Não são incomuns mandados de segurança impetrados por entidades beneficiadas com a imunidade tributária visando afastar a incidência do ICMS sobre as operações em que figuram como adquirentes de energia elétrica ou tomadoras de serviços de comunicação, em que invocam, em benefício de sua pretensão, o que dispõe o art. 150, VI, da Constituição Federal.
Em ações dessa natureza avultam de importância a determinação do âmbito de aplicação do instituto da imunidade e a correta identificação da parte processualmente ativa para ação, esta porque se inscreve no elenco dos pressupostos para o provimento sobre o mérito, que ao juiz, em qualquer grau de jurisdição, cumpre conhecer espontaneamente e cuja presença cabe-lhe preliminarmente sindicar (REsp 808.536), visto que a inobservância dos requisitos que neles se expressam compromete o próprio exercício da jurisdição, segundo autorizadas manifestações doutrinárias.
Pois bem. Para a Teoria Geral do Direito, a relação jurídica é definida como o vínculo abstrato, segundo o qual, por força da imputação normativa, uma pessoa, sujeito ativo, tem o direito subjetivo de exigir de outra, denominada sujeito passivo, o cumprimento de certa prestação (Paulo de Barros Carvalho, “Curso de Direito Tributário”, Saraiva, 4ª edição, p. 190), sabendo-se que, na seara tributária, a relação jurídica estabelece-se, em face do que resulta da leitura conjunta dos artigos 119 e 121, ambos do CTN, entre a entidade política competente para instituir e exigir o tributo e a pessoa que, por manter relação direta com o respectivo fato gerador, está obrigada a seu pagamento.
Isso significa que a obrigação de pagar o tributo nasce com o surgimento do fato descrito na lei tributária como idôneo para determinar o vínculo tributário. Ocorrendo, então, o fato gerador, há incidência do tributo ou da regra jurídica sobre o fato, desencadeando-se, como efeito típico, o surgimento da obrigação tributária para uma pessoa determinada, pois a relação entre o fato gerador e a pessoa determina o vínculo da obrigação a seu sujeito passivo.
Contribuinte do ICMS, a seu turno, segundo a lei complementar a quem a Constituição confiou a uniforme disciplina do imposto, é, então, a pessoa que realiza operações de circulação de mercadoria ou prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (LC 87/96, art. 4º), isto é, a pessoa que realiza o pressuposto da incidência tributária.
Eis porque, no campo da relação jurídico-tributária, a obrigação nasce, desenvolve-se e extingue-se, não pelo modo que os particulares tenham determinado, mas pela forma que a lei tenha disposto, tenha regulado, vale dizer, a obrigação tributária é uma obrigação “ex lege”: nasce entre dois sujeitos e extingue-se com seu cumprimento, ou por uma das hipóteses do artigo 156 do CTN.
A pessoa escolhida pelo legislador para figurar no pólo passivo da relação tributária, o devedor do tributo, é, pois, o contribuinte legal, ou contribuinte de direito (de jure).
Entretanto, nem sempre, sob o ponto de vista financeiro, o sujeito passivo é gravado, definitivamente, pelo tributo, por resultado da repercussão econômica, que, segundo Souto Maior Borges, “processa-se geralmente através dos mecanismos de formação de preços, aos quais se incorpora a parcela correspondente ao tributo, nas diversas etapas dos ciclos de produção, industrialização e comercialização do bem” (in “Teoria Geral da Isenção Tributária”, Malheiros, 3ª edição, 2ª tiragem, p. 185 e seguintes). A repercussão ou translação é, portanto, a transferência do ônus tributário do contribuinte de direito (de jure) para o contribuinte de fato (de facto).
Há que se distinguir, então, ainda segundo Souto Maior Borges, a incidência jurídica da incidência econômica, pois, economicamente, a carga tributária pode ser suportada por pessoa distinta do contribuinte de direito. Sendo assim, as noções de incidência jurídica e incidência econômica dos tributos correspondem, então, a conceitos inconfundíveis.
Nessas circunstâncias, em tema de tributos que comportam a transferência do respectivo encargo financeiro, denominados indiretos, assume especial relevância jurídica, inclusive para efeito de fruição da imunidade tributária, a correta identificação do sujeito passivo da obrigação tributária, uma vez que o direito tributário somente se interessa pelo contribuinte de jure, pessoa que a lei escolhe para suportar na ordem jurídica o ônus do tributo.
E assim é, efetivamente, pois basta ver que, do consumidor, nada exige a lei, porque ausente o indispensável vínculo jurídico. Sendo assim, a obrigação de pagar o imposto devido, à ocorrência do fato gerador, faz de quem realiza o fato gerador o único sujeito ativo do correspondente direito de postular a restituição do que pagou indevidamente e de quem dele figura como contribuinte o direito de suscitar a ilegitimidade da incidência tributária.
O tributo é o objeto da prestação jurídica e, uma vez satisfeita a prestação, a relação jurídica tributária se extingue. O que acontece depois, por desdobramento do cumprimento da obrigação que confere consistência material ao imposto, ocorre em momento posterior e em outra relação jurídica, esta de natureza comercial, privada, portanto.
Evidenciado, então, que o translado do encargo financeiro, no primeiro momento suportado pelo solvens, é posterior ao cumprimento da prestação imposta pela lei, consubstanciam-se, então, diferentes relações jurídicas, uma tributária, pública, portanto; outra, privada, resultante da incorporação, ao valor do negócio jurídico celebrado ou do serviço prestado, dos custos e despesas incorridos, inclusive fiscais.
Ainda que o contribuinte do imposto transfira-lhe o respectivo encargo, que o consumidor supõe indevido na origem, nem por isso estará legitimado a acionar o sujeito ativo da obrigação, satisfeita que foi por outrem, pelo sujeito passivo da obrigação tributária, pois, somente a quem se impõe a obrigação do pagamento, defere-se o poder de exigir, correspondentemente, sua restituição, quando a exigência fiscal se mostre ao desamparo da lei.
Por conseguinte, pretensão visando afastar a incidência do imposto só pode ser deduzida pelo sujeito passivo da obrigação e não pelo consumidor, que, alheio à relação que vincula o sujeito ativo da obrigação a quem é dela devedora, não exibe legitimidade ativa ad causam e nem interesse jurídico a ser tutelado.
Não obstante, há quem afirme que a distribuidora, ao entregar a energia elétrica a seu adquirente, assume a condição de mera responsável pelo recolhimento do ICMS, devido por este último, porque, a rigor, não pratica qualquer operação mercantil, mas apenas a viabiliza, visto que se limita a interligar a fonte produtora ao consumidor final. E, “na medida em que o sujeito passivo (contribuinte de direito) é o consumidor final da energia elétrica, segue-se, por imperativo lógico, que, se este for imune à tributação, dele não poderá ser cobrado o ICMS, salvo na hipótese do art. 150, § 3º” (cfr. Roque Antonio Carrazza, “ICMS”, Malheiros, 7ª edição, p. 180).
Entretanto, não parece que assim seja.
Com efeito, como visto, contribuinte é quem realiza o pressuposto da incidência, no caso, a fornecedora da energia elétrica e não o consumidor. Sendo assim, a distribuidora, quando fornece ou simplesmente transporta a energia elétrica, é, sim, sujeito passivo da obrigação tributária, mas por débito próprio e não substituto tributário do consumidor; à sua custa e por conta própria, é o imposto por ela recolhido, comprova-o a nota fiscal/fatura, em que ela debita-se do ICMS devido pela operação ou pela prestação do serviço, não obstante não seja a produtora da energia elétrica por ela fornecida ou transportada.
Nesse sentido, “Se cada uma das sucessivas operações é fato gerador, é claro que será contribuinte de direito o respectivo promotor, malgrado a constatação de que o ônus financeiro do tributo é integralmente transferido para o consumidor final. A circunstância não é exclusiva para o setor de energia elétrica, e é a própria razão de ser da distinção entre o contribuinte de direito (aquele que responde perante o Estado) e o contribuinte de fato (aquele que arca com o peso do tributo). Contribuintes de direito do ICMS são as pessoas definidas no art. 4º da Lei Complementar nº 87/96, dentre as quais não comparece o consumidor final da energia elétrica”, anotam Sacha Calmon N. Coelho e Misabel Abreu Machado Derzi (in “Pareceres – Direito Tributário da Energia”, Forense, 2004, p. 176).
Por outro lado, mesmo quando o consumidor é uma entidade pública, autarquia, fundação instituída e mantida pelo Poder Público, partido político, entidade sindical ou instituição de educação e de assistência social, nem por isso está a operação amparada pela imunidade tributária, precisamente porque, não figurando como contribuinte de jure do ICMS, o imposto é devido por outrem, pela distribuidora, e não por elas ou por ele, não obstante possam vir a amargar o ônus que lhes foi trasladado.
É bem de ver que a manifestação doutrinária que se reputa incorreta rompe, ademais, com toda dogmática jurídica construída em torno do tema e com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, quando ainda competente para dizer por último sobre a aplicação do direito federal – embora não se tenha conhecimento de qualquer alteração introduzida na legislação aplicável.
Com efeito, segundo o STF, a relação jurídica de natureza tributária estabelece-se, apenas, entre o Poder tributante e o contribuinte ou responsável, nos termos da lei, pouco importando a repercussão econômica do imposto:
“Imposto de consumo. Não há imunidade do antigo imposto de consumo sobre produto vendido a pessoa jurídica de direito público, embora para seu próprio uso, eis que a relação tributária se estabelece, apenas, entre o poder tributante e o contribuinte ou responsável, nos termos da lei, pouco importando, para efeito de imunidade ou de isenção, a repercussão econômica do tributo. Precedentes, na jurisprudência do Supremo Tribunal, a partir dos embargos no RE 68.215, de 9.9.1970, Recurso Extraordinário conhecido e provido” (RE-72862/SP, Relator Min. Eloy da Rocha).
Em casos tais, “Não é possível opor a realidade econômica à formula jurídica para excluir uma obrigação fiscal precisamente definida em lei. O contribuinte de fato é estranho à relação tributária e não pode, alegar, a seu favor, a imunidade recíproca” (RE 71.300 – SP – Relator Min. Bilac Pinto). Nesse sentido é uníssona a jurisprudência daquela Corte (RE 114.977; RE 161.384; RE 113.149; RE 105.486/MG; RE 104.504/MG; RE 68.924; RE 67.814; RE 68.741 e RE 78.623, inter plures).
Em tema de imunidade tributária, existe unanimidade de entendimento no âmbito de ambos os tribunais de sobreposição no sentido de que, sendo a concessionária do serviço o contribuinte de direito do ICMS, ao município e à entidade de assistência social, como consumidores ou tomadores do serviço, contribuintes de fato, portanto, faltaria até mesmo legitimidade ativa ad causam para postular o direito de fruição da imunidade tributária na aquisição de energia elétrica ou no uso do serviço de comunicação, dado tratar-se precisamente de consumidores finais, que, por isso mesmo, dela não se beneficiam (AI-AgR 671.412 Relator Min. Eros Grau; RE 255.673, Relator Min. Marco Aurélio; AC-MC 457, Relator Min. Carlos Britto; AI 488132, Relator Min. Marco Aurélio; AgRg no REsp 1.065.172, Relator Min. Francisco Falcão; RMS 19711, Relator Min. Humberto Martins; REsp 1000557, Relator Min. Castro Meira; RMS nº 7.044, Relator Min. Francisco Falcão e REsp 1033523, Relator Min. Humberto Martins e RMS 26578, Relator Min. José Delgado).
Diversamente, se a entidade de assistência social realiza o pressuposto da incidência tributária, hipótese em que então poderia assumir, em tese, a condição de contribuinte de direito, goza de imunidade na produção de bens ou prestação de serviços, pois, aí sim, o imposto estaria incidindo realmente sobre seu patrimônio (RE 193.969, Relator Min. Carlos Velloso; Emb. Div. nos EDcl. no RE 186.175, Relatora Min. Ellen Gracie; AgRg no RE 225.571, Relator Min. Carlos Velloso; AgRg no RE 452.031, Relator Min. Sepúlveda Pertence e AgRg no RE 141.670, Relator Min. Nelson Jobim).
O terceiro – adquirente da mercadoria ou tomador do serviço – só paga “preço”, nunca tributo devido, pois a responsabilidade pelo pagamento do imposto, como obrigação própria, ainda que indevido, é sempre do sujeito passivo, nunca do consumidor final.
Afasta-se, na forma exposta, qualquer dificuldade na solução correta para o tema da legitimação para agir na ação que envolva controvérsia sobre a legitimidade da incidência do ICMS sobre a operação que envolva a aquisição da titularidade da mercadoria ou sobre a utilização dos serviços de comunicação.
Incidência jurídica e incidência econômica do imposto são, portanto, fenômenos inconfundíveis, acarretando conseqüências jurídicas distintas, mas “infelizmente – e a advertência é de Souto Maior Borges – essas noções nem sempre foram estudadas pela doutrina com a necessária clareza, mesclando-se não raro conceitos econômicos e jurídicos, com o que se incorre numa indistinção conceitual danosa para o progresso do direito tributário”.
Não ostentando, então, o consumidor, incluídas nessa expressão a entidades políticas e as demais entidades beneficiadas com a imunidade tributária, a condição de contribuinte – status jurídico esse que lhe negou o direito material – visto que reservada à vendedora da mercadoria e ao executor do serviço, e em se acolhendo eventual pretensão nesse sentido, disso adviria um quadro curioso: afastada a exigência do ICMS, o vendedor da mercadoria ou prestador do serviço, conquanto contribuinte do imposto devido pela operação ou pela execução do serviço e obrigado a seu recolhimento – e terceiro em relação à lide – passaria, não obstante, a usufruir o direito postulado por outrem, forrando-se, por arrastamento, do pagamento do tributo, embora a sentença não possa beneficiar ou prejudicar quem não seja parte no processo (CPC, art. 472).
Decididamente, ao consumidor final, alheio à relação jurídica substancial e por não exibir a condição de pessoa legitimada para a ação, não é dado postular, em nome próprio, direito alheio, visto que, em caso afirmativo, estará atuando ao arrepio da vedação posta pelo art. 6º, do CPC. Impõe-se, então, preservar a coerência do sistema normativo.
Por conseguinte, quando, então, na experiência concreta, figura no processo algum sujeito a quem falta a “legitimatio ad causam”, a conseqüência, em face do dever-ser inobservado, é a pronúncia de carência de ação (Dinamarco).
Informações Sobre o Autor
José Benedito Miranda
Ex-Procurador do Estado de MG