Resumo: Este estudo apresenta considerações sobre o direito de superfície que o remetem a uma nova perspectiva, não mais sob a ótica do individualismo e absolutismo do direito de propriedade outrora existente, mas como instrumento disponível para promover o reconhecimento e a proteção da dignidade humana na produção de moradias adequadas, formais e a um amplo espaço de inclusão social. Para tanto é feita uma revisão bibliográfica sobre o retorno do direito de superfície no ordenamento brasileiro, sobre as formas pelas quais ele pode ser identificado na sociedade e sobre a sua importância como instrumento capaz de operar algumas das transformações sociais implementadas pelo Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: direito de superfície, inclusão, moradia.
Abstract: This study it presents consideration on the surface right that send it perspective to a new, not more under the optics of the individualism and absolutism of the right of long ago existing property, but as available instrument to promote the recognition and the protection of the dignity human being in the production of adjusted, formal housings and to an ample space of social inclusion. For in such a way a bibliographical revision on the return of the right of surface in the Brazilian order is made, on the forms for which it can be identified in the society and on its importance as instrument capable to operate some of the social transformations implemented by the Democratic State of Right.
Word-key: right of surface, inclusion, housing,
Sumário: Introdução, 1.O retorno do direito de superfície; 2. Informalidade de exclusão; 3. Direito de sobrelevação; 4. Segurança jurídica da posse; 5. Propriedade do solo e propriedade da construção; 6. A importância sócio-econômica do direito real sobre a construção; Considerações finais; Referências bibliográficas.
Introdução
A superfície do solo urbano para a sociedade periférica brasileira tem hoje uma nova perspectiva: insere-se como objeto de necessidade básica, para garantir a vida com dignidade, por meio do acesso à moradia como direito novo capaz de satisfazer essa necessidade.
Como direito novo, o direito à moradia nasce de um processo de lutas, reivindicações e conquistas coletivas, travadas por identidades e interesses comuns que são reconhecidas pelo Estado[1] a partir da ação dos movimentos sociais, em especial do movimento dos sem-teto, que, em busca da efetivação do direito à moradia e como forma de protesto ante o não-atendimento de suas reivindicações, promovem manifestações e ocupações, principalmente em prédios públicos. Essas ações desencadearam um processo de reconhecimento por parte do poder estatal da existência deste novo direito, a partir da Constituição Federal de 1988. E do reconhecimento desse novo direito surgiu a necessidade de se regulamentar políticas urbanas capazes de efetivá-lo, o que se promoveu por meio do Estatuto da Cidade, apresentando instrumentos capazes de possibilitar a concretização desse direito, e entre eles, a concessão do direito de superfície.
1 O retorno do direito de superfície
O retorno do direito de superfície à ordem pública constituída é o resultado das lutas e conquistas dos movimentos sociais e setoriais pelo reconhecimento de seu direito à moradia e por instrumentos que proporcionem o acesso à moradia digna, e não um benefício dado aleatoriamente pelo poder legislador. Assim, o reingresso do direito de superfície no direito brasileiro inaugura sua nova fase: como instituto que torna possível a construção de um Brasil mais humano e solidário, no qual a valorização da pessoa humana e o direito à moradia digna não podem mais ser adiados, tornando-se, então, um instrumento, para que as propriedades territoriais, especialmente as urbanas, desempenhem sempre uma função social, e dentre estas, a de proporcionar moradia adequada e formal.
Por esta perspectiva, o direito de superfície, na atualidade, pode ser relacionado com o direito de superfície romano apenas pela significação histórica que traz deste[2], pois as transformações pelas quais passou, nos diversos ordenamentos e especialmente no Brasil, fizeram com que tivesse hoje uma nova configuração. Esta nova configuração diz respeito ao uso do direito de superfície com atribuições técnicas voltadas para a concretização das finalidades propostas pelo Estado Democrático de Direito, de forma que ao se analisar os seus aspectos técnicos pode-se perceber que este pode, ao mesmo tempo, proporcionar e produzir moradia adequada, segurança jurídica da posse e propriedade formal e, com isso, um amplo espaço de inclusão social.
Nesse horizonte, apresenta-se como instrumento de utilidade na valorização da vida nas cidades, pois, em virtude do crescente aumento da falta de habitação adequada e da conseqüente degradação da pessoa humana, como pode ser observado nos imensos grupamentos humanos existentes nas favelas e cortiços e que submetem homens, mulheres, crianças, idosos e deficientes à exclusão não somente da habitação adequada, mas de todas as demais formas de proteção da vida humana, é urgentemente necessário que se criem e utilizem instrumentos capazes de minorar esse quadro de informalidade e exclusão.
2 Informalidade e exclusão
O processo de favelização na sociedade brasileira teve origem em vários fenômenos sociais, que atingiram seu auge principalmente a partir da segunda metade do Século XX, em razão do processo migratório, da explosão demográfica, do desemprego, de uma legislação excessivamente rigorosa, no que se refere ao parcelamento do solo urbano, e da omissão do Estado na implementação de políticas públicas adequadas e suficientes para prover a demanda por habitação adequada.
A favela representa, sem dúvida, o retrato estigmatizado da exclusão social marcada pela pobreza, pela violência, pela marginalização, pela degradação da pessoa humana, e principalmente pelo afastamento do Estado. Nesse aspecto, ela nasce, cresce e se reproduz autonomamente, a partir da informalidade da forma de habitação, mas que se reflete na exclusão da saúde, da educação, da segurança, do mercado de trabalho, de infra-estrutura básica, da dignidade.
Santos define a favela como sendo “um espaço territorial, cuja relativa autonomia decorre, entre outros fatores, da ilegalidade coletiva da habitação à luz do direito oficial brasileiro.”[3] Para ele, a favela nasce a partir da informalidade que se cria no momento em que certo grupo passa a fixar sua moradia em determinado espaço territorial, sem titulação de propriedade territorial sobre o mesmo. É o assentamento em gleba não loteada, ou em área de domínio público, em reserva ambiental, em morros sem condições de habitabilidade e que, por esse motivo não tem acesso à formalização prevista pelo sistema imobiliário no direito oficial brasileiro.
A formalização prevista pelo atual sistema oficial brasileiro segue normas excessivamente rígidas e dispendiosas no que se refere ao parcelamento do solo urbano, pois fixa tamanho de lotes, proporção de arruamentos, áreas de lazer, reservas verdes, e que todos os custos com a construção da infra-estrutura sejam suportados pelo loteador privado, fazendo com que o valor do acesso aos lotes formais esteja distante da realidade sócio-econômica de grande parte da população brasileira.
Desta forma, quem não pode pagar pelo preço final do solo formalizado para edificar sua habitação, vai adquiri-lo no mercado informal daquele que não regularizou o parcelamento do solo conforme o sistema oficial, de acordo com a necessidade e capacidade econômica da população pobre, por esta razão, na informalidade. Por saberem que estão na informalidade com relação à aquisição do solo que habitam as pessoas que fazem parte destes grupamentos não precisam seguir as regras do direito oficial brasileiro sobre arruamentos, tamanho de lotes, forma e tamanho de construções, destinação de áreas. Não precisam de qualquer autorização do poder público para edificar, demolir, reconstruir.
Passam a ser atraídas pela possibilidade de construírem, aos poucos, a sua moradia, conforme suas condições financeiras lhes permitam[4]. Nessa situação, o movimento de pessoas, de construções e de “puxadinhos”, fazem com que a paisagem da favela torne-se uma pintura que se transforma todos os dias, pela rapidez com que as negociações acontecem. Fora do sistema oficial, desenvolve-se dentro deste espaço um outro direito não-oficial que passa a ter vigência paralelamente, ou em conflito, com o direito oficial brasileiro, que é administrado pela associação de moradores, responsável pela prevenção e solução dos conflitos decorrentes da posse do solo e dos direitos sobre as construções.
Dessa informalidade na questão habitacional nasce para a comunidade da favela, segundo o estudo desenvolvido por Santos, um auto-reconhecimento por parte dos moradores de que, como estão em situação ilegal, pois contrários ao sistema oficial vigente, são eles próprios “ilegais” no que se refere ao sistema oficial brasileiro como um todo, refletindo-se, assim, a informalidade com relação à moradia, para todas as outras relações sociais desses moradores, fazendo com que, mesmo que os conflitos não digam respeito às questões de moradia, não sejam levados ao sistema jurídico oficial para solução.
É importante salientar que não estão totalmente errados nesse aspecto, pois o Estado não lhes proporciona infra-estrutura básica, para que tenham uma vida digna, justamente por estarem em desacordo com o sistema oficial. O Estado esteve omisso durante todo o processo de formação das favelas e continua sendo nas situações já consolidadas de posse do solo e de toda a proteção da vida e da dignidade humana nestes espaços.
Do que se pode entender que a exclusão na qual são jogados milhares de moradores de favelas em todas as cidades do país tem um duplo sentido: um, dos próprios moradores, que, por estarem investidos em uma posse territorial que está fora do sistema oficial, são ilegais e esta ilegalidade se reflete em outros campos de ação social destes moradores, fazendo com que não busquem a proteção e a intervenção Estatal na solução de seus conflitos e concretização de seus direitos. Afinal, para eles, para que serve o Estado? Eles não têm habitação, alimento, trabalho, saúde, água potável, energia elétrica, redes de esgoto. O Estado para eles é um ente fictício do qual não dependem e com o qual não se reconhecem; e ainda, um outro, do próprio Estado que não reconheceu, e ainda não reconhece, sua obrigação Constitucional de preservar, valorizar e garantir a dignidade humana nessas comunidades, e em todas as outras comunidades, proporcionando-lhes, no mínimo, segurança e infra-estrutura básica, não o fazendo, com fundamento no fato de que o espaço territorial ocupado pelas favelas não possui a aprovação pela legislação em vigor no direito oficial. Com isso, o Estado ausenta-se cada vez mais de seu dever.
A autonomia das relações sociais existentes nas favelas faz com que nasça nelas um direito não-oficial, capaz de criar figuras e negócios inexistentes no sistema formal, mas que são plenamente aceitos e respeitados pelos membros dessas comunidades. Um exemplo disso, com relação às questões habitacionais e suas negociações, é o direito de laje, comum nas favelas brasileiras e pelo qual a própria comunidade encontrou soluções para seus problemas de moradia.
3 Direito de sobrelevação
Como as práticas sociais sempre se antecipam ou, por vezes, existem independentemente do ordenamento jurídico positivado, em virtude de a discussão sobre o retorno do direito de superfície ao ordenamento brasileiro vir de longa data, nem o estatuto da cidade, nem o Código civil previram algumas situações que são comuns na sociedade brasileira. Uma delas, e de grande importância sócio-econômica, é a sobrelevação no direito de superfície, ou seja, a concessão de uma superfície sobre outra já concedida, ou o “direito de laje” como é conhecida, prática muito comum nas favelas brasileiras.[5]
O direito de sobrelevação no direito de superfície é plenamente aceito pela legislação suíça, que o permite e regula, diferentemente do que acontece com o sistema oficial brasileiro, no qual não se prevê esta modalidade do direito de superfície. [6] Segundo Lira, a sobrelevação é “a possibilidade de o titular da propriedade superficiária construir ou conceder a um terceiro que construa sobre a sua propriedade superficiária.” [7]
Em razão do pluralismo jurídico que nasce nas favelas, fundado no afastamento desses grupamentos humanos do sistema jurídico oficial, nas quais vigora um outro direito, criado pelas normas existentes em cada comunidade específica, de acordo com seus próprios interesses, propondo uma definição de direito e de justiça diferente daquela apresentada pelo direito oficial, criou-se uma prática social plenamente aceita e regrada por essas comunidades, denominada de “direito de laje.”
Para essas comunidades, o direito de laje refere-se ao poder de disposição que o proprietário da construção tem sobre o espaço aéreo imediatamente superior à sua construção e que, pela cultura popular desenvolvida nas favelas, lhe pertence por direito. A laje, para o costume social praticado na favela, tem um importante papel nas atividades sociais e de lazer dos seus moradores. Uma vez que, normalmente, nas construções não existem áreas do solo destinadas ao lazer dos moradores, pois cada espaço do solo é aproveitado, a laje acaba desempenhando o papel de extensão da construção no que se refere às áreas de lazer e torna-se palco das reuniões sociais com as famílias e com os amigos nos finais de semana, do cultivo de plantas e dos mais diversos interesses dos moradores, sendo facultado a estes que vendam o direito sobre a laje, para que outra pessoa nela edifique sua moradia.
Da relação proprietária da construção com a sua superfície no sentido horizontal, nasce na laje, além da extensão desta para uso e comodidade do proprietário, a apropriação do direito de laje, decorrente das relações com a família, pois com o surgimento de um novo grupo familiar, o pai ou a mãe cede o direito de laje, para que o filho, ou filha, edifique nela sua moradia.
Analisando a questão das construções que possuem os moradores das favelas, em relação ao direito oficial, verifica-se que o seu direito sobre elas é um direito informal de superfície, pois o solo na grande maioria das situações pertence ao poder público, ou a outro particular, que muitas vezes nem eles próprios sabem quem é. O que realmente importa é a construção, portanto o direito que têm resume-se à construção. Assim compreendido, o direito de laje seria o direito sobre um outro direito (oficial ou não), sobre a superfície do solo que pode ser vendido, permutado, doado, enfim, objeto de todos os atos de disposição.
4 Segurança jurídica da posse
O direito de superfície, embora guardando formalidades iguais às constantes em concepções passadas com relação a alguns aspectos técnicos, representa hoje uma perspectiva diversa: abrindo um horizonte de possibilidades, para que se possa promover a dignidade humana por meio do acesso à habitação, de forma que as peculiaridades técnicas do mesmo servem como garantia de efetivação do direito que os superficiários passam a ter sobre as construções propriamente, ou sobre o direito de edificá-las. Não se pode, portanto, deixar de enfrentá-las neste trabalho, pois essas peculiaridades técnicas justificam a importância do direito de superfície no processo de inclusão ao direito de moradia.
Com relação a esse aspecto, basta ver que o caráter de direito real oponível erga omnes e o direito de seqüela, que outrora eram a expressão do domínio absoluto do direito do proprietário e que lhe eram assegurados mesmo que este não fizesse nenhum uso do bem, possui, por esta nova perspectiva, a finalidade de garantir ao superficiário a segurança jurídica da posse, garantindo-se que este não será forçosamente afastado de sua moradia, e se o for, terá a possibilidade de recuperá-la, situação que lhe proporciona uma posse tranqüila, livre de injustiças ou arbitrariedades.
O direito de superfície, como um direito autônomo e temporário de fazer e manter construção ou plantação sobre solo alheio, envolve dois sujeitos de direitos: o concedente, que cede a superfície; e o superficiário, que adquire a superfície construída ou sem construção, para nela edificar.[8] Esses dois sujeitos podem ser públicos ou privados, o que possibilita que os bens públicos também possam ser submetidos à concessão do direito de superfície, principalmente para a instrumentalização de políticas urbanas na construção ou melhoria das edificações existentes. Permite que os proprietários privados também possam dar cumprimento à função social de sua propriedade, conferindo, assim, ao superficiário, a posse e o domínio sobre a superfície, resultando para este o poder de disposição para alienação, oneração, ou sucessão do referido direito.[9]
Com base na proteção jurídica desse poder de disposição que tem o superficiário, este pode alienar a superfície, quando lhe seja conveniente, assim como também pode onerá-la, oferecendo-a como garantia hipotecária, para conseguir financiar a própria construção, possibilidade que aproxima uma grande parte da população pobre da inclusão habitacional segura, adequada e formal.
Compreende-se a essência do direito de superfície nesse novo cenário social, no qual se verifica que a finalidade para a qual a superfície pode ser cedida é aquela que diz respeito à produção de moradias ou de locais de trabalho adequados às necessidades humanas de segurança da posse, de salubridade, de proteção da dignidade, perspectivas que fizeram com que ele ressurgisse com características que não se confundem com as características de outros institutos do Direito Civil brasileiro, por não proporcionarem a estes a segurança jurídica de seu direito sobre a construção, como o que ocorre com a locação, com a enfiteuse, com o arrendamento, com o condomínio edilício; ou com a concessão de direito de uso, pois nesses negócios jurídicos a posse é exercida de forma limitada.
A locação e o arrendamento possuem um caráter meramente obrigacional. Tanto o arrendatário quanto o locatário jamais tonar-se-ão proprietários da coisa locada ou arrendada, portanto não atribuem aos mesmos a proteção jurídica que o direito de superfície atribui ao superficiário, que se torna proprietário da edificação ou da plantação sobre o solo. O arrendamento e a locação pressupõem sempre um pagamento como requisito necessário para a constituição do referido negócio_ enquanto que no direito de superfície este pagamento não é de sua essência_ possibilitando que a concessão da superfície seja feita de forma gratuita, especialmente quando o proprietário do solo for o poder público e o superficiário pessoa de baixa renda, que não tem possibilidades de adquirir moradia adequada.
Com relação ao usufruto, mesmo havendo a divisão do domínio entre o nu-proprietário e o usufrutuário, o usufruto não pode ser alienado, pois é instituído intuitu personae, nem admite transmissão sucessória, restringindo-se a vitaliciedade do usufrutuário. O direito de superfície, por outro lado, pode ser transmitido por ato entre vivos ou por sucessão. Isso permite que a concessão do direito de superfície, atribuída a uma pessoa, possa continuar garantindo moradia digna para sua família, mesmo após a morte do titular do direito, pois o direito que tinha transfere-se aos seus herdeiros.
Com relação à servidão, esta exige a existência de prédios distintos, de forma que um seja o prédio dominante e o outro o prédio serviente, visto ser, este poder sobre o solo, totalmente diverso daquele decorrente da concessão do direito de superfície, pois a moradia formal pressupõe a possibilidade de que seu proprietário seja titular de um domínio capaz de aliená-la, substituí-la por outra que lhe possibilite melhores condições de vida, de prosperidade e de dignidade.
No direito de superfície não existe a obrigatoriedade de que a concessão seja onerosa, podendo, assim, o domínio sobre a construção ser concedido de forma gratuita, [10] e a partir da concessão, o superficiário, respeitado o direito de preferência do proprietário do solo, pode alienar livremente a superfície. Esse poder de disposição da construção faz parte da proteção jurídica do direito de superfície, uma vez que não se poderia vislumbrar liberdade no direito à propriedade superficiária e à moradia digna se esta continuasse a depender da anuência e do poder dominial do proprietário do solo.
Apresenta, ainda,o direito de superfície, uma proteção dominial muito mais completa do que aquela proporcionada pela propriedade em condomínio edilício, pois a principal característica do condomínio edilício é a condição de existência da propriedade plena e exclusiva da unidade autônoma, juntamente com a existência da propriedade em condomínio sobre as partes de uso comum[11], sobre as quais corresponde sempre uma fração ideal na propriedade do solo. Pois, no direito de superfície, a propriedade sobre a construção é plena e exclusiva do superficiário, não havendo nenhum tipo de condomínio que se estabeleça entre o superficiário e o proprietário do solo. O domínio da construção se exerce de forma plena, conferindo ao titular desse direito toda a autonomia inerente ao direito de propriedade.
É, ainda, a concessão do direito de superfície um direito muito mais amplo e atribui ao superficiário um poder dominial sobre a construção muito maior do que aquele que é atribuído na concessão de direito de uso, visto que nesta não se transmite propriedade, apenas o uso, trata-se de um direito real limitado que não pode ser constituído pela via testamentária e pressupõe sempre uma autorização legislativa para a sua implementação, visto ser essencialmente ato de direito público.[12]
O direito de superfície é um direito autônomo que não se confunde com nenhum outro instituto de direito real ou de direito pessoal. Nele, tanto os direitos do dominus soli, quanto os do superficiário são direitos típicos, razão pela qual não se pode tentar assimilá-lo a outros institutos. O dominus soli tem o direito de receber o pagamento pela concessão, quando esta for onerosa, e de adquirir a construção ou plantação no momento do término do direito de superfície e conseqüente retorno do princípio da acessão, se não for pactuado de forma diferente pelos contratantes. O superficiário, por sua vez, tem direito de utilizar a superfície concedida, nela edificando ou plantando, exigindo que todos os demais e que o estado se abstenham de perturbar o exercício do seu direito[13], inclusive por meio das proteções possessórias.
No direito de superfície estão compreendidas duas relações jurídicas distintas: a primeira entre o superficiário e o proprietário do solo, na qual este renuncia, temporariamente, ao princípio da acessão, permitindo que outra pessoa edifique construção própria em seu terreno; a segunda entre o superficiário e a construção, [14] na qual o superficiário tem o poder de domínio sobre a edificação, que não desaparece nem mesmo com a destruição desta, pois sempre poderá reconstruí-la, sem que o seu direito sobre a superfície do solo se extinga.
A relevância do direito de superfície frente aos demais instrumentos apresentados pelo Estatuto da Cidade na produção de moradias, como também no Código Civil em cumprimento do princípio da função social da propriedade, deve-se fundamentalmente a duas características específicas deste direito e que inexistem em outros instrumentos: a suspensão do princípio superfície solo cedit que permite a propriedade da construção ou da plantação separadamente da propriedade sobre o solo; e, o seu reconhecimento como direito real, peculiaridades estas que, mesmo tendo origem no direito romano, atribuem a ele uma perspectiva atual, pois usado para resolver questões da sociedade atual .
Nesse contexto de peculiaridades técnicas do direito de superfície no direito brasileiro verifica-se que ele se insere perfeitamente às necessidades decorrentes da nova perspectiva da propriedade, como meio que permite democratizar o acesso ao solo urbano, possibilitando que se trilhem caminhos rumo à efetivação do princípio de proteção e preservação da dignidade humana, criando condições concretas para proporcionar moradia adequada à população pobre. Representa, portanto, um instrumento de fundamental importância para a execução da política urbana, de acordo com o tratamento dado a ela pela legislação urbanística federal, na qual a dignidade da pessoa humana e a proteção e produção de moradias dignas são pressupostos do Estado Democrático de Direito.
5 Propriedade do solo e propriedade da construção
O primeiro passo, para que se tente construir uma definição atual do direito de superfície, é compreendê-lo a partir de suas matrizes originárias. Esta construção se inicia pelo entendimento da acessão como forma de aquisição do domínio tanto no direito de superfície atual, quanto o era para os romanos.
Até Justiniano, as construções que se edificavam sobre o solo acediam a este, passando a pertencer ao proprietário do solo, pelo princípio do superfícies solo cedit. Os romanos tinham uma regra também para as acessões de plantações, e não apenas de construções. Por essa regra, se a planta não possuísse raízes profundas, a pessoa que a havia plantado tornar-se-ia proprietária dela; se a planta possuísse raízes profundas, incorporava-se ao solo e o proprietário do solo passava a ser proprietário também desta, pois, a superfície é parte integrante do solo, tanto imediatamente abaixo, quanto imediatamente acima deste[15].
O direito europeu, e por conseqüência o direito ocidental, herdou este princípio, mantido até hoje como regra geral das acessões que se fazem ao solo. Entretanto, em algumas situações específicas se criaram exceções a esta regra geral. No caso da concessão do direito de superfície para pessoa diferente do proprietário do solo, suspende-se temporariamente a eficácia do princípio da acessão,[16] e aquele que edificou, ou plantou, passa a ser o proprietário da edificação ou plantação, separadamente do solo no qual se assentam. Segundo Lira, a acessão é a união entre duas coisas, que embora possam ser reconhecidas separadamente, formam um conjunto indissolúvel, e a coisa acessória subordinada e dependente do todo segue seu destino jurídico.[17]
Pelo direito brasileiro codificado de 1916, a acessão se dava sempre em favor do proprietário do solo, e era considerada como forma de aquisição da propriedade imóvel, presumindo-se serem do proprietário do solo todas as construções ou plantações existentes neste.[18] Forjado na idéia da propriedade absoluta e individualista o pensamento jurídico- legislativo brasileiro da época não conseguia admitir a suspensão da eficácia do princípio da superfície solo cedit por razões claras: a propriedade deveria ser plena e una (um imóvel = um proprietário pleno). Basta ver que para todas as situações jurídicas, nas quais houvesse a divisão da propriedade, sempre havia uma regra para facilitar o retorno à propriedade plena. Como o direito de superfície suspende este princípio, ele foi justamente por esta razão afastado pela codificação civil brasileira da 1916.
O princípio da superfície solo cedit se manteve como regra geral mesmo após a vigência do Código Civil brasileiro de 2002, mas admitindo que em determinada situação este princípio seja suspenso, como é o que acontece com a concessão do direito de superfície. Essa peculiaridade modifica substancialmente a concepção da propriedade como una e absoluta, e passam a existir dois direitos diferentes sobre ela. O direito do proprietário sobre o solo e sobre o acessório não mais é tido como absoluto, pois pode ser dividido.
Com esta divisão de direitos de propriedade diferentes se possibilita que cada um deles possua um valor de mercado diferenciado e reduzido, o que torna muito mais fácil o acesso à moradia adequada, uma vez que é possível que se adquira somente a construção, ou somente a superfície do solo para nela se edificar, sem que seja necessário adquirir o solo, que continuará pertencendo a outrem.
Em virtude das grandes proporções do défcit habitacional no Brasil, essa alternativa aumenta consideravelmente a possibilidade de acesso à moradia digna e formal de uma grande parte da população pobre que se aglomera em cortiços, favelas, em condições precárias de habitação, salubridade e vida digna, pois, por um valor condizente com os parcos recursos financeiros de grande parte da população brasileira, situa-se a diferença entre possuir ou não possuir uma moradia digna.
6 A importância sócio-econômica do direito real sobre a construção
A Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, Código Civil brasileiro, recepcionou o direito de superfície e numerou-o entre os direitos reais, atribuindo assim a ele uma característica especial que o difere dos demais direitos reais limitados, bem como daqueles instrumentos apresentados pelo Estatuto da Cidade na implementação de políticas urbanas para concretização do direito à moradia digna.
Os direitos reais de forma geral inserem-se no sistema de normas que dizem respeito às relações entre as pessoas, nas quais umas devem respeitar o direito que as outras têm sobre as coisas, mas não podem ser vistos de forma isolada, pois somente ganham sentido no todo e com ele se comunicam. Para que se possa entender este, e outros aspectos dos direitos reais, é necessário que se estabeleça a distinção entre propriedade e domínio, pois apesar de muito serem confundidos não são a mesma coisa.
Para Aronne, a propriedade possui um conceito muito mais amplo do que o domínio, visto que ela pode ser exercida sobre uma coisa corpórea ou incorpórea, é a titularidade formal, é o poder de opor o dever universal de abstenção de todos os demais indivíduos e do próprio Estado. Esta titularidade é formalizada pelo registro imobiliário, no qual consta que é titular do direito de propriedade sobre determinado bem imóvel, certa e determinada pessoa. Pela formalização por meio do registro se publiciza perante todos os indivíduos quem é o titular da relação proprietária. O proprietário é, assim, o credor de uma obrigação passiva universal: a de que todos devem respeitar o seu direito.
A propriedade instrumentaliza o domínio, faz nascer a obrigação de não ingerência dos demais sujeitos: os outros indivíduos e o próprio Estado. O domínio, por sua vez, é o complexo de direitos possíveis em determinado bem, exercido de forma absoluta[19], que pode ser do próprio proprietário ou de terceiros e que se materializa nas relações entre o titular e o bem.[20]
Sobre este aspecto, Monreal diz que o direito de propriedade se especifica pelo domínio que tem o proprietário sobre as coisas corpóreas que lhe pertencem. O domínio é, assim, uma espécie de direito real que consiste na forma mais completa do senhorio sobre uma coisa,[21] pressupõe as faculdades de gozar e dispor da coisa sob seu domínio. O poder de gozo consiste na utilização e no aproveitamento direto do bem, obtendo dele todas as vantagens que seja capaz de proporcionar, desfrutando da coisa conforme seu destino. Para ele, o poder de disposição consiste na faculdade de realizar com a coisa um ato que leva a que o proprietário a perca. Há, assim, ato de disposição, quando o dono da coisa a aliena, ou quando a grava com algum ônus como a servidão ou a hipoteca.[22]
O direito real, portanto, é o direito sobre uma coisa que pode ser dividido em ius in re própria e em ius in re aliena, conforme o direito seja sobre a coisa própria ou sobre coisa de outrem. Este último possui um caráter limitado dos quais são exemplos as servidões, o uso, o usufruto, a habitação, a promessa de compra e venda, o penhor, [23] pois falta aos titulares destes direitos um dos elementos do domínio: a disposição da coisa. Têm eles apenas o poder de gozo sobre a coisa. Podem dispor de seu direito sobre a coisa, mas não podem dispor da coisa em si alienando-a. Aqueles podem dispor da coisa de forma ilimitada, alienando-a, onerando-a, como o que acontece no caso da propriedade plena, ou no caso da superfície, no qual a propriedade plena se exerce separadamente sobre o solo e sobre a construção.[24]
Em algumas situações específicas, a propriedade sobre uma coisa se divide em dois domínios completos, cada qual com poderes de gozo e com poderes de disposição: o domínio direto e o domínio útil, [25] de forma que, o direito de superfície divide o domínio em domínio útil, do qual é titular o superficiário e domínio direto, do qual é titular o proprietário do solo. Nele o superficiário tem o poder de domínio sobre a coisa construída ou a construir, plantada ou a plantar, que não desaparece com a destruição da coisa, pois poderá reconstruí-la ou replantá-la sem que o seu direito sobre o solo se extinga.[26]
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O direito de superfície possui várias peculiaridades que o tornam único, mas principalmente a de proporcionar a segurança jurídica da posse ao superficiário. E, justamente nesse aspecto reside a importância do direito de superfície perante todos os demais institutos jurídicos para a produção de moradia, pois, sendo o direito de superfície reconhecido como direito real, o superficiário possui o domínio sobre a construção, podendo dispor desta, oferecendo-a em garantia de financiamentos, fato que vai lhe proporcionar a inclusão em vários programas sociais com financiamentos subsidiados para a aquisição de moradia ou de melhoria de condições desta.
Com fundamento na argumentação feita, pode-se dizer que o direito de superfície somente pode ter uma existência sob o ponto de vista de sua concepção atual: como instrumento de acesso à moradia formal, como objetivo do Estado Democrático de Direito na proteção dos direitos humanos fundamentais, (e sem moradia não se pode falar em proteção aos direitos humanos), sendo atribuído a ele a característica de direito real. Sem esta condição nenhum sentido tem a concessão desse direito, uma vez que o superficiário não teria sobre a coisa uma relação dominial completa, perdendo o interesse na concessão em razão da insegurança jurídico-social de possuir um direito sobre determinada superfície sem que possa transmitir esse direito aos seus sucessores, sem que possa aliená-lo, hipotecá-lo em garantia de financiamentos para construção, tornando limitado o direito, condenando o superficiário apenas ao uso, sem possibilidades de melhorias em suas condições de habitação, limitando suas relações negociais e sua ascensão econômica. Situação que não encontra mais respaldo nos princípios constitucionais de proteção e valorização da pessoa humana, como centro para onde deve convergir todo o ordenamento jurídico.
Informações Sobre o Autor
Sílvia Regina de Assumpção Carbonari
Mestre em Direito, com ênfase em direito público(UNISINOS/UPF), Especialista em Direito Civil na Atualidade(UPF/2006), Especialista em Direito Registral e Notarial(UPF/2001), professora de direito registral e notarial (UPF), Tabeliã de Notas