1. Notas introdutórias
Nas últimas décadas a família passou por inúmeras mudanças. Tantas foram as transformações ocorridas que a doutrina chega a utilizar a expressão “direito das famílias”, como defende Maria Berenice Dias, “em razão de melhor atender à necessidade de passar-se, cada vez mais, a enlaçar, no âmbito de proteção às famílias, todas as famílias, sem discriminação, sem preconceitos”.[1]
Esses novos tempos são também tempos de conflito, uma vez que as novas realidades apresentadas nas células familiares trazem consigo novos conflitos nos quais em muitas oportunidades a sociedade conjugal se desfaz.
Quando existe o rompimento do relacionamento afetivo, os integrantes da célula familiar buscam a tutela jurisdicional do Estado para “resolver” o litígio, contudo a má gestão desse conflito pode ocasionar grandes danos psicológicos ao casal e a seus filhos.
Por outro lado, novas práticas de tratamento[2] de controvérsias se apresentam como uma nova alternativa aos litígios familiares. Neste texto, em especial, analisaremos a mediação como fio condutor o restabelecimento da comunicação entre as partes, sem a imposição de regras, auxiliando-as a chegar a um reconhecimento recíproco que produza uma nova percepção do conflito.
2. Características dos conflitos familiares
Como bem expressa Rodrigo da Cunha Pereira, quando “os restos de amor forem levados ao judiciário”[3], a belicosidade que se expressa nas causas da família torna-se cada vez mais preocupante, pois a dor que gera nos filhos do casal que se separa não traduz apenas um sofrimento momentâneo, mas tem a possibilidade de provocar prejuízos emocionais que podem se estender pela vida toda,[4] sendo de fundamental importância a preservação da saúde mental dos indivíduos que nela estão inseridos. [5]
A ruptura da sociedade conjugal trata-se de um fenômeno complexo, uma vez que
“Toda a complexa tecelagem afetiva consciente e principalmente inconsciente apresenta-se, então, sob forma do antigo e delicado bordado, desenhado desde a escolha do cônjuge, na relação marido-mulher, no exercício da parentalidade, na inserção da família no social. O que é trazido ao judiciário agora é o avesso do tecido, muitas vezes irremediavelmente roto, desbotado, danificado, a pedir restauração. O ato de ruptura, que culmina com a crise, está muito além da separação do casal. Certas questões históricas advindas de necessidades ainda mais remotas nas trajetórias dos hoje autor e réu representam a versão atualizada dos impasses que determinam o conflito atual”.[6]
A separação, especialmente numa família com filhos, não é uma crise tão simples de ser superada. O sofrimento é muito grande para todos e a possibilidade de se chegar a uma solução razoável fica mais distante[7].
Nesse contexto, “o ajuizamento da petição inicial toma a forma de uma autêntica “declaração de guerra” – a partir de então só se fala em ganhar ou perder, o estresse e o sofrimento são inevitáveis e marcas indeléveis”.[8] Este sofrimento torna-se ainda mais acentuado quando os filhos do casal são usados como meros instrumentos de agressão entre aqueles que um dia se uniram para construir uma vida em comum e para concebê-los[9].
Desta forma, “parece improvável que, para as questões movidas por intensa problemática de cunho emocional e afetivo, os tribunais de família possam produzir respostas de caráter regulador e universal, capazes de suturar o mal-estar e contemplar aquilo que, estruturalmente, situa-se no campo subjetivo dos litigantes, não suscetível à regulação externa.[10]
De fato, “as disputas familiares, por definição, envolvem relacionamentos que precisam perdurar. A síndrome do perde-ganha dos tribunais provoca um verdadeiro desastre numa família que se desfaz”.[11] Uma das provas de ineficiência do sistema contencioso é o ajuizamento de inúmeras e sucessivas demandas envolvendo a mesma entidade familiar, quando sua dissolução não tiver como norte meios que verdadeiramente possam terminar com o conflito.
Quando o matrimônio chega ao fim tornando-se impossível a convivência do casal, começa uma complexa negociação. Negociam-se as perdas afetivas no mesmo rol das materiais. São múltiplos os divórcios em uma única separação, o psíquico, o emocional, o físico, o financeiro, das famílias primárias, dos amigos, dos filhos, este de gravidade extrema, quando se tornam objeto de barganha do casal conjugal. Eles não são simultâneos e, na maioria das vezes, ultrapassam o momento da legalização da separação. Estas pautas tóxicas, alimentadoras e sustentadoras das disputas poderão ser exorcizadas e conduzir os litigantes à harmonia mediante a utilização de métodos alternativos de resolução de conflitos (Alternative Disput Resolution); um deles, a mediação.[12]
Assim, necessidade de um trabalho interdisciplinar, envolvendo profissionais de diversas áreas, como advogados, psicólogos, assistentes sociais, entre outros, para tratar de conflitos familiares, vem cada vez mais sendo enfatizada para proporcionar uma prestação de serviço mais adequada e eficaz às famílias que estão em conflito.
3. A proposta da mediação
A mediação é um processo que pode dar uma importante contribuição para a resolução pacífica das disputas.[13] Ela surge como uma outra alternativa, substituindo o modelo conflitual apresentado pelo Poder Judiciário.[14] A argentina Marta Oyhanarte a sintetiza como uma “herramienta de progreso y pacificación”.[15]
Assim, “muito mais do que um acordo, a mediação preconiza o potencial de transformação das pessoas, pois representa a expressão de uma visão relacional, amparada na consideração e no respeito às diferenças”.[16] Isso se dá porque a mediação pode ser definida:
“como a interferência em uma negociação ou em um conflito de uma terceira parte aceitável, tendo um poder de decisão limitado ou não-autoritário, e que ajuda as partes envolvidas a chegarem voluntariamente a um acordo, mutuamente aceitável com relação às questões em disputa. Além de lidar com questões fundamentais, a mediação pode também estabelecer ou fortalecer relacionamentos de confiança e respeito entre as partes ou encerrar relacionamentos de uma maneira que minimize os custos e os danos psicológicos.”[17]
Estatísticas de países que utilizam a mediação com regularidade apontam para um percentual superior a oitenta por cento de casos bem sucedidos [18]. A utilização de outros meios de tratamento de conflitos oferece um resultado rápido e de baixo custo, além de propiciar a participação dos cidadãos na solução de seus verdadeiros conflitos[19].
Constitui um método apropriado para “transformar” os conflitos, não se limitando a “resolvê-los”, pelo que se pode afirmar que a mediação familiar exerce uma função “curativa e profilática dos conflitos familiares”.[20] Se isto ocorre, “a observância do acordo independe de qualquer força executiva, visto que, tendo sido o conflito tratado pelas partes e por elas solucionado, o seu cumprimento é conseqüência natural”[21].
Existem outras possibilidades de aplicabilidade da mediação familiar, além dos casos de dissolução da relação conjugal, quais sejam: em caso de adoção e apoio para o momento posterior a adoção; nos casos de guarda; entre pais e filhos; sobre a assistência a idosos e em disputas sucessórias[22].
Processo informal, particular e confidencial, a mediação estabelece a negociação conduzida pelo mediador. Por sua vez, este levará os participantes a construírem seus próprios acordos, mutuamente aceitos, de maneira que permita, de forma criativa, que os envolvidos no conflito possam dar continuidade a um tipo de relacionamento construtivo, sem enfrentamentos, evitando-se condutas hostis, agressivas ou vingativas[23]. Por isso, “as partes do conflito precisam resolver questões complexas instauradas muito além do aspecto unicamente legal. E a mediação é uma forma de possibilitar momentos de comunicação entre o casal resolvendo questões emocionais que possibilitem uma separação ou um divórcio baseado no bom senso, e não na vingança pessoal”.[24]
O objetivo é facilitar acordos duráveis que permitam salvaguardar a proteção dos processos de crescimento e de individuação.[25] Contudo, como destaca Clóvis Gorczevski, o “importante não é suprimir os conflitos a qualquer custo porque esses só têm conseqüências daninhas e perigosas. Melhor é se encontrar a forma de criar condições que alimentem uma confrontação construtiva e vivificante deles”[26].
Parece acertado dizer que a mediação, “tem o poder de operar mudanças ou transformações, abrindo inúmeras portas e caminhos para que cada pessoa envolvida no processo de mediação escolha o percurso mais conveniente a si e a seu adversário, na situação conflitiva vivida naquele momento. Trata-se de um processo que confere autoridade a cada uma das partes, legitimando suas posições e decisões”. [27]
As pessoas são levadas a agir cooperativamente, diante de opões realistas, e não a fazer acusações desmedidas ou pleitos baseados unicamente em seu posicionamento pessoal.[28]. Assim, “há um resultado terapêutico, sem que ela seja uma terapia”[29].
O processo de mediação familiar requer do mediador conhecimento de relações interpessoais, habilidade no manejo do conflito e em negociação e conhecimentos básicos de Direito de Família. Isso se consegue com o trabalho interpessoal/interdisciplinar de um psicólogo (ou de outro profissional da área da saúde mental) e de um advogado. Trabalhando em conjunto e aplicando as técnicas específicas do processo de mediação, eles conduzirão as partes por um caminho menos pedregoso, amaciando o solo por onde os litigantes deverão passar até formalizarem legalmente o rompimento, mas isto não quer dizer que sempre os mediadores tenham que trabalhar em duplas [30].
Para John Cooley, “o mediador tenta manter as partes que estão se divorciando ou divorciadas centradas no futuro e as estimula no sentido de passar por vários estágios emocionais na direção de uma resolução mutuamente benéfica para elas próprias e para quaisquer filhos envolvidos”.[31]
Por conseguinte, “o mediador deve funcionar como um timoneiro, que orienta a direção do navio sem interferir no seu curso”[32]. O seu destino, como defende Gisele Câmara Groeninga, é o de ser “abandonado” pelos mediandos que o substituem pela comunicação entre si, dispensando este “guarda de trânsito” da comunicação [33]. Desse modo o mediador não é um mágico ou feiticeiro, tampouco precisa ser um psicólogo ou advogado, mas carece de conhecer leis, estabelecer um momento empático com as partes e, sobretudo, na magia do ato da mediação, lançar o feitiço das palavras que orientem uma satisfação possível compreendida através de sua sensibilidade para ver o outro além de si, em sua leitura do conflito.[34]
O objetivo é ajudar as partes a enxergar a separação sob outros prismas, principalmente quando as situações envolvem a convivência com os(as) filhos(as)[35]. Mais, seu objetivo é construir uma nova relação a partir daquele momento, com a atenção voltada ao futuro, e não aos acontecimentos anteriores [36].
A mediação resgata a fala como meio de explicitação dos interesses ocultos, e, ao restabelecer a arte do diálogo como uma prática fecunda de falar e ouvir, promove a consideração à diferença como ponto de partida para o exercício da convivência humana.
Enquanto um procedimento de resolução pacífica de conflitos, sua prática possibilita às pessoas identificarem seus verdadeiros interesses em uma situação de conflito. [37]
É dever do Direito de Família constitucionalizado utilizar a multidisciplinariedade, ou seja, o direito à psicologia, à psicanálise, à sociologia e a conhecimentos de outras áreas para conseguir alcançar uma mediação familiar[38].
4. Considerações finais
Em um país em que se encontram, atualmente, em tramitação cerca de 45 milhões de processos, que a cada ano somam-se mais 22 milhões, é imperiosa a criação de novas alternativas para o tratamento dos litígios familiares, até como forma de concretização da “razoável duração do processo”, inserida pela Emenda Constituicional n. 45/04, incluindo o inciso LXXVIII ao art. 5º da Constituição Federal, e também, como forma de resposta quantitativa e qualitativa aos conflitos apresentados ao Judiciário.
Além disso, o uso da mediação poderá contribuir para que os fenômenos da reincidência processual, morosidade e do custo elevado das ações judiciais sejam reduzidos, uma vez que tal procedimento produz resultados qualitativamente duradouros em relação àqueles estabelecidos por intermédio da imposição da sentença.
Ao final, tem-se que a implementação de políticas públicas que visem a implementação da mediação nos conflitos familiares, poderemos chegar ao estágio em que as demandas familiares deixem de ser analisadas pelo Judiciário “como meras abstrações jurídicas, olhando-se para os protagonistas dos processos judiciais como pessoas com rostos e histórias que querem respostas qualitativas e céleres para suas demandas”.[39]
Assim, impositiva se mostra a utilização da mediação para a solução de conflitos familistas.
Informações Sobre o Autor
Conrado Paulino da Rosa
Advogado. Mediador Familiar. Mestre em Direito pela UNISC, com a defesa realizada perante a Università Degli Studi di Napoli Federico II, em Napoles – Itália. Professor do Centro Universitário Ritter dos Reis – UNIRITTER, em Porto Alegre e Canoas. Coordenador da Pós-Graduação em Direito de Família Contemporâneo e Mediação da ESADE. Membro da Diretoria Executiva do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM/Seção RS.