos únicos dos casos expressos.[1]

Igualmente no Direito espanhol, portanto de origem não anglo saxônica, o Habeas corpus, previsto na Ley Organica 6/1984, é aplicável ou cabível, tão somente para “personas ilegalmente detenidas”, nos termos do artigo 1°, letras “a” a “d”.[2]

Mesmo no Direito Positivo pátrio, nada justifica seja impetrado Habeas corpus contra a instauração de inquérito policial, visando o seu trancamento. Não há, seriamente analisando, configuração de nenhuma das hipóteses previstas nos artigos 647 e 648 do Código de Processo Penal, e tampouco na sua definição na Constituição Federal. A investigação criminal, por si só, não impede e nem ameaça ninguém da sua liberdade de locomoção. É certo que em outras épocas do direito pátrio não haviam medidas legais cabíveis contra as diversas formas de constrangimentos pessoais, e o habeas corpus viu dilatar a sua extensão, mas, com a devida venia dos entendimentos contrários, inclusive dos nossos tribunais, nada justifica a intromissão do Poder Judiciário ao mandar trancar investigação criminal, impedindo o Ministério Público e a Polícia de exercerem as suas tarefas Constitucionais da persecução penal. O Habeas corpus, extremamente desvirtuado pela nossa doutrina e jurisprudência, fosse aplicado na conformidade da sua criação, deveria servir para coibir prisão ilegal já praticada, e nada mais. O que se constata é que esse instituto chegou a tal ponto de prostituição que serve até para impedir indiciamento e prosseguimento de investigação criminal. Teve a amplitude de sua aplicação tão estendida que tudo o quanto não caiba recurso previsto em lei, pode ser objeto de habeas corpus, convertendo-se em verdadeiro curinga criminal – somente em favor dos suspeitos e acusados…

Para externar o nosso pensamento, sem pretender adentrar de forma mais profunda ao tema, deixamos o leitor e os nossos Julgadores com as palavras de, nada menos, que PONTES DE MIRANDA[3], que falam por si:

Só os sofismas desabusados, a trica e o subjetivismo impenitente podem ver nas expressões “liberdade pessoal”, protegida pelo habeas-corpus, outro significado mais amplo que o de liberdade física. Em manter o seu conceito clássico são contestes, não somente os juristas inglêses de todos os tempos, como também os americanos, franceses e alemães”….

Alguns publicistas, ao examinarem as instituições modernas, cotejando-as com as antigas, concluem pela extensão do conceito de liberdade pessoal, quando não foi isso absolutamente, o que se deu, e sim a aplicação dos mesmos institutos, em certo momento, não acastelados por eles, ou direitos outrora, ou ainda há pouco, tutelados insuficientemente. Entre nós, por exemplo, não foi a liberdade pessoal que se dilatou ali pelo segundo e terceiro decênios do século: foi o habeas-corpus abusivo que se estendeu, sob a oratória de homens políticos, a novos casos”.

Liberdade pessoal, aí, é (e sempre será) a liberdade de locomoção, the power of locomotion, a liberdade física: ius manendi, ambulandi, eundi ultro citroque.

A verdade é que a utilização indiscriminada do instituto acaba por subverter o seu verdadeiro objetivo, tornando-o, no mais das vezes sem crédito e impedindo a nobre função a que se presta.

A situação jurídica se encaixa bem com o provérbio: “Se enlameares a água limpa nunca encontrarás o que beber”[4]

Notas
[1] Federal Criminal Code and Rules, West Group, 2000, págs. 1242 e segs.
[2] Ley de Enjuiciamiento Criminal, Ed. Civitas, 1995, págs. 493 e segs.
[3] “História e Prática do Habeas corpus”. Editor Borsoi, 1961, págs 27/28
[4] Expressão extraída de Eumênides de Ésquio (vv. 694s.)

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Marcelo Batlouni Mendroni

 

Promotor de Justiça/SP – GEDEC, Doutor em Processo Penal pela Universidad de Madrid, Pós-Doutorado na Università di Bologna/Italia

 


 

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