O Imposto Sobre Serviços, ISS, tem gerado fortes discussões. Um de seus pontos fracos, para alguns levando até mesmo a denominada “guerra fiscal”, é que de acordo com o Decreto-Lei 406/68, norma regulamentadora sobre o assunto, empresas devem recolher o imposto no local onde encontram-se suas sedes. Utilizando tal letra da norma, empresas transferem suas sedes para municípios que possuem alíquotas bem abaixo do limite máximo de 5% para diminuir a carga tributária.
Ocorre que em julho de 2000, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça consolidou entendimento de que o ISS deve ser pago no local da efetiva prestação do serviço, ou seja, pouco importa onde se encontra a sede da empresa. A ementa prolatada assevera que: “Para fins de incidência do ISS – Imposto Sobre Serviços – importa o local onde foi concretizado o fato gerador, como critério de fixação de competência do Município arrecadador e exigibilidade do crédito tributário, ainda que se releve o teor do art. 12, alínea “a” do Decreto-Lei n.º 406/68”. Portanto, fixou-se que o imposto pertence ao município em cujo território se realizou o fato imponível.
Com respaldo em tal julgamento vários municípios vêm adotando uma postura pro fisco para evitar a “burla” as fazendas municipais, por exemplo, Ribeirão Preto, Florianópolis e Fortaleza normatizaram a retenção do valor do imposto pela empresa tomadora de serviços, localizada em referidas cidades, mesmo que o prestador tenha sede em local diverso da prestação do serviço. Referida solução deve ser a linha adotada pelos demais municípios, visto que a intenção de arrecadar cada vez mais é vala comum entre os entes tributantes.
Em relação a tese aceita pelo STJ e utilizada pelas prefeituras mencionadas, o município de São Paulo, que também a adota, multando empresas que tenham sede em outras cidades, mas prestem serviço lá, vem também conduzindo a tese que é devedora de ISS empresas que tenham sede na cidade de São Paulo, não levando em consideração o local da prestação do serviço. Nesse sentido, a prefeitura paulistana adota posição antagônica, visto que ora aplica a tese do local da prestação, interpretação consolidada no STJ, ora quer aplicar a letra da lei, com isso, pode-se concluir, através da análise do tributarista Raul Haidar, que: Se a prefeitura conseguir receber o imposto dessa empresa paulista, não terá argumentos para cobrá-lo de milhares de outras que, tendo sede em outros municípios, prestam serviços na Capital. (Teoria de Interesse – site: Consultor Jurídico)
Outro ponto a ser tratado sobre o ISS, e agora a favor do contribuinte, é o julgamento do pleno do STF, de outubro de 2000, que declarou inconstitucional a incidência de ISS sobre a locação de bens móveis. A tese acolhida pelo Supremo Tribunal Federal defende ser locação de bens móveis uma obrigação de dar, ao passo que, o ISS deve incidir sobre prestação de serviços, que tem a natureza de obrigação de fazer, ou seja, há discrepância entre a natureza da pretensão fazendária, que deve incidir sobre obrigação de fazer, e a efetiva natureza da redação da previsão in abstrato, locação de bens móveis, obrigação de dar.
Mas, para prosseguirmos, três pontos devem ser fixados, um primeiro, da inconstitucionalidade da cobrança do ISS sobre locação de bens móveis, um segundo, quanto a natureza da expressão “locação de bens móveis”, e um terceiro, do precedente do julgado da Corte Suprema.
Feitas estas ligeiras observações, atrevemo-nos ir mais adiante.
Quanto ao primeiro ponto, deve-se anotar que locação de bens móveis jamais poderia configurar hipótese de incidência para o imposto sobre serviços, cuja matriz constitucional vincula o tributo a uma obrigação de fazer, a ser realizada pessoalmente pelo prestador, até mesmo porque, seu fato gerador in abstrato, deve estar relacionado a uma obrigação de fazer – prestação de serviço.
E mais, no sistema constitucional brasileiro, art. 146, inc. III, alínea “a”, cabe à lei complementar definir fatos geradores dos impostos nela discriminados, base de cálculo e contribuintes, mas esta relativa autonomia deverá ser exercida de acordo com os limites também fixados na CF/88. Dessa forma, o Decreto-lei n.º 406/68, com natureza de lei complementar, não poderia desvirtuar o sentido dos institutos jurídicos consagrados por outros ramos do direito, ao tratar a locação de bens móveis como prestação de serviço, criando a sujeição ao ISS. Tal imposição viola os limites constitucionais de qualquer tributo.
O tributarista Roque Antonio Carrazza, leciona que: “(…), entendemos que a lei complementar não pode prever ‘serviços por definição legal’, tributáveis pelo ISS. Por outro giro verbal, a lei complementar não pode considerar serviços, para fins de tributação por via de ISS, fatos que não os sejam. Isto feriria, dentre outros, o direito subjetivo do contribuinte de só ser tributado pela pessoa política competente e nos estritos termos da Constituição.”(CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. São Paulo : Malheiros, 1998. p. 544 )
É de grande relevância salientar que o aspecto objetivo do ISS deve estar adstrito ao perfil delineado pela Constituição Federal para a incidência do imposto, ou seja, prestação de serviço, respeitados os contornos determinados pelo Direito Civil, como prescreve o artigo 110 do Código Tributário Nacional, in verbis: A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, (…) para definir ou limitar competências tributárias. Nesse sentido, resta comprovada a inconstitucionalidade do item 79 da Lista de Serviços do ISS diante das limitações da Constituição de 1988, especialmente em face do seu art. 156, inc. II, onde se trata a matriz constitucional de incidência do ISS e a diretriz de que o imposto apenas poderá ser exigido em caso de prestação de serviços.
Fixado este ponto, o segundo a ser tratado é quanto a natureza da expressão “locação de bens móveis”, que deve ser buscada no contrato de locação, onde uma das partes mediante uma contraprestação em dinheiro, se obriga a ceder o uso e o gozo da coisa durante um determinado período, e o Código Civil Brasileiro, em seu art. 1.188, traça o conceito de locação, com a seguinte redação: Na locação de coisas, uma das partes se obriga a ceder à outra, por tempo determinado, ou não, o uso e gozo de coisa não fungível, mediante certa retribuição.
Assim, não resta dúvida que a locação representa uma obrigação de dar, o que se confirma pela desnecessidade de atividade pessoal do locador para o adimplemento do contrato, ao contrário da prestação de serviços, em que a atividade pessoal do prestador é inerente a tal espécie contratual.
Mutatis mutandis, o instituto da locação não poderá ser desfigurado para se exigir ISS, visto que o conceito de prestação de serviços não poderá ser alargado indefinidamente, de forma que o tributo tenha uma hipótese de incidência tão elástica, até mesmo porque em matéria tributária, a legalidade é estrita.
Ora, sendo a locação de bens móveis obrigação de dar coisa certa, enquanto que a prestação de serviços, subordinada ao exercício de alguma atividade por parte do prestador à um terceiro, ambos os conceitos são totalmente distintos e inconciliáveis sob o prisma da hermenêutica.
Frise-se, e como já dito alhures, a hermenêutica trata o direito como uma ciência de um só legislador, não existindo um legislador tributário distinto e contraponível a um legislador civil, pois os vários ramos do direito não constituem compartimentos estanques, mas são partes de um único sistema jurídico que se auxilia e interage. Não pode o poder legiferante constituinte ter traçado uma natureza jurídica para a incidência do ISS e o legislador infraconstitucional desrespeitá-la, dando-lhe outra natureza.
Desdobrando a idéia, tratemos agora do último e terceiro ponto, quanto ao precedente do STF, que declarou, “incidentalmente, a inconstitucionalidade da expressão “locação de bens móveis”, constante do item 79 da Lista de Serviços a que se refere o Decreto-lei nº 406, de 31 de dezembro de 1968, na redação dada pela Lei Complementar nº 56, de 15 de dezembro de 1987”. O voto do Ministro Celso de Mello no mencionado julgado esclarece brilhantemente “que a qualificação da “locação de bens móveis”, como serviço para efeito de tributação municipal mediante incidência do ISS, nada mais significa do que a inadmissível e arbitrária manipulação, por lei complementar, da repartição constitucional de competências impositivas, eis que o ISS somente pode incidir sobre obrigações de fazer, a cuja matriz constitucional não se ajusta figura contratual de bens móveis.”(STJ, Pleno, Rec. Extra. nº 116.121-3/SP, rel. Min. Octavio Gallotti, j. 11.10.2000)
Com efeito, o recurso extraordinário de determinada empresa de transportes e locação de guindastes, que originou referido julgamento do pleno do STF, demorou doze anos para ser julgado, portanto, as discussões foram muitas e bem fundamentadas.
Em suma, no caso em tela, o julgado trará benefícios às empresas locadoras de bens móveis e só resta ao Poder Judiciário acatar a decisão prolatada em sede do plenário do STF, determinando a sua não exigibilidade para não sofrerem o ônus da inadimplência, bem como a repetição das importâncias já pagas, sem que o contribuinte precise ir até a Corte Suprema para ver reconhecida a inconstitucionalidade da cobrança, após longos anos no tortuoso caminho da prestação jurisdicional.
Informações Sobre o Autor
Luiz Rodolfo Cabral
Advogado
Pós-graduado em Direito Processual Civil