Sumário: 1 Introdução; 2 Breve Histórico; 3 Lei Complementar superior à Ordinária; 4 A Nova Redação do Art. 174, p. un., I, do CTN; 5 Usurpação do Poder Legislativo; 6 Inaplicabilidade da Súmula 106/STJ; 6.1 Inércia da Fazenda Pública; 7 Violação ao Princípio da Segurança Jurídica; 8 Considerações finais; Referências Bibliográficas.
1 Introdução
Não é de hoje que se discute o instituto jurídico da prescrição. Conceito, distinção da decadência, termos a quo e ad quem, hipóteses de interrupção e suspensão, dentre outras peculiaridades que torna a prescrição um dos temas mais discutidos em nossos tribunais pátrios, sendo inclusive objeto de constantes modificações em nossa legislação.
No campo do Direito Tributário, não poderia ser diferente. Inúmeras são as discussões doutrinárias e jurisprudenciais acerca da prescrição. Cite-se, como exemplo, sua variação de acordo com os tipos de lançamento dos tributos, sua suspensão à luz do artigo 2º, § 3º, da Lei de Execução Fiscal – LEF, a atual redação do artigo 174, parágrafo único, inciso I, do Código Tributário Nacional – CTN, bem como a aplicabilidade da súmula 106, do Superior Tribunal de Justiça – STJ nas execuções fiscais.
O presente trabalho tem o escopo de demonstrar, em linhas gerais, que a aplicação da Súmula nº 106, do STJ, nas execuções fiscais, configura uma violação ao princípio da legalidade, principalmente após a alteração do artigo 174, parágrafo único, inciso I, do CTN.
2 Breve Histórico
Inicialmente, insta salientarmos que o advento da Súmula nº 106, do STJ, se deve à morosidade do Judiciário em citar o réu, o que acarretava prejuízo ao autor, em virtude da ocorrência da prescrição, cujos prazos e hipóteses de suspensão e interrupção estavam previsto no Código Civil. Assim, inúmeros autores perdiam seus direitos pela demora do Poder Judiciário de proceder à citação do réu, em que pese a ação ter sido ajuizada pontualmente.
Desta feita, o extinto Tribunal Federal de Recursos – TFR consolidou o entendimento, mediante a edição da Súmula n° 78, de que “proposta a ação no prazo fixado para o seu exercício, a demora na citação, por motivos inerentes ao mecanismo da justiça, não justifica o acolhimento da argüição de prescrição”.
O Superior Tribunal de Justiça, repetindo o texto da súmula do TFR, contemplou também a decadência, como se vê de sua Súmula nº 106:
“Proposta a ação no prazo fixado para o seu exercício, a demora na citação, por motivos inerentes ao mecanismo da Justiça, não justifica o acolhimento da argüição de prescrição ou decadência”.
Cumpre registrar que a mencionada súmula foi publicada no dia 03 de junho do ano de 1994, utilizando como referência legislativa os artigos 219 e 220, do Código de Processo Civil.
Note-se que tanto a referência legislativa quanto os precedentes utilizados para a edição da Súmula nº 106, do STJ, não possuem qualquer relação com a prescrição tributária ocorrida em sede de execução fiscal. Vejamos um dos precedentes utilizados:
DIREITO E PROCESSO CIVIL. PRESCRIÇÃO. DEFICIENCIAS DO APARELHO JUDICIARIO. INDENIZAÇÃO. PENSIONAMENTO. ORIENTAÇÃO DA TURMA. CORREÇÃO. SUMULA. PRECEDENTES. RECURSO DESACOLHIDO.
I – INOCORRE A PRESCRIÇÃO A QUE SE REFERE O ART. 219, CPC, QUANDO A DEMORA NA CITAÇÃO DECORREU DO MECANISMO JUDICIARIO.
II – SEGUNDO ORIENTAÇÃO QUE VEIO A PREVALECER NA TURMA, O PENSIONAMENTO E DEVIDO ATE A DATA EM QUE A VITIMA COMPLETARIA SESSENTA E CINCO (65) ANOS OU ATE A DATA DO FALECIMENTO DO BENEFICIARIO, PREVALECENDO O TERMO QUE PRIMEIRO OCORRER.
III – NOS TERMOS DO ENUNCIADO N. 43 DA SUMULA DO TRIBUNAL, “INCIDE CORREÇÃO MONETARIA SOBRE DIVIDA POR ATO ILICITO A PARTIR DA DATA DO EFETIVO PREJUIZO”. (STJ – RESP 19111 / SP – 4ª T. Rel. Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA. DJ 26.10.1992 p. 19057) (destaque ausente do original)
3 Lei Complementar superior à Ordinária
É importante esclarecer que, na época da edição da Súmula 106, ou seja, muito antes do advento da Lei Complementar nº 118/05, nas execuções fiscais, somente a citação válida teria o condão de interromper a prescrição, a teor do disposto na antiga redação do artigo 174, parágrafo único, inciso I, do CTN, não obstante o artigo 8º, §2º da LEF, prescrever que “o despacho do juiz, que ordenar a citação, interrompe a prescrição”.
A prevalência do CTN à LEF se funda na hierarquia das normas, no sentido de que aquele se trata de um regramento recepcionado pela Constituição Federal de 1988 com status de lei complementar, enquanto que a Lei de Execução Fiscal não passa de lei ordinária.
Superada esta premissa, tinha-se que apenas a citação válida poderia interromper a prescrição nos executivos fiscais, fato este que prejudicava deveras a arrecadação do Estado, em virtude da morosidade do Judiciário, assim como pela dificuldade de localizar o executado.
De fato, mesmo considerando o rito célere no procedimento instituído pela LEF, o Fisco, em determinados casos, era prejudicado, tendo em vista o ajuizamento da execução fiscal muito antes do transcurso do lapso prescricional. Todavia, o Judiciário demorava em citar o executado, que se beneficiava com a consumação da prescrição.
Em vista destas adversidades, malgrado todas as prerrogativas processuais benevolentes à Fazenda Pública, o Superior Tribunal de Justiça passou a aplicar a referida súmula nas execuções fiscais, conforme se pode observar de sua jurisprudência:
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO – EXECUÇÃO FISCAL – EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE – PRESCRIÇÃO – INTERRUPÇÃO – SÚMULA 106/STJ.
1. A jurisprudência desta Corte deixou assentado o entendimento de que é a citação o ato que interrompe a prescrição, mesmo diante da LEF, que atribui ao despacho do juiz tal efeito.
2. Contudo, proposta a ação no prazo fixado para o seu exercício, a demora na citação do devedor por motivos inerentes ao mecanismo da justiça, não justifica a decretação da prescrição – Súmula 106/STJ. Precedentes desta Corte.
3. Recurso especial improvido. (STJ – RESP 831171/RS – 2ª T. Rel. Min. ELIANA CALMON. DJ DATA:29/06/2006 PÁGINA:193) (destaque ausente do original)
4 A Nova Redação do Art. 174, p. un., I, do CTN
Com o surgimento da Lei Complementar nº 118/05, que alterou o inciso I, do parágrafo único, do artigo 174, do CTN, a interrupção da prescrição, na execução fiscal, ocorre com o mero despacho que ordenar a citação, in verbis:
Art. 174. A ação para a cobrança do crédito tributário prescreve em cinco anos, contados da data da sua constituição definitiva.
Parágrafo único. A prescrição se interrompe:
I – pelo despacho do juiz que ordenar a citação em execução fiscal;
Em assim sendo, considerando a novel redação do Código Tributário Nacional que estabelece como hipótese de interrupção da prescrição tributária o despacho citatório nas execuções fiscais, não há razão de subsistir a aplicabilidade da Súmula 106, do STJ, neste tipo de procedimento, mormente quando o Fisco foi bastante favorecido pelo legislador com a entrada em vigor da Lei Complementar nº 118/05.
5 Usurpação do Poder Legislativo
Admitir a aplicabilidade da aludida súmula em detrimento do disposto no artigo 174, parágrafo único, inciso I, do CTN corresponde ferir de morte o princípio da estrita legalidade, sobretudo no Direito Tributário. Na atual sistemática do ordenamento jurídico-tributário pátrio, é inconcebível que uma retrógrada súmula prevaleça sobre o Código Tributário Nacional.
Saliente-se que o Judiciário não é Legislativo! Um posicionamento jurisprudencial não pode se sobrepor ao texto legal. Pergunta-se: a quem devemos obedecer? À súmula ou à lei? Será que a mens legislatore (vontade do legislador) de nada valeria frente a um entendimento de um tribunal?
É o legislador quem detém a legitimidade do povo para estabelecer as normas legais a serem cumpridas. Ao Judiciário cabe interpretar e declarar a vontade da lei, mas não a substituir.
Vejamos o brilhante ensinamento do mestre Nelson Nery Junior[1] (2006, p. 336):
Juiz Legislador. O juiz deve aplicar o direito ao caso concreto, sendo-lhe vedado substituir o legislador, pois a figura do judge made law é incompatível com o sistema brasileiro da tripartição de poderes (RT 604/43). “O juiz deve aplicar a lei e não revogá-la a pretexto de atingir um ideal subjetivo de justiça” (RTJ 103/1262).
Ademais, a Constituição Federal, em seu artigo 146, inciso III, alínea “b”, preconiza que “cabe à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários”.
6 Inaplicabilidade da Súmula 106/STJ
Não há que se falar em aplicação da Súmula 106, do STJ, quando o CTN (lei complementar) já fixou qual o marco para a interrupção da prescrição nas execuções fiscais, qual seja, o despacho que ordenar a citação. Se assim não o fosse o legislador teria alterado o inciso I, do parágrafo único, do artigo 174, do CTN, com a seguinte redação: “A prescrição se interrompe com a propositura da execução fiscal”, o que não ocorreu.
Corroborando com este entendimento, trazemos à baila as lições do Mestre Leandro Paulsen[2] (2007, p. 1126), comentando acerca da não retração da citação ao ajuizamento da ação, nas execuções fiscais:
Inaplicabilidade da retroação ao ajuizamento da ação prevista no §1º do art. 219 do CPC. O CTN enquanto lei de normas gerais de Direito Tributário, sob reserva de lei complementar, e a LEF, enquanto lei processual especial, prevalecem sobre as normas gerais de processo estabelecidas pelo CPC. Assim, ainda hoje, não tem aplicação às execuções fiscais o disposto no §1º do art. 219 do CPC, que prevê que a interrupção da prescrição retroagirá à data da propositura da ação. Nas execuções fiscais, decorrido o prazo prescricional após o ajuizamento mas antes de proferido o despacho inicial que determinar a citação, cabe ao Juiz reconhecer de ofício, a prescrição, não havendo modo de vir a ser sanada.(destaque ausente do original)
Por outro lado, evidencia-se que a Súmula 106/STJ reconhece que não será acolhida a argüição de prescrição ou decadência quando houver, por motivos inerentes ao mecanismo da Justiça, demora na citação, e não no despacho que a ordená-la. Frise-se que a demora para prolatar o despacho citatório não foi contemplada na súmula, mas apenas a efetivação da citação.
Há uma nítida diferença entre o despacho e a citação. O primeiro corresponde a um ato do Juiz, e não da Justiça, enquanto que a citação significa um ato da Justiça pelo qual se chama a juízo o sujeito passivo da relação processual para apresentar sua resposta. Os conceitos dos institutos encontram-se estabelecidos nos artigos 162, §3º, e 213, caput, ambos do Código de Processo Civil – CPC.
Art. 162. Os atos do juiz consistirão em sentenças, decisões interlocutórias e despachos.
…
§ 3o São despachos todos os demais atos do juiz praticados no processo, de ofício ou a requerimento da parte, a cujo respeito a lei não estabelece outra forma.
Art. 213. Citação é o ato pelo qual se chama a juízo o réu ou o interessado a fim de se defender.
Resta patente que o despacho que ordenar a citação não corresponde a um “motivo inerente ao mecanismo da Justiça”. Tal expressão significa o ato de concretizar a citação, seja pelo envio de carta, oficial de justiça ou mediante publicação no edital. Assim, somente se a demora decorrer por falha ou atraso em quaisquer dessas situações, poderia ser aplicada a Súmula nº 106, do STJ, a depender do caso.
6.1 Inércia da Fazenda Pública
Em termos práticos, é cediço que as peças vestibulares nas execuções fiscais são formulários nos quais a Procuradoria insere apenas os dados do executado, o valor e origem do crédito tributário. Desta feita, não obstante o prazo qüinqüenal, o Fisco deixa para propor as ações faltando poucos meses para o transcurso do prazo prescricional, e se utiliza da Súmula 106, STJ, para que a argüição da prescrição não seja acolhida.
De mais a mais, quando a Fazenda Pública contribui para a ocorrência da prescrição, seja quando deixa para ajuizar a execução fiscal no último exercício ou quando propõem milhares de execuções simultaneamente, não há como ser aplicada a mencionada súmula.
Pensando nestas situações em que a Fazenda colabora com a morosidade na citação, os tribunais pátrios começaram a não aplicar a vergastada súmula do STJ, senão vejamos:
EXECUÇÃO FISCAL. EMBARGOS. PRESCRIÇÃO. ART. 2º, § 3º, E ART. 8º, § 2º, DA LEI N. 6.830/80.
1. A regra do art. 2º, §3º, da Lei n. 6.830/80, que determina a suspensão do prazo prescricional pela inscrição do débito em dívida ativa, resta afastada pelo art. 174 do Código Tributário Nacional, norma de hierarquia superior.
2. O art. 8º, § 2º, da LEF deve ser interpretado em harmonia com os dispositivos do Código Tributário Nacional.
3. Situação anterior à nova redação do art. 174, parágrafo único, inc. I, do CTN.
4. Decorridos mais de cinco anos entre a constituição definitiva do crédito tributário e a citação do sujeito passivo, cabível o acolhimento da prescrição, não cabendo invocar a Súmula nº 106 do STJ, pois não houve demora do Judiciário no cumprimento dos atos do processo. (TRF 4ª Região – AC 200570020021343/PR – 2ª T. Rel. Min. Des. Federal SEBASTIÃO OGÊ MUNIZ. DJU DATA:22/02/2006 PÁGINA: 467) (destaque ausente do original)
Em análise ao inteiro teor do julgado supramencionado, evidencia-se que a inaplicabilidade da súmula se deu quando houve culpa, ainda que mínima, da Fazenda em deixar transcorrer o prazo prescricional, como bem demonstra o voto do relator:
Entendo que não há como aplicar ao caso a Súmula nº 106 do STJ, que afasta o acolhimento da prescrição quando a demora na citação ocorre por “motivos inerentes ao mecanismo da justiça”, porque a prestação jurisdicional foi célere no caso dos autos. O que ocorreu foi que a Fazenda Nacional ajuizou a ação no último ano do prazo, faltando apenas cinco meses para a consumação da prescrição. Dessa forma, qualquer problema na citação, como acabou ocorrendo, frustraria a sua interrupção. (grifei)
Neste sentido, segue a jurisprudência do STJ:
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO – EXECUÇÃO FISCAL – PRESCRIÇÃO – INÉRCIA DA FAZENDA PÚBLICA – REVOLVIMENTO FÁTICO-PROBATÓRIO DOS AUTOS (SÚMULA 7/STJ).
1. Tendo a Corte de origem decidido soberanamente pela inércia da Fazenda Pública, ao afastar a aplicação da Súmula 106/STJ, a análise de tese em sentido contrário demandaria o reexame do contexto fático-probatório dos autos, procedimento este vedado pelo teor da Súmula 7/STJ.
2. Agravo regimental improvido. (STJ – AGRESP 712647/PE – 2ª T. Rel. Min. ELIANA CALMON. DJ DATA:13/02/2006 PÁGINA:760) (grifei)
7 Violação ao Princípio da Segurança Jurídica
Não pode o Fisco ficar indefinidamente sem promover a citação do executado, ao argumento de já ter proposta a execução fiscal no prazo para seu exercício, sob pena de flagrante violação a um dos maiores princípios constitucionais que é o da segurança jurídica. O executado não pode ficar a mercê da Fazenda “ad eternum”.
Nesta senda, anote-se a ilustre passagem do Ministro Luiz Fux[3]:
Permitir à Fazenda manter latente relação processual inócua, sem citação e com prescrição intercorrente evidente é conspirar contra os princípios gerais de direito, segundo os quais as obrigações nasceram para serem extintas e o processo deve representar um instrumento de realização da justiça. (destaque ausente do original)
Como se não bastasse essa visível transgressão ao princípio da segurança jurídica, devemos considerar que, se a Fazenda não pode ser prejudicada pela morosidade da Justiça, muito menos pode ser o executado, haja vista que este, sim, não deu qualquer causa para a demora na citação.
8 Considerações Finais
É bem verdade que a idéia trazida pela Súmula 106/STJ foi de não prejudicar a parte que não deu causa à ocorrência da prescrição. Sua aplicação seria perfeita para as questões cíveis, mas não no campo tributário.
Data máxima vênia, entendemos que não há como prevalecer o posicionamento sumulado pelo STJ quando já houve uma modificação no CTN que reduziu, de forma substancial, a consecução da prescrição.
Com a nova redação do CTN, que considera o despacho citatório nas execuções fiscais como causa interruptiva da prescrição, não se pode cogitar na aplicação da Súmula nº 106, do STJ, para que uma súmula não prepondere sobre o princípio da legalidade, tão desrespeitado nos dias atuais.
Informações Sobre o Autor
Nelson Henrique Rodrigues de França Moura
Advogado, sócio do Escritório Tarso, Moura & Villas Bôas – Advocacia, sediado em Maceió/AL, e Pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto de Ensino Luiz Flávio (IELF)