“O amor por Deus não pode se transformar em ódio.” Spinoza, Etica, Corolário da Proposição XVIII.
1. Considerações preliminares
Desde que Kant promoveu a sua “Revolução” que se tem sistematicamente posto em questão o alcance e os limites de possibilidade do conhecimento, que não pode mais ser considerado como um espelho da realidade, já que seus objetos são determinados pela maneira pela qual são compreendidos pelo sujeito.
O que se seguiu foi uma luta feroz, sobretudo no campo da filosofia, para estabelecer parâmetros de natureza objetiva ao processo de compreensão, subjetivo por natureza.
A autonomia da razão, assim, tem estado sob críticas tanto daqueles que, como Hume, apregoam o psicologismo e o sensualismo como instâncias objetivas de apreciação crítica, como, de outro, dos que deslocam a problemática para o subjetivismo e relativismo em relação a valores, tal qual os existencialistas.
A batalha travada, ao que se sabe, começa com a introdução de forte subjetividade no processo de compreensão feita por Kierkegaard, cujas idéias foram recepcionadas por Schleiermacher. O relativismo, segundo alguns, havia penetrado, a partir daí, no campo hermenêutico uma vez que, sem limites objetivos, a própria verdade ficaria reduzida ao sujeito. Neste caso, a verdade para uma pessoa poderia ser diferente para outra e, assim, todo o conhecimento estaria reduzido a um nada. Seria impossível atribuir-se um caráter universal de prevalência de valores.
A tentativa de introduzir componentes de natureza objetiva ao processo de compreensão pode ser sentida desde Dilthey, que apregoava a necessidade da mediação da história para uma espistemologia consistente. Sem sair dos trilhos da filosofia idealista, Betti pugnou pela adoção de critérios de natureza objetiva para determinação das possibilidades de entendimento ( Auslegung).
Heidegger, que em um primeiro momento orientou-se na direção de uma ontologia hermenêutica subjetiva, chegou posteriormente a introduzir também um componente objetivo no fenômeno da compreensão ( a linguagem ).
O Direito assiste a batalha travada no campo filosófico entre subjetividade e objetividade de maneira passiva e distante, mas pronto para colher os despojos que eventualmente lhe forem tributados. A distância em relação à discussão, entretanto, não impediu nossa ciência de repudiar a inserção de qualquer contingente de cunho subjetivo na condução do processo de compreensão do fenômeno jurídico. Em nenhum outro campo do saber a objetividade radical ganhou dignidade parecida. Valendo-se da hermenêutica como simples técnica, o Direito segue repelindo totalmente a subjetividade, na medida que introduz a norma como instância objetivadora única, limitando com isto toda e qualquer possibilidade de compreensão do fenômeno jurídico calcada no sujeito. Seria suficiente, entretanto, a referida abordagem? Parece-nos que não.
2. Hermenêutica: de técnica de interpretação para ontologia fundamental
O termo hermenêutica deriva do grego e significa declarar, anunciar, interpretar ou esclarecer e, por último, traduzir. Apesar da multiplicidade de acepções, a idéia que resulta é a de que alguma coisa seja levada à compreensão. Supõe-se que a palavra derive de Hermes, “o mensageiro dos deuses, a quem se atribui a origem da linguagem” (Coreth, 1973:1).
Desde a Grécia que a expressão tem relação íntima com a autoridade de um enunciado, já que em primeiro lugar era empregado como técnica de interpretação da mensagem dos oráculos (Coreth, 1973). A dimensão sacra já era conhecida dos hebreus e se propagou por todo o mundo, sobretudo na Idade Média, na tentativa de compreender o alcance dos postulados canônicos. A palavra hermenêutica, portanto, foi formulada e empregada primeiramente na teologia. Como arte da compreensão, entretanto, só seria utilizada na modernidade.
Contudo, sempre existiram, ao lado dos textos sacros, enunciados profanos que reclamavam esclarecimento. Na verdade, portanto, embora o desenvolvimento da hermenêutica tenha se verificado mais intensamente no campo teológico, seus reflexos se irradiaram também sobre regras estranhas à sacralidade, notadamente as de moral e conduta provindas da autoridade.
O parentesco da hermenêutica sacra com a jurídica é evidenciado pelas características comuns das duas. Tanto em uma quanto na outra o objeto é a compreensão de um enunciado que fala de maneira normativa e provém da autoridade, tendo em si a pretensão de obrigatoriedade (Coreth, 1973).
Entretanto, o que se observa hoje é que, se de um lado houve extraordinário progresso nas pesquisas sobre hermenêutica no campo da teologia e da filosofia, o mesmo não aconteceu no Direito. Com efeito, há muito tempo a hermenêutica teológica e mesmo filosófica já ultrapassaram a característica de uma ciência prática, que formula regras para uma correta interpretação de um texto. O sentido da compreensão não se identifica mais com a práxis do trabalho exegético, servindo a ele. A verdadeira compreensão do sentido daquilo que nos é dado deve extrapolar uma exegese prática de afirmação literal do sentido, para ocupar-se das próprias condições de possibilidade do horizonte do entendimento. Em outras palavras, debaixo da idéia da busca da clareza de um texto existem problemas muito mais profundos e sérios, que não devem ser desprezados, sob pena de comprometimento absoluto da aplicação dos conhecimentos hauridos.
A necessidade de transposição dos limites estreitos da exegese jurídica como prática só se revela necessária, entretanto, se for igualmente superada a idéia de Direito fornecida pelo positivismo jurídico. Acabado dentro de uma norma positiva, o Direito não precisa o ser compreendido. Em outras palavras, ciência jurídica que se identifica com a técnica-jurídica carece tão só de técnicas de interpretação. De outra forma, reconhecida a necessidade de ampliação dos horizontes do Direito, e de sua compreensão ontológica, a utilização de qualquer técnica-interpretativa resulta completamente insuficiente.
A despeito da reconhecida insuficiência da abordagem tradicional, o que se vê hoje em dia é que os problemas hermenêuticos do Direito ainda não superaram aqueles existentes ao tempo da famosa polêmica entre a Escola de Antioquia, mais conservadora, que pugnava por uma interpretação literal dos textos das Escrituras e a Escola de Alexandria, que reclamava uma interpretação mais espiritual dos enunciados. Várias polêmicas de interpretação do Direito hodierno remetem à questões que não eram novidade, portanto, no Século III d.C.
O caráter dogmático da epistemologia jurídica tem suas raízes assentadas no pensamento da Idade Média (Bleicher, 1980). A exemplo da Alta Escolástica, também o Direito atual quer vincular todos as soluções de seus gritantes problemas a uma sistema fechado e acabado em si mesmo. A implementação dos dogmas jurídicos foi estabelecida com o propósito de conduzir a uma forma objetiva de interpretação dos textos normativos, que se resume na busca de afirmação do sentido literal de um enunciado, sem maiores considerações. O princípio hermenêutico da Escolástica (na verdade mera técnica-interpretativa ) vem sido constantemente repetido até nossos dias no campo jurídico. Os sacerdotes mudaram, o modelo não. A proposta de edição de Súmulas de caráter vinculante, por exemplo, não é senão a repetição literal de disposição aprovada no Concílio de Trento (1544), onde a cúpula da Igreja Católica declarava expressamente sua exclusiva autoridade no estabelecimento dos dogmas que deveriam ser seguidos pelas pessoas (Olson, 2001).
Ocorre que, consoante se disse, desde a eclosão do Iluminismo, novos paradigmas de compreensão se tornaram possíveis graças ao avanço da hermenêutica. As idéias de Kant descortinaram possibilidades infinitas para a compreensão humana, exatamente porque apontaram limites ao conhecimento. Scheleiermacher, ao indicar a necessidade da subjetividade na interpretação, estabeleceu um marco que, no plano jurídico, jamais seria ultrapassado. O Direito continua até hoje engalfinhado aos seus dogmas. As bases de uma nova hermenêutica foram ampliadas com a publicação, em 1927, de Ser e Tempo, de Heidegger (obra que o mundo jurídico recusa-se em conhecer). Para este extraordinário pensador, a compreensão é questão existencial. A existência é marcada pela compreensão do ser. A hermenêutica não é mais considerada como uma arte de interpretar textos, mas uma tentativa de determinar a própria essência da interpretação da existência. Compreendida a existência, ela interpreta-se a si mesma no tempo e na história. Na verdade, uma coisa se manifesta dentro de uma totalidade já dada e toda a interpretação se move dentro de uma concepção prévia desta totalidade. A existência do ser-no-mundo (Dasein) projeta horizonte de sua auto-compreensão. O mundo, portanto, encontra o seu fundamento no ser.
A essência do Direito se desoculta, portanto, na possibilitação das condições existenciais do homem. O modo autêntico do ser jurídico é a Justiça e deve ser buscado sempre. Numa situação de carência, ele deve suprir a falta e, desta maneira, legitimar-se como instrumento capaz de promover condições para a existência do Dasein, impedindo-o de perecer. “A ordem jurídica não abandona a existência cotidiana do ente humano existente, conforme afirmou Heidegger” (apud Maman, 2002: 74). E a essência do Direito, repita-se, não pode ser confundida, nem totalmente absorvida pela lei positiva.
Mas esta busca da Justiça como axiologia suprema do Direito conduz nossa discussão ao ponto onde começou. A Justiça, como valor, poderia ser compreendida de maneira objetiva e absoluta? Quais seriam os critérios possíveis de determinação de seu conteúdo e validade?
3. Axiologia e possibilidades epistemológicas
A Justiça é uma virtude. O problema axiológico não reside na identificação do que seja uma ação virtuosa, mas nos limites de possibilidade de sua aceitação objetiva pela maioria dos membros da comunidade.
Sustenta Wittgenstein (1999:98), que “para a compreensão por meio da linguagem, é preciso não apenas um acordo sobre as definições, mas ( por estranho que pareça ) um acordo sobre os juízos”. Não parece possível existir consenso – ao menos aquele invariável no correr dos tempos – acerca do juízo sobre virtude (ou de qualquer virtude, como, por exemplo, a Justiça). Mas será então possível falar sobre ela?
A mesma pergunta fez Sócrates à Protágoras, que lhe respondeu afirmativamente, utilizando-se da narrativa do mito de Prometeu[1] como supedâneo à sua conclusão no sentido de que a virtude podia – e devia – ser ensinada. A forte refutação (elenchos) de Sócrates à essa possibilidade, entretanto, conduziu o discurso de Protágoras aos limites do aporético. Sua alegoria sucumbiu diante do discurso (socrático uma vez que, para o filósofo, não era possível ensinar a virtude.
Na parte final de seu Tractatus Logico-Philosophicus, Wittgenstein sustenta – e nisto reside ao que parece o cerne de seu modo de conceber a metafísica – não ser possível se valer da linguagem para exprimir todas as coisas e, sobre o que não pode ser exprimido pela linguagem, o melhor a fazer é se calar. Para ele, portanto, deve ser respeitado o paralelismo existente entre o mundo dos fatos reais e as estruturas da linguagem. Esta estrutura seria quebrada na hipótese da tentativa de se valer da linguagem para exprimir o que não fosse um “acidente”, já que no mundo ” tudo é como é e acontece como acontece: nele não há valor e, se houvesse, o valor não teria valor” (1999:12). Ora, pressupondo a Justiça uma valoração, evidente que não pode ser reduzida à condição de acidente e, desta forma, para o autor, não está no mundo. Não pode ser exprimível, portanto, por meio da linguagem. A Justiça está no sujeito e não no mundo.
Dito de outra forma, para Wittgenstein, no mundo, tudo é acidental e, por isso, não existe valor no mundo (já que o valor não pode ser um acidente). Em conseqüência, não pode haver proposições em ética, porque isto representaria um valor e tal fato não pode jamais ser acidental: “a coisa tem que possuir aquele valor”. O mundo não é bom nem mal. “Bem e mal existem apenas em relação ao sujeito e este também é concebido por Wittgenstein como transcendental. Situada no plano do sujeito, a Justiça não poderia ser compreendida jamais pelo interlocutor, já que seria impossível colocar a linguagem entre a manifestação da Justiça e a própria Justiça[2].
A grande diferença entre Wittgenstein e Sócrates no que se refere à possibilidade de falar sobre a Justiça é que só o primeiro fecha as portas para qualquer possibilidade de discussão sobre o tema[3]. Entretanto, ambos entendem impossível que se estabeleça, por exemplo, um conceito sobre Justiça ou virtude, muito embora nenhum deles negue em absoluto a existência delas. Pelo método socrático, não há qualquer impossibilidade de diálogo sobre matéria alguma (que fica, portanto, aberto a ulteriores possibilidades argumentativas).
Heidegger também buscou na linguagem a possibilidade de iluminação do ser (ao menos após Ser e Tempo). A existência humana – problemática imediata na obra mencionada – é deslocada diretamente na direção do ser. O traço marcante destas reflexões ontológicas é constituído pela penetração cada vez maior no universo da linguagem, que passa a ser o horizonte no qual se poderia divisar o ser.
Para Heidegger, portanto, é possível falar sobre o ser e, conseqüentemente, sobre a virtude (ou Justiça). O propósito, entretanto, não é o da elevação metafísica do ser, mas o da comemoração dele, ou seja, o de lembrá-lo conjuntamente, para que não caia no esquecimento. Inserida a virtude na possibilidade do ser virtuoso, parece que o conceito de Heidegger também descansa na perspectiva do sujeito, muito embora com os limites estabelecidos pela linguagem.
O pensamento de Kant é diametralmente oposto a todos os outros citados até o presente momento. Para ele, a virtude se relaciona em intimidade com a ética e esta pode ser definida como o conjunto das normas que desempenham um papel na vida intersubjetiva de adultos contemporâneos e situados em uma proximidade espaço-temporal. A virtude, portanto, – e a Justiça em conseqüência – é aquele conjunto de qualidades atribuídas a uma pessoa pelas outras. O conceito, portanto, é objetivo[4] na exata medida em que deve representar, em seus diferentes empregos atributivos, um juízo valorativo que se lança externamente sobre o homem dotado de uma virtude ( ele é bom, ele é honesto, ele é justo). Neste contexto, a adjetivação do virtuoso (Vorzüglichkeit) conduz ao sentido de ser preferido de maneira fundamentada. Está, portanto, fora do contexto do sujeito. O fundamento da moral – e em última instância da virtude moral – é encarado como dado de natureza objetiva, situado fora do sujeito, a quem compete simplesmente aceitá-lo (2000:99).
Certamente foi neste universo que Nietzsche vislumbrou a virtude, embora com acentuado caráter funcionalista. Para ele, a essência do mundo é a vontade de dominação (vontade de potência). A moral, neste cenário, é empregada invariavelmente como justificação objetiva (tranqüilizar, tornar-se satisfeito, crucificar-se, humilhar-se, vingar-se, exaltar a si mesmo) aos olhos dos outros (2000:101). As morais, “nada mais são do que a linguagem figurada das paixões”.
Nietzsche, entretanto, absolutamente não rechaçou pura e simplesmente a moral e a virtude. Ao contrário, redesenhou-as no sentido de retirar delas qualquer contorno de tirania contra a natureza – era neste sentido que ele via a moral conservadora. Propôs, portanto, a invenção de uma outra moral “que decretasse que toda a tirania e irracionalidade são ilícitas”. Embora tenha se insurgido vigorosamente contra a sujeição à leis arbitrárias e preconizado uma total liberdade de espírito, não conseguiu retirar da virtude a arbitrariedade do objetivismo a priori (pode ser que ai resida seu grande equívoco). A moral em Nietzsche não diferiu, portanto, de todas as outras, muito embora tivessem sido diferentes os valores e suas causas de legitimação. Até mesmo quando proclamou a insubordinação a leis arbitrárias, na verdade não escondeu a necessidade de submissão a uma lei, ainda que com sentido lingüístico diverso e com maior liberdade (mas uma lei).
Ponto comum em todos os pensadores que admitem a possibilidade de falar acerca da Justiça reside na possibilidade de emissão de juízo valorativo acerca do justo. Em outras palavras, deve ser sempre possível avaliar se um determinado comportamento é ou não produto de ação virtuosa. Mas de onde vem a legitimação deste juízo de valor? Porque está o sujeito compelido a se situar dentro dos contornos da virtude traçados a priori?
De qualquer maneira que se veja o problema, portanto, não se pode fugir à discussão acerca das possibilidades epistemológicas da Justiça. Mas o Direito, como nenhuma outra ciência, carece essencialmente da afirmação desta possibilidade porque, do contrário, sucumbiria no relativismo supremo ou na insuficiente legitimação a partir da norma. É preciso, portanto, prosseguir.
4. Dogmas do liberalismo e consolidação de seus valores
Adorno, elenca os grandes feitos da modernidade e faz uma crítica violenta à fé e aqueles “esclarecidos, que guiam a sociedade para a barbárie” (1999:36), sob a justificação da fé. O pensamento, para ele, acaba alçado à condição de única alternativa definitivamente vitoriosa no confronto com a religião, eis que o movimento do pensamento vindo com o iluminismo é irrefreável.
Talvez não tenha ocorrido ao grande filósofo, entretanto, que o discurso da modernidade se apoderaria exatamente da fé para justificar-se diante de uma impávida e boquiaberta sociedade, massificada e incapaz de reagir racionalmente e, portanto, de compreender qualquer fenômeno de forma diversa da crença.
O discurso da modernidade surgiu exatamente como afirmação do espírito crítico, da liberdade de pensamento e da racionalidade contra o autoritarismo que havia caracterizado a Idade Média, com suas monarquias absolutistas e monopólio do pensamento pela Grande Igreja. A afirmação do domínio da razão e a liberdade de pensamento, portanto, foram momentos fundamentais no sentido da possibilidade de reapropriação da própria vida, oferecida às pessoas e povos. A razão, portanto, foi o primeiro dos valores universais que a modernidade afirmou e do qual todos os outros deveriam se irradiar. Tudo o que se opusesse à razão era irreal e utópico.
Às ciências (produtos da razão) foi conferido o poder de regular a atividade humana. Essa autoridade, entretanto, conferida notadamente à ciência econômica, supunha neutralidade e desvinculação das relações de poder. Ocorre que falou mais alto o que Nietzsche chamou de “busca da vontade de dominação” ou “vontade de potência”. Com isso, o discurso tecnificado dos economistas assumiu uma posição de primado absoluto e imutável dentro do contexto da modernidade. Foi exatamente a impossibilidade de contestação destes postulados técnicos que fez com que os tecnocratas tivessem aspirado uma pretensão de sacralidade capaz de convertê-los em sacerdotes do novo modelo de Estado. A busca do poder, da vontade de potência, acarretou uma imposição autoritária e ilegítima do pensamento dos técnicos, que passaram a desfrutar de poder maior do que o de governos legitimamente estabelecidos.
Mas a fundamentação do raciocínio é igualmente falaciosa e isto foi denunciado pouco tempo depois, justamente por um discípulo de Adorno. Com efeito, Habermas adverte para a necessidade de manutenção da ação comunicativa. O que se afirma como razão única e universal é, na realidade, uma razão burguesa e expressão pura dos interesses da classe dominante. Quando o discurso da modernidade se refere ao homem como sujeito de direitos ela fala, na realidade, do homem branco, de primeiro mundo e detentor de meios de produção e capital. O logos burguês transnacional governa o mundo com olhos postos em seus próprios interesses.[5]
Na verdade, a modernidade implementa uma cultura de dominação e impede por completo qualquer argumentação em contrário (exatamente como faziam os cléricos da Idade Média). A virtude do homem se resume em aceitar passivamente os dogmas impostos (aceitar a racionalidade). O aparato ideológico dos países e povos dominantes, outrossim, legitima todos os recursos empregados no sentido da manipulação do povo que, para operar-se em plenitude e se impor em definitivo, pressupõe uma nefasta massificação, onde ao homem sem identidade e despersonificado não cabe contestar a ordem imposta, mas sim obedecer cegamente os novos parâmetros. O discurso moderno oculta voluntariamente a violência social, a fome e outros diversos males sob o signo da inevitabilidade diante da natureza do homem e da sociedade. Ora, o que é isso senão um dogma? Chega a ser até engraçado que, apresentado como única possibilidade racional, todo o conteúdo deste discurso tenha que se impor exclusivamente pela fé. O interesse do grande capital tem como pressuposto, portanto, uma irracional obediência aos dogmas econômicos que proclama. Observe-se que a imposição do discurso às homogeneizadas massas impõe-se exclusivamente pela fé no dogmatismo do discurso único, que pretende convencer toda a humanidade de que seus interesses e seu progresso coincidem com os do capital. É muito interessante ver que o liberalismo, que nasce com o propósito de se contrapor à fé e aos dogmas das religiões, conte – para a sua afirmação – com mecanismos análogos.
A escatologia do discurso moderno supõe uma fé universal, fora da qual não há virtude, Justiça ou salvação. Mas seria mesmo a razão instância legitimadora desta axiologia? Em outras palavras, teria a razão, ou mesmo a ciência, discursos legitimadores inerrantes dos valores sociais, entre os quais a Justiça? Parece que não.
Para que pudéssemos acreditar que o discurso racional tivesse a possibilidade de ditar valores à sociedade seria necessário que ele se revelasse preciso, coerente e aceitável. Com efeito, não se pode conceber um valor fundado em discurso impreciso, incoerente ou inaceitável. Mas o discurso da ciência atual está longe de apresentar estas características.
O modelo da modernidade se revela hoje em profunda crise. A racionalidade-objetiva da ciência é questionada em termos de possibilidades e até mesmo de legitimidade. Antigos postulados da ciência são colocados em dúvida ou criticados diante de sua legitimidade. A ciência hodierna duvida de tudo, inclusive de si mesma. Não tem mais certezas. Suas leis mais rigorosas significam apenas alta probalidade de ocorrência (Souto, 1997:27). Não é preciso ir muito longe para descobrir este novo paradigma científico. Basta abrir um tratado de física para se confrontar com um discurso de relatividade de massa, de espaço-tempo e de probabilidade (física quântica). Hipóteses são edificadas com base em teorias filosóficas para explicar formas energéticas cada vez mais sutis. Partículas elementares são cada vez menores e seu comportamento individual se revela “anômalo como o de indivíduos humanos singulares e as regularidades observáveis se referem antes a conjuntos massificados de numerosas partículas sub-atômicas que formam, antes um mundo de possibilidades e tendências e não de fenômenos e coisas” (Souto, 1997: 27).
O refúgio das formas é a última trincheira do pensamento da modernidade. Como alguns fenômenos não podem mais ser compreendidos em seu conteúdo substancial, que pressupõe a idéia de certeza científica, a ciência moderna cultua um exasperado apego à forma, aos métodos e, por isso mesmo, cria seus próprios dogmas a partir da observância de rituais formais legitimadores, numa tentativa angustiante e desesperada de não perecer.
Acatar a legitimidade axiológica do discurso da modernidade, portanto, é converter os valores em formalismos inúteis e estéreis e manter um discurso de opressão que não tem causado senão dor e sofrimento aos seres humanos.
5. Axiologia e racionalidade num cenário pós moderno
É quase consensual que o fragmentário cenário que emerge daquilo que se convencionou chamar de pós modernidade põe em questão, de um lado os fundamentos da certeza e os limites da razão na epistemologia e, de outro, a necessidade de revitalização do sentimento, da paixão, em uma palavra, do amor, para o estabelecimento de “uma comunhão com tudo o que nos cerca ” (Boff, 2003:1).
A racionalidade ainda continua a desempenhar um relevante papel para a afirmação do conteúdo axiológico da sociedade, mas ainda se apresenta insuficiente para exercer este mister com exclusividade.
O hodierno movimento científico não pode abrir mão da racionalidade do homem. Entretanto, novas idéias são inseridas no discurso da ciência, que convive com a dúvida e com a necessidade de se estabelecer novos paradigmas, assentados na interiorização da vivência íntima do homem consigo mesmo.
Esta nova forma de pensar a ciência não afasta a abertura ao sentimento e à subjetividade (ao contrário do que anteriormente sucedia) e parece que é exatamente sobre estas bases que pretende se impor. Os limites epistemológicos expostos por Kant se acentuam ainda mais. O cientista deve produzir uma obra de arte que pode ser vista não sob um ângulo único, mas permite uma multiplicidade de possibilidades de compreensão, não mais relacionadas a conteúdos objetivos, mas aberta à própria compreensão do homem.
A ciência do Direito parece não ter rompido ainda o limite da pós-modernidade. Suas bases estão até hoje assentadas nas idéias da modernidade (em alguns casos, consoante afirmado, até mesmo antes dela). A racionalidade-objetivante exprimida pela norma legal e os dogmas dela decorrentes ainda persistem como únicas instâncias legitimadoras do pensamento científico-jurídico. Enquanto a ciência da matemática pura estabelece conceitos de relatividade em sistemas complexos, a ciência-jurídica ainda permanece exprimindo a inerrância legal. Enquanto a física quântica abre-se para formas cada vez mais sutis e indetermináveis de energia, o Direito continua refratário à subjetividade.
Percebe-se deste movimento, entretanto, que tudo é fluído, atemporizado, relativizado. Não há, neste cenário a busca pelo universal, pelo perene, pelo sistemático. Conseqüência disto é que a racionalidade pós-moderna também não pode indicar a direção segura de uma legitimação axiológica.
Na verdade, mesmo o pensamento pós moderno não foi capaz de romper com a idéia de que, de qualquer maneira que for considerada, a Justiça parece exigir uma hermenêutica fundamentalista. Talvez sequer tenha se ocupado decisivamente deste tema até agora. A confrontação da atividade humana com a totalidade do corpo social refreia em definitivo qualquer possibilidade de agir ético original. Os padrões de moralidade e os valores ontológicos existentes estabelecem os limites e os fundamentos de uma estereotipada virtuosidade. Aceita-se viver conforme o pensamento da maioria, sem questioná-lo. Quanto mais se aproxima dos padrões sociais estabelecidos, mais virtuoso é o homem. Os valores são absorvidos sem possibilidade de contestação. A aceitação passiva dos valores é corolário insofismável de uma ação virtuosa. É, portanto, exatamente nesta atitude passiva que reside a virtude. Esta situação tem se mantido desde que a falange espartana fundou uma nova areté, calcada na sophrosyne.
A reconstrução do itinerário de fundamentação da nova axiologia, portanto, ainda encontra-se aberto. Novas possibilidades de legitimação dos valores devem ser pesquisadas.
6. Justiça, lei e ethos de jesus cristo
A questão axiológica encontra suficiente fundamentação através de uma ontologia hermenêutica do discurso de Jesus. Com efeito, toda a pregação do Cristo pressupõe uma posição efetiva e positiva diante da busca do ser virtuoso (e, em conseqüência, da Justiça). Não se supõe mais uma submissão cega e inexorável diante do fundamentalismo das normas morais (manifestadas no contexto da Revelação no Sinai). O ethos do Cristo atinge o interior do ser, para onde devem ser lançados os olhos.
É inegável que a autoridade do logos cristão também se fundamenta num dogma de fé (exatamente como na modernidade). Ocorre que esta legitimação é diferente, na medida que seu fundamento transcende a própria religião e coloca-se altivo diante da racionalidade. Busca-se, é certo, a submissão ao Absoluto. Entretanto, o atuar nesta direção traz inquestionáveis benefícios ao corpo social.
Esta direção parece apontar para a Idade Média. Mas na verdade isto não acontece. Valendo-se da dialética hegeliana pode-se concluir que o momento atual, no que se refere à justificação dos valores, é de síntese entre a tese exprimida no período medieval e a sua conseqüente antítese vinda com a modernidade. Natural, portanto, que alguns movimentos do pensamento sejam revitalizados, agora à luz de um novo espectro. A crença no Absoluto deve ser vivenciada e, neste sentido, não tem razão a modernidade quando apregoou a sua absoluta exclusão. A afirmação da razão e da individualidade humana, entretanto, apregoadas pela modernidade e desconhecidas na Idade Média, também devem ser consideradas no momento de síntese proposto. Trata-se, portanto, de analisar o discurso de Jesus à luz da fé e da razão, com a rejeição dos dogmas.
Jesus Cristo afirma, em várias ocasiões, que a submissão a lei não é obra virtuosa e que a Justiça deve exprimir-se interiormente. Esta violenta revolução pos em questão a adesão dos fariseus à lei mosaica e evidentemente pode perfeitamente servir de analogia para a nossa situação atual e fornecer respostas àqueles que sustentam que todo o Direito se legitima na adesão a um comando normativo positivado. Absolutamente é insuficiente esta abordagem.
Para bem compreender o teor do discurso de Jesus Cristo, e a definição de virtude que dele se extrai, é necessário que esteja bem fixada a radicalidade da pregação, magistralmente exposta no Apocalipse. Assim é que os crentes são seriamente admoestados e instados a assumir uma posição de fervor e conversão, sem o que não podem agradar à Deus: “Porque és morno, nem frio e nem quente, estou para te vomitar de minha boca” (Ap 3, 16). As pessoas são chamadas a aceitar o projeto de Deus – exprimido no âmago de suas vidas e que não tem como pressuposto uma atitude passiva e contemplativa, mas positiva, solidária, denunciadora e radical, tal qual fizeram os profetas.
Quem não entende a radicalidade de Jesus não pode compreender o exato alcance do cerne de sua pregação, que é o amor, verdadeira virtude e norte hermenêutico para a análise de qualquer outra. Certamente Santo Agostinho entendeu perfeitamente a mensagem do Cristo ao afirmar: “Ama e faze o que quiseres” (2000:144).
O termo ágape, sinônimo de caridade ou amor, deve ser compreendido, entretanto, como uma profunda dimensão terrena de comunhão, exprimível somente à partir da constatação de seu paradigma divino, que se materializa numa generosidade transbordante, que toma como modelo a ação do próprio Pai que está no céu, “que faz nascer o sol igualmente sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos” (Mt 5, 45). Aliás, esta assertiva fica extremamente clara no texto bíblico momentos após, quando somos convidados a “ ser perfeitos como o vosso pai celeste é perfeito” ( Mt 5, 48 ).
O crente é chamado a celebrar uma aliança com Deus. Assente nesta aliança quem se julgar capaz de amar ao próximo na plenitude, como se ama a si mesmo. Dai porque quem ama no sentido proposto por Jesus, não precisa de outra norma – moral ou jurídica – para agir bem. É o próprio amor quem, conduzindo todos os passos da pessoa, promoverá nela uma atuação ética. A conversão proposta, portanto, outra coisa não é do que a entrega total e radical ao, “escravizando-se” por ele, mas paradoxalmente se libertando também por ele.
A estrutura conceitual que escriturística nos fornece sobre o amor se materializa no paradigma: “como a si mesmo”. A ação positiva que se espera, portanto, é exatamente aquela que esperamos que nos seja tributada pelo outro: “tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles, pois esta é a Lei e os Profetas” ( Mt 7,12 ).
É possível retomar neste momento o conceito aristotélico de virtude, que está intimamente relacionado com a felicidade, tida como a possibilidade de atuação da alma segundo a virtude. O desenvolvimento da virtude, portanto, provoca a felicidade no homem e o liberta (1996). Para atingir a virtude, ainda segundo Aristóteles, é necessário que se exercite em atos virtuosos. Na concepção cristã este exercício é feito através do amor.
Ora, é exatamente o agir sob esta ética cristã é que constituirá o agente numa autêntica liberdade (Pastor,1977). A mensagem do Cristo é de libertação e, portanto, essencialmente de amor. É atual (Lc 9,27) e pessoal. É conosco que o Deus-humano virtuoso, de carne e osso, vem conversar e oferecer o paradigmático exemplo; é para nós que se dirige o Cordeiro-imolado quando conclama ao amor e oferece em troca a liberdade plena e o status de “irmãos”. É estritamente pessoal e intransferível a proposta de assentimento à nova e eterna aliança. Jesus chama o homem pelo nome e se opõe terminantemente à massificação do ser humano.
O direito não pode ser escravo da norma. Valores são indispensáveis. A Justiça é o valor supremo do Direito. O discurso racional não logrou legitimar este valor. É dentro desta perspectiva que é anunciada a virtude do amor pelo cristianismo. Ela é a justificação da Justiça. Mais que uma virtude, na verdade um verdadeiro enunciado dirigente-axiológico, na medida que determina que todos os valores somente podem se justificar a partir dele. Qualquer ontologia hermenêutica do Direito, portanto, não pode se escusar da consideração de que, existindo para implementação das possibilidades existenciais do homem, deve a Justiça ser considerada dentro do prisma legitimador do amor e, neste diapasão, não pode tolerar as idéias de vingança e dominação que em geral tem determinado seu conteúdo.
Informações Sobre os Autores
Luiz Alexandre Cruz Ferreira
Mestrando em Direito na UNAERP.
Alexandre Mendes Cruz Ferreira
Graduando em Direito na UNAERP.