1 – Introdução
Ao saber que está grávida, a mulher aguça os seus instintos e passa a se preocupar cada vez mais com o bebê que está por vir. Imagina o mundo que ele irá encontrar, faz planos e já começa a amá-lo desde o dia em que esse mais novo ser foi concebido.
Para o Direito, esse amor não é suficiente para condicionar a “futura vida” do nascituro (aquele que está por nascer). Esse direito, no entanto, deveria ser o símbolo de expressão da vida. É válido aqui lembrar um grande filósofo e pensador político italiano, Dante Alighieri, que já nos sécs. XIII/XIV definia direito como sendo uma proporção real e pessoal do homem para o homem que, servindo-a, vem servir a sociedade e corrompida, corrompe-a: “jus est realis ac personalis hominis ad hominem proportio, quae servata servit societatem, et corrupta corrumpit”. É essa proporção real e pessoal do homem para o homem que garante os direitos à vida, à conservação da liberdade e de defesa.
A mãe, que no momento de gravidez possui a função de ser a casa, a proteção do nascituro; não pode sofrer abalos, violências ou constrangimentos. Caso contrário, isso poderá ser absorvido pelo feto, podendo-lhe causar deformações. O que leva a alguns doutrinadores a defenderem o pedido de Habeas Corpus quando houver prejuízo ao desenvolvimento natural do feto.
O Direito Brasileiro não possui, explicitamente, esse acolhimento de ”mãe”. O Código Civil, ao adotar a teoria natalista, só concede personalidade ao nascituro com o nascimento com vida, mas resguarda os seus direitos desde a concepção. Há uma contradição, pois não se pode “atribuir” direitos àquele que não possua personalidade; por outro lado, não se pode ignorar o nascituro como se este não existisse.
O mais lógico seria a concessão dos direitos ao nascituro desde a concepção. Inconcebível é se ter um o ordenamento jurídico que valoriza mais os animais do que os próprios seres humanos, no que se refere às indenizações Civis. Apesar de existirem seres humanos piores que animais.
Às vésperas da Revolução Francesa, a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1779, estatuiu que: “Todos os homens nascem livres e são iguais nos seus direitos”. Na prática, isso é irreal, principalmente no Brasil, onde há tantos preconceitos e abismos sociais, mas isso seria assunto para um outro trabalho mais específico. O que vale ressaltar agora é o fato de que, no Brasil, se nasce um filho de uma prisioneira, esta criança não será livre atrás das grades junto à sua mãe. Seria um paradoxo afirmar isso.
É mister citar a interpretação feita por Jorge Viana do art. 227 da Constituição Federal conjugado ao art. 4o do Código Civil de 1916, atual art. 2o do Código de 2002:
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar ao homem desde sua concepção, no ventre materno, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-lo a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” [1] [grifos meus].
Além dos problemas cíveis, no que diz respeito aos direitos do nascituro, como o direito à curatela, aos alimentos, de suceder, de receber doações, entre outros; há o direito primordial de qualquer ser humano, quer tenha “personalidade jurídica” ou não: É O DIREITO À VIDA.
Outra preocupação da sociedade em geral é a evolução tecnológica da Medicina, relacionada à Biogenética, que diz respeito aos embriões congelados. Essa questão vem sendo amplamente discutida porque reacende a discussão sobre o início da personalidade do ser humano.
O Código Civil Brasileiro é considerado um exemplo a se seguir. Porém, precisaria ser atualizado, principalmente no que se refere ao nascituro. Outro problema é que o Novo Código já entrou em vigor “velho”. Apenas transcreveu o antigo artigo 4o de 1916, que passou a ser o art. 2o do Código de 2002.
Mesmo com a consciência de tornar o Código Civil atual, o projeto permaneceu com alguns pontos conservadores, apresentando certo retrocesso aos direitos inerentes ao ser humano e, conseqüentemente, ao nascituro.
Apesar, então, de o art. 2o acolher a doutrina natalista; em uma interpretação sistemática, a teoria concepcionista é quem dita e resguarda os direitos do nascituro na legislação brasileira. Não se pode, ou melhor, não se deve negar a personalidade jurídica do concebido.
Será, então, de grande relevância este trabalho, pois, além de mostrar a evolução jurídica e os direitos cíveis do nascituro, englobará também temas atuais do Biodireito e do “Novo” Código Civil. Além, é claro, do maior e mais importante direito pertencente a este “pequenino” ser, que é o direito à vida. De uma maneira objetiva e abrangente, o nascituro será enquadrado, analisando-se os prós, os contras e as conseqüências de lhe atribuir personalidade e, simultaneamente, direitos.
2 – Noções de Pessoa Natural
2.1 – Sujeitos de Direito – imprescindível ao Direito Subjetivo.
Na concepção filosófica, pessoa é o ser humano no seu aspecto racional, dotado de ação através da vontade. É o indivíduo racional capaz de querer. Na acepção jurídica, pessoa designa todo ser capaz de ter direitos e obrigações. É o sujeito de direitos, no que difere da coisa, tida sempre como o objeto de uma relação jurídica [2].
Para todo direito necessita-se de sujeito; não há direito sem sujeito. As pessoas que participam de relações jurídicas com atribuições, de forma proporcional; sendo titulares de direitos e de deveres e que são “guiadas” pelas regras jurídicas, são chamadas de sujeitos de direito. Com melhor exemplificação no Código Civil de 1916, no artigo 2º: “Todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil” e, agora, com o artigo 1o: “Toda PESSOA é capaz de direitos e deveres na ordem civil” (grifos nossos). Há, aqui, leve progresso quando o legislador retira a palavra “homem” e insere “pessoa”, além de abranger o homem, a mulher, entendemos que o nascituro também está inserido aqui.
Essa definição, porém, seguiu uma evolução histórica. Hoje, a personalidade está diretamente ligada à pessoa, ou seja, é na existência do ser humano que se adquire a titularidade de direitos e deveres. Essa definição, que aqui está sendo empregada para um esclarecimento rápido, terá profundas divergências no decorrer deste trabalho. Nem sempre, porém, foi assim. No direito romano, por exemplo, nem todos os homens eram tidos como pessoas. Os escravos eram tratados como coisa, não obtinham a faculdade de serem titulares de direitos e de deveres, e na relação jurídica, ocupavam a situação de seu objeto, e não de seu sujeito[3], essa inexistência de sujeito como pessoa ocorria também como os mortos civis, os condenados.
No direito brasileiro, já em 1916, eram reconhecidos os atributos da personalidade em sentido universal, não distinguindo nem mesmo entre os nacionais e estrangeiros quanto à aquisição e ao gozo dos direitos civis [4].
“A idéia de pessoa é fundamental tanto no domínio da ética como no campo estrito do Direito. A criatura humana é pessoa porque vale de per si, como centro de reconhecimento e convergência de valores sociais”. (REALE: 2000: p. 232).
Há, portanto, uma conexão. Para toda relação jurídica é indispensável a participação de sujeitos de direito; e todo Direito Subjetivo (poder que a ordem jurídica confere a alguém de agir e de exigir de outrem determinado comportamento [5]) só existe com a relação jurídica, que necessita do sujeito, do objeto e do fato jurídico, para assim, materializar o Direito Subjetivo.
Além da pessoa física (natural), existe também a pessoa jurídica, ou seja, o conjunto de pessoas ou bens, dotado de personalidade jurídica [6]. Este, porém, não é de interesse deste trabalho, que visa apenas à pessoa natural, principalmente a partir de sua concepção e enquanto não nascida.
3 – O Início da Vida
3.1 – Etimologia do Vocábulo “Nascituro” e seu conceito.
Em muitos dicionários de língua portuguesa ou jurídicos, há de se encontrar o significado do termo nascituro. Certo de que é um termo de origem latina e que, basicamente, significa “o que está por nascer”.
Para Maria Helena Diniz:
“Nascituro é aquele que há de nascer, cujos direitos a lei põe a salvo; aquele que, estando concebido, ainda não nasceu e que, na vida intra-uterina, tem personalidade jurídica formal, no que atina aos direitos da personalidade, passando a ter personalidade jurídica material, alcançando os direitos patrimoniais, que permaneciam em estado potencial, somente com o nascimento com vida” (DINIZ: 1998: p. 334).
É de fundamental importância a diferença entre nascituro e prole eventual, que também é protegida pelo Direito no artigo 1799, I, do Código Civil Brasileiro: “Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder – os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas ao abrir-se a sucessão”. Ao nascituro, então, cabe a designação de ente já concebido.
Somente ao se tratar do direito italiano, francês ou português que se adotarão os termos “nascituro concebido” e “nascituro não concebido”. Ao estudo deste trabalho, atentar-se-á somente à designação e diferenças entre nascituro (ser já concebido) e prole eventual, que pelo próprio nome trata-se do nascituro ainda não concebido e que pode ou não sê-lo.
Não é só na definição ou reconhecimento do nascituro que a Ciência Jurídica se torna omissa. Atualmente, os principais problemas relacionados a esse ser são ligados à evolução tecnológica da Medicina, mais propriamente da genética.
Desde 1983, na Austrália, quando foi realizado com sucesso o implante de um embrião (fecundado há quatro meses) no útero de uma mulher, que essa técnica vem sendo utilizada no Brasil. Coube, então, ao Conselho Federal de Medicina, mais precisamente na resolução de 1359/92 [7], regulamentar as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida. O problema mostra-se na fecundação “in vitro”, pois, apesar de já ter se “iniciado a vida”, a gravidez não foi efetivada; só será consumada com a nidação, isto é, com a implantação do ovo no endométrio, tecido que reveste internamente o útero.
É com essa ligação entre Medicina, Biologia e Direito que se torna ainda mais difícil a denominação de nascituro. Não se pode, entretanto, equiparar o embrião congelado como tal. É somente após a implantação e, conseqüentemente, com a gravidez que o Direito o “considerará” pessoa; embora o “embrião pré-implantatório deva merecer tutela jurídica como pessoa virtual ou ‘in fieri’” (MARANHÃO, 1980 apud ALMEIDA: 2000: p. 11); [grifos do autor].
Isso é perfeitamente mostrado nessa mesma resolução de 1992, no artigo 1º, V, inc. 2, que diz: “o número total de pré-embriões produzidos em laboratório será comunicado aos pacientes, para que se decida quantos pré-embriões serão transferidos a fresco, devendo o excedente ser criopreservado, não podendo ser descartado ou destruído” [grifos meus].
Uma das questões cruciais do Direito e da Bioética é justamente definir a tutela civil e penal do embrião pré-implantatório, principalmente com o surgimento de novas técnicas de reprodução assistida (RA). Deverão, então, usar princípios genéticos e filosóficos para se determinar o início da personalidade jurídica.
Os direitos do nascituro, que logo mais serão estudados, já são reconhecidos pelo Direito Brasileiro e pelo Direito de todos os países influenciadores no Direito pátrio. O que falta é determinar com eficácia os direitos do embrião pré-implantatório, um dos mais complexos problemas atuais e fundamentais do Biodireito.
3.2 – Breves Considerações Filosóficas.
Filosoficamente, nascituro é pessoa, porque já traz consigo todas as características do ser racional. Com apoio na doutrina aristotélico-tomista, afirma-se que a imaturidade do nascituro não difere da dos recém-nascidos. O nascituro está para a criança como esta está para o adulto. A pessoa natural é o alicerce da ordem jurídica.
Para a Ciência Jurídica, todo homem está dotado de uma dignidade intrínseca e é necessariamente pessoa, em sentido jurídico ou sujeito de direito. Consolidado em clímax, no que diz respeito ao maior direito de todos; o direito à vida.
“O cerne da questão consiste numa reflexão sobre o sentido da personalidade jurídica em íntima ligação com o conceito ontológico de pessoa. Esta reflexão, embora conte com o contributo científico da dogmática e da teoria geral do Direito, situa-se num nível de maior radicalidade, que revela a competência da filosofia do direito e da filosofia tout court. A decisão sobre a eventual identidade pessoal do embrião humano pertence também, de direito, à filosofia, mas não pode deixar de apoiar-se nos dados científicos da biologia, da embriologia, da genética, etc. Depois, estando em causa a tutela devido aos seus embrionários, alguma palavra terão a dizer a ética, a axiologia jurídica e a política do direito” (CHORÃO: 1991 apud ALMEIDA: 2000: p. 101).
A doutrina realista, personalista e jusnaturalista defende que a personalidade jurídica constitui um verdadeiro reconhecimento de um direito natural do homem, por estar inerente à pessoa; e, por conseqüência, todos os indivíduos humanos a têm. Dizem também que desde a concepção o nascituro já possui a personalidade jurídica, sendo, então, sujeito de direitos.
Chorão enfatiza, ainda, a idéia central de que a condição ontológica da pessoa comporta forçosamente numa dimensão jurídica: quem é pessoa ontologicamente falando também é, por isso, pessoa em sentido jurídico.
3.3 – O Nascituro na Igreja Católica.
No Brasil, o Estado é separado de qualquer igreja. A Constituição Federal garante a liberdade de culto em seu artigo 5o, parágrafo VI: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma de lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias”.
A Igreja Católica, no entanto, sempre exerceu forte influência no Direito, essencialmente no brasileiro. E no que se refere ao nascituro também demonstra seus pontos de vistas; principalmente aqueles relacionados ao aborto. Antigamente, para o Cristianismo, o aborto constituía uma “praga social”. Os antigos Concílios o puniam como uma forma de homicídio.
Foi, porém, no final do séc. XIX e começo do séc. XX que a Encíclica de Pio XI e a Sacra Congregação do Santo Ofício declararam que não existe aborto direto lícito. Se houvesse, estar-se-ia violando ao bem maior: a vida.
Nesse mesmo contexto, a Encíclica “Mater et Magistra” de João XXIII registra:
“A vida humana é sagrada: mesmo a partir da sua origem, ela exige a intervenção direta da ação criadora de Deus. Quem viola as leis da vida ofende e enfraquece a Divina Majestade, degrada-se a si e ao gênero humano e enfraquece a comunidade de que é membro” (Carta Encíclica “Mater et Magistra”: 1984 apud ALMEIDA: 2000: p. 103).
O aborto é a morte de um ser humano inocente, que não tem a possibilidade de se defender de tal ato. Não é lícito nem mesmo à mãe que tema a infância do bebê ou a sua morte. Na Igreja, se o feto for abortado, causar-lhe-á dano à alma e o privará do batismo; não o é permitido, mesmo alegando necessidade ou legítima defesa contra alguma agressão.
No Código Canônico mais recente, promulgado pelo Papa João Paulo II, não se faz nenhuma exceção quanto aos motivos do aborto; nem mesmo aos “abortos legais” previstos no Código Penal. No entanto, mesmo dentro da Igreja, há alas minoritárias que defendem uma maior flexibilidade no caso de interrupções da gravidez.
A Igreja Católica, através de Encíclicas e Documentos papais, defende o direito do nascituro à vida, antes até mesmo de assegurar-lhe os direitos patrimoniais; mostrando que, independente de o Direito Penal ser flexível a certos abortos, a Igreja mantém sua opinião a respeito da violação do direito à vida. E, como o Catolicismo possui um alto poder na sociedade, esse tema é de grande discussão na mídia. Entretanto, este ponto não interessa especificamente a esse trabalho.
3.4 – O Nascimento da Pessoa Natural e a Prova da Vida Extra-Uterina.
Por adotar a teoria natalista, o Direito Brasileiro só reconhece a total personalidade civil com o nascimento com vida, ou seja, com a existência da Pessoa Natural. Para o nosso ordenamento jurídico, duas são as condições: que o feto nasça com vida e que se prove que tal fato ocorreu, para, aí sim, ser plenamente reconhecido pelo Direito.
Após o nascimento (com vida) adquire todos os direitos e deveres como pessoa. Deve-se, para provar a sua existência, fazer a certidão no Registro Civil das Pessoas Naturais, válido a todos que nascerem em território nacional.
A criança nasce quando separada das vísceras maternas; só se considera nascido aquele que se “destacou” completamente do corpo da mãe. O nascimento com vida é o fato jurídico que a permitirá ser acolhida pelo Direito, com a aquisição da personalidade civil, como já visto. Se, ao invés, nascer morta (natimorto) não será “reconhecida”. Para o Direito, a natalidade sem vida não é fato jurídico, uma vez que nenhum efeito gerou [8].
Vale destacar que não importa como a criança nasceu. Seja de parto normal ou cesárea, conforme se manifesta a Organização Mundial de Saúde: “Nascimento com vida se dá com a expulsão ou extração completa do corpo da mãe, independentemente da duração da gravidez, de um produto de concepção que, depois da separação, respire ou apresente qualquer outro sinal de vida” (ZACHARIAS: 1991 apud SEMIÃO: 1998: p. 155).
É de extrema importância provar a vida extra-uterina daquele nascituro, pois só assim ele deixará de ser um expectador de direitos subjetivos e passará a ser um sujeito de direitos plenos.
Há muitos métodos médico-legais para se constatar a vida extra-uterina. O mais usado, no entanto, é a docimasia hidrostática, que se baseia no peso específico do pulmão que respirou e o que não respirou, mergulhados na água. Se o pulmão sobrenadar é porque contém ar, e a criança respirou. Ao contrário, se houver ausência de ar, trata-se de um natimorto [9].
É válido registrar que se a legislação brasileira tivesse adotado plenamente a teoria concepcionista (própria), nada disso seria necessário; o nascituro não precisaria provar sua existência extra-uterina para adquirir a personalidade civil, pois já seria considerado pessoa desde a concepção.
O que interessa, portanto, é provar-se a respiração do neonato como condição para a aquisição e capacidade de direito, mesmo que ele morra logo após. O importante é a prova de sua existência. Para o Direito, aquele que nasce morto é como se nunca tivesse sido sequer concebido.
4 – Personalidade Jurídica
4.1 – Personalidade e Capacidade.
Após a definição de pessoa natural, cabe a definição de Capacidade e Personalidade Jurídica.
A personalidade se apóia em duas questões relevantes: a da sua existência e duração; e a de sua individualização. Muitos doutrinadores afirmam que ela começa com o nascimento e termina com a morte, o que é contestável. Há, porém, o consenso entre eles de que toda pessoa é dotada de personalidade, entendida aqui como a aptidão de adquirir direitos e contrair obrigações [10].
Ao lado de personalidade real, verdadeira, autêntica, admite-se a personalidade fictícia, artificial, presumida. São casos de personalidade fictícia: 1º, a do nascituro; 2º, a do ausente; 3º, a pessoa cuja possibilidade de vir a existir é admitida para a aquisição de direitos.
A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida (contestável!). Não basta o nascimento. É preciso que o concebido nasça vivo. O natimorto não adquire personalidade. Entende-se que alguém nasceu com vida quando respirou. Se viveu ou não é questão que só se resolve mediante perícia médico-legal [11] .
A personalidade não se confunde com a capacidade, que é uma extensão do exercício da personalidade. Nem todos, porém, possuem capacidade jurídica. Costuma-se distinguir em duas: capacidade de direito e capacidade de fato.
A capacidade de direito, chamada pela doutrina francesa de capacidade de gozo, é a aptidão da personalidade, para adquirir os direitos na vida civil. Já a capacidade de fato é a aptidão para o exercício desses direitos ou deveres.
Como diz Washington de Barros, capacidade é aptidão para adquirir direitos e exercer, por si ou por outrem, atos da vida civil. O conjunto desses poderes constitui a personalidade que, localizando-se ou concretizando-se num ente, forma a pessoa. Assim, capacidade é elemento da personalidade [12].
A ordem jurídica atribui personalidade aos entes morais, dotando-os, também, da aptidão para adquirir e contrair obrigações, como ainda imputando-lhes responsabilidade pelos atos praticados por seus agentes e prepostos – tudo por causa ou em razão dos homens [13] .
No Código Civil, a capacidade é expressa no artigo 1º: “Todo pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”. Já a personalidade, no artigo 2º: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro”. Direitos esses que serão defendidos e questionados no desenvolver desse tema, inclusive a própria discussão sobre a personalidade do nascituro.
4.2 – Teorias sobre o início da personalidade.
Desde o Direito Romano, há uma grande hesitação entre os juristas e a legislação para definir e demarcar o início da personalidade civil do homem como sujeito de direitos.
O artigo 2º do Código Civil (CC) Brasileiro nega ao nascituro a personalidade civil, mas garante-lhe proteção para os direitos de que possa ser titular [14].
Deste modo, a lei exige que o recém-nascido dê sinais de vida, para que lhe reconheça a personalidade civil e se torne sujeitos de direitos, mesmo que venha a falecer logo após. Segundo Washington de Barros Monteiro, se a criança morta, não chega a adquirir personalidade, não recebe nem transmite direitos. Se nasce com vida, ainda que efêmera, recobre-se de personalidade, adquire e transfere direitos [15].
O Projeto do Código Civil Brasileiro elaborado em 1899, porém, declarava que a personalidade do ser humano começava com a concepção, sob a condição de nascer com vida.
É discutível se o nascituro é uma pessoa virtual, um cidadão em germe. Mas, de qualquer modo, o feto é uma expectativa de vida humana, ou seja, uma pessoa em formação. E, com base nessa certeza, a lei não pode ignorá-lo. Seus eventuais direitos devem ser preservados [16].
Há, portanto, três correntes fundamentais na doutrina em relação à personalidade do nascituro: a natalista, a da personalidade condicional e a concepcionista.
A primeira sustenta que a personalidade começa do nascimento com vida. A segunda afirma que a personalidade começa com a concepção, com a condição do nascimento com vida (doutrina da personalidade condicional ou concepcionista imprópria). A terceira considera o início da personalidade se inicia com a concepção.
Qualquer que seja a opinião aceita sobre o início da personalidade do ser humano, o nascimento é fato decisivo; no primeiro caso, porque confirma, se a criança nasce viva, ou anula, se nasce morta, a personalidade atribuída ao nascituro; no segundo caso, porque assinala o momento inicial da vida jurídica do homem [17].
4.2.1 – Teoria Natalista.
Na teoria natalista, atribui-se a personalidade apenas ao ente que nasceu vivo. Essa doutrina afirma que o nascituro possui expectativas de direitos por ser considerado uma expectativa de pessoa. Só é considerado existente para o que lhe é juridicamente proveitoso (Infantus conceptus pro jam nato habetur quoties de ejus commodis agitur)[18].
São adeptos dessa doutrina, Vicente Ráo, Silvio Rodrigues, Eduardo Espínola, Pontes de Miranda, Caio Mário da Silva Pereira e Ferrara. Eles não admitem que o nascituro tenha personalidade, pois não teria existência própria, já que esse ser ainda estaria sendo parte das vísceras maternas. Porém, por possuir uma expectativa de personalidade, o aborto é punido tanto nas leis penais quanto nas leis civis.
O Código Civil Brasileiro, em seu 2º artigo, adota essa doutrina como regra de que a personalidade civil do homem começa do nascimento com vida. “Mas, como provavelmente nascerá com vida, o ordenamento jurídico desde logo preserva seus interesses futuros, tomando medidas para salvaguardar os direitos que, com muita probabilidade, em breve serão seus” (RODRIGUES: 2000: p.38).
Segundo Pontes de Miranda:
“No útero, a criança não é pessoa, se não nasce viva, nunca adquiriu direitos, nunca foi sujeito de direitos, nem pode ter sido sujeito de direito (=nunca foi pessoa). Todavia, entre a concepção e o nascituro, o ser vivo pode achar-se em situação tal que se tem de esperar o nascimento para se saber se algum direito, pretensão, ação, ou exceção lhe deveria ter ido. Quando o nascimento se consuma, a personalidade começa” (MIRANDA: 1954).
Sobre o assunto, assim se manifestou San Tiago Dantas:
“A personalidade data do nascimento e não basta o nascer, precisa-se nascer com vida. Nascimento com vida é, pois, o elemento essencial para que se inicie a personalidade.
De fato, desde o momento em que o homem está concebido, mas ainda no ventre do nascituro, já a ordem jurídica toma conhecimento da sua existência e confere-lhe a sua proteção. Essa proteção se manifesta de muitos modos. Por exemplo, todas as vezes em que a mãe se encontra numa posição jurídica em que seu interesse é contrário ao interesse do nascituro, isto é, ao interesse daquele que vai nascer, manda a lei que se dê um curador ao ventre, que é o defensor dos direitos do nascituro.
De maneira que, parece que desde o período de sua vida intra-uterina já o homem é sujeito a direitos, já tem uma capacidade, já se iniciou, por conseguinte, a sua personalidade.
Os projetos do Código Civil Brasileiro variaram muito na solução que deviam adotar com relação a esta data do início da personalidade, mas, no nosso Código Civil, o assunto não tem lugar a dúvidas. A personalidade data do nascimento” (DANTAS: 1942-45 apud SEMIÃO: 1998: p. 42-43).
Segundo a teoria natalista, a proteção que o Direito Penal dá ao nascituro não é enquanto pessoa já nascida, apesar de o crime de aborto estar situado entre os crimes contra a pessoa. Essa desigualdade que a lei penal firma entre os direitos de pessoa nascida e os do nascituro fica mais evidente quando se comparam as penas conferidas ao homicídio com as penas conferidas ao aborto. A pena do crime do homicídio é significativamente superior a quaisquer das penas das espécies de crime de aborto, na generalidade dos sistemas jurídicos mundiais.
Para os natalistas, o aborto para salvar a mãe ou para não pôr em perigo a sua saúde demonstra que não há um conflito entre bens iguais, ou seja, vida da pessoa por nascer contra a vida de pessoa já nascida, que no exemplo é a vida da mãe gestante.
No chamado aborto humanitário, no caso em que a gravidez resulta de estupro, na verdade, o legislador coloca o sentimento de repulsa da gestante, de ter um filho de seu estuprador, em grau superior à vida do nascituro [19].
Porém, Ives Martins, em seu texto Pena de Morte para o Nascituro, afirma que o denominado aborto legal nada mais é do que uma pena de morte imposta ao ser humano quando ainda vive no ventre materno [20]. (ver anexo A, em que está exposto um trecho de uma reportagem referente ao início da vida de acordo com a Medicina e as religiões [21]).
Para a escola natalista, o nascituro não tem vida independente; é parte das vísceras maternas; é possuidor de uma expectativa de personalidade. Segundo SEMIÃO, entretanto, é a mais lógica e a mais moderna em relação à biogenética. “A doutrina natalista é a que mais se adapta à ciência da biogenética e ao mundo moderno sem se contradizer”.
4.2.3 – Teoria Concepcionista.
Apesar de o Código Civil Brasileiro não ter acolhido a tese do começo da personalidade do ser humano desde a concepção, tem ela o apoio incondicional de alguns doutrinadores, embora minoritários, como Teixeira de Freitas, Clóvis Beviláqua, Rubens Limongi França, Francisco Amaral e André Franco Montoro.
Segundo essa escola, a personalidade civil do homem começa desde a concepção, argumentando que tendo o nascituro direitos, deve ser considerado pessoa e, conseqüentemente, sujeito de direitos; só a pessoa possui personalidade jurídica.
Na visão desses conceituados doutrinadores, a punição do aborto como crime contra a pessoa é o mais acentuado sinal de que o nascituro tem personalidade civil e é pessoa no Direito Brasileiro.
Hoje, a maioria das legislações pune o crime de aborto. O Código Penal Brasileiro (arts. 124, 125 e 126) expressa com nitidez a proteção à vida do nascituro como pessoa em relação ao crime de aborto.
No Direito Romano, a execução de uma mulher grávida era adiada para que ela pudesse dar à luz; para a proteção ao nascituro.
Os principais fundamentos dos concepcionistas são [22]:
Desde a concepção o ser humano é protegido pelo Direito como se já tivesse nascido;
O Direito Penal pune a provocação do aborto como crime contra a vida, protegendo o nascituro como um ser humano;
O Direito Processual autoriza a posse em nome do nascituro;
O nascituro pode ser representado por um curador;
É admissível o reconhecimento de filhos ainda por nascer;
Pode o nascituro receber bens por doações e por testamento;
Enfim, a pessoa por nascer considera-se já ter nascido, quando se trata de seus interesses.
Alguns doutrinadores, no entanto, dividem a doutrina concepcionista em dois ramos: a verdadeiramente concepcionista e a concepcionista da personalidade condicional, ou concepcionista imprópria.
A verdadeiramente concepcionista afirma que a personalidade começa da concepção e não do nascimento, sem qualquer condição. Apenas os efeitos de alguns direitos, como os direitos patrimoniais, dependem do nascimento com vida. Mas o direito de nascer, a proteção jurídica à vida do nascituro existem na sua plenitude, antes do nascimento.
Já a escola concepcionista da personalidade condicional reconhece a personalidade desde a concepção, mas sob a condição do nascimento com vida. Rubens Limongi França adverte que a teoria da personalidade condicional é a que mais se aproxima da verdade, mas traz o inconveniente de levar a crer que a personalidade só existirá depois de cumprida a condição do nascimento, o que não é verdadeiro, pois a personalidade já existe com a concepção [23].
Silmara J.A. Chinelato e Almeida comentando o Código Civil Brasileiro, afirma que, utilizando-se dos métodos lógicos e sistemáticos de hermenêutica, conclui-se que o art. 2º consagra a teoria concepcionista e não a teoria natalista, conforme tem sido erroneamente defendido pela maioria dos autores 15.
Rubens Limongi França assim se posiciona sobre o assunto:
“Juridicamente, entram em perplexidade total aqueles que tentam afirmar a impossibilidade de atribuir capacidade ao nascituro ‘por este não ser pessoa’. A legislação de todos os povos civilizados é a primeira a desmenti-lo. Não há nação que se preze (até a China) onde não se reconheça a necessidade de proteger os direitos do nascituro (Código Chinês, art. 7º). Ora, quem diz direitos afirma capacidade. Quem afirma capacidade reconhece personalidade” (FRANÇA: 1996: p. 50).
Os concepcionistas depois de analisarem a proteção que a ordem jurídica concede ao nascituro, chegam à conclusão de que, sendo ele titular de inúmeros direitos, deve ser considerado como pessoa pela ordem jurídica, não havendo razão de ser a objeção feita pelos partidários da doutrina natalista.
Por outro lado, embora a personalidade comece com a concepção, a capacidade jurídica só se consolida com o nascimento. A capacidade supõe a personalidade e esta existe a partir da concepção.
Arremata a doutrina concepcionista com o argumento de que, em face do tratamento dispensado ao nascituro pelo Direito Penal e pelo Direito Civil, há que se reconhecer a sua personalidade civil, uma vez que essas legislações calculam a existência desde a concepção, para atribuir-se, desde então, direito ao homem, sendo assim irrecusável que a começar desse momento ele é sujeito de direitos e, portanto, pessoa [24].
4.2.3 – O Sentido Prático das Doutrinas Natalista e Concepcionistas.
Após a explanação das doutrinas natalista e concepcionistas, é preciso avaliar o sentido prático dessas escolas no Direito, principalmente no Brasileiro.
Foi mostrado que tanto a doutrina verdadeiramente concepcionista quanto a doutrina da personalidade condicional não foi adotada pelo Direito Brasileiro, mostrando que são incompatíveis com o sistema jurídico nacional e com os demais ordenamentos modernos do mundo.
A chamada corrente verdadeiramente concepcionista, que defende a suspensão apenas dos direitos patrimoniais para depois do nascimento, não combina, por exemplo, com o direito de nacionalidade, que, às claras, não é direito patrimonial e está inserido em nossa Constituição como direito de todos, que só é adquirido após o nascimento. O mesmo se dá em relação ao direito que toda pessoa tem a um nome, que também só é possível depois do nascimento e, evidentemente, não se trata de direito patrimonial [25].
Diante da embriologia, essa corrente não sabe como explicar o fato de que se o embrião não estiver no ventre materno, não é considerado pessoa, embora, tecnicamente, também não seja nascituro. Nascituro ou não, o embrião fertilizado in vitro está concebido. Se não é nascituro, concebido é. Continua sendo embrião, estando ou não no útero materno. Essa doutrina, ao contrário da natalista, afirma que desde a concepção o fruto do ser humano é pessoa. Entretanto, entra em contradição diante da biogenética.
Já a doutrina concepcionista de personalidade condicional não possui sentido prático. Salvo se o nascituro possuísse todos os direitos e obrigações da pessoa já nascida (doutrina verdadeiramente concepcionista). Assim haveria um sentido funcional, pois ele poderia exercer todos os atos da vida civil através de um representante, e, se não nascesse com vida, todos os bens que lhe fossem transmitidos seriam direitos atuais e não meras expectativas; o que não ocorre no Direito Brasileiro. A escola concepcionista de personalidade condicional não possui utilidade prática, a não ser que se considere os direitos do nascituro como não taxativos, isto é, irrestritos.
A escola natalista ao defender a taxatividade dos direitos do nascituro como meras expectativas, atende ao aspecto jurídico e, muitas vezes, o prático, conforme o 2º artigo do Código Civil.
Semião afirma que a doutrina natalista é a que mais se adapta à genética, ao biodireito e às opiniões da Igreja Católica. “A sua aplicação prática sempre foi possível e pelo que tudo indica, sempre o será” [26].
Em relação aos embriões ou, até mesmo, à ação de alimentos, há o reconhecimento do nascituro na jurisprudência. O mais prudente, contrastando com a maioria dos doutrinadores, seria adotar a escola concepcionista como a melhor opção para a aplicabilidade do Direito.
5 – A Evolução da Natureza Jurídica do Nascituro
5.1 – O Nascituro na Grécia Antiga.
É mister, para o entendimento e reconhecimento dos direitos do nascituro, analisar o progresso (ou regresso?) de sua natureza jurídica. Na Grécia, especificamente, desde a mais remota Antigüidade, admitiu-se a capacidade do nascituro, que se manifesta numa antiga história contada por Plutarco.
Segundo Plutarco, Polydecte morreu cedo, sem filhos, e todos acreditavam que Licurgo seria o Rei. E o foi, mas apenas enquanto se ignorou a gravidez da Rainha, sua cunhada. Desde que ela foi conhecida, porém, Licurgo declarou que, se a Rainha tivesse um filho, seria ele que a coroa pertenceria. Desde esse momento, ele administrou o reino apenas na qualidade de tutor [27].
No que se refere à morte do nascituro, Cuello Calón, Licurgo e Sólon puniam o aborto com pena pecuniária como reparação dos danos causados à família. Em Atenas, até a época de Lysias, desconhece-se alguma lei que punisse o aborto com pena pública. Essa “impunidade” justifica-se pela cultura daquele tempo e pelo temor à fome e à “explosão” demográfica. No entanto, em Tebas e em Mileto, essa atrocidade era duramente punida, em alguns casos, com pena de morte.
Já Platão defendia o aborto eugênico, ou seja, aquele em que se pretendia a melhora, a “pureza” da raça humana. Seguindo a mesma linha de raciocínio, Aristóteles, o qual teve grande contribuição para o desenvolvimento da embriologia, também defendia o aborto eugênico e o ligado a interesses demográficos.
O aborto só seria considerado crime se o feto fosse “morto” após quarenta dias, para o homem, e três meses para a mulher; quando se acreditava que depois desse período o feto já possuía alma e, se lhe fosse privado a vida, constituir-se-ia um crime. Essa definição exerceu forte influência nos católicos na Idade Média.
Os gregos, apesar de divergirem em relação à legislação, proibição e punição do aborto; apresentavam uma concepção inovadora, se comparada ao Direito Romano: eles reconheciam o nascituro como pessoa e assegurava-lhe direitos. Mesmo sendo antiga, a Grécia, talvez por inspiração de seus grandes filósofos, possuía opiniões e senso crítico, que muitos povos ainda hoje não os têm.
5.2 – O Nascituro no Direito Romano.
Como já foi visto, o Direito Brasileiro adota a teoria natalista no seu Código Civil. Foi essa mesma doutrina que orientou o Direito Romano, que é a fonte da maioria das legislações, inclusive da legislação Brasileira.
O Direito Romano, no entanto, é vacilante; apresenta textos diversos e contraditórios a respeito dos direitos do nascituro. Mas é Windscheid que conclui a doutrina romana: “o feto no útero ainda não é homem, porém, se nasce capaz de direito, a sua existência se computa desde a época da concepção” (WINDSCHEID apud BEVILÁQUA: 1980: p. 77).
Os romanos, às vezes, reconheciam a personalidade do nascituro, ou estabeleciam uma personalidade condicional. Outras vezes, desconsideravam totalmente ou negavam a personalidade às crianças que não possuíam a forma humana. No entanto, permaneciam entre os juristas o conceito de que o feto que ainda não havia nascido não poderia ser considerado um homem; mostrando que dentro de uma mesma doutrina pode-se seguir diferentes caminhos para se determinar o início da pessoa e da personalidade.
Algumas condições eram exigidas para o reconhecimento do neonato:
Forma humana: não bastava apenas o nascimento com vida extra-uterina. Era necessário que o nascido possuísse forma humana; caso contrário, não seria considerado pessoa;
Completa separação das vísceras: enquanto o feto não se separasse da mãe, não era tido como pessoa, e sim considerado como uma parte do corpo dela;
Viabilidade: precisava ter forma humana viável e saúde suficiente para a sobrevivência.
Além disso, não poderia estar na condição de escravo ou, após a queda do Império Romano, de servo, que apesar de ser diferente de escravo, também era considerado coisa, isto é, poderia ser alienado junto com o feudo. Não eram, então, considerados pessoas, e sim coisas.
Para os romanos, a personalidade jurídica coincidia com o nascimento, antes do qual não havia necessidade de se falar em sujeito ou em objeto de direito [28]. Adotavam, então, a teoria natalista. Não consideravam o nascituro como pessoa, mas se nascesse viável e adquirisse a capacidade de direitos, sua existência computar-se-ia desde a concepção [29]. É uma doutrina controversa assim como a legislação brasileira, que “escolheu” adotar o Direito Romano como fonte.
5.3 – O Nascituro no Direito Comparado.
A importância de se tratar do nascituro no Direito Comparado é que o ordenamento jurídico brasileiro é influenciado pelas legislações internacionais. E para situar o nascituro no direito pátrio, serão analisados alguns ordenamentos de países americanos e europeus, que, em grande maioria, optaram pela doutrina natalista, desconsiderando a corrente concepcionista.
Dentro dessa minoria que defende o início da personalidade desde a concepção, estão a Áustria, a Venezuela e a Argentina. O Código Civil Argentino, em seu artigo 70, assim se expressa:
“Desde la concepción en el seno materno comienza la existencia de las personas; y antes de su nacimiento pueden adquirir algunos derechos, como si ya hubiesen nacido. Esos derechos quedan irrevocablemente adquiridos si los concebidos en el seno materno nacieren con vida, aun que fuera por instantes después de estar separados de su madre”.
Sagüés, ao comentar a Constituição Argentina, assim se pronuncia: “La norma adquiere una transcendencia singular porque evidencia la protección constitucional de la persona por nacer, y la consecuente condena constitucional al aborto discrecional o libre” (SAGÜÉS: 1995 apud SEMIÃO: 1998: p. 50).
A Espanha (assim como o Uruguai e a Alemanha) segue o mesmo princípio do art.2o do Código Brasileiro, que reconhece a personalidade com o nascimento e assegura os interesses do nascituro na hipótese de vir a nascer vivo. O Código Civil Espanhol também sofreu influências do Direito Romano, principalmente no que se refere à deformação humana do feto, o monstrum. O artigo 29o: “El nacimiento determina la personalidad; pero el concebido se tiene por nacido para todos los efectos que le sean favorables, siempre que nazca con las condiciones que expresa el artículo siguiente”. O artigo seguinte: “Para los efectos civilis, solo se reputará nacido el feto que tuviese figura humana y viviere veinticuatro horas enteramente desprendido del seno materno”.
No Código Penal Espanhol é permitido o aborto (arts. 411 a 417) nos seguintes casos:
Para salvar a vida da mãe;
Para preservar a saúde da mãe;
Para preservar a saúde mental da mãe;
Quando tiver havido estupro;
Quando o feto for defeituoso.
O artigo 1o do Código Civil Italiano, com título Das Pessoas Físicas, também se pronuncia em favor à teoria natalista: “La capacità giuridica si acquista del momento della nacita. I diritti che la legge riconosce a favore del concepito sono subordinati all’evento della nacita”.
Um grande doutrinador italiano, natalista, FRANCESCO FERRARA, afirma:
“La personalità umana comincia con la nasita. Bisogna che si abbia la completa separazione del feto dal corpo materno perfecte natus, non importa che questa avvenga in modo naturale od artificiale, per assistenza chirurgica” (FERRARA: 1921 apud SEMIÃO: 1998: p. 51).
O Código Civil Português reconhece os direitos do nascituro com a condição do nascimento com vida, momento em que o neonato adquire personalidade jurídica. O Direito Português separou muito bem a questão do aborto em um título específico no Código Civil: Dos Crimes contra a Vida Intra-Uterina. O aborto, porém, não é punível se for realizado para salvar e preservar a saúde física ou psíquica da mãe; quando o feto for defeituoso, e for realizado nas primeiras 22 semanas de gravidez; e ainda, se a vítima tiver sofrido estupro e interromper a gravidez antes das 12 primeiras semanas.
O Código Mexicano: “La capacidad jurídica de las personas físicas se adquire por el nacimiento y se pierde por la muerte, pero desde el momento en que un individuo es concebido, entra bajo la protección de la ley y se le tiene por nacido para los efectos declarados en el presente Código”.
O Chile, a Colômbia, o Peru, a Suíça e a China protegem a vida do que está por nascer, porém só aceitam a personalidade jurídica no momento do nascimento com vida.
É visto, então, que a maioria das legislações internacionais vigentes adota a doutrina natalista e permite o aborto com restrições. Segundo Rita Simon, em Abortion-Statues, Policies and Public Attitudes The World Over; Turquia, EUA (com exceção de alguns Estados federados), Romênia e China admitem qualquer tipo de aborto. Na Turquia essa taxa é de 2,8 mulheres em grupo de 1000; enquanto que no Brasil, onde só o é permitido para salvar a vida da mãe e em casos de estupros, o número chega a 36, no mesmo grupo de 1000 mulheres em idade fértil (!).
Em relação ao aborto, cabe, primeiramente, à mulher, uma maior conscientização, antes mesmo de se analisar o tipo de legislação adotada em seu país. É necessário, no entanto, perceber a importância dos fundamentos e utilidades dos Códigos Cíveis que acolhem a doutrina natalista ou a concepcionista, conforme já mostrado.
5.4 – O Nascituro na História do Direito Brasileiro
O Brasil é persuadido até hoje em suas decisões em níveis nacional e internacional. Na época da elaboração de uma legislação “própria” não foi diferente. O Direito Nacional foi regido seguindo as Ordenações do Reino de Portugal, principalmente As Filipinas, influenciadas pelo Direito Romano; conseqüentemente, a legislação nacional possui traços romanos e também traços do Direito Canônico.
Em Portugal, somente com o nascimento com vida que os indivíduos adquiriam os seus direitos subjetivos. Esse foi também o princípio adotado pelo Código Civil do Brasil. No entanto, antes mesmo da vigência desse Código, doutrinadores como Teixeira de Freitas e Clóvis Beviláqua defendiam que a doutrina concepcionista deveria ser acolhida pelo Direito Brasileiro, e não a natalista.
O artigo 2o do Projeto primitivo de Coelho Rodrigues afirmava que os nascituros eram absolutamente incapazes de exercer por si os atos da vida civil. Já no artigo 221 do seu esboço, Teixeira de Freitas assim se pronuncia: “Desde a concepção no ventre materno começa a existência das pessoas naturais, e, antes do nascimento, elas podem adquirir alguns direitos como se já tivessem nascidas”.
Clóvis Beviláqua em seu Anteprojeto se manifestou: “A personalidade civil do ser humano começa com a concepção, sob a condição de nascer com vida”.
Louvável notar que tanto o Projeto primitivo quanto o Projeto revisto de Clóvis empregam o termo “ser humano” (mais amplo), em vez de “homem”. Entretanto, o ponto de divergência entre os doutrinadores é o momento de reconhecimento deste “ser”. Não se nega que desde a concepção o nascituro possui vida humana. Para o Direito, porém, não importa o conceito filosófico do termo pessoa, e sim o seu sentido jurídico dentro do ordenamento vigente.
Se a lei civil confere ao nascituro um curador (CC, art. 1.779) e garante a posse em seu nome (CPC, art. 877); ou ainda, se a lei criminal o protege cominando penas contra a provocação de aborto, seria lógico que o Direito Brasileiro o adotasse como pessoa em sua plenitude.
O Código Civil vigente, no artigo 2o, adota a teoria natalista, mas apresenta contradições quanto à verdadeira corrente seguida; parece ser ora natalista, ora concepcionista: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro”. Isso mostra que os mesmos problemas discutidos há tempos no Direito Romano continuam “sem solução” até os dias de hoje.
6 – O Nascituro no Direito Civil Brasileiro
6.1 – O Nascituro no Código Civil – art. 4º do Código de 1916.
Apesar de já ter sido citado, o artigo 4o do Código Civil Brasileiro de 1916 ganha, aqui, um tópico para sua discussão e utilidade no Direito, principalmente no que diz respeito ao nascituro.
“A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro” [30].
Esse artigo divide-se em duas orações e, em uma rápida análise, parece o Código Civil de 1916 ter adotado as duas doutrinas, simultaneamente. Na primeira parte, sobrepõe-se a corrente natalista, e na segunda, a concepcionista. Teorias opostas entre si, parecendo, assim, estabelecer normas contraditórias entre si.
Importante destacar que no próprio artigo é empregado o termo “direitos”, e não a sua “expectativa ”. Ou seja, quando a lei põe a salvo os direitos do nascituro, este deve ser reconhecido como pessoa, com personalidade civil e, conseqüentemente, detentor de todos os direitos subjetivos que lhe são assegurados.
Se fosse adotada somente a segunda oração, estar-se-ia reconhecendo o início da personalidade a partir da concepção, o que, automaticamente, contradiz a primeira parte do artigo. Tornando-a inútil dentro do ordenamento jurídico brasileiro, o que não pode ser afirmado.
Ao colocar a conjunção (adversativa) “mas” separando as duas partes do artigo, o legislador acabou se contradizendo. São, no entanto, duas orações independentes que devem ser interpretadas sistematicamente, sob pena de uma anular a outra [31].
“Por a salvo, desde a concepção, os direitos ao nascituro” não é o mesmo que lhe conceder os direitos próprios do nascido. Há, porém, direitos que não dependem do nascimento com vida, como o direito à vida, à integridade física, à saúde (direitos absolutos, erga omnes), à curatela, à representação e o direito a alimentos são direitos reconhecidos desde a concepção.
Os direitos que são condicionados ao nascimento com vida são os patrimoniais, como, por exemplo, a doação e a herança (legítima e testamentária). O nascimento com vida é o elemento do negócio jurídico que se refere à sua eficácia plena, aperfeiçoando-o [32].
É necessário lembrar que a personalidade não se confunde com a capacidade, sendo esta um atributo, uma conseqüência daquela. A personalidade do nascituro não é condicional; apenas a eficácia dos direitos patrimoniais materiais fica condicionada ao nascimento com vida, especialmente sua transmissibilidade.
Há, no entanto, de se concordar com Semião [33] quando ele diz que se o Código Civil tivesse adotado a teoria concepcionista, não haveria nenhuma necessidade de se fixar, um por um, os direitos do nascituro, pois, sendo ele considerado pessoa, teria todos os direitos inerentes à personalidade civil plena.
Apesar de o Código Civil Brasileiro ter adotado a doutrina natalista, em nenhum momento, nos artigos seguintes, a nossa legislação considera o nascituro incapaz juridicamente. Pelo contrário, por ser mais sensato reconhecer o nascituro como pessoa desde a concepção, outros direitos podem lhe ser atribuídos, de modo não taxativo, como: direito de ser beneficiário de estipulação em favor de terceiro (CC, art. 436); de ser beneficiário de seguro de vida (CC, arts. 793 e 542); direito a alimentos (CC, arts. 1694); direitos de personalidade compatíveis com sua condição de pessoa por nascer – direito à vida (CC, art. 948); direito à integridade física e à saúde (CC, art. 949); direito à imagem e à honra (CF, art. 5o, V e X).
Apesar de a grande maioria dos juristas ser natalista, a doutrina concepcionista ganha um maior número de adeptos, juristas, que tecem novas reflexões e soluções para um tema, cada vez mais atual [34].
6.2 – Direito à filiação.
O nascituro goza do direito à filiação, desde a concepção. Segundo a teoria concepcionista, o que está por nascer deve adquirir todos os direitos concedidos aos filhos já nascidos, pois a relação de parentesco não surge com o nascimento, e sim desde a concepção. Além do elo biológico da gravidez, estabelece-se também o elo jurídico que permanecerá unindo pais e filhos por toda a vida.
O Código Civil de 1916 equiparava nascidos e nascituros no capítulo III, da Curatela, no art. 458: “A autoridade do curador estende-se à pessoa e bens dos filhos do curatelado, nascidos ou nascituros” [grifos meus]. A nova redação, no entanto, dispõe: “A Autoridade do curador estende-se à pessoa e bens do filho do curatelado, observado o art. 5o (capacidade jurídica)”.
Após a Constituição Federal de 1988, pode-se falar em “filhos matrimoniais” e “filhos extramatrimoniais”. No entanto, ao se usar essa terminologia não pretende discriminá-los, e sim visar aos interesses que lhes pertence. Essas expressões são usadas para efeitos didáticos e de argumentação jurídica. Reafirma a Constituição no art. 227, par. 6o: “Os filhos havidos ou não da relação do casamento, ou por doação, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.
Já, segundo Semião [35], ao se interpretar o art. 229 do antigo Código Civil, fica evidenciado que a legitimação do nascituro depende do nascimento com vida e do ato jurídico do casamento, pois, caso não haja nascimento com vida, nada há a legitimar.
O mesmo autor ainda afirma que, por a Constituição conferir isonomia entre os filhos e não mais adotar os termos “filhos legítimos e ilegítimos”, não se pode dizer que a legitimação pelo casamento dos pais seja um direito do nascituro.
Certo é que, no entanto, o antigo Código, nos arts. 352 e 353, reconhecia:
“Os filhos legitimados são, em tudo, equiparados aos legítimos”.
“A legitimação resulta do casamento dos pais, estando concebido, ou depois de havido o filho” [grifos meus].
Hoje, no Código de 2002, entretanto, não há correspondente direto. O que se verá mais adiante o retrocesso do Código vigente.
Apesar de haver doutrinadores que discordem entre si, há de se reconhecer que, no entanto, o nascituro goza dos direitos respectivos ao status de filho já nascido, desde a concepção, independentemente do nascimento com vida.
6.2.1 – Direito ao Reconhecimento.
O art. 357, parágrafo único, do Código Civil de 1916, correspondente ao art. 1.609, caput, I a III do atual Código, diz respeito do reconhecimento dos filhos ilegítimos. Assim, significa, então, dizer que o nascituro pode ser reconhecido antes mesmo do seu nascimento.
Há três modos de reconhecimento, assim estabelecido pelo art. 1.609 (CC): no registro de nascimento; por escritura pública ou escrito particular, a ser arquivado em cartório; por testamento, ainda que incidentalmente manifestado (incisos I a III). Ao nascituro dá-se o reconhecimento através da escritura pública ou pelo testamento, visto que, logicamente, o “filho ainda não nasceu”.
Semião expressa que não cabe à mãe reconhecer a maternidade do filho ainda por nascer, por ser obviamente impróprio à espécie. O que a mãe pode fazer é pleitear o reconhecimento da própria gravidez, que equivale ao reconhecimento do filho [36].
Não havendo diferenças entre homens e mulheres nos termos constitucionais (Constituição Federal, art. 5o, inc. I), Almeida [37] afirma serem iguais os direitos dos pais e mães na disputa do pátrio poder.
O artigo 21 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) [38] estabelece:
“O pátrio poder será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe na forma do que dispuser a legislação civil, assegurado a qualquer deles o direito de, em caso de discordância, recorrer à autoridade judiciária competente para a solução da divergência”.
Mesmo para aqueles que estendam não se poder aplicar ao nascituro as regras do Estatuto concernentes ao pátrio poder, ainda assim a igualdade entre os pais prevaleceria com fundamento na Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher, adotada pela Resolução n. 34/180 da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 18 de dezembro de 1979, e ratificada pelo Brasil em 1o de fevereiro de 1984 [39].
Segundo Carlos Maximiliano, “a mãe da criança pode acionar, porém em nome do filho menor ou nascituro, no papel de tutora, ou de curadora nata; pois não se cogita de reparação à mulher, e sim de adquirir ou recobrar, o filho, o seu estado civil” (MAXIMILIANO: 1937 apud ALMEIDA: 2000: p. 214).
Ainda em relação ao pátrio poder, hoje, o exame, que é mais confiável, com 99% de probabilidade de acerto para o reconhecimento de paternidade e/ou de maternidade; é o exame de DNA. Não há riscos de vida para a mãe nem para o nascituro. A coleta de material é feita obtendo-se uma amostra de vilo corial, que consiste no componente fetal da placenta. Dessa forma, não se importuna o feto.
A partir da 9a semana de gestação, há a quantidade de material mínimo necessário para o exame, concretizando a investigação de paternidade, apesar do pequeno período de gravidez.
Mesmo não sendo o único método para o reconhecimento de paternidade, o exame de DNA vem confirmar a ligação, cada vez maior, entre a Medicina e o Direito, auxiliando nas decisões judiciais, “possibilitando suporte técnico para que a Justiça seja exercida em toda sua plenitude”.
6.2.2 – Direito à adoção.
“Não se pode adotar sem o consentimento do adotado ou de seu representante legal se for incapaz ou nascituro” [grifos meus]. Código de 1916.
“A adoção depende de consentimento dos pais ou dos representantes legais, de quem se deseja adotar, e da concordância deste, se contar mais de 12 anos”. Art. 1621 do vigente Código Civil.
Assim dispunha o Código Civil, no capítulo V referente à adoção, art. 372 e, implicitamente o atual Código, no art. 1621. Apesar de estar dependente do nascimento com vida, este é mais um dos direitos expressos em lei a favor do nascituro: o direito à adoção.
Uma das obrigações do adotante, ou seja, conseqüência da adoção, segundo a professora Silmara Chinelato, seria a assistência médica pré-natal, assegurando os direitos de personalidade do nascituro, como o direito a alimentos ligado ao direito à vida; e o direito à saúde, relacionado ao direito à integridade física.
Acreditando-se que o nascituro seja um ser humano, é válido a sua inclusão na designação de criança do ECA. Apesar das divergências entre alguns doutrinadores, é possível seguir tanto o Código Civil quanto o Estatuto, no que diz respeito à adoção de nascituro. Apesar de o ECA não especificar o tema, ele resguarda a vida e protege o nascituro desde a concepção.
Sérgio Pereira enfatiza a importância da sua adoção inclusive para efeito de alimentos:
“A adoção do nascituro deve ser feito, por analogia, consoante o sistema do Estatuto da Criança e do Adolescente. Se se entender deva seguir os requisitos do CC, no mínimo a eficácia deve ser plena, aplicada a igualdade constitucional” (PEREIRA apud ALMEIDA: 2000: p. 223).
Embora sendo um direito, a adoção, como forma de colocação em família substituta, é sempre excepcional, quer para nascidos, quer para nascituros. A prioridade é para que a criança seja criada no seio de sua família. “Admitir expressamente a adoção de nascituro representaria uma contradição entre as premissas básicas da lei, fugindo a sua própria definição de prioridade”.
6.3 – Direito à Curatela.
O Código Civil ao conceder um curador ao nascituro está agindo em defesa das “expectativas” de seus direitos. A curatela, no entanto, termina com o nascimento com vida. O antigo art. 462 e atual art. 1779 do Código Civil especifica a curatela do nascituro: “Dar-se-á curador ao nascituro, se o pai falecer, estando a mulher grávida, e não tendo o pode familiar”.
O termo curador é de origem latina (= cuidado) e significa: indivíduo que é encarregado judicialmente de administrar bens ou interesses de outrem. Nesse caso, segundo Pontes de Miranda, o curador vela pelos interesses do nascituro e impede em favor dele e de terceiros a suposição, a substituição e a supressão do parto.
Pode-se confundir, entretanto, tutela e curatela. A diferença é que esta pode limitar-se aos bens (cura rei), enquanto que a tutela é dada principalmente para vigiar a pessoa do pupilo (cura personae). No Direito Romano, os concebidos não eram representados, pois não eram considerados pupilos.
Segundo o grande civilista Clóvis Beviláqua, o Código erra ao colocar “Da Curatela do Nascituro”, pois, se não se considera o início da personalidade com a concepção, o nascituro não existe juridicamente; devendo, então, não possuir o “direito” à curatela.
Clóvis ainda expõe o caráter excepcional da curatela do concebido, que somente existirá quando, falecido o pai, a mulher não tenha o poder familiar (antigo pátrio poder). O Código, no entanto, é omisso, pois a morte não é a única forma de falta de pai. Ele pode estar vivo, mas não reconhecer o filho.
Referente aos filhos havidos fora do casamento, invocando o Decreto-lei n.3.200/41, estabelece que o filho natural enquanto menor ficará sob o poder do genitor que o reconheceu e, se ambos o reconheceram, sob o poder da mãe, salvo se tal solução advier prejuízo ao menor [40].
Seja o poder familiar pertencente ao pai ou à mãe, já que a Constituição permite essa igualdade, o art. 1.779 estende-se também aos filhos havidos fora do casamento, desde que eles sejam reconhecidos.
Se o nascituro for adotado, o poder familiar pertencerá aos adotantes. Se algum deles falecer, a representação do nascituro adotado é feita pelo adotante sobrevivente. Se este for interdito, pelo curador dele.
“A autoridade do curador estende-se à pessoa e bens dos filhos do curatelado, nascidos ou nascituros”. O antigo art. 458 do Código considerava o concebido como pessoa e o equiparava ao filho nascido, atribuindo-lhe esse status desde a concepção e não o colocava na dependência do nascimento com vida. Atualmente, o art. 1778 regula esse dispositivo e, mais uma vez, esbarra no atual art. 5o, acerca da capacidade civil.
Essas atribuições ao nascituro mostram mais uma vez as contradições do Código. Em um mesmo momento em que não lhe considera pessoa, assegura-lhe o direito à curatela e lhe atribui o reconhecimento de filho nascido, em certas ocasiões.
6.4 – Direito de Receber Doações.
O art. 542 (antigo art. 1.169) do Código Civil estabelece: “A doação feita ao nascituro valerá, sendo aceita pelo seu representante legal”.
Se fossem seguidos os rigores da lei; fundamentando-se, principalmente na primeira parte do art. 2o do Código, não se admitiria a doação à pessoa não nascida. João Luiz Alves (1917 apud Almeida) afirma que, para a doação ser válida, é preciso que o donatário esteja concebido desde o momento em que é feita, e não naquele em que se dá aceitação.
Alguns doutrinadores entendem que o art. 539 também deve ser aplicado ao nascituro: “O doador pode fixar prazo ao donatário, para declarar se aceita, ou não, a liberalidade. Desde que o donatário, ciente do prazo, não faça, dentro dele, a declaração, entender-se-á que aceitou, se a doação não for sujeita a encargo”.
Quanto à interpretação desse artigo, Wagner Barreira pronuncia:
“Ora, não há razão para pôr a regra de lado nos casos de doações feitas a nascituros. Nada as distingue, na verdade, das demais doações. Se representarem liberalidades puras e simples, portanto, deverão entender-se aceitas pelos pais que não declararam aceitá-las” (BARREIRA apud ALMEIDA: 2000: p. 232).
A doação feita ao nascituro legitima ao entrar na posse dos bens doados, percebendo-lhes os frutos, por meio de um representante legal, como o Código de Processo Civil, nos arts. 877 e 878, mostra: “Apresentado o laudo que reconheça a gravidez, o juiz, por sentença, declarará a requerente investida na posse dos direitos que assistam ao nascituro” (art. 878).
6.5 – Direito de Suceder.
O direito à sucessão, referente ao nascituro, foi acolhido pelos Códigos de Portugal (art. 2.033), Espanha (art. 745), França (art. 906), Argentina (arts. 39 e 3.373), Itália (art. 462) e Suíça (arts. 544 e 605).
Esse direito, porém, já lhe era assegurado desde a Antigüidade clássica grega. No Direito Romano do período clássico e pós-clássico, a capacidade do nascituro para a sucessão legítima e testamentária era reconhecida, sendo que a prole eventual também podia adquirir por testamento.
No Código Civil Brasileiro, o assunto é tratado no art. 1.799:
“Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder – os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão”.
“Ainda que o Código Civil não contivesse dispositivo expresso sobre a capacidade passiva para a sucessão legítima do nascituro, reconhecem-na sem divergir a doutrina e a jurisprudência” (ALMEIDA: 2000: p. 234). Pois bem, a doutrina e a jurisprudência auxiliaram o legislador de 2001/2002, conforme disposto no art. 1799.
É por isso que doutrinadores defendem que, se o art. 2o do Código basta para conferir o direito à sucessão legítima ao nascituro, bastará também para lhe conferir direitos que não estão expressos no Código.
O art. 1.846 do Projeto de 1975 estatuía: “Legitimam-se a suceder as pessoas existentes, ou já concebidas no momento da abertura da sucessão”.
“Com o direito à sucessão legítima e testamentária, é necessário para o nascituro suceder, que, no momento da morte do de cujus ele já viva e ainda viva” (MAXIMILIANO: 1937 apud ALMEIDA: 2000: p. 235).
Ao se creditar, porém, a personalidade ao nascituro desde a concepção; o concebido, por seu representante legal, pode entrar na posse dos bens herdados, recebendo-lhes os frutos, com fundamento no Código Civil, nos arts. 1.784 e 2.020 e no Código de Processo Civil, nos arts. 877 e 878.
6.6 – Direito a Alimentos.
A finalidade do direito a alimentos é proporcionar à mãe os meios necessários para a sua sobrevivência e a do filho concebido, visando-lhe o nascimento com vida.
Esse direito é defendido por vários juristas brasileiros, dentre eles, Pontes de Miranda:
“A obrigação de alimentar também pode começar antes do nascimento e depois da concepção (Código Civil, arts. 397 e 4o), pois, antes de nascer, existem despesas que tecnicamente se destinam à proteção do concebido e o direito seria inferior à vida se acaso recusasse atendimento a tais relações inter-humanas, solidamente fundadas em exigências de pediatria. Outro caso, em que o nascituro pode figurar como autor na ação de alimentos, é aquele que se depreende do artigo 1.534, inciso II, da lei civil brasileira, onde se estabelece que a indenização por homicídio, consiste, não só no pagamento das despesas com o tratamento da vítima, seu funeral e o luto da família, como também, na prestação de alimentos às pessoas a quem o defunto os devia” (MIRANDA apud ALMEIDA: 2000: p. 240).
Alimento é o que for necessário para o bom desenvolvimento da gravidez, incluindo-se despesas médicas e medicamentos, visando o nascimento com vida do filho.
Em caso de separação conjugal, estando a mulher grávida e renunciado a alimentos, a renúncia só será aplicada a ela. Os alimentos devidos ao nascituro permanecerão pertencentes a ele, que tem o status de filho (Código Civil, arts. 1.609, caput, I a III; e 1.778).
A certeza da paternidade só advirá com o exame de DNA ou outras provas posteriores. Embora o alimento seja uma obrigação, se houver paternidade de quem a prestou indevidamente, este poderá pedir indenização baseado no art. 927 do Código Civil: “Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.
Ainda em relação a alimentos, o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece:
“Art. 7o: A criança e o adolescente têm a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.
Art. 8o: É assegurado à gestante, através do Sistema Único de Saúde, o atendimento pré e perinatal (…).
Art. 8o, parágrafo 3o: Incube ao Poder Público propiciar apoio alimentar à gestante e à nutriz que dele necessitem”.
É visto, então, que o Estado além de se preocupar com a criança já nascida, também assegura e protege o nascituro (ou pelo menos deveria), apesar de “ignorá-lo” em alguns aspectos.
7 – Nascituro e direitos da personalidade
7.1 – Direito da Personalidade.
Direitos da personalidade, segundo Amaral [41], são direitos subjetivos que têm por objeto os bens e valores essenciais da pessoa, no seu aspecto físico, moral e intelectual.
Para Rubens Limongi França, são os diversos aspectos da própria pessoa do sujeito, bem assim seus prolongamentos e projeções.
O Código Civil Brasileiro não tutela, de modo sistemático, os direitos de personalidade, porém, reconhece-os em alguns dispositivos, como o antigo Código de 1916, “Da Liquidação das obrigações Resultantes de Atos Ilícitos”, nos arts. 1.537 a 1.553, correspondente aos atuais arts. 948 a 954.
Já a jurisprudência possui papel fundamental na proteção dos direitos da personalidade, principalmente quando não há previsão na legislação brasileira, como não havia no direito à imagem. Hoje, no entanto, aclamado pela Constituição Federal, no art. 5o, V, X, XXVIII.
“Art. 5o, X: São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
Os direitos da personalidade se dividem, principalmente, em: direito à vida; direito à integridade física, moral e intelectual.
O nascituro é, então, titular de direitos da personalidade, decorrendo da qualidade de pessoa, conferindo-lhe todos os direitos a sua condição especial de concebido.
7.2 – Direito à Vida.
7.2.1 – Características do Direito à Vida.
Dentre todos os direitos garantidos ao homem, o principal deles é, sem dúvida, o direito à vida. É um direito da personalidade condicionante, já que dele dependerão os demais.
Sobre esse direito, Santos Cifuentes dispõe, brilhantemente:
“hablar de un ‘derecho sobre la vida’ podría implicar la legitimidad del suicidio ya que denota un poder absoluto, como si la persona pudiera disponer sin limitis sobre su vida. También se usó ‘derecho a la vida’, pero, como es innato, nos viene dado por el hecho del comienzo, no es appropiado dar a entender que se tiene un derecho a conseguir la vida. Ella se consigue u obtiene con automaticidad; es un acontecimiento natural. Hay otro aspecto. Se tiene derecho a que los demás se abstengan de atacar; a la conservación de la vida y al goce de ella. El goce comporta, en el plano jurídico, la defensa” (CIFUENTES: 1972: p. 180 apud ALMEIDA: 2000: p. 294).
Há de se entender que o nascituro é pessoa desde a concepção in vivo ou in vitro e, portanto, tem ele o direito à vida. Pois, como já foi visto, “o nascimento com vida não é condição para conquista da personalidade, mas tão-somente para que certos atributos da capacidade jurídica do nascituro se consolidem. Frise-se uma vez mais que capacidade é um dos elementos da personalidade” [42].
A Constituição Federal assim expõe sobre esse direito: “Art. 5o: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” [grifos meus].
O Código Penal protege o direito à vida, nos arts. 121 a 127, contra crimes como homicídio, aborto e infanticídio.
Grande avanço, apesar de tardio, foi quando o Brasil ratificou, em 25 de setembro de 1992, a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969) que estabeleceu: “Toda pessoa tem direito a que se respeite a sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente” [grifos meus].
É mister frisar a grande relevância da jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo que, com a investigação de paternidade objetivando alimentos, assegurou e reconheceu o direito à vida do nascituro. É, então, um direito inerente ao ser humano, quer ele esteja já nascido ou ainda concebido.
7.2.2 – Indenização Civil por Morte causada ao Nascituro.
Diante desse assunto, a maioria das decisões judiciais ainda não se ativeram à relevância de um pedido de indenização, “por parte do nascituro”, que é fundado mais no seguro obrigatório do que na responsabilidade civil comum.
Grande parte dos acórdãos mais antigos se baseiam na primeira parte do art. 2o do Código Civil (natalista) que exclui a indenização do nascituro por não considerar que ele possua personalidade civil e, conseqüentemente, não se admite tal “direito”.
Já foi demonstrado, porém, que o nascituro é pessoa, desde a concepção, momento em que ele adquire personalidade, que não se confunde com capacidade. Esse é o melhor “agasalho” atribuído ao nascituro para lhe reconhecer direitos e, a indenização civil por sua (eventual) morte.
Os direitos patrimoniais materiais, sim, dependem do nascimento com vida, mas direitos personalíssimos incondicionais, como é o direito à vida, não dependem do ato do nascimento. Já está inerente ao ser humano.
É o mais prudente concordar com Eduardo Zanoni, que diz:
“Mesmo que não se reconheça personalidade do nascituro, admitindo-se apenas a existência de vida humana, ainda que sem personalidade, há de se concordar que existe no conceptus o direito de nascer, como particular manifestação dos direitos de viver” (ZANONI: 1982: p. 121 apud ALMEIDA: 2000: p.305).
Os titulares da ação de reparação de dano pela morte de nascituro são os pais ou o genitor sobrevivente, ainda que haja autores que contestem a transmissibilidade do dano moral. Há doutrinadores que não aceitam a personalidade do nascituro, mas concordam que a morte seria indenizável, representando dano moral aos pais pela morte do filho.
Há de se concordar com ALMEIDA [43] quando diz não haver razão para indenizar a morte de recém-nascido, ainda que tenha vivido por alguns minutos, e não indenizar a morte de nascituro.
Interessante notar que a pesquisa jurisprudencial é rica ao se tratar de indenização pela morte de ANIMAIS, considerando-a um prejuízo econômico. A responsabilidade civil contratual (contrato para transportes de semoventes, de compra e venda de ração, etc.), mas também extracontratual (atropelamento, morte de animal). Enquanto que, os nascituros ainda não são abordados com tanta relevância ou interesse pelos Tribunais brasileiros. Estes parecem não “se importar” com o dano causado ao bem maior do ser humano, a própria vida (!).
O direito à vida, ou melhor, o direito de nascer encontra fundamento, como direito da personalidade, na segunda parte do art.2o do Código Civil: “a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro”.
Quanto à responsabilidade civil subjetiva, é mister citar a Súmula 491 do Supremo Tribunal Federal: “É indenizável o acidente que cause a morte do filho menor, ainda que não exerça trabalho remunerado”. Em que se pode considerar nascituro “igual” ao “filho menor”, já que em vários momentos, o Código Civil equipara filhos nascidos e nascituros.
Necessário destacar a conclusão de Silmara Chinelato referente a esse assunto, em que ela diz que a indenização pela morte do nascituro pode ser sustentada quer sob o fundamento da transmissibilidade do dano moral – para os que defendem a tese da personalidade do nascituro –, quer sob fundamento de dano moral causado aos pais, como direito próprio, para os que não reconhecem a personalidade.
7.2.2.1 – Dano Moral causado ao Nascituro.
Antes de se iniciar este tópico, seria interessante, primeiramente, conceituar dano: é a subtração ou diminuição de um bem jurídico, qualquer que seja a sua natureza. São duas primordiais formas de dano: moral e patrimonial. Será, então, abordado o dano moral referindo-se, principalmente, ao nascituro.
O dano moral atinge valores fundamentais da vida humana (integridade física, reputação, a vida, etc.), extrapolando os limites de mero subjetivismo, que considera apenas os prejuízos de ordem sentimental do homem. A sua principal característica é a de não haver determinação pecuniária. Hoje, segundo Chaves [44], abrange os danos estéticos, sociais e todos os direitos da personalidade, incluindo os fundamentais.
É mister destacar que há dois caminhos a seguir. Se se adotar a teoria natalista, o nascituro não pode receber qualquer indenização, já que não é pessoa, nem sujeito de direito. Se sua genitora viesse a falecer e este sobrevivesse, o dano moral seria causado ao filho por nascer.
O mesmo problema ocorreria se o nascituro fosse vítima de medicamento receitado à mãe e que, durante a gravidez, resultasse em seqüelas físicas (ao nascituro). O dano a ele causado dificilmente seria indenizado, já que na época não detinha a titularidade do direito à integridade física.
Adotando-se a teoria concepcionista (condicional), a possibilidade de reparação estaria condicionada, junto com os direitos da personalidade, ao nascimento com vida. Os danos morais seriam, então, passíveis de indenização.
Se a teoria concepcionista fosse adotada e o nascituro considerado pessoa em sua plenitude, poderia ele ser indenizado por dano morais ou, caso tivesse falecido, seus ascendentes poderiam exigir a dita reparação. Nesta última hipótese, considerar-se-ia que o dano foi causado ao filho menor, ampliando as possibilidades de indenização [45].
Creditando-se, portanto, a indenização, é indiscutível a responsabilidade civil por danos morais causados aos nascituros, principalmente em relação à dor física.
Reconhecendo a personalidade desde a concepção, urge proteger juridicamente o nascituro na vida intra-uterina, pois poderá sofrer dano moral, tais como deformação, traumatismos, intoxicações, toxi-infecções [46].
Antes do nascimento com vida é cabível a reparação natural, pois um ato ilícito do presente certamente causará dano moral à criança no futuro. No entanto, o direito à reparação de dano material e à reparação pecuniária de dano moral somente se tornará eficaz após o seu nascimento com vida.
7.3 – Direito à Integridade Física.
A preocupação com a Embriologia, ciência intimamente ligada ao nascituro, vem desde a Antiguidade Clássica grega, com Hipócrates e Aristóteles.
Hoje, as atenções se voltam à assistência pré-natal, conforme visto no Projeto de Lei do deputado Enio Bacci, de n. 3.478 – B, de 1997, que “institui o programa de diagnóstico e prevenção de anomalias fetais e dá outras providências”, enfatizando também a educação pré-natal.
De acordo com “Anais da Conferência Nacional de Educação para Todos”, de 1994, a médica Zilda Neumann estabelece que “saúde e educação devem começar no ventre materno. A prevenção é mais barata e eficiente que a cura”.
A Psicologia Pré-Natal tem sido desenvolvida e tem provado que o feto, antes de nascer, é um ser sensível, inteligente e com traços próprios de personalidade e, por isso, suscetível de sofrer danos psíquicos durante a gestação.
Há de se concordar que o nascituro é pessoa biologicamente e, porque não, juridicamente. Mesmo que ele seja ligado à mãe, a sua integridade física não se confunde. Não se pode, portanto, negar-lhe o direito à integridade física e à saúde e deixar de incluí-lo como “ofendido” do art. 949 do Código Civil: “No caso de lesão ou outra ofensa à saúde, o ofensor indenizará o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até o fim da convalescença, além de algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido”.
É mister destacar a exposição de Silmara Chinelato:
“O direito à vida, à integridade física e à saúde são do nascituro e não da mãe, não é lícito que ela se oponha a tal direito. Assim sendo, não pode a mãe recusar-se a ingerir medicamento destinado a preservar a saúde do filho nem a submeter-se a intervenção médica que vise a dissolver medicamento no líquido amniótico, que o feto engole instintivamente. Não cabe à mãe dispor de direito à vida e à saúde que não é seu, mas sim de filho nascituro. Pela omissão poderá ser civilmente responsabilizada” (ALMEIDA: 2000: p. 315).
Já no Direito Internacional, mais precisamente na Austrália, na Suprema Corte de Nova Gales do Sul, aconteceu um caso que merece ser citado. Uma menina de 13 anos acionou sua mãe com pedido de indenização por danos pré-natais, alegando negligência durante a gravidez. Hoje, a menina possui deficiência cerebral causada por um acidente quatro meses antes de seu nascimento. Provada a responsabilidade e negligência da mãe, a Suprema Corte deu ganho de causa à filha.
No Brasil, o Projeto de Código Civil de 1975, no art. 12, estabelece: “Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”.
É mais prudente, então, reconhecer o direito à vida e à integridade física, em que se inclui o direito à saúde, do nascituro desde a concepção, independente do nascimento com vida. Qualquer ação a ele pertinente – seja para prevenir o dano, seja para ressarcir o que já ocorreu – pode ser ajuizada antes do nascimento, notadamente quando se trata de prevenção de dano iminente [47].
7.4 – Outros Direitos da Personalidade: Direito à Imagem e à Honra.
Além dos principais direitos da personalidade, entende-se que o nascituro ainda possui o direito à imagem e o direito à honra.
O direito à imagem refere-se à reprodução física da pessoa, inteira ou parcialmente, através de fotos, vídeos, pinturas. No caso do nascituro, a ultra-sonografia permite a sua reprodução, necessitando, então, de uma permissão do titular da imagem de seu representante legal: o pai, a mãe ou, se for o caso, o curador.
O direito à honra existe desde a concepção e é violado quando, por exemplo, o filho não é reconhecido.
Para, no entanto, conceder esses direitos ao nascituro, deve-se lembrar que os direitos da personalidade não começam com o nascimento e terminam com a morte. Mas, têm princípio antes da concepção, prolongando-se após a morte, sendo exercido, então, pelos seus familiares. Como aponta o Projeto de Código Civil, no art. 12, parágrafo único: “Em se tratando de morto, terá legitimidade para requerê-la o cônjuge sobrevivente ou qualquer parente em linha reta, ou na colateral, até o quarto grau”.
8 – O Nascituro; a Biogenética e o Biodireito
8.1 – Questões da Biogenética em Relação ao Nascituro.
Desde que ocorreu a primeira fertilização in vitro com sucesso, em 1978, começaram também os questionamentos éticos em relação ao “bebê de proveta”. Desde então, a biogenética não parou de evoluir e coube ao Direito (tentar) acompanhar essa evolução. No entanto, nenhuma legislação do mundo consegue realizá-la com total eficácia.
O que mais inquieta os estudiosos é a proteção dos direitos fundamentais da pessoa, principalmente quando se relaciona à eugenia, em que a preocupação por um constante aperfeiçoamento da raça humana, muitas vezes, ultrapassa as questões ético-morais. Por outro lado, essa ânsia pela Ciência ajuda a desenvolver a Medicina e a engenharia genética.
Essas evoluções tecnológicas da Medicina, principalmente referentes à procriação humana, perturbam e, algumas vezes, entram em conflito com crenças e valores da sociedade.
Hoje, “problemas” relacionados à Biotecnologia interessam também às legislações em geral, como a inseminação artificial, a fecundação in vitro, a implantação e o congelamento de embriões, a doação/venda de gametas, etc. Muitos já pedem a intervenção dos legisladores e juízes para um maior controle de um assunto cada vez mais relacionado ao Direito.
As principais técnicas de procriação humana feita com auxílio médico são: a fertilização in vitro e a inseminação artificial.
Na fertilização in vitro, a fusão dos gametas feminino e masculino ocorre extracorporeamente, sendo feita em um tubo de proveta em laboratório. Daí o termo “bebê de proveta”.
Já na inseminação artificial, o sêmen é introduzido artificialmente dentro do corpo da mulher. A fecundação é intracorpórea, ou seja, não se retira o óvulo para que ocorra a fecundação.
Diante disso, surgem vários questionamentos. A fertilização in vitro post mortem, isto é, feita com esperma de um homem falecido, e o nascimento de uma criança após 300 dias do fim da sociedade conjugal (pela morte do marido) não entraria em conflito com o Código Civil, art. 1.597 – II? A mãe de aluguel ou a mãe biológica que exerceria o poder familiar? Qual delas poderia exigir a posse em nome do nascituro? E os embriões? Poderão ser destruídos ou alienados? Poderão ser considerados pessoas, mesmo estando congelados? A sua destruição consistiria em crime de aborto?
Vê-se, portanto, que a evolução da biotecnologia, da engenharia genética e da Medicina interessa ao “mundo jurídico”. Não se pode estagnar essas Ciências. Pelo contrário, deve-se elaborar uma legislação consistente que consiga acompanhar e avaliar juridicamente as evoluções médicas.
8.2 – A Destruição do Embrião Congelado.
A destruição de embriões é um assunto que envolve não só a Medicina, mas também o Direito e até a religião, no que se refere à moral.
Há de se concordar, no entanto, com Semião. Com as experiências científicas, não há como deixar de descartar alguns embriões. Caso contrário, paralisar-se-ia o progresso da Ciência.
A Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) n. 1358/92, já citada, determina que “o tempo máximo de desenvolvimento de pré-embriões in vitro é de 14 dias”. Pré-embrião porque antes desse tempo não há ainda um esboço de sua estrutura nervosa.
É necessário, portanto, que o Estado se comprometa a sancionar e a legislar o comportamento dos cientistas, pois, além das questões médicas, os valores morais e sociais também são relevantes a respeito desse assunto.
O problema referente ao embrião que está congelado em nitrogênio líquido está no fato de não se saber quanto tempo ele pode permanecer em vida congelado sem que haja deformações futuras.
Na Europa, principalmente na França, o Estado já vem fiscalizando essas práticas científicas com embriões. Desde 1988, com a criação da Comissão Nacional de Medicina e de Biologia da Reprodução, o Ministério da Saúde (francês) recebe pareceres e informações sobre a evolução da situação nacional [48].
(Desculpas aos natalistas, mas…) Não há dúvidas de que é com a fecundação do óvulo pelo espermatozóide que se inicia a vida humana e, conseqüentemente, a personalidade jurídica. É por isso que o Direito Penal pune o aborto como um crime contra a vida.
“As técnicas de Reprodução Assistida (RA) têm o papel de auxiliar na resolução dos problemas de infertilidade humana, facilitando o processo de procriação quando outras terapêuticas tenham sido ineficazes ou ineficientes para a solução da situação atual de infertilidade” (Resolução do CFM n. 1358/92, I – 1). Cabe, então, ao Estado criar uma legislação eficaz referente à destruição do (pré) embrião. Enquanto isso não acontece, fica a essa Resolução a responsabilidade de adotar normas éticas para a utilização das técnicas de Reprodução Assistida.
Para finalizar este tópico, é válido citar novamente o inciso V – 2, dessa mesma Resolução, que diz: “O número total de pré-embriões produzidos em laboratório será comunicado aos pacientes, para que se decida quantos pré-embriões serão transferidos a fresco, devendo o excedente ser criopreservado, não podendo ser descartado ou destruído” [grifos meus].
8.3 – A Comercialização de Embriões.
O Direito Brasileiro não possui uma legislação eficaz em relação à destruição de embriões. Quanto a sua comercialização, no entanto, o ordenamento jurídico se manifesta de maneira mais clara.
A Constituição Federal, em seu art. 199, parágrafo 4o, estabelece: “A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos ou substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização” [grifos meus].
Apesar de não estar explícito, é inquestionável o fato de que o sêmen e o óvulo constituem substâncias humanas. O embrião que contém um ser humano em formação deverá ser muito mais considerado e reconhecido no Direito Brasileiro do que uma simples parte de um tecido ou órgão.
Há, entretanto, um consenso no que se refere à elaboração de uma legislação específica. Assim se pronuncia Mônica Scarparo:
“Poderá resultar na utilização de embriões para fins comerciais, seja na cosmetologia, seja na elaboração de armas biológicas, sendo ainda possível aventar-se a hipótese de clonagem, para a fabricação de robôs mais baratos que os realizados pela engenharia mecânica.
Em síntese, o princípio a ser adotado para dirimir estas questões seria o da prioridade da pessoa humana sobre os interesses da ciência, pelo simples fato de que esta, a ciência, só tem sentido na medida em que está a serviço da humanidade. Em conseqüência, deverá encontrar formas de desenvolver as atividades de pesquisa que preservem os valores inerentes ao embrião humano, porque é vida e merece ser respeitado” (SCARPARO: 1991: p. 44-45 apud SEMIÃO: 1998: p. 183-184).
Nem mesmo a doação poderá possuir caráter lucrativo ou comercial (Resolução do CFM 1358/92, inciso IV – 1). Foi mostrado, portanto, que, através da Resolução de 92 e da Constituição Federal, não é lícito a comercialização de embrião, mesmo que ainda não haja uma legislação própria para se tratar de um assunto tão relevante.
8.4 – Da Posse em Nome do Nascituro (Procriado Artificialmente).
A mãe substituta, que já foi até tema de telenovela brasileira, vem sendo reconhecida não só como uma “barriga de aluguel” propriamente dita, mas como a mulher que carrega o feto durante toda a gestação, cuidando e zelando pela criança até o seu nascimento.
Todo o material genético é proveniente de metade da mãe e a outra metade do pai, com a fusão dos gametas. A mãe substituta não contribui na formação genética do feto, mas é ela quem irá receber o zigoto e irá desenvolvê-lo em seu útero.
Deve-se considerar mãe aquela que fornece o patrimônio genético, e não a outra que é mera incubadora [49]. No entanto, o Código de Processo Civil se refere somente a mulher grávida, esquecendo-se de diferenciar a mãe genética da substituta. O art. 877 expõe: “A mulher que, para garantia dos direitos do filho nascituro, quiser provar seu estado de gravidez, requererá ao juiz que, ouvido o órgão do Ministério Público, mande examiná-la por um médico de sua nomeação”.
Esse é o problema. O estado da mulher grávida se refere à mãe substituta. Em nenhum momento o Código especifica o estado da mãe genética. No entanto, o interesse do pátrio poder é da mãe natural, pois somente ela poderá investir na posse dos direitos do nascituro. Se o nascituro nascer com vida e morrer logo após, a herdeira será ela.
O concebido está no ventre da mãe substituta, mas provém da mãe genética. Portanto, não se pode afirmar que a mãe “incubadora” seja ascendente do filho artificialmente procriado. Não se nega, porém, que, com a gravidez, é inevitável a criação de um elo dessa mãe com a criança. Esse elo é, entretanto, estritamente sentimental, não interessando ao Direito.
9 – O Nascituro no Código Civil de 2002
9.1 – O Projeto do Código Civil de 2002.
O Código Civil Brasileiro antigo teve sua vigência em 1917, sofrendo influências internacionais. Nos esboços daquela época, pelo menos, estabelecia direitos e proteção ao nascituro.
Nesse tempo, a Reprodução Assistida (RA) ainda não possuía um desenvolvimento tão satisfatório como possui hoje. Portanto, o assunto relacionado ao embrião não foi tratado com tanta importância.
Atualmente, devido ao revés de uma vida moderna e agitada, muitos casais não têm a sorte de ter um filho através dos métodos “convencionais”. Adotam, então, as novas técnicas de RA, utilizando-se cada vez mais da biogenética para tentar solucionar seus problemas.
Devido a esse avanço, o Código Civil deveria possuir uma capacidade de previsão do que possa ocorrer com a ciência da biogenética no futuro, evitando sempre causar impasses entre ela e o Direito [50].
Sobre o Novo Código:
“Sensível à pressão da Igreja, o Senador Josaphat Marinho decidiu deixar expresso, como no Código em vigor, que os direitos da pessoa existem desde a concepção. A versão anterior estabelecia que a personalidade civil começava do nascimento com vida, mas previa que a lei daria proteção aos direitos do chamado nascituro” (FOLHA DE SÃO PAULO: 09/11/97: caderno 3 apud SEMIÃO: 1998: p. 191).
Há doutrinadores (natalistas), no entanto, que afirmam que se o (novo) Código considerasse formalmente o nascituro como pessoa ou se mantivesse as dúvidas relacionadas aos seus direitos como as mantinha atualmente, poderia haver um risco de estagnar a biogenética. Fica uma dúvida no ar. Será que, às vezes, não é preciso amenizar o avanço da ciência para que esta não se esqueça que seu principal objetivo é servir à humanidade; e não impor barreiras ou dúvidas em relação às suas novas conquistas?
Independentemente de se achar que o Código Civil (Projeto) possua artigos mais conservadores ou retroativos do que o Código de 1916, importante é avaliar a sua postura face aos problemas envolvendo o nascituro.
9.2 – Nascituro e Prole Eventual: Avanços e Retrocessos no Projeto.
A elaboração de um novo Código gerou grande polêmica. Deve-se, entretanto, considerar o Código de 2002, como uma atualização do Código Civil de 1916, englobando não só a doutrina, a lei e a jurisprudência, mas também a realidade social e a evolução tecnológica.
O Projeto, porém, cometeu um erro ao equiparar o nascituro à prole eventual. Nascituro é aquele que está por nascer. Prole eventual, segundo Teixeira de Freitas, é a prole futura de determinada pessoa, que poderá ou não ser concebida. Ou seja, ainda não houve a concepção e esta pode nem vir a existir, dentro do tempo estipulado.
O art. 2o do Projeto estabelecia: “A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo os direitos do nascituro”. Retirando-se o vocábulo “desde a concepção”, o termo nascituro se torna mais amplo porque compreenderá também prole eventual. Abrangeria, equivocadamente, o ser concebido e o não concebido.
O atual art. 2o do Código é elogiado por atribuir direitos ao nascituro desde a concepção, ainda que o Código não expresse, às vezes, de maneira clara, tais direitos. O Projeto, em algumas partes, equipara o nascituro à prole eventual e, em outras, diferencia-os. “Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas, ou já concebidas no momento da abertura da sucessão”. Já no art. 1803, o Projeto diferenciava corretamente nascituro de prole eventual e ainda modifica “pátrio poder” para “poder familiar”: “Dar-se-á curador ao nascituro, se o pai falecer estando a mulher grávida, e não tendo o poder familiar”.
Apesar, então, de ser contraditório e receber elogios de juristas estrangeiros, o art. 2o em sua interpretação sistemática parece ter adotado a teoria concepcionista, principalmente quando considera o nascituro com status de filho e seu reconhecimento (ECA, art. 26, parágrafo único), reconhece ainda direitos à curatela, à representação, o direito de ser adotado e a posse em nome do nascituro.
Ao se retirar o termo “desde a concepção”, o Projeto apresentava grande retrocesso em relação às novas técnicas de reprodução humana assistida, como a inseminação artificial e a fertilização in vitro, que aflorava, novamente, a discussão do conceito de pessoa e da definição de personalidade jurídica. “O Direito e, conseqüentemente, a lei devem assimilar as lições da Biologia e da Genética para definir a partir de qual momento se iniciará a personalidade jurídica” [51].
O Projeto regrediu, novamente, ao extinguir a adoção de nascituro, que é de grande utilidade ao proporcionar “assistência pré-natal à mãe e ao nascituro, por meio de alimentos a serem prestados pelo adotante” [52].
Outra regressão é o art. 1823, parágrafo 3o, que entra em colisão com a posse em nome do nascituro (CPC, arts. 877 e 878): “Nascendo com vida o herdeiro esperado, ser-lhe-á deferida a sucessão, com os frutos e rendimentos relativos à deixa, a partir da morte do testador”.
Apesar de se tentar atualizar o Código de 1916, o Projeto do Novo Código Civil (que entrou em vigor em 2002), que já não é tão novo assim, apresenta alguns avanços, mas muitos retrocessos, principalmente relacionados ao nascituro.
9.3 – O art 2º do Projeto do Novo Código Civil.
A partir do Código Civil de 1916 (vigente desde 1917), o que lhe fosse acrescido, não poderia ser sinônimo de retrocesso. Deve-se manter a equiparação entre nascido e nascituro, assim como os direitos pertencentes ao concebido.
O art. 1o por estar em um extenso Código deve ser claro desde o princípio e, concordando com Silmara Chinelato, deveria ser expresso dessa maneira: “A personalidade civil do homem começa com a concepção. A doação, a herança e o legado ficam irrevogavelmente adquiridos se o nascituro nascer com vida”. A redação feita desse modo apresentaria uma consagração e um aperfeiçoamento da teoria concepcionista.
O Direito Brasileiro se contrapõe de vários modos como com a ratificação da Convenção sobre Direitos da Criança (1989), em que enuncia: “Tendo em mente que, como indicado na Declaração sobre os Direitos da Criança, a criança, em razão de sua falta de maturidade física e mental, necessita proteção e cuidados especiais, incluindo proteção jurídica apropriada antes e depois do nascimento”. Apesar de avanços como esse, a legislação brasileira mantém o conservadorismo e a tradição romanísitica no Código Civil.
Após, então, de várias emendas, o Projeto, e, atualmente, o Código de 2002, volta à mesma essência do antigo art. 4o, repondo-se o termo “desde a concepção” e trocando-se a palavra “homem” por “pessoa”:
“A personalidade da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.
Espera-se que o Código Civil sofra mudanças a fim de que satisfaça e solucione os problemas relacionados ao nascituro no Direito. Se for para aguardar outros tantos anos, que se faça, então, uma “revolução” e que caibam aos legisladores serem mais claros nas suas intenções para que não gere interpretações subjetivas por parte dos aplicadores do Direito.
Conclusão
Chega-se à parte mais importante e mais esperada, diga-se assim, de um trabalho: a conclusão. É a hora em que o autor expõe seu ponto de vista e o defende da maneira mais irrefutável possível.
No caso de um tema tão relevante e discutido atualmente, o nascituro se destaca no ordenamento jurídico brasileiro pela “atenção” adquirida, apesar de ainda nem ter nascido.
A discussão se inicia logo no princípio do Código Civil, no art. 2o (tão discutido!). Como já foi dito, parece ele adotar as duas correntes: a natalista e a concepcionista, sendo assim contraditório. Que se exponha, então, o artigo:
“A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro”.
Não seria coerente um Código tão respeitado internacionalmente tornar-se contraditório ao adotar teorias opostas. Código Civil este que demorou tanto para ser totalmente elaborado e, mesmo assim, apresenta “lacunas”, não solucionando aos problemas básicos, no ordenamento jurídico brasileiro com eficácia. Um deles é o que se comenta agora: o nascituro.
A legislação nacional estabelece o início da personalidade da pessoa (do ser humano – homem) a partir do nascimento com vida. Frise-se ser humano. O que é então o nascituro? O argumento de que ele faz parte das vísceras da mãe não procede! Ele já tem forma própria, já possui uma composição genética completa, igual ao de um ser humano adulto. Por que, então, deixá-lo de lado no Direito? Direito elaborado por homens comuns. “Homens que herram”. O concebido já e para a Medicina considerado pessoa e, por serem duas disciplinas totalmente relacionadas, Medicina e Direito andam cada vez mais juntos em suas decisões. Portanto, por que ele também não pode ser considerado “uma pessoa” para esse Direito?
É engraçado de se ver legisladores (natalistas) elaborando a legislação brasileira. Eles dizem possuir uma grande inspiração no Direito Romano. Parecem esquecer, no entanto, que estudando, profunda e sistematicamente, descobre-se que o Direito Romano negava, eventualmente, a personalidade de sua condição fisiológica, mas NÃO a sua personalidade jurídica.
Se o ordenamento jurídico brasileiro possui como influência o Direito Romano, torna-se incoerente, então, negar a personalidade e garantir direitos cíveis ao nascituro. Como se pode atribuir direitos àquele que nem sequer é reconhecido juridicamente?
No Direito Comparado, a maioria dos países reconhece essa capacidade de direito, desde a concepção. Assim como o Brasil, o Direito Internacional também reconhece o direito a alimentos, à curatela, à filiação, à integridade física, à imagem, direito de receber doações, de representação, de suceder, a posse em nome do nascituro e, o mais primordial deles: o direito à vida.
Seja por influência do Cristianismo, seja pela “condenação” do aborto pelo Código Penal, o direito à vida, ou melhor, o direito de viver, deve ser reconhecido e resguardado pelo Direito de qualquer país em favor do nascituro. Não importando a sua “colocação” na legislação nacional.
A segunda parte do art.2o do Código Civil põe a salvo os direitos do nascituro desde a concepção. Não seria melhor se o Código o consagrasse “logo” pessoa desde então? Os direitos absolutos da personalidade, como o direito à vida e o direito à integridade física independem do nascimento com vida; ficando dependentes a tal fato somente os direitos patrimoniais materiais, como o direito de receber doação e herança. O nascituro é titular desses direitos, não podendo ser-lhe negado a personalidade jurídica.
Há quem diga, no entanto, que somente expectativas de direito são resguardados ao nascituro. Se isso é verdade, como então é possível equipará-lo aos filhos já nascidos? Ou então lhe conceder o direito à curatela, à representação, aos alimentos? A personalidade não se confunde com capacidade, que é condicionada ao nascimento com vida, sendo este um atributo da primeira. A personalidade é que não pode ser condicionada.
A teoria natalista, que reconhece juridicamente o nascituro somente com o nascimento com vida, ou a concepcionista condicional (imprópria), que considera que a personalidade começa com a concepção, sob a condição do nascimento com vida; não atende propriamente à situação delicada em que se encontra o nascituro, principalmente referente aos problemas ligados à Biogenética e às evoluções tecnológicas.
Atualmente, Direito e Medicina, embora estejam mais ligados do que nunca, ainda divergem a respeito de algumas questões envolvendo o concebido, como a destruição/comercialização de embriões ou a posse em nome do nascituro procriado artificialmente. O correto seria a elaboração de uma legislação própria que acompanhasse essas evoluções com eficácia. Como ainda não foi possível, ou melhor, como ainda não foi dada a relevância necessária a esse assunto, coube ao Conselho Federal de Medicina estabelecer as normas éticas para a utilização, principalmente, das técnicas de Reprodução Assistida.
Muitos acórdãos já admitem a personalidade jurídica do nascituro; outros, no entanto, não a declaram por não considerá-lo pessoa. Exemplos disso são os processos de danos causados ao nascituro e que são relegados a segundo plano, principalmente os danos morais. Danos esses que podem afetar o desenvolvimento natural do feto no presente e no futuro. Danos, em que o nascituro se encontra na posição de sujeição, pois não possui instrumentos físicos de defesa. Entende-se, portanto, que, pelas mudanças que a Medicina vêm sofrendo nos últimos anos, a teoria concepcionista é a que mais se adequa ao Direito, ou melhor, ao Biodireito.
Em relação a uma eventual mudança no Código Civil, ele se encontra em uma posição delicada. Com a elaboração do Código de 2002, houve avanços, e inúmeros retrocessos, não atendendo com eficácia e relevância o concebido no ordenamento jurídico brasileiro. Espera-se tanto tempo para se pôr em vigor um Código próprio. Depois, mais tantos anos para atualizá-lo. E, mesmo assim, mantém-se a posição romanística e conservadora de um Direito que precisa avançar, e não retroceder.
É interessante perceber o medo e a “preocupação” que um ser de 15 mm a 30 cm põe nos “idosos e vividos” legisladores brasileiros. Medo esse que os impede de reconhecer algo já reconhecível e de direito ao nascituro: a personalidade. Eles devem pensar que o Direito já se preocupa demais com alguém que nem existe (irônico, não?!).
Engraçado é se refletir sobre um suposto perfil genético de jóias como Beethoven, Einstein, Da Vinci e Michelangelo e se descobrisse nesse perfil uma doença grave em algum deles, ou ainda, se a expectativa de vida deles fosse tão baixa que nem compensasse os seus nascimentos? Será que as respectivas mães adotariam o método mais natural (e frio) de se matar: o aborto? O que seria, então, da humanidade sem os avanços tecnológicos e culturais que esses senhores proporcionaram? Esse exemplo pode até não ser tão prático, mas já se imaginou o quanto ainda se precisa pensar em relação a tantos avanços ocorridos em tão pouco tempo? O século XX foi o século em que a Ciência mais evoluiu. O mesmo não parece ter acontecido com o Direito. Se em séculos passados o nascituro era reconhecido como pessoa em outras civilizações, não há de se entender o por quê de não considerá-lo mais, em um ordenamento jurídico supostamente mais avançado.
Se na maioria dos dicionários de língua portuguesa o verbete “Direito” significa “o que está certo, conforme à lei”, que se faça, então, uma lei que seja justa conforme à vida. Considerar-se-á, então, o nascituro como pessoa desde a concepção, desde o início de sua vida, não lhe impondo condições que pode ou não vir a cumprir.
ANEXOS
12.1 – ANEXO A – Reportagem SuperInteressante (trecho):
“A Pílula da Discórdia: O direito da mulher é maior que o direito do feto à vida? Quando começa a vida? Punir o aborto evita que ele aconteça? A chegada da mifepristona ao Brasil aquece o debate sobre aborto”. Pág: 46 a 54.
Quando começa a vida? Conheça os momentos da gestação que podem ser utilizados para determinar o início da vida.
Concepção: Para a Igreja Católica, a vida começa quando o espermatozóide fertiliza o óvulo, criando o zigoto. No budismo, isso equivale ao nascimento da pessoa, ou seja, sua idade já começa a ser contada.
1a hora: Muitos geneticistas defendem que a vida começa quando o zigoto se divide pela primeira vez.
12o dia: Para especialistas em fertilização in vitro e fabricantes de DIU, a vida começa quando o zigoto se fixa na parede do útero. Argumentam que o pré-embrião é instável: 25% dos óvulos fertilizados não conseguem fixar-se no útero.
13o dia: O pré-embrião começa a sintetizar suas próprias proteínas. Até aqui, todo seu metabolismo é comandado pelas proteínas herdadas do óvulo que lhe deu origem.
15o dia: A partir desse ponto, o embrião não pode mais dividir-se em dois e gerar gêmeos. Alguns estudiosos defendem que não é possível identificar uma vida se ela ainda pode multiplicar-se em duas, três ou quatro vidas diferentes.
22o dia: Fecha-se o tubo neural, que vai dar origem ao sistema nervoso e ao cérebro, considerado a residência da personalidade humana.
27o dia: O coração começa a bater.
40o dia: Até o século XIX, baseados em Aristóteles, os católicos achavam que a alma entrava em fetos masculinos nesse ponto e, nos femininos, no 90o dia. Como não se podia definir o sexo, o aborto era proibido após 40 dias.
42o dia: Pela primeira vez, notam-se ondas cerebrais. O sistema neurológico torna-se ativo.
49o dia: O sistema nervoso já secreta os receptores necessários para o feto sentir dor.
12a à 15a semana: A grande maioria dos abortos espontâneos ocorre até este ponto. Por isso, alguns biólogos defendem que, a partir daí, abortar contraria a natureza. A maioria dos países que permitem o aborto utiliza esta data.
20a semana: O córtex cerebral, que difere os humanos dos demais animais, fica pronto. Daqui em diante, ele só irá crescer. Para a Organização Mundial de Saúde, este ponto é decisivo. Se o feto morrer antes de completar 20 semanas ou tiver menos de 500 gramas, houve um aborto. A partir daqui, considera-se que uma eventual perda do feto equivale à morte de uma criança nascida.
21a semana: A partir desse ponto, o feto é considerado viável, ou seja, pode sobreviver fora do útero. Com base nesse critério a Justiça dos EUA definiu a 24a semana como limite para o aborto. Na época, não era possível manter vivos fetos de menos de 24 semanas.
28a semana: Para a maior parte dos médicos, a partir daqui o feto possui todas as conexões que lhe permitem sentir dor. Alguns dizem que ela pode ser sentida no 49o dia ou na 13a semana.
30a semana: As pupilas respondem à luminosidade. Mas a visão só vai se desenvolver bem depois do nascimento.
35a semana: O feto começa a ouvir e responde a estímulos sonoros de 2.000 Hz.
Nascimento: Para o xintoísmo, religião predominante no Japão, a criança só é um ser humano quando vê a luz do sol. O Talmude, a lei judaica, diz que a criança adquire personalidade quando sua cabeça emerge do corpo da mãe. Se ela é prematura, no entanto, essa identidade só é incorporada depois.
Colo: Entre índios das Américas, quando a mãe a pega no colo a criança não pode mais ser morta ou abandonada.
7o dia de vida: No Norte de Gana, era o tempo necessário para certificar-se de que a criança não era apenas um espírito.
2 ou 3 anos: Entre os aborígines de formosa, não havia punição para quem matasse uma criança que não tivesse nome, o que ocorria aos dois ou três anos de idade.
Informações Sobre o Autor
Carolina Siniscalchi
Advogada