Resumo: No presente trabalho foi feita uma breve análise acerca dos juros. Nessa medida, o instituto foi conceituado e classificado, a fim de que se permitisse fácil entendimento acerca do tema a qualquer pessoa que tivesse acesso ao trabalho. Dentro da perspectiva conceitual, falou-se dos chamados juros compensatórios e dos juros de mora. Tal compartimentação foi elaborada em razão de ambos terem fundamentos distintos. Em que pesem produzirem frutos civis, os compensatórios decorrem da utilização da pecúnia por terceiros, enquanto os de mora derivam do inadimplemento da obrigação assumida. Superada a fase de classificação do instituto, partiu-se para a análise do mesmo em face da realidade jurídica nacional. Nesse momento foram traçadas ponderações legais e jurisprudenciais, destacando que há evidente descompasso entre o legislado e o praticado pelos integrantes do sistema financeiro nacional, atuação, em grande parte, legitimada pelo Supremo Tribunal Federal e o enunciado 596 de sua súmula. O enfrentamento legal do tema foi feito tendo em vista as disposições da Lei n. 3.071/16, Decreto 22.626/33, Lei n. 4.595/64 e do Código Civil de 2002: Lei n. 10.406. Também foram comentadas nos 1.963/00 e 2.170/01, eis que foram os primeiros diplomas legais (embora não sejam lei em acepção estrita) a tratarem da possibilidade de capitalização dos juros. Em todo o momento da redação, foi preocupação a questão social dos contratos bancários, o que se fez em razão de esses serem, na sua maioria, de adesão. Por essa razão questões constitucionais foram trazidas para o corpo da redação, principalmente os artigos 173 e 170 da Constituição da República Federativa do Brasil, eis que a limitação objetiva antes encontrada no artigo 192, § 3º dessa Carta Política restou revogado pela Emenda Constitucional 40 de maio de 2003.
INTRODUÇÃO
Em seu artigo 173, § 4º, assevera a Carta Política brasileira que a lei reprimirá o abuso do poder econômico que objetive dominar mercados, eliminar concorrência e aumentar arbitrariamente os lucros.
Nosso legislador inscreveu no corpo da Constituição da República Federativa do Brasil preceitos absolutamente alinhados com a função social, mas na realidade dotados de pouco conteúdo prático. Não que os princípios não sejam dotados de força normativa e cogente, mas por apresentarem caráter aberto dependem do caso concreto para surtirem efeito, às vezes negados por julgadores, ainda envolvidos em premissas fisiocratas e liberais do século XVIII e XIX.
Nessa linha, resta evidente que o objetivo do legislador constitucional foi dar alento a situações em que, até então, os contratos eram celebrados no interesse de apenas um dos contratantes, gerando ganho desproporcional em razão da imposição de um ônus exagerado para a outra parte.
No contexto vivido, a linhagem agora percorrida pelo texto constitucional vem a somar com disposições já assentadas em legislações infraconstitucionais, como a Lei 1.521/51 e o Decreto n. 22.626/33. Tais legislações já previam limites objetivos à questão dos juros. Ainda assim, do ponto de vista prático, pouco acresceram à prática bancária, sobretudo porque a vivência jurisprudencial das cortes superiores negaram efetividade ao que ali fora preconizado.
Feito as alusões introdutórias sobre o tema, faz-se necessário a apresentação do trabalho ao leitor. Sendo assim, aponta-se que este apresenta caráter predominantemente bibliográfico e jurisprudencial podendo se destacar referências econômicas conseguidas junto à mídia e simulações econômico-matemáticas visando a elucidar certas proposições de modo mais claro.
A finalidade deste trabalho final de curso é propiciar maior aprofundamento no conhecimento da questão dos juros, precisamente de sua limitação subjetiva para os integrantes do sistema financeiro nacional, uma vez que, com o advento do Enunciado 596 da Súmula do STF, nada de objetivo pode alcançá-los. Nessa esteira, o trabalho perpassa pela ponderação de interesses e aplicação de princípios como a razoabilidade.
No capítulo introdutório falar-se-á dos juros. A princípio de uma forma genérica, forma que ganha corpo com a conceituação do tema logo a seguir, conceituação que será seguida de uma classificação.
O segundo capítulo abordará especificamente a perspectiva histórico-legal dos juros no Brasil. Algumas legislações serão destacadas, como o Código Civil de 1916, o Decreto n. 22.626/33 e a Lei n. 4.595/64. Tais destaques serão feitos em razão de se poder detectar nessas legislações primazias notáveis.
Notável também é a Lei n. 10.406/02. Conquanto tratada ao longo do capítulo apresentado, não se reservou tópico especifico para cuidar de si. Tomou-se tal medida em razão da importância do diplomo transcender de tópicos, influenciando todo o corpo do trabalho.
O terceiro capítulo cuidará dos chamados contratos de Direito Privado e dos reflexos sociais que a oferta de crédito produz. Nesse ponto se notará um trabalho de construtivo visando a correlacionar spread, oferta de crédito, medidas anti-inadimplência.
1 DOS JUROS: UM BREVE CONCEITO
A origem[1] etimológica da palavra juros está no latim, onde se tem jure, ablativo de jus juris, significando direito. Da etimologia do termo se percebe alusão ao que é certo, direito. Justo, por assim dizer. Na lição de Keynes o “direito do credor no tempo”[2].
Bom seria que os juros tivessem, na prática, o que trazem implícito no conceito: noção de correição, justiça. Diz-se isto porque são a remuneração de quem ficou privado de um valor pecuniário para que alguém, que não o tivesse em um certo momento, pudesse utilizá-lo. Desta noção a proposição de Keynes apresenta-se absolutamente verdadeira. Juros significam a remuneração do credor pelo devedor em razão da privação de seu bem em um determinado lapso temporal.
A idéia de privação é fundamental, pois a partir desta é que se noticiam os chamados frutos civis. Os frutos civis têm o condão de premiarem quem sofreu com a privação. Nessa direção não há o que se questionar. A razoabilidade aponta justamente nesse sentido. O que não se deve perder de vista, entretanto, é que os juros são acessões. Como bens acessórios devem seguir ao principal, e não o contrário.
A noção de privação é referida no dicionário jurídico como sendo inversão de capital ou dinheiro. Nesse sentido é a referência de De Plácido e Silva aos juros. Verbis:
“Aplicado notadamente no plural, juros quer exprimir propriamente os interesses ou lucros, que a pessoa tira da inversão de seus capitais ou dinheiros, ou que recebe do devedor, como paga ou compensação, pela demora no pagamento que lhe é devido.”[3] (destacou-se)
A ciência jurídica, com apoio nas conceituações econômicas, qualifica os juros como sendo o preço do uso do capital. Fruto produzido pelo dinheiro, daí ser a expressão fruto civil corriqueira na doutrina. A um só tempo “remunera o credor por ficar privado de seu capital e paga-lhe o risco em que incorre de o não receber de volta.”[4]
Segundo escreve Frederico Caldas[5], o conceito econômico do juro se completa com critérios objetivos e subjetivos que, respectivamente, consistiam na escassez de capital e renúncia à liquidez monetária, aliada à oferta e procura da moeda em investimentos.
Sob a ótica civilista os juros são os frutos civis do capital. Desta consideração retoma-se ao que já se assentou: são bens acessórios. Consistem no rendimento do capital em razão da privação sofrida pelo seu dono. A privação do proprietário resta contraposta à disponibilidade do bem que é mero detentor.
Os juros são ditos frutos civis do capital. Remuneração pela disponibilidade de uma importância em dinheiro por determinado período de tempo. Por essa razão Pontes de Miranda[6] destaca o caráter remuneratório dos juros. De frutos pelo uso que o devedor faz do capital em razão de cobertura dos sacrifícios da abstinência e dos riscos sofridos pelo credor.
A noção de fruto civil não mais pode ser tomada como suficiente, eis que se encontram na doutrina proposições que alargam o conceito. Neste sentido sustenta o ministro do Superior Tribunal de Justiça Ruy Rosado de Aguiar que o juro “não significa apenas o fruto civil do capital, pois passou a ser importante instrumento de política monetária, juntamente com o câmbio, o comércio exterior e a regulação da moeda e do crédito, servindo para controlar o fluxo financeiro.”[7]
Prosseguindo apõe que outras variáveis além da frutificação do capital devem ser consideradas por ocasião da cessão do crédito: “para o cálculo dos juros, considera-se o custo de captação do dinheiro, a sobretaxa do banqueiro, a desvalorização da moeda e, por fim, os riscos operacionais, pois, quanto maior a possibilidade de inadimplência, maior o risco.”[8]
Do que se lê na obra do ministro Rosado de Aguiar, tem-se que para o cálculo dos juros devem ser consideradas numerosas variáveis: custo da captação do dinheiro, sobretaxa do banqueiro, desvalorização da moeda e riscos operacionais, onde se destaca a liquidez do tomador do empréstimo. A noção de provisão do crédito passa a ser relevante no momento do tomamento do dinheiro, pois quanto maior a liquidez do tomador, menor será a taxa aplicada à pecúnia que a si é cedida.
1.1 CLASSIFICAÇÃO
Os juros podem ter fundamentos diferentes. A lei e o contrato, normalmente. Desta premissa uma classificação pode ser efetuada. São legais, quando têm por fundamento norma estatuída pelo legislador, ou convencionais, erigidos nas hipóteses em que a base de sustentação é a comunhão de vontades.
Para que se sedimente a idéia aduzida no parágrafo anterior, aponta-se que quando os juros têm por base de existência disposições normativas são chamados de legais. Baseados em negócios sinalagmáticos, entretanto, consubstanciam os juros convencionais, em que pese se constatar que convenção, na realidade fática vivenciada, seja uma raridade, já que o mundo atual consagra a celebração de contratos de adesão.
Pelo exposto, é de se consignar que o termo convencional soa sem propósito em uma sociedade de consumo, caracterizada pela contratação onde uma das partes simplesmente adere ao pré-estabelecido. Nesse contexto a idéia de convenção que o termo contrato informa perde seu sentido, já que adesão e convenção são expressões divergentes.
No que concerne à finalidade, os juros são chamados de compensatórios ou moratórios. Na lição de Álvaro Villaça Azevedo e Luiz Antônio Scavone juros “compensatórios são devidos como compensação pelo uso do capital de outrem, e os juros moratórios, pela mora, pelo atraso em sua devolução.”[9]
Os juros remuneratórios têm o condão de compensarem, proposição que soa auto-explicativa. Trata-se de compensação civil em razão da privação, operacionaliza através da remuneração do capital pelo devedor. Os moratórios, em outro sentir, visam à punição, daí serem também conhecidos por juros punitivos.
A noção de punição em matéria de juros de mora é evidente, pois constituem indenização pelo atraso no cumprimento da obrigação. Não importa apenas o adimplemento. Esta deve ser tempestiva, sendo a intempestividade punida.
As classificações elaboradas podem ser sintetizadas na lição de Pontes de Miranda, que afirma serem os juros “o que o credor pode exigir pelo fato de ter prestado ou de não ter recebido o que se lhe devia prestar.”[10] Quando a exigência decorre do fato de ter prestado configura os juros compensatórios. Dizendo pertinência ao fato de não ter recebido configuram os chamado juros moratórios.
As classificações colacionadas não se excluem, uma vez que, tanto os juros compensatórios quanto os moratórios podem ser convencionais ou legais. A finalidade, compensar ou punir, pode ter por base a lei ou o contrato.
Essa proposição encontra inclusive respaldo sumular, tendo o Supremo Tribunal Federal se detido ao tema em seu enunciado de número 164, onde há alusão à possibilidade de os juros compensatórios poderem advir da lei, da convenção e até de decisão judicial. Este enunciado é importante, porque deixa aberta a possibilidade de o Estado-Juiz atuar em litígios que versem sobre a questão dos juros pretendendo estabelecer a proporcionalidade. Onde falha a lei e a vontade, restará a atividade judicial, inafastável pela própria essência, para coibir as situações de abuso: desvio do fim social e econômico do contrato sob a falsa aparência de legalidade que como conseqüência propicia o enriquecimento sem causa às custas de uma excessiva onerosidade para a outra parte.
Convém anotar, ainda, as proposições de Reinaldo Coser[11], que se refere aos chamados juros nominais e reais. Os juros reais revelam efetivo ganho do capital, já que em sua apuração se leva em consideração a variação inflacionária no período. Os nominais, a seu turno, refletem a variação do capital pelo incremento dos rendimentos, ignorando a manutenção do poder de compra. Dizem, simplesmente, quanto quer dizer R$ 100,00 (cem reais) submetidos à aplicação de juros de 10% (dez por cento), não importando ter sido a inflação do mesmo período 7% (sete por cento). Nesse caso o ganho real terá sido de R$ 3,00 (três reais), e o nominal de R$ 10,00 (dez reais).
1.2 JUROS COMPENSATÓRIOS: BREVES PONDERAÇÕES
Vistas as classificações atinentes aos juros, uma questão parece exsurgir: qual o tratamento nosso ordenamento jurídico resguarda para o conturbado tema “juros compensatórios”?
Em relação aos juros compensatórios, de há muito tem sido dito que nenhuma limitação afeta a estes atingiria o sistema financeiro nacional, entendimento sumulado pelo Supremo Tribunal Federal em 15 de dezembro de 1976 com a edição do enunciado de número 596, onde se lê que “as disposições do Decreto n. 22.626 de 1933 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições, públicas ou privadas, que integram o sistema financeiro nacional.”
Falar em sistema financeiro nacional impõe a que se analise a Lei n. 4.595, de 31 de dezembro de 1964. Esta, dispondo sobre a política e as instituições monetárias, bancárias e creditícias, cria o conselho monetário nacional e dá outras providências.
A lei em exame apõe em seu artigo primeiro e seus incisos quais seriam os membros a comporem o sistema financeiro nacional. Verbis:
“O Sistema Financeiro Nacional, estruturado e regulado pela presente Lei, será constituído:
I – do Conselho Monetário Nacional;
II – do Banco Central do Brasil;
III – do Banco do Brasil S.A.;
IV – do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social;
V – das demais instituições financeiras públicas e privadas.”
O conselho monetário nacional é o órgão deliberativo máximo do sistema financeiro, competindo-lhe estabelecer as diretrizes gerais das políticas monetária, cambial e creditícia, regulando as condições de constituição, funcionamento e fiscalização das instituições financeiras, além de disciplinar os instrumentos de política monetária e cambial.
Assentada as bases onde se estrutura o sistema financeiro, aponta-se que, sob a perspectiva de seus integrantes, assim como de renomados juristas, soaria contrário às normas mercadológicas qualquer limitação à cobrança de juros, como se depreende da lição de Arnold Wald, que vai além, apontando que a Lei de Usura restaria revogada em razão do tratamento exauriente dispensado pelo Código Civil vigente ao tema. Veja-se, pois, a referida lição:
“cabe reconhecer que é entendimento dominante que a Lei de Usura (Decreto 22.626, de 07.04.1933) está revogada, embora a ela ainda se faça numerosas referências e que possa ser aplicada em relação às situações que ocorreram até a entrada em vigor da nova legislação. Nem mesmo de vigência concomitante entre o Código Civil e a Lei da Usura, no tocante aos juros, se pode cogitar, pois a nova legislação tratou exaustivamente da matéria que constava da anterior. Descabe, pois, entender que sendo o Decreto 22.626 lei especial e o Código Civil diploma legal de caráter geral, não teria havido revogação da lei de usura. Ao contrário, a Lei de Introdução é clara: ‘a lei posterior revoga a anterior quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior’.” [12] (destacou-se)
Ora, uma vez que o atual Código Civil não revoga de forma expressa a Lei da Usura, temos que as legislações são compatíveis, inteligência do Superior Tribunal de Justiça esposada no REsp. 135.075-RS.
Vale lembrar que o Decreto n. 22.626/33 foi recepcionado como Lei, em razão do sistema legislativo vigente à época, e nunca foi considerado incompatível com o Código Civil de 1916, não havendo razão para se sustentar ser inconciliável com o Código Civil vigente. Nesse ponto merece ser transcrita a lição do professor André Franco Montoro em sua clássica obra Introdução à Ciência do Direito:
“Como se revogam as normas jurídicas? O princípio geral é o de que as normas se revogam por outras da mesma hierarquia ou de hierarquia superior. Assim, uma nova Constituição revoga a Constituição anterior e todas as leis, regulamentos, portaria, etc. que lhe sejam contrários, e passam a ser inconstitucionais. Uma lei ordinária revoga as leis anteriores e as normas de menor hierarquia como os regulamentos, portarias e outros preceitos inferiores contrários a suas disposições.”[13]
Assim apontamos que normas de igual hierarquia só se revogam quando trazem apontamentos divergentes. Desta forma parece-nos producente se sustentar haver complementaridade entre a Lei n. 10.406/02 e o Decreto n. 22.626/33.
Nada obstante, defende-se que a problemática dos juros deve ser resolvida dentro do Pacta Sunt Servanda. Dentro das leis da oferta-e-procura, como quis a ideologia liberal no pós Revoluções Burguesas do século XVIII, pois, conquanto vigente a Lei de Usura, sua aplicação foi mitigada pelo STF e seu enunciado 596.
Contrapondo-se à idéia liberal, tem-se que, pretendendo a afirmação de prerrogativas pós-materiais, o interesse de cada um deve ser visto sob a perspectiva coletiva. Certamente são perspectivas diametralmente opostas, pelo que demandam uma ponderação de interesses. Essa ponderação se justificada pela necessidade de equilíbrio nas relações, equilíbrio consagrador da razoabilidade e proporcionalidade, princípios constitucionais que são verdadeiros pressupostos de relações que se pretendam justas.
Vê-se, assim, que o direito, no decorrer dos tempos, variou muito nessa seara. Teve-se um momento de vedação à cobrança de juros, outros de estabelecimento de taxas máximas, assim como períodos de total liberalismo. Nesse momento merece destaque as premissas fisiocratas e liberais do século XVIII, onde qualquer limitação contrariaria ao Laissez-faire, laissez passer, ne pas trop gouverner. A ciclicidade histórica, todavia, acabou consagrando a volta de um modelo chamado “liberdade vigiada”, típica do modelo preconizado na constituição Weimariana, batizado de welfare State – estado do Bem-Estar Social. Neste se permite a estipulação dos juros, porém, atrai-se a atuação do Estado aos casos de notórios abusos.
A Constituição de Weimar, datada de 1919, vem para realizar o compromisso de harmonização dos Direitos Individuais, inscritos nas primeiras Cartas, com os direitos decorrentes do constitucionalismo social, surgido na proposição de que a felicidade dos homens não é alcançada apenas contra o Estado, mas, sobretudo, em razão da atuação estatal.
Com isso o Estado se volta para o social, ampliando o conteúdo dos Direitos Fundamentais. Além dos Direitos Individuais e Políticos, afirmados na gênese das democracias liberais, restam consagrados os Direitos Sociais. Nesse sentir cumpre trazer à colação o entendimento esposado por Boris Mirkine-Guetzevitch, que, muito claramente, escreve sobre o tema em estudo. Verbis:
“É em matéria de Direitos do homem que essas Constituições de após 1918 são particularmente inovadoras. Sua principal contribuição é o alargamento do catálogo clássico: novos direitos sociais são reconhecidos, aparecem novas obrigações positivas do Estado. (…) Os textos que daí decorrem, começam a ocupar-se menos do homem abstrato do que do cidadão social.”[14] (destacou-se)
Do ponto de vista cronológico a Constituição de Weimar é a primeira no continente europeu a reservar lugar para os Direitos Sociais, sendo dessa forma paradigma para uma série de novas Cartas. É a primeira Constituição Social européia. Matriz do novo constitucionalismo social. Ainda que posterior à mexicana, conforme anúncio de Ana Maria Correa, é a constituição que veio “marcando o início do Estado Social, preocupado com os problemas sociais.”[15]
A Constituição de Weimar marca o início dos chamados Direito Humanos de segunda geração, que determinam prestações positivas do Estado. Nesse ponto se opõe aos de primeira geração, onde a função estatal deveria se limitar à abstenção, já que as Leis de Mercado regulariam o funcionamento da sociedade.
Os Direitos Humanos de primeira e segunda geração tiveram inegável importância histórica. Nada obstante, não mais atendem às demandas da sociedade moderna. Por isso mesmo foram valorados pelos Direitos Humanos de terceira geração. Nestes restam fundidas as características das gerações anteriores, pelo que trazem consigo comandos negativos e positivos, pressupondo, desta forma, o fortalecimento das prerrogativas e do poder de iniciativa das instituições encarregadas de promover a proteção do patrimônio histórico, cultural e ambiental e o reconhecimento dos interesses pós-materiais[16].
Os chamado Direitos Humanos, quando envolvem questões econômicas, impõem a perspectiva John Nash: o melhor para o indivíduo só o será se não contrariar os interesses do grupo – o equilíbrio de Nash.
As idéias consignadas no parágrafo anterior são compreendidas com maior clareza ao se observar o filme “Uma Mente Brilhante”, onde o ator a interpretar John Nash sugere que não seria bom para o grupo todos se embaterem almejando o mesmo bem. A convergência de pretensões acabaria por levar à segregação do grupo em razão da disputa, pelo que se chegou à proposição no sentido do equilíbrio. Cada um cede um pouco e todos acabam ganhando, idéia que nem de longe passa pelos contratos bancários, na maioria dos casos escorchantes.
Pelas razões aduzidas o liberalismo burguês tem de ceder lugar ao regime da função social, pois a norma obriga, não simplesmente porque é válida, mas porque contém valor. Obriga por ser justa e por ser legítima.[17]
Este regime é aventado na Lei n. 10.406/02 como sendo um meio de tornar os contratos dignos. No artigo 421 estatui que a liberdade de contratar deve se dar “em razão e nos limites da função social do contrato”. No 187 apõe-se que: “comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
Na mesma lei encontra-se ainda a vinculação da propriedade à função social, o que se fez no artigo 1228, § 1º. Nesse sentido é de se destacar que as proposições do Código Civil vão ao encontro do asseverado na Constituição da República Federativa do Brasil, precisamente seu artigo 170, que pela significância merece ser colacionado:
“A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I – soberania nacional;
II – propriedade privada;
III – função social da propriedade;
IV – livre concorrência;
V – defesa do consumidor;
VI – defesa do meio ambiente;
VII – redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII – busca do pleno emprego;
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.” (destacou-se)
Nosso Estado Social de Direito impõe a que a ordem econômica tenha por fundamento a valorização do trabalho, a livre iniciativa e a justiça social. Trata-se de um Estado Social que prima pela função social, apontando assim na direção da eticidade, que é princípio informador da boa-fé objetiva. Aponta também para a socialidade, com a qual se suplanta um modelo individualista, superado pela convocação comunitária no sentido de se atender às demandas do grupo como sendo prioritárias. Por fim aduz à operabilidade, que estabelece a autêntica realização da justiça.
Dentro desse contexto de valoração, a dignidade deve ser trazida para qualquer realidade que pretenda estar alinhada com os ditames constitucionais. Não há dúvidas de que o sistema de crédito é mola propulsora da economia. Na mesma direção é fato que uma considerável monta das transações comerciais se operam mediante crédito, e não apenas pelo dito “dinheiro vivo”. Como observa Joseph Stiglitz, professor de economia da Universidade de Colúmbia e Prêmio Nobel da disciplina em 2001, “o crédito determina os rumos da economia”[18]. Mas até quando? Não é preciso que cuidemos da razoabilidade?
No Brasil a razoabilidade começa a alcançar relevo na jurisprudência. Foi assim que na ADIN 855-2, proveniente do estado do Paraná se julgou inconstitucional, por notória desproporcionalidade, lei do estadual que impunha a pesagem de botijões de gás na presença do cliente no ato da venda. Na ADIN 1158-8, oriunda do estado do Amazonas, também com base na razoabilidade, entendeu-se desproporcional lei estadual que concedia aos aposentados adicional de férias tal como aos trabalhadores da ativa.
Certamente as ADINs trazidas para o corpo do trabalho não possuem objetos diretamente correlatos ao tema juros, mas, por terem sido decididas com base em preceitos constitucionais informadores da justiça, parece-nos producente se chamar atenção para o fato de que, ainda que não exista limitação objetiva à cobrança de juros pelos integrantes do sistema financeiro nacional, isto não quer dizer que possam exceder da razoabilidade.
Mesmo sendo a razoabilidade conceito de caráter indeterminado e de formulação abstrata, que apenas o caso concreto permite sua interpretação, sua noção no âmbito civilista pode ser delimitada dentro da perspectiva de acessório e principal.
O mais pode conter o menos, mas o menos não contém o mais por limitação filosófica objetiva. O princípio do ser é claro: não se pode ser e não ser ao mesmo tempo. Dessa noção se apõe que os juros são acessórios, não podendo suplantar o principal em um período curto de tempo, como se tem visto na prática.
Como existe limitação sumular a que se proceda à capitalização de juros em período inferior a um ano, entendemos que esse mesmo lapso deve ser o mínimo de tempo para que o acessório possa ser equiparado ao principal. Nesse sentido pode-se se dizer que o princípio da razoabilidade pode ser chamado, sim, para coibir abusos, permitindo se trazer equilíbrio para as relações jurídicas.
Os bancos dispõem da faculdade de fazerem o poder de compra viajar no tempo: permitem a quem não tem determinado valor em um momento ter o bem da vida almejado. Adiantam recursos para a efetivação do gasto e intermedeiam o processo de geração e utilização de renda. Não são fins em si próprios. Na verdade têm sua existência e lucratividade calcada no processo de intermediação.
Não obstante a noção de intermédio, as instituições financeiras, por determinação do artigo 17 da Lei 4.595/64 são empresas que trabalham na intermediação de capital, recebendo e repassando numerário, a prática consagra serem os bancos o mais rentável segmento do mercado brasileiro. Não há o que se opor ao lucro, afinal vivencia-se o capitalismo, e este é da sua essência. Não se trata de fazer apologia contra o sistema, mas é preciso que se tenha arraigada a idéia de que juros são acessórios, e sua etimologia aponta no sentido do que é justo. Não nos parece defensável o spread bancário brasileiro, um dos maiores do mundo.
Nas operações bancárias, no contexto dos chamados juros remuneratórios, existe uma variável a que se denomina spread bancário. Trata-se da margem de lucro na prestação do serviço bancário, ou seja, a diferença entre o que o banco paga para captar numerário (poupança, fundos de renda, previdências complementares etc) e o cobrado por ocasião do empréstimo a quem os procura, como os usuários de cheque especial, rotativo de cartão de crédito, financiamentos, dentre muitos.
A noção de spread pode ser mais bem compreendida com as informações disponibilizadas pelo Instituto de Desenvolvimento e Estudos Aplicados à Seguridade em sua página na internet, que pela clareza e conteúdo tomamos a liberdade de trazer para o corpo da redação. Vejamos:
“Do inglês margem adicional. Muito utilizado no mercado de renda fixa, o conceito de spread especifica qual margem adicional deve ser paga por um devedor em relação a uma taxa de referência. No caso de Eurobonds, por exemplo, as condições de mercado determinam que a empresa ABC deve pagar um spread de 4% acima da taxa referencial de prazo equivalente (Títulos do Tesouro norte americano, por exemplo). O spread se altera de acordo com uma série de variáveis, sobretudo qualidade de crédito do emissor, condições de mercado, volume e liquidez da emissão ou empréstimo, prazo etc.” [19]
Para elucidar as proposições tracejadas, um investidor recebe das instituições financeiras percentual que atinge, em uma perspectiva otimista, 1,5% (um e meio por cento) ao mês. Em outro giro, ao emprestar via cheque especial, as mesmas instituições cobram taxas que variam entre 7 e 10% ao mês. Há que se destacar ainda que, não obstante o expressivo valor nominal, os juros são capitalizados. Assim, o valor de 8,5% ao mês perfaz ao final de um ano R$ 166,17%, pois a metodologia utilizada é a price, onde a remuneração dos juros antecede à remuneração do capital.
Tendo em vista a imposição da interdisciplinaridade pela perspectiva acadêmica, parece-nos producente se trazer para o corpo da redação a proposição do professor Mario Geraldo Pereira, citado por José Dutra Vieira Sobrinho na obra Matemática Financeira, sobre a Tabela Price. Sua lição aponta no seguinte sentido:
“a denominação Tabela Price se deve ao matemático, filósofo e teólogo inglês Richard Price, que viveu no século XVIII e que incorporou a teoria dos juros compostos às amortizações de empréstimos (ou financiamentos). A denominação “Sistema Francês”, de acordo com o autor citado, deve-se ao fato de o mesmo ter-se efetivamente desenvolvido na França, no Século XIX. Esse sistema consiste em um plano de amortização de uma dívida em prestações periódicas, iguais e sucessivas, dentro do conceito de termos vencidos, em que o valor de cada prestação, ou pagamento, é composto por duas parcelas distintas: uma de juros e uma de capital (chamada amortização).” [20]
Colacionadas as definições conceituais do sistema price, procede-se agora à feitura de uma tabela onde se simula a contratação de empréstimo de R$ 100,00 (cem reais) para ser pago ao final de um ano. Os juros contratados seriam de 8,5% a.m., que ao final de um ano perfariam 166,17%. Observe-se a evolução do débito:
Feita a definição técnica que se apresentou pertinente, pode-se apontar que há notável desequilíbrio nessa relação jurídica. Notabiliza abuso do poder econômico que deve ser afastado, como se conclui da leitura do artigo 173, §4º da Constituição da República Federativa do Brasil, que ora se transcreve:
“Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.
§ 4º – A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.”
(destacou-se)
O empréstimo de R$ 100,00 (cem reais) trazido à colação importaria em dívida de R$ 266,17 (duzentos e dezesseis reais e dezessete centavos) para o consumidor. Isto em uma situação hipotética de não-existência da Taxa de Abertura de Crédito e de tributos como o IOF e CPMF, o que não é o caso. Cento e sessenta e seis reais e dezessete centavos, os juros por si somente, suplantam o principal, capital, em mais de 66% (sessenta e seis por cento), caracterizando evidente falta de proporcionalidade, onde o acessório seria muito maior que o principal.
O mesmo empréstimo, na hipótese de vir a ser pago em prestações mensais, iguais e sucessivas, implicaria em valor da ordem de R$ 13,62 (treze reais e sessenta e dois centavos), conforme se depreende da tabela a seguir, elaborada com vias a se ter um saldo zero ao final de doze meses. Vejamos:
É verdade que hoje não mais se tem o limitador constitucional à cobrança de juros. Nada obstante, é de se salientar que valores como os referenciados não são realidade apenas no período pós Emenda Constitucional 40 de maio de 2003. São valores corriqueiros desde a estabilidade trazida pela implementação do real em 1994. Por essas, os bancos brasileiros são dos mais rentáveis do mundo, como se conclui da notícia veiculada pela Revista Forbes em sua versão eletrônica. Verbis:
“Os resultados recordes obtidos em 2005 colocam Bradesco e Itaú entre os dez bancos mais rentáveis da América. Juros altos e a mudança do crédito, que realizou mais operações com pessoas físicas, foram os responsáveis por esses números. Os números são magistrais. Pelos resultados obtidos em 2005 os dois grandes bancos privados brasileiros, com ações cotadas em bolsa (Bradesco, lucro de R$ 5, 514 bilhões e Itaú R$ 5, 251 bilhões), classificam-se entre os dez mais rentáveis da América Latina e dos Estados Unidos. O Bradesco ficaria em 8º e o Itaú em 9º. O Banco do Brasil (R$ 4, 154 bilhões) ocupa o 12º posto. Quanto ao Unibanco (lucro de R$ 1, 838 bilhão) e Santander Banespa (R$ 1, 744 bilhão, não incluindo a holding Santander), ficam entre os trinta mais rentáveis desse universo (o Unibanco em 24º e o Banespa em 29º). Os cálculos são da Economatica, cujo presidente, Fernando Exel, prevê que ‘os bancos brasileiros vão bater recordes de lucros enquanto os juros forem altos e o spread for tão elevado’.”[21] (destacou-se)
Essa rentabilidade é possível por duas razões fundamentais: de um lado juros altos sobres os quais não pairam nenhuma regulamentação; do outro a vivência do anatocismo de forma que absoluta.
A capitalização em matéria de juros remuneratórios é fato. Anatocismo, em que pese a existência do enunciado 121 do Supremo Tribunal Federal (“é vedada a capitalização de juros, ainda que expressamente convencionada”), é um dos grandes responsáveis pelas altas rentabilidades do sistema financeiro. Tanto o é, que, em um caso como o colacionado a diferença nominal entre a cobrança de juros capitalizados e não-capitalizados seria, ao final de um ano, 64,17%.
A diferença que ora se apõe significa 21,39 vezes o valor do rendimento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, valor a que o empregado se vê compulsoriamente obrigado a ceder ao sistema financeiro nacional, remunerado com a expressiva soma de 3% ao ano!
Teleologicamente o FGTS tem um papel social relevante, já que é meio de fomento do sistema habitacional brasileiro. Nada justifica, contudo, um valor tão sem expressão, já que quando se deve à Fazenda, o índice aplicado é muito maior. Em um cenário muito positivo, sem discussões pré-eleitorais, de risco país baixo, inflação sob controle, Congresso Nacional sintonizado etc, pelo menos 15% a.a., referente à taxa SELIC – Sistema Especial de Liquidação e Custódia.
A diferença de 64,17% ao ano a que se fez alusão é percebida em simples cálculo aritmético, onde 8,5% ao mês montaria 102% ao ano: 8,5 x 12 = 102. Em um período curto, de apenas um ano, a diferença entre um sistema que permite a capitalização (8,5% a.m = 166,17% a.a.) e outro que prima pela não-capitalização (8,5% a.m = 102,00 a.a.) é de 64,17%. Conclui-se, com isso, que, tão maléfica quanto a cobrança de juros em valores desproporcionais e descompassados com a realidade sócio-econômica brasileira é a capitalização dos mesmos.
1.3 JUROS MORATÓRIOS E MULTA DE MORA
No que concerne aos juros moratórios é importante se entender o artigo 406 da Lei n. 10.406/02, onde se estatui que:
“Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.”
Quanto à Fazenda Nacional, tem procedido a Receita Federal no sentido de que os tributos pagos em atraso devem ser acrescidos de juros de mora em percentual equivalente à taxa referencial do SELIC acumulada mensalmente. O referencial SELIC é aplicado aos meses subseqüentes ao vencimento, já que, no mês do inadimplemento, os juros de mora adotados são de 1% (um por cento), aplicados de forma proporcional. Na construção latina, pro rata die, ou seja, na razão dos dias de atraso.
O entendimento aludido tem por base as disposições da Lei n. 9.605/95, que em seu artigo 13 determina que a taxa de juros moratórios dos tributos devidos à Fazenda Nacional é equivalente à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia acumulada mensalmente.
O conceito mais compreensível da Taxa SELIC é o encontrado nas Circulares do Banco Central nos 2.868 e 2.900 de 1999. Destas circulares pode ser definida como sendo a taxa média ajustada dos financiamentos diários apurados no Sistema Especial de Liqüidação e de Custódia para títulos federais. A taxa em exame é, portanto, um indicador da taxa média de juros nas operações chamadas overnight, com a qual se objetiva cobrir a defasagem da moeda causada pela inflação e remunerar os investidores. Ademais é um referencial que reflete a liquidez dos recursos financeiros no mercado monetário.
Vista a determinação do Código Civil em seu artigo 406, é preciso se descrever qual tem sido a aplicação prática deste. No curso dessa descrição nos deparamos com o enunciado de número 20, proveniente do Conselho da Justiça Federal, onde se lê que: “a taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 é a do art. 161, § 1º, do Código Tributário Nacional, ou seja, 1% (um por cento) ao mês”. O parágrafo primeiro do artigo 161 aponta que: “se a lei não dispuser de modo diverso, os juros de mora são calculados à taxa de 1% (um por cento) ao mês.”
Como se percebe, há divergência entre o asseverado na Lei n. 9.605/95 e o entendimento emprestado ao artigo 406 do Código Civil pelo Conselho da Justiça Federal, cabendo se destacar que, em razão de não ter havido pronúncia do Superior Tribunal de Justiça, responsável por pacificar e harmonizar a convivência das normas federais, sobre o assunto, não se tem como dar por definitivo um ou outro entendimento.
Ainda que o Superior Tribunal de Justiça não tenha se manifestado especificamente sobre o tema, parece-nos mais producente a aplicação dos preceitos contidos no Código Tributário Nacional, posto que, além de ter sido o código referido recepcionado como Lei Complementar quando da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, atende ao postulado da segurança jurídica. Permite a que o devedor possa saber de antemão quais encargos recairão sobre o inadimplemento a que deu causa, possibilitando que os cidadãos vivam com segurança e previsibilidade.
Não obstante o silêncio[22] do pleno do Superior Tribunal sobre a matéria, vale comentar a negação da aplicação da SELIC em acórdãos a tratarem de repetição de indébito em matéria tributária. No mesmo sentido da garantia da segurança jurídica, tem-se aduzido a imprestabilidade da UFIR para medição da inflação passada, conforme os Recursos Especiais 198.450-RS, 198.489-PR; 200.255-PR, 202.633-PR, 203.315-PR, 210.645-PR e 202.035-PR.
O entendimento negando a aplicação da SELIC tem por base a não-existência de disposição legal definindo essa taxa, prevista apenas em resoluções e circulares do Banco Central. Baseia-se ainda na consagração da ilegalidade da Taxa ANDIB/CETIP pelo verbete 176 da súmula do Superior Tribunal de Justiça, taca esta que é similar à SELIC.
Feitos esses apontamentos, dirige-se a atenção do trabalho para outro tema relacionado à questão da mora: a multa. Nesse momento se assenta a necessidade de não se confundir juros e multa de mora. Como já dito, os juros de mora dizem respeito à punição aplicada ao inadimplemento que se difere no tempo. São aplicados de forma proporcional à intempestividade, já que visam à punição do atraso protraído. Em outra direção a multa de mora se manifesta pelo ato do atraso, não importando o quantum deste. Importa saber se ocorreu ou não.
Em matéria de direitos consumeristas não se pode fazer nenhuma análise afeta à multa de mora sem que se analise a Lei n. 9.298/96. Esta, ao alterar o Código de Proteção e Defesa do Consumidor em seu artigo 52, trouxe apontamentos no sentido de limitar a multa de mora ao patamar de 2%. É de se destacar que essa limitação vai de encontro ao regime anterior, no qual a multa de mora nas relações envolvendo consumo era de 10%.
O novo regime acerca da multa de mora do CDC merece ser comentado. Por isso aferimos ter havido por parte do legislador notada compreensão histórica do momento vivenciado. O valor de 10% era razoável para o ano de 1990, em que a inflação mensal era de até 80% a.m. Nesse contexto 10% é um valor razoável. A norma era legítima para o momento de sua criação, mas deixou se ser com a estabilidade econômica trazida pelo plano real, com a qual a inflação anual passou a ficar na casa de um dígito.
No sentido do que se esposou no parágrafo pretérito, merece destaque a postura do legislador no sentido de trazer novos limiares para as relações de consumo, limiares certamente melhor compassados com a realidade econômica vivenciada.
Saindo do diploma civilista, direciona-se a atenção sobre o tema para a perspectiva conferida pelo Código Civil, que cuida do tema em seu artigo 1336, onde se lê que:
“ São deveres do condômino:
§ 1o O condômino que não pagar a sua contribuição ficará sujeito aos juros moratórios convencionados ou, não sendo previstos, os de um por cento ao mês e multa de até dois por cento sobre o débito.” (destacou-se)
Em que pese a situação encontrada no Código Civil ser bem específica, relacionada às dívidas condominiais, serve ao presente trabalho por auxiliar na tentativa de se estabelecer dogmaticamente um conceito de multa de mora.
Para se elucidar o tema de forma conclusiva, tem-se que os juros moratórios são devidos pelo inadimplemento diferido no tempo, enquanto a multa de mora decorre do fato atraso. Tais assertivas são verdadeiras e se sustentam de forma absoluta em sede de direito privado. Nada obstante, sendo credora a Fazenda Pública, a multa de mora é cobrada à razão de 0,33% por dia de atraso a partir do primeiro dia útil subseqüente ao do vencimento até o adimplemento, limitada a 20%. Nas relações entre particulares o Poder Público diz que o limite é de 2%. Para ele, contudo, esse limite pode ser dilatado até 20%.
2 PERSPECTIVA HISTÓRICO-LEGAL DOS JUROS NO BRASIL
O estudo do tema juros no Brasil impõe uma análise legislativa cuidadosa, face à diversidade de normas que cuidam do tema. Essa diversidade acaba por criar um clima de insegurança jurídica, pois não se sabe com precisão que normas se aplicam ao caso prático.
Nessa seara, parece-nos, que, os únicos beneficiados são os integrantes do sistema financeiro, que amoldam as normas legislativas e os entendimentos jurisprudenciais, até mesmo os sumulados, ao sabor de seus interesses.
Quando um verbete interessa, como o 596 do Supremo Tribunal Federal, que autoriza a cobrança dos juros que se quer, é louvado. Do contrário é ignorado de forma solene, caso do de número 121 da mesma corte, pelo qual, expressamente, se impede a capitalização dos juros.
A verdade é que no Brasil, historicamente, nosso sistema legal é por demais permissivo com os integrantes do sistema financeiro. Tanto é verdade que se pode trazer à colação legislação do início do século XIX autorizando a livre estipulação de juros pelas partes, conforme se conclui da leitura da Lei de 24 de outubro de 1932. Essas determinações são o gênese de um sistema que é recorrente, o qual, por sua complexidade, impõe uma análise detida, pelo que, feitos os comentários iniciais, passa-se ao enfrentamento histórico.
2.1 JUROS NO CÓDIGO CIVIL DE 1916
O primeiro Código Civil brasileiro – Lei. N. 3.071 de 1º de janeiro de 1916, ora ab-rogado – foi um diploma que em muito se preocupou com a questão dos juros. Tal assertiva encontra respaldo na expressa redação de alguns de seus dispositivos, notadamente os artigos 1062, 1063 e 1064.
Da leitura do código em exame, pode-se aferir a expressa alusão ao fato de que os juros remuneratórios subsidiários, determinados por lei na omissão das partes, seriam de 6%[23] ao ano. Aduz que deveriam ser de 0,5% ao mês, vedada a capitalização de juros. Do contrário, ter-se-ia ao final de doze meses 6,16778%, e não 6%, com o querido pela lei. O valor referido pode ser entendido com a explicitação mensal da capitalização na tabela a seguir:
Ainda que o diploma em comento tenha surgido em um ambiente de primazia da ideologia liberal, foi incisivo na negação do anatocismo. Este instituto, na verdade, não encontra abrigo em nenhuma lei brasileira em sentido estrito. Sua possibilidade, cada vez mais aventada, destacando que sempre foi prática do sistema financeiro nacional, opera-se em um contexto de “confusão entre o legislativo e o executivo”.
Esses apontamentos podem ser compreendidos com a leitura da Medida Provisória n. 2.170/01, manifestação efetiva de um “super executivo”. Resultado da assunção de função de um poder por outro, em sinal de claro quebrantamento da partição de poderes. Resta claro que o poder é uno. Resta claro também que este se triparte para que possa ser exercido de forma harmônica. Nesse caso a harmonia parece ter sido esquecida. O que se tem, verdadeiramente, é uma notória imiscuidade desprovida de qualquer fundamento de legitimidade, pois nem com poderes titânicos se consegue perquirir de relevância e urgência nesse caso.
A Medida Provisória n. 2.170/01 admite a capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano nas operações realizadas pelas instituições integrantes do sistema financeiro nacional, como se depreende de seu artigo 5º, verbis: “nas operações realizadas pelas instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional, é admissível a capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano.”[24]
A Medida Provisória é um instrumento normativo que tem por finalidade criar com celeridade uma regra jurídica dentro do ordenamento, desde que presentes os requisitos urgência e relevância. Por certo são conceitos de caráter indeterminado e formulação abstrata, que apenas o caso concreto permite sua interpretação. Nesse sentir mostra-se necessária a lição do professor Osíris Lopes Filho, onde se lê que:
“A medida provisória é instrumento normativo de natureza excepcional, admitida em casos de relevância e urgência (art. 62 da CF). Caracteriza-se por sua precariedade, eis que pode ser recusada pelo Congresso. A reedição exacerbada, como vem sendo feita, revela cínica inversão da sua provisoriedade (…) É a repetição da alquimia que tem sido praticada por esse governo. O provisório torna-se permanente. A deformação do uso das medidas provisórias acarreta violação do processo legislativo, como concebido na Constituição. É um garroteamento da competência do Congresso de elaborar leis.”[25]
Ainda que nunca tenha encontrado abrigo em leis no nosso ordenamento pátrio, a capitalização é prática absolutamente corriqueira na atividade bancária, vide a utilização quase que unânime da tabela price nos contratos. Mesmo antes da possibilidade trazida pela Medida Provisória n. 1.963/00, a regra vivenciada sempre foi a da capitalização.
Em se tratando de capitalização, merece ser analisada a Lei n. 10.931/04, que no seu artigo 28, § 1º, I, autoriza o pacto da capitalização na Cédula de Crédito Bancário. Veja-se:
“Na Cédula de Crédito Bancário poderão ser pactuados: I – os juros sobre a dívida, capitalizados ou não, os critérios de sua incidência e, se for o caso, a periodicidade de sua capitalização, bem como as despesas e os demais encargos decorrentes da obrigação.”
Sendo assim, encontra-se expressamente permitida a capitalização de juros em matéria em sede de Créditos Bancários, proposição que encontra amparo no enunciado 93 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça, onde já expressa admissão na capitalização dos juros quando se tratar de títulos de crédito.
Trata-se de exceção a regra, que por isso mesmo só pode ser tomada por legítima quando expressamente prevista. Nesse sentido é de se ressaltar que há dois modos fundamentais para a formalização de contratos junto aos partícipes do sistema financeiro nacional, a saber o contrato de mútuo, artigo 586 do Código Civil, e o título de crédito, artigo 887 e seguintes do mesmo diploma.
O mútuo é o empréstimo de coisas fungíveis. O título de crédito é documento representativo do direito literal, carturário, abstrato e autônomo. Por isso seu conteúdo produz todos os efeitos em si formalizados no caso de se ter observado a prescrição legal para a sua confecção.
Nas operações de crédito em geral, as instituições financeiras utilizam a Cédula de Crédito Bancário. Trata-se de título de crédito criado pela Medida Provisória n. 1.925/99, posteriormente regulamentada pela MP n. 2.160/01. Por fim foi disciplinada pela Lei n. 10.931/04, primeira lei em sentido estrito a prever em seu corpo a possibilidade de capitalização em períodos inferiores a um ano.
Retomando a linhagem histórica antes proposta, apresenta-se necessária a análise de alguns dos dispositivos do Código Civil de 1916. Seu artigo 178, tratando da prescrição, assim determinava:
“Prescreve:
§ 10 – Em 5 (cinco) anos:
III – Os juros, ou quaisquer outras prestações acessórias pagáveis anualmente, ou em períodos mais curtos.”
O dispositivo em análise cuidava da hipótese de cobrança judicial de juros, asseverando que a pretensão de sua cobrança prescrevia em cinco anos.
No que concerne ao cabimento da aplicação de juros, é de se destacar o artigo 1064. Neste se lia que:
“ainda que não se alegue prejuízo, é obrigado o devedor aos juros da mora, que se contarão assim às dívidas em dinheiro, como às prestações de outra natureza, desde que lhes esteja fixado o valor pecuniário por sentença judicial, arbitramento, ou acordo entre as partes.”
Quanto ao termo inicial de aplicação de juros, o Código Civil 1916 também foi expresso em sua tutela. O fez no artigo 962, no qual se lê que: “nas obrigações provenientes de delito, considera-se o devedor em mora desde que o perpetrou.”
Também cuidando do assunto merece destaque o artigo 1536, no qual está assente que:
“para liquidar a importância de uma prestação não cumprida, que tenha valor oficial no lugar da execução, tomar-se-á o meio termo do preço, ou da taxa, entre a data do vencimento e a do pagamento, adicionando-lhe os juros da mora.”
Em seus parágrafos a redação elucida a questão dos juros de mora: “§ 1º: Nos demais casos, far-se-á a liquidação por arbitramento; § 2º: Contam-se os juros da mora, nas obrigações ilíquidas, desde a citação inicial.”
Com o disposto, consegue-se ter uma visão geral do tema no Código Civil de 1916. Vê-se que o tema foi tratado em poucos artigos, mas em artigos bastantes para cuidarem dos juros moratórios e remuneratórios, pelo que foram importantes. Igualmente importantes o foram ao impedir a capitalização de juros, tema recorrente em qualquer estudo que envolva finanças.
Suplantado o tratamento do legislador civilista chega-se à Lei da Usura, o fadado Decreto n. 22.626 de 1933.
2.2 PERSPECTIVA DO DECRETO N. 22.626/33
Na década de 1930, exatamente em 7 de abril de 1933, em razão de uma maior necessidade de regulamentação do que consagrara o diploma de 1916, foi editado o Decreto 22.626, conhecido notoriamente por “Lei da Usura”.
O decreto em exame estatuiu, logo em seu artigo primeiro, que aquele que cobrasse juros acima do dobro do previsto no Código Civil seria punido por crime de usura. No parágrafo terceiro deste artigo cuidou da determinação dos juros em escrituras públicas ou particulares. Veja-se:
“É vedado, e será punido nos termos desta Lei, estipular em quaisquer contratos taxas de juros superiores ao dobro da taxa legal.
§ 3º A taxa de juros deve ser estipulada em escritura pública ou escrito particular, e não o sendo, entender-se-á que as partes acordaram nos juros de 6% (seis por cento) ao ano, a contar da data da propositura da respectiva ação ou do protesto cambial.” (destacou-se)
No artigo 4º vedou a prática da cobrança de juros sobre juros, caracterizadora do anatocismo, vedação que a realidade tratou de transformar em permissivo mesmo depois da manifestação sumular do Supremo sobre sua aplicabilidade. Vejamos, pois, as determinações do referido artigo 4º: “É proibido contar juros de juros; esta proibição não compreende a acumulação de juros vencidos aos saldos líquidos em conta corrente de ano a ano.” (destacou-se)
Tendo em vista o destaque do a alusão à expressão “conta corrente”, tem-se que este contrato é típico e nominado no direito comercial. Resta expressamente regulado, pelo que não se confunde com outros institutos jurídicos. Nem mesmo com os contratos de contas correntes bancárias.
Na doutrina encontramos na lição do professor Fran Martins que se apresenta exauriente sobre o tema. Vejamos:
“Conta corrente é o contrato segundo o qual duas pessoas convencionam fazer remessas recíprocas de valores – sejam bens, títulos ou dinheiro –, anotando os créditos daí resultantes em uma conta para posterior verificação do saldo exigível, mediante balanço.”[26]
Ainda na Lei de Usura, merece destaque seu artigo 2º, onde se determina ser “vedado, a pretexto de comissão, receber taxas maiores do que as permitidas por esta Lei.” No referente aos juros moratórios determinou que a elevação dos mesmos só poderia ser feita até o limite de 1%, como se lê em seu artigo 5º: “admite-se que pela mora dos juros contratados estes sejam elevados de 1% (um por cento) e não mais.”
Todas as definições no sentido de se caracterizar a usura como crime, todavia, podem ser resumidas com o que se lê no artigo 13 do decreto em exame. Veja-se:
“É considerado delito de usura, toda a simulação ou prática tendente a ocultar a verdadeira taxa do juro ou a fraudar os dispositivos desta lei, para o fim de sujeitar o devedor a maiores prestações ou encargos, além dos estabelecidos no respectivo título ou instrumento.
Penas – prisão por (6) seis meses a (1) um ano e multas de cinco contos a cinqüenta contos de reis.”
Merece destaque o fato de que o Decreto n. 22.626/33 atende à estrita legalidade pressuposta pelo Direito Penal na medida que traz em seu bojo preceito primário e secundário. A pena por ele informada atende a todos os pressupostos legais, uma vez que o crime foi definido em lei e a cominação legal encontra expressa.
A tentativa de punição da usura é recorrente na história. Tanto é verdade, que “o antigo Hamurabi ordenou que todos que infringissem a Lei da Usura seriam queimados vivos em óleo fervente. CONSTA QUE FALTOU ATÉ ÓLEO FERVENTE DEVIDO A PARALISAÇÃO DO MERCADO.”[27] (destacou-se)
Como se vê, a punição iminente aos usurários com a queimação em óleo fervente fez com que faltasse óleo no mercado.
Ainda no Código Hamurabi, desta vez em edição traduzida pelo professor Jair Lot Vieira, encontramos disposições coibitórias da ganância. Vejamos:
“Capítulo VII, Empréstimos e Juros.
Art. O. Se um mercador emprestou a juros grãos ou prata e não recebeu o capital, mas, recebeu os juros do grão ou da prata, e, ou não descontou o grão ou prata que recebeu e não redigiu um novo contrato ou adicionou os juros ao capital, esse mercador restituirá em dobro todo grão ou prata que tomou.
Art. P. Se um mercador emprestou a juros grão ou prata e quando emprestou a juros ele deu a prata em peso pequeno ou grão em medida pequena e quando o recebeu ele quis receber a prata em peso grande ou grão em medida grande, esse mercador perderá tudo quanto houver emprestado.”[28] (destacou-se)
Nos artigos colacionados se estabelecem conseqüências objetivas para a cobrança indevida, apontamentos que as legislações mais atuais têm consagrado, vide o artigo 940 da Lei n. 10.406/02, no qual se lê que:
“Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas, ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição.”
Em sentido absolutamente similar merece destaque o artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor. Este, em seu artigo 42, parágrafo único determina que:
“O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.”
Maior destaque deve ser dado avanço do Código de Hamurabi no sentido de coibir abusos. O faz ao impingir a perda do capital emprestado para aquele que entrega em pequena medida e pretende reaver em grande. Claramente se vislumbra um rechaçamento ao locupletamento, medida que seria muito bem vinda nos dias atuais. Diz-se isto porque a desproporcionalidade deve ser coibida.
No Brasil, em que pese ter havido até previsão constitucional para a punição da usura, tudo continua como dantes; “um grande castelo de Abrantes”. Melhor, o castelo teve sua base retirada com o advento da Emenda Constitucional 40 de maio de 2003. Agora não se discute a limitação constitucional de juros. A usura deixa de ser punível quando os cobradores de juros desproporcionais sejam membros do sistema financeiro. No máximo, falta razão de legitimidade aos banqueiros, já que vestiram o manto da legalidade.
A alusão promovida pelo professor Jairo Saddi tem um duplo sentido. Parece-nos que há uma preocupação com a prática da usura. Ao mesmo tempo deixa em aberto a necessidade da usura como meio de fomentar as práticas empresariais. Ambas as proposições fazem sentido em um contexto de falta de óleo: falta porque muito se usou na queima dos usurários; falta porque o dinheiro dos usurários é necessário para fazer girar a roda do capitalismo.
Em situações diametrais como a vivenciada, não se pode furtar a observação da prática popular: “não se deve usar canhões para matar pardais”. Este ditado popular, não obstante a singeleza implícita, faz referência expressa à proporcionalidade, sem nenhuma dúvida norma-valor que deve pautar a compreensão jurídica dos dias atuais. Deve-se, pois, serem evitados os excessos, o que pode ser feito em se observando a seguinte tríade: adequação, no sentido de se alcançar o objetivo; necessidade, no sentido de ser a medida adotada a menos lesiva e, por fim, a proporcionalidade em sentido estrito, a qual pode ser bem entendida ao se observar uma balança. Proporcionalidade é, assim, o exercício de ponderar.
Em suma, o Decreto 22.626 de 1933 pouco acresceu sob a perspectiva de cidadania, porque sua aplicação prática foi mitigada. O abrandamento na aplicação do decreto em exame teve a chancela do Supremo Tribunal, que por ocasião da edição do verbete 596 de sua súmula negou aplicabilidade desta aos integrantes do sistema financeiro nacional. Seu posicionamento foi esposado a partir dos ditames da Lei n. 4.595 de 1964, sobre a qual deteremos atenção no tópico a seguir.
2.3 A LEI N. 4.595 de 1964. SUPER LEI. VIGÊNCIA A TODA PROVA
Com a edição da Lei n. 4.595/64, que criou o sistema financeiro nacional, novas determinações foram trazidas para o tema. Neste novo diploma legal se determina –no artigo 4º, IX – a competência do conselho monetário nacional para limitar as taxas de juros praticadas pelas instituições financeiras.
É curioso notar que passados mais 40 anos da edição da lei de 1964 nenhuma limitação foi trazida às instituições financeiras. Pelo contrário, nem mesmo o revogado artigo 192, § 3º da Constituição da República Federativa do Brasil foi entendido como diploma hábil para promover tal limitação, como se em nosso sistema existisse norma legal acima das normas constitucionais.
A Lei n. 4.595/64, na prática, confere às instituições financeiras um tratamento especial no que se refere à cobrança de juros, pois estas, ao contrário dos particulares, estão autorizados a cobrarem as taxas de juros que lhes aprouverem.
A realidade da não-limitação na cobrança de juros pelas instituições financeiras é fato consolidado em nosso país. Tanto é verdade que o Banco Central do Brasil, tutor do sistema financeiro nacional, esposou, com base no inciso I da Resolução 1.064 de 5 de dezembro de 1985, entendimento no sentido de não vigorar no país limite máximo à contratação de juros nos empréstimos firmados junto a estas instituições.
Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, esperava-se que o tema fosse repensado. Não foi. Ainda que o legislador originário tenha promovido a uma limitação dos juros, o Supremo Tribunal Federal guardião da Constituição, entendeu que as normas depreendidas do artigo 193, § 3º careciam de regulamentação. Essa regulamentação não ocorreu. Aliás, antes que fosse possível a regulamentação, a Emenda Constitucional 40, de maio de 2003 retirou do ordenamento pátrio este dispositivo.
O dispositivo revogado, conquanto pretendesse assegurar garantia fundamental ao cidadão através da limitação dos juros máximos cobrados por ocasião da concessão de crédito, corrigindo os abusos e incorreções do mercado, foi norma que nunca teve vida própria.
Ainda que alinhado com os fundamentos de um Estado Democrático de Direito, capaz de propiciar Cidadania, Dignidade da Pessoa e Valorização da Livre Iniciativa, compondo também os objetivos fundamentais da República como a construção de uma sociedade justa e solidária, desenvolvimento nacional e redução das desigualdades sociais e regionais, foi asfixiado por quem deveria resguardá-lo.
Qualquer hermeneuta médio diria que, após a Constituição Federal de 1988, o inciso IX do art. 4º da Lei n. 4.595/64 não mais faria parte do ordenamento jurídico nacional em razão da não-recepção da norma pela nova ordem constitucional.
Nada obstante, o que se viu foi o contrário. Uma lei ordinária, em todas as acepções que o termo alude, foi determinante para que se retirasse da Carta Constitucional as limitações contrárias aos interesses do sistema financeiro nacional.
Em 11 de setembro de 1990 surge, também no afã de promoção da cidadania e redução das desigualdades, a Lei n. 8.078, doravante referido como CDC – Código de Defesa do Consumidor. Com este resta claro o reconhecimento da vulnerabilidade das pessoas em relação à sociedade de consumo de massa. Resta claro também, entendimento sumulado, sua aplicação às relações envolvendo consumidores e partícipes do sistema financeiro nacional, conforme se lê em seu enunciado de número 297: “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras”. No STF a questão ainda não está pacificada, aguarda o julgamento da ADIN 2591, na qual se questiona a constitucionalidade do artigo 3, § 2º do CDC.
O código examinado, tratando da Política Nacional das Relações de Consumo, dos direitos básicos do consumidor, das regras para a prestação de serviços e do fornecimento de produtos, assim como da responsabilidade dos fornecedores, é o instrumental para coibir práticas abusivas, garantir proteção contratual, impor sanções civis, administrativas e penais. É também meio de defesa e prevenção no âmbito processual. Nesse ponto merece se destacar o fato que este inovou estabelecendo regras e limitações que também se aplicam às relações bancárias.
O Código de Defesa do Consumidor é claro ao vedar a utilização do poder econômico no intuito de auferir vantagem indevida por um dos contratantes (prática abusiva – art. 39, V[29], XI; e cláusula abusiva – art. 51, IV e §1º, I e III) e nos mecanismos de proteção e reparação que se completam com a limitação imposta pelo atual Código Civil, e com os princípios previstos nestes diplomas como a boa-fé, probidade e a revisão contratual por onerosidade excessiva.
Na contramão do avanço legislativo, o Supremo Tribunal Federal decidiu no julgamento da ADIN n. 4 do Distrito Federal, pela não-aplicabilidade do limitador constitucional dos juros.
Em nosso sentir esse entendimento foi equivocado, o que se diz com base no pétreo artigo 5º, §1º, onde se lê que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.” Em verdade, em uma interpretação literal, o que carecia de complementação seria a punição do crime de Usura, e não a limitação dos juros. Nesse contexto o que sobra é a “falta de óleo” vivenciada pelo Império Babilônico e o imperador Hamurabi, cuja ilustração foi trazida à colação no tópico 2.2. Ainda assim, é importante se destacar que a cobrança de juros acima da taxa legal constitui crime contra a economia popular, consoante assegura a Lei n. 1.521/51 em seu artigo art. 4º:
“Constitui crime da mesma natureza a usura pecuniária ou real, assim se considerando:
a) cobrar juros, comissões ou descontos percentuais, sobre dívidas em dinheiro superiores à taxa permitida por lei; cobrar ágio superior à taxa oficial de câmbio, sobre quantia permutada por moeda estrangeira; ou, ainda, emprestar sob penhor que seja
privativo de instituição oficial de crédito;
b) obter, ou estipular, em qualquer contrato, abusando da premente necessidade, inexperiência ou leviandade de outra parte, lucro patrimonial que exceda o quinto do valor corrente ou justo da prestação feita ou prometida.
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, de cinco mil a vinte mil cruzeiros.
§ 1º. Nas mesmas penas incorrerão os procuradores, mandatários ou mediadores que intervierem na operação usurária, bem como os cessionários de crédito usurário que, cientes de sua natureza ilícita, o fizerem valer em sucessiva transmissão ou execução judicial.”
Esta legislação, cumpre informar, é de ser aplicada apenas aos não-integrantes do sistema financeiro nacional, pois para estes resta as disposições da Lei n. 7.492/86. Segundo informado pelo Conflito de Competência 19.199-SP, não se fala em delito contra o sistema financeiro nacional quando o sujeito ativo da infração não é instituição financeira, ou pessoa jurídica ou física a ela equiparada, conforme se lê na ementa do acórdão que resolveu o referido conflito. Verbis:
“Competência. Crime contra a Economia Popular. Empréstimo em Dinheiro. Usura. 1. Não há se falar em delito contra o Sistema Financeiro Nacional, nos termos da Lei n. 7.492/86, quando o sujeito ativo da infração não é instituição financeira, ou pessoa jurídica, ou física a ela equiparada. 2. In casu, cuida-se de crime comum de usura pecuniária consistente na cobrança de juros extorsivos, ação ofensiva a economia popular (lei n. 1.521/51), deslocando-se a competência para a justiça comum estadual. 3. Conflito conhecido, declarado competente o juízo de direito do departamento de inquéritos policiais e policia judiciária de São Paulo. Conflito de Competência 19.199-SP. Processo 1997.0003676-6. Órgão Julgador: Terceira Seção. Rel. min. Anselmo Santiago.”
As ponderações tracejadas acerca da postura do Supremo Tribunal da Ação Direta de Inconstitucionalidade, no sentido de ter andado mal a corte ao negar efetividade à limitação dos juros, encontram respaldo no que assegurou o ministro Carlos Velloso na própria ADIN. Seu voto, restado vencido, merece ser trazido à colação pela clareza com que foi proferido. São idéias que, além do notável arcabouço jurídico, encontram-se em compasso com a realidade social. Veja-se:
“as taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze pôr cento ao ano. Porque ela é uma norma proibitória ou vedatória, ela é de eficácia plena e aplicabilidade imediata, ou é ela uma norma auto-aplicável. E porque confere ela, também, um direito aos que operam no mercado financeiro, também pôr isso a citada norma é de eficácia plena. Não me refiro, evidentemente, à segunda parte do § 3º do artigo 192, que sujeita a cobrança acima do limite a sanções penais, porque esse dispositivo não precisa ser trazido ao debate.As normas constitucionais são, de regra, auto-aplicáveis vale dizer, são de eficácia plena e aplicabilidade imediata.”
No referente ao mesmo artigo 192 é de se destacar também o entendimento do desembargador fluminense, professor Nagib Slaibi. Em sua lição lemos que:
“Na exegese do art. 192, deve ser observado que a exigência de lei complementar, contida no caput do dispositivo, não implica diminuição da aplicabilidade da norma contida no parágrafo 3º, estabelecedor do limite máximo da taxa de juros. Imaginar o contrário seria instituir delimitador à eficácia da norma constitucional que representaria, em última análise, atentado à soberania do poder constituinte. O que mais poderia fazer tal lei complementar? Não poderia dispor contrariamente aos limites já traçados na Constituição: poderia estabelecer os juros em 11% ou em 11,99% e até mesmo 12% a.a., não poderia, nunca, é fixá-los em 12,01% a.a.”[30]
Não obstante a clareza do artigo comentado, fato é que o ministro Velloso foi voto vencido. O artigo 192 em sua versão original é coisa do passado. Na verdade, além do consolidado na ADIN n. 4 do Distrito Federal, o que se tem de concreto é a Súmula 648 do STF, onde se lê que: “a norma do § 3º do art. 192 da constituição, revogada pela emenda constitucional 40/2003, que limitava a taxa de juros reais a 12% ao ano, tinha sua aplicabilidade condicionada à edição de lei complementar.”
A referida complementação não veio, ainda que possamos referir os projetos de Lei do Senado e da Câmara sobre o assunto, respectivamente os de número 27 de 1991 e 17 de 1995. Os projetos, contudo, não parecem gozar de prioridade para votação. De concreto se teve a pá-de-cal da Emenda Constitucional n. 40 de maio de 2003. Com esta se derrogou do ordenamento constitucional as disposições específicas quanto ao sistema financeiro nacional.
O que dizer da Emenda Constitucional em tela frente ao disposto no artigo 60, § 4º, IV da Constituição da República Federativa do Brasil?
Em nosso sentir a emenda em tela carece de constitucionalidade, não-obstante integrar a Constituição e resultar do exercício do poder constituído derivado. Espera-se, contudo, que este poder constituído seja legítimo, o que não parece ter ocorrido in casu, pois jamais poderia ter extraído do texto constitucional uma garantia do indivíduo.
Tais ponderações podem ser elucidadas na doutrina, onde se vislumbra que existiriam, em razão de uma hierarquia imanente, normas formalmente constitucionais que trazem consigo mácula de inconstitucionalidade. Antes da Constituição haveria uma ordem natural que transcende ao direito positivado.
A transcendência referida decorre do limitador natural encontrado no conceito de justiça, materializado pelo atendimento das necessidades tendentes ao exercício da Dignidade da Pessoa Humana. Neste sentido aponta Jorge Miranda[31] que as normas, mesmo constitucionais, sujeitam-se a valores éticos transcendentes, carecendo de constitucionalidade as normas inseridas na Constituição que andam ao largo desses valores transcendentes.
3 CONTRATOS DE DIREITO PRIVADO
A regra a imperar no Direito Privado aponta na direção do chamado pacta sunt servanda, princípio segundo o qual o contrato firmado pelas partes torna-se lei para elas, não podendo ser modificado.
Esse regramento chegou até nós por influência dos franceses e seu Código Napoleão, baseado na autonomia da vontade. Por isso existiam disposições expressas neste sentido, exemplo dos artigos 1246 e 1453 do Código Civil de 1916. Como conseqüência, o reconhecimento da imprevisão ou onerosidade autorizaria apenas a rescisão do contrato, mas não sua modificação.
Em 1990, com o advento do CDC para regular as relações de consumo, incluindo as bancárias, novos horizontes foram trazidos para o tema. Dentre as novas possibilidades é de se destacar o disposto no artigo 6º, V, em que se prevê a possibilidade de “modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.”
Este mesmo diploma volta ao tema no artigo 51, estabelecendo neste um rol exemplificativo de cláusulas contratuais tomadas por nulas de pleno direito. Assim prescreve no parágrafo primeiro deste artigo que haveria vantagem exagerada quando o consumidor restasse excessivamente onerado. Na mesma linha o artigo segundo apõe que a nulidade de uma cláusula abusiva não invalida necessariamente um contrato, salvo se importar em ônus excessivo para qualquer das partes.
Sistematicamente parece producente que detectado o abuso o mesmo possa ser corrigido, sendo salutar a atuação do Estado-Juiz nesse sentido. Na prática, todavia, ainda que se tenha dado amparo às situações a demandar correção de abusos, o que se tem visto é uma tolerância cada vez maior ao conteúdo do abuso. Cada vez mais se torna difícil para o consumidor configurar o abuso que autorize revisar o conteúdo do contrato a que aderiu, como se pode perceber do voto do ministro Pargendler no RESP 407.097-RS, onde se estabeleceu que: “A intervenção do Judiciário nos juros contratados pelas partes será possível apenas em casos excepcionais – quando ficar provado que o banco concede taxas mais baixas a outro cliente em operação semelhante.”
Do que se após literalmente no voto, tem-se que tão-somente a comprovação do tratamento diferenciado no caso concreto similar autorizaria a revisão do contrato. É um entendimento de peso, vistos a visibilidade e prestígio de que goza o ministro. Nada obstante, não deve ser fácil ter acesso a contatos de outros clientes bancários, sobretudo porque temos um sistema que preconiza o sigilo das informações, dito por Direito da Personalidade por ser meio de resguardo da intimidade.
A se conferir efetividade prática ao asseverado pelo ministro, ter-se-ia uma situação à francenildo[32] sempre que se quisesse bater nas portas do judiciário. Isto mesmo. Só mesmo com contatos dentro das agências bancarias se conseguiria, pela via oblíqua, se acessar o teor da movimentação bancária de quem contratou produto similar ao meu pagando um preço a menor.
O Código Civil publicado em janeiro de 2002 e vigente desde o ano seguinte, entre as disposições válidas para os contratos em geral trata das formas de extinção destes. De modo coeso estipula quatro possibilidades: o distrato, a cláusula resolutiva, a exceção do contrato não cumprido e a resolução por onerosidade excessiva, sendo essa possibilidade última a que interessa ao presente trabalho.
A previsão civilista tem seio no artigo 418 do Código, onde se aduz que:
“Nos contratos de execução, continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.”
No artigo transcrito restou consagrada a Teoria da Imprevisão, segundo a qual havendo fato superveniente que traga vantagem excessiva para uma das partes, poder-se-á rescindir o contrato, desde que tal fato seja extraordinário e de difícil ou impossível previsão. Também chamada cláusula rebus sic stantibus, consiste no fato de que a obrigatoriedade de vinculação contratual só persiste enquanto perdurar a situação fática em que o contrato foi celebrado.
A evolução do direito no sentido de dar ao contrato nuanças sociais, conferindo-lhe uma efetiva função social não é vista com bons olhos por alguns juristas, destacando-se ministros do Superior Tribunal de Justiça. Há inclusive quem veja na atuação judicial nesse sentido, forma de majorar o chamado Custo Brasil, na lição de Otaviano Canuto[33] uma expressão que concatena fatores desfavoráveis à competitividade de setores ou empresas da economia brasileira.
3.1 OFERTA DE CRÉDITO E REFLEXOS SOCIAIS
Quando o acesso ao crédito é facilitado, as empresas investem mais e as famílias aumentam seu poder de consumo. Tais situações geram um fluxo positivo que acaba refletindo em maior crescimento econômico, criando um círculo virtuoso. Essa seria uma situação ideal, mas não é isto que a realidade consagra. Na verdade temos atualmente uma baixa oferta de crédito em relação ao produto interno bruto, o que pode ser depreendido da notícia veiculada pela Acessoria de Comunicação Social do Ministério do Desenvolvimento: “Hoje o Brasil possui uma baixa oferta de crédito em relação ao PIB, da ordem de 29%. Países desenvolvidos possuem esta relação superior à casa dos 100%, como é o caso do Reino Unido e Japão.”[34]
Diante desse quadro, surge uma situação que é perversa. Os integrantes do sistema financeiro nacional, claramente um dos que mais lucram no mundo, ganham muito em um contexto de pouca disponibilidade de crédito. Com isso, poucos tomadores acabam honrando com uma grande lucratividade, possível à custa de um alto spread bancário.
A elevação do custo do crédito para conferir grandes ganhos aos banqueiros, somada a uma situação onde há pessoas que se valem do sistema com o intuito de lesar, assumindo compromissos que não honrará, gera a chamada seleção adversa, com a qual os bons pagadores restam punidos sem que nada tenham feito. Os justos (bons pagadores) pagam pelos pecadores (maus pagadores). Além disso, tem-se que a penitência é ainda maior em função da grande volúpia lucrativa dos players do sistema financeiro nacional.
Essa situação é claramente injusta, pois o bom pagador não pode responder pela incapacidade de o banco gerir seus recursos com segurança a fim de evitar inadimplência. Tal quadro, censurável pelas variáveis que ostenta, pode levar o contrato a extrapolar dos padrões da conjuntura econômica pátria. Para esses casos o Superior Tribunal de Justiça tem entendido que os abusos devam ser coibidos, conforme se lê no voto do ministro César Asfor Rocha no Recurso Especial n. 213.825:
“Todas as vezes em que a contratação dos juros remuneratórios se apresente excessivamente onerosa, em percentual caracterizadamente abusivo, por extrapolar dos padrões da conjuntura econômica pátria, à qual devemos estar atentos, pode e deve ser aplicada a norma protetora do consumidor, com o fito de coibir-se intoleráveis abusos por parte das instituições financeiras. Assim, a estipulação de aludido percentual não pode ser imposta de forma assim tão desabrida, devendo se estabelecer uma convivência harmônica entre a liberdade conferida pela Lei n. 4.595/64 e a razoabilidade extraída pelo Código de Defesa do Consumidor, para impedir a cobrança de taxas abusivas.” (destacou-se)
Os juízes têm um papel social a cumprir. Por certo a busca da justiça não pode servir de alicerce para provocar a injustiça que é a recusa em cumprir o que foi pactuado de forma deliberada, sem vício de vontade e consentimento, e sem ferir preceitos constitucionais. O contato justo deve ser cumprido. O que não se pode querer é conferir efetividade a um acordo que de acordo não tem nada, sendo mera adesão desproporcional e desarrazoada.
CONCLUSÃO
A pesquisa que se fez para a elaboração deste trabalho final de curso que ora se encerra permite a que se chegue a proposições pungentes e pouco otimistas. Diz-se isto porque é inegável, a luz do Direito Positivo brasileiro, se sustentar qualquer óbice limitativo à atuação bancária.
Vivemos em um Estado Democrático de Direito que visa à diminuição das desigualdades sociais, anúncio trazido pela Constituição da República Federativa do Brasil em seu artigo 170. Fala-se em diminuição de desigualdades, mas na mais desigual das relações econômicas, tomador-cedente de empréstimo, quando o cedente é parte do sistema financeiro nacional, o próprio guardião da Constituição afirma que há lei infraconstitucional que pode negar efetividade prática ao conteúdo do diploma em que se firma sua atuação. Foi assim com o artigo 192, § 3º da CF e a ADIN n. 4 do Distrito Federal.
Na ação direta referida, entendeu o supremo, contra qualquer interpretação meramente literal, que o artigo demandava complementação legal para ser aplicável, inclusive na parte em que trazia limitações objetivas à cobrança de juros. Curioso e lamentável, mas agora não se tem para que chorar. O STF negou vida ao dispositivo quando estive em jogo relações que envolvessem membros do sistema financeiro nacional. Vida negada, tratou o legislativo, no exercício do poder constituído derivado, de o enterrar de vez, sepultamento ordenado pela Emenda Constitucional 40 de maio de 2003.
Como não mais há limitações objetivas para os integrantes do sistema financeiro nacional cobrar o que querem a título de juros, restam a ponderação de interesses e o clamor pela razoabilidade, afinal esse é um preceito fundamental. É preceito constitucional e encontra ampara também em legislações infraconstitucionais como o CDC e o Novo Código Civil, onde os contratos devem ser valorados pela finalidade social. Devem trazer consigo conteúdo ético, de operabilidade e efetividade, o que só é possível quando ambos os lados do sinalagma auferem vantagens.
A negação à limitação objetiva em matéria de juros aos membros do sistema financeiro nacional não é recente. Na verdade, desde 1976 existe amparo sumular do Supremo Tribunal não haver nenhum entrave à cobrança de juros por bancos. Essa postura foi dada em um contexto de reconhecimento de efetividade da Lei 4.595/64, responsável por criar o conselho monetário nacional.
Com o advento da Constituição Federal, pareceu que não houve recepção da lei criadora do CMN. Não foi isso que aconteceu, entretanto. A vivência jurisprudencial concentrada, apontou ao contrário do que se esperava, no sentido de que era a Lei 4.595/64 a responsável por tratar da questão dos juros no Brasil, e não a Constituição.
Tem-se ainda hoje a Lei da Usura. Nesta se permite a cobrança de juros até o dobro da taxa legal, vedando-se a capitalização dos mesmos. Onde o STF negou vigência a esta legislação, acatamento solene houve por parte dos membros do sistema financeiro nacional. Onde esse concede aplicabilidade prática, contudo, o que se vê é uma ignorada total. Constatar esse fato é simples. Basta pegar o enunciado 121 dessa corte e confrontar com qualquer oferta de crédito feita pelos bancos.
Informações Sobre o Autor
Alessandro Marques de Siqueira
Mestrando em Direito Constitucional pela UNESA. Conferencista do CONPEDI. Professor da Escola de Administração Judiciária do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis. Concursado da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro.