Resumo:
O artigo trata da inclusão da
teoria da desconsideração da personalidade jurídica no elenco normativo do novo
Código Civil brasileiro, demonstra que o princípio da autonomia patrimonial
continua sendo uma das molas mestras do direito societário, ainda que não tenha
sido repetido, textualmente, pelo novo código, além de tentar deixar claro que
a correta aplicação da teoria em questão, fortalece a concepção de pessoa
jurídica.
Com a entrada em vigor do
novo Código Civil, passaremos a ter, nesse importante ordenamento, de maneira
expressa, a possibilidade de levantamento da proteção outorgada à pessoa
jurídica, pois, ao incluir ao seu elenco de normas, o artigo 50, incorporou a
teoria da desconsideração da personalidade jurídica, oferecendo assim, um instrumento
de amparo àqueles que se sentirem lesados pelos abusos praticados sob o
“escudo” da personalidade jurídica.
É sabido que a pessoa
jurídica se encontra protegida pela separação entre o seu patrimônio e os
patrimônios particulares dos sócios, é o que a doutrina chama de “princípio da
autonomia patrimonial”, FÁBIO ULHOA COELHO menciona que:
“Da personalização das
sociedades empresárias decorre o princípio da autonomia patrimonial, que é um
dos elementos fundamentais do direito societário. Em razão desse princípio, os
sócios não respondem, em regra, pelas obrigações da sociedade”. [ [i]
]
Esse princípio busca dar
segurança aos empresários para a condução dos seus negócios limitando, assim,
as suas responsabilidades e viabilizando o bom andamento da atividade
empresarial.
No entanto, sempre que
ocorrerem abusos, advindos do desvio de finalidade ou da confusão patrimonial,
com o intuito de desrespeitar direitos ou descumprir obrigações assumidas pela
sociedade, para todos os atos abusivos, praticados sob o manto da pessoa
jurídica, será possível que se desconsidere a personalidade da pessoa jurídica
e que se alcance o patrimônio individual dos sócios, conforme se pode
depreender da leitura do artigo 50 do novo Código Civil que dispõe:
“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade
jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão
patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério
Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e
determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos
administradores ou sócios da pessoa jurídica”.
Para ULHOA COELHO:
“Pela teoria da
desconsideração, o juiz pode deixar de aplicar as regras de separação
patrimonial entre sociedade e sócios, ignorando a existência da pessoa jurídica
num caso concreto, porque é necessário coibir a fraude perpetrada graças à
manipulação de tais regras”. [ [ii]
]
Dessa forma, em que pese
o fato de o novo Código Civil, não repetir, textualmente, a regra contida no
artigo 20 do código anterior, que estabelecia: “as pessoas jurídicas têm
existência distinta da dos seus membros”, também, não a exclui, pois, ao
inserir no seu elenco normativo o artigo 50, deixa bastante clara a existência
da separação entre o patrimônio particular dos sócios e o patrimônio da
empresa.
Nesse sentido, percebe-se
que houve a manutenção desse princípio, que, segundo MARIA HELENA DINIZ, “é
uma decorrência lógica da personificação da sociedade” [ [iii]
], no entanto, entendemos que com a recepção da “disregard
doctrine”, a personalidade jurídica passa a assumir um caráter relativo e que a
sua negação inviabilizaria a efetivação da medida e a tornaria inócua. Aliás,
já ensinava no ano de 1969, o ilustre Professor RUBENS REQUIÃO:
“Ora, a doutrina da desconsideração
nega precisamente o absolutismo do direito da personalidade jurídica. Desestima
a doutrina êsse absolutismo, perscruta através do véu que a encobre, penetra em
seu âmago, para indagar de certos atos dos sócios ou do destino de certos bens.
Apresenta-se, por conseguinte, a concessão da personalidade jurídica com um
significado ou um efeito relativo
e não absoluto, permitindo a legítima penetração inquiridora em seu
âmago”.
(…) A personalidade
jurídica passa a ser considerada doutrinariamente um direito relativo,
permitindo ao juiz penetrar o véu da personalidade para coibir os abusos ou
condenar a fraude, através de seu uso”. [ [iv]
]
Esse entendimento é de
suma importância para a correta aplicação da teoria da desconsideração, pois ao
se considerar intocável, o patrimônio dos sócios, conferimos à personalidade
jurídica um efeito absoluto.
Dessa feita, cria-se a
possibilidade de que a pessoa jurídica sirva para acobertar atos abusivos e
fraudulentos praticados por seus membros, sob o amparo do princípio da
autonomia patrimonial, assim, a personalidade jurídica serviria para a
perpetração de uma série de ilegalidades sem que os responsáveis jamais fossem
punidos.
Outro
entendimento que, também, deve ficar claro, inclusive para tranqüilizar os opositores
da teoria da desconsideração é que, ao contrário do que se pensa, desconsiderar
a personalidade jurídica para atingir determinados atos, não significa despir a
pessoa jurídica de sua personalidade, nem esvaziar o seu conceito.
Nesse
sentido, é pertinente mencionar a posição de MARCELO GAZZI TADEDEI, no que
tange à desconsideração da personalidade jurídica:
“De acordo com seus
princípios teóricos originais, a desconsideração não prevê a nulidade, extinção
ou dissolução da pessoa jurídica, determina apenas a sua suspensão para o caso
concreto em que foi utilizada com fraude ou abuso de direito. A teoria não
discute o instituto pessoa jurídica, tem por finalidade responsabilizar aquele
que o utilizou indevidamente, desviando-o de sua finalidade”. [ [v]
]
Conforme ROLF SERICK “não
se nega a existência da pessoa, senão que se a preserva na forma com que o
ordenamento jurídico a tem concebido”. [ [vi]
]
Seguindo essa linha de
pensamento, vale a pena avocar, os ensinamentos de REQUIÃO que a esse respeito
escreveu o seguinte:
“Ao jurista deve caber
uma função verdadeiramente criadora, procurando os motivos profundos e o
sentido real do mundo em que vivemos, buscando o significado último das normas,
com vista à sua adaptação a uma realidade em permanente evoluir”. [ [vii]
]
Compreendemos, portanto,
que a inclusão da teoria da desconsideração da pessoa jurídica no elenco
normativo do novo Código Civil, representa um avanço significativo para o mundo
jurídico e a sua correta aplicação, é, na verdade, medida que visa o fortalecimento
da concepção de pessoa jurídica, tal como pretendeu o legislador a lhe conferir
personalidade própria e autonomia patrimonial, pois, conforme SERICK, “quem
nega a personalidade é quem dela abusa, pois quem luta contra semelhante
desvirtuamento é quem a afirma”. [ [viii]
]
Notas:
[i]
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito
comercial. 2.ª ed. rev. atual. São
Paulo: Saraiva, 2000. v. 2. p.15.
[ii]
Ibid. p.40.
[iii] DINIZ,
Maria Helena. Código Civil Anotado.
6a ed.atual. São Paulo:
Saraiva, 2000. p.43.
[iv] REQUIÃO,
Rubens. Abuso de direito e fraude através de personalidade jurídica: disregard
doctrine. Revista dos Tribunais, São
Paulo, v.410, n. 58, p.15, dez. 69.
[v] TADDEI. Marcelo Gazzi. Desconsideração da
Personalidade Jurídica. Revista Consulex.
São Paulo, ano II, n. 18, p.31, jun. 1998.
[vi]
SERICK, Rolf apud REQUIÃO, Rubens. Op. cit. p.17.
[vii] REQUIÃO,
Rubens. Op. cit. p.16.
[viii] SERICK,
Rolf apud REQUIÃO, Rubens. Op. cit p.17.
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Ana Maria Nunes Breyer