O princípio da função social do contrato. Conteúdo e alcance. Análise econômica

Resumo: O trabalho proporciona uma ampla leitura do princípio constitucional da função social do contrato, seu conteúdo e alcance, principalmente com foco no âmbito econômico, pois a autonomia contratual e o equilíbrio de interesses entre as partes são questões a serem observadas quando da formalização do contrato tendo em vista o fenômeno da publicização do Direito Privado.  A interferência do Estado nas relações jurídicas entre os particulares, prevalecendo o interesse do bem-comum e da redução das desigualdades sociais. Portanto, a liberdade de contratar está atrelada aos fins sociais do contrato, sobressaindo ainda os princípios da boa-fé e da probidade.


1. HISTÓRICO, CONTEÚDO E ALCANCE DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO


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O princípio da função social do contrato surgiu para renascer o equilíbrio social diante das injustiças sociais, do pensamento individualista, dos interesses particulares que sobressaiam nas relações contratuais da sociedade desde a Revolução Francesa.


A visão de proporcionar o bem da coletividade deveria respaldar a igualdade dos sujeitos de direito, a liberdade de cada um seria respeitada e o bem comum alcançado entre as partes contratantes.


O declínio do direito individual fez surgir o direito social, e entre os seus princípios está o da função social da propriedade e do contrato, com foco na promoção  do bem-estar comum e dos interesses sociais para uma sociedade livre e justa.


A doutrina de Santo Tomás de Aquino – doutrina social da igreja – promoveu o conceito de propriedade como um dos direitos naturais, e conseqüentemente do direto das gentes. A visão para a coletividade é ampliada e a função social da propriedade como um pilar da sobrevivência da humanidade passa a ser um conceito que extrapola aos interesses particulares.


A partir de então as encíclicas papais, de concepção filosófico-tomista, passaram a reconhecer e divulgar a função social da propriedade, atribuindo à iniciativa privada a promoção dos direitos sociais, da dignidade humana e da justiça social.


  Para Giselda HIRONAKA (1988) “a função social, como qualidade inerente ao conceito de propriedade, visa adaptar este direito aos interesses maiores de toda a coletividade, além da figura singular do proprietário”.[1]


Léon Duguit, cientista social francês, em sua obra Transformações Gerais do Direito Privado (1912), fomentou a tese de que a propriedade não pode ser vista como um direito subjetivo, mas sim como um dever. Essa tese acirrou o debate de ver a propriedade aliada a função que desempenha – propriedade função.  Apesar das doutrinas contemporâneas rejeitarem a inexistência de direitos subjetivos, assim como a equiparação do conceito de propriedade à função social, o debate sobre a tese de Duguit foi relevante perante os questionamentos, e hoje, a doutrina social é enfática: a função social não se esgota na propriedade, mas a propriedade contém sim uma função social, cabendo ao proprietário dar um destino social à sua propriedade, além dos seus interesses particulares.


A liberdade contratual e o equilíbrio de interesses entre as partes são questões a serem observadas quando da formalização do contrato tendo em vista o fenômeno da publicização do Direito Privado.  A interferência do Estado nas relações jurídicas entre os particulares, prevalecendo o interesse do bem-comum e da redução das desigualdades sociais. Portanto, a liberdade de contratar está atrelada aos fins sociais do contrato, sobressaindo ainda os princípios da boa-fé e da probidade.


Dentro do conceito de Justiça Social, as partes não podem mais exercer os seus interesses contratuais livremente, o conteúdo do contrato deve refletir as exigências da nova ordem, cabendo ao Estado disciplinar e corrigir as vontades das partes para buscar o interesse coletivo, pois “muitas são as normas da ordem pública que se inserem na economia jurídica do contrato” [2].


O art. 421 do Código Civil (CC) dispõe: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.


Sob forte influência do liberalismo econômico, a liberdade de contratar é considerada uma cláusula aberta, de interpretação abrangente. As partes não se limitam apenas à decisão de contratar ou não, mas estende à escolha do contratante e da regulamentação do conteúdo do contrato.


As discussões acerca da vontade individual como elemento central da fundamentação e da legitimação da força do contrato, estenderam para outros princípios contratuais, que estão assegurados pela Constituição Federal (CF) e pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC):


– A dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF);


– Da solidariedade social (art. 3º, I, CDC);


– Isonomia substancial (art. 3º, III, CDC).


Tais princípios introduzidos sob a ótica da tutela do consumidor extrapolam para a órbita privada das relações entre iguais, e se interagem com outros princípios: da boa-fé objetiva; do equilíbrio das prestações e da função social, construindo uma nova hermenêutica contratual, com seus delineamentos flexíveis.


Na interpretação atual, a função social do contrato tem uma característica de ordem pública, sendo o seu alcance estabelecido pelo art. 2035, do Código Civil: “Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”.


Os interesses sociais das partes devem ser protegidos na medida em que os valores sociais relevantes, que ultrapassam a esfera individual, sejam também protegidos. Os interesses privados devem atender aos interesses sociais no âmbito da atividade econômica, com reflexos na ordem contratual.


Dentro da nova ordem social todos os fatos jurídicos são impactados pela função social.  Os valores sociais estabelecidos pelo ordenamento respaldaram a atuação dos titulares, inclusive nas relações jurídicas patrimoniais, onde se destaca a propriedade privada conforme artigos 5º, XXXIII, e 170, III, da CF.


Portanto, a proteção dos interesses privados não incide apenas na liberdade das partes de contratar, mas nos efeitos externos do contrato diante da nova ordem pública contratual. Os interesses privados vinculados aos interesses sociais dentro do âmbito da atividade econômica.


A norma do art. 421, do CC, não pode ser interpretada somente como uma restrição à liberdade de contratar tendo em vista que o direito subjetivo de contratar não é absoluto, mas traz em si toda a reformulação do conceito de contrato diante da função social que lhe é atribuída.


Os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, IV, da CF) e os princípios e objetivos da ordem econômica (art. 170 e segs. da CF) refletem diretamente na ordem contratual, assegurando a todos o princípio da dignidade humana e da justiça social.


Dentro do art. 421, do CC, a função social do contrato torna-se o centro da interpretação das relações contratuais por isso afirma Gustavo TEPEDINO:


“A função social é aqui definida textualmente como a razão da liberdade de contratar. Disto decorre poder-se afirmar que a funcionalização constitui dado essencial à situação jurídica, qualifica-a em seus aspectos nucleares, em sua natureza e disciplina. (…) Toda situação jurídica patrimonial, integrada a uma relação contratual, deve ser considerada originariamente justificada e estruturada em razão de sua função social.” [3]


A função social do contrato torna-se um novo princípio do direito contratual, e a sua interpretação não pode ser isolada, pois ele está estritamente vinculado aos princípios da boa-fé (art. 422, do CC) e do equilíbrio econômico (arts. 157, 478-480, do CC).


Ao lado das discussões sobre a força normativa dos princípios na normatização das relações privadas, as cláusulas gerais ganharam força no âmbito da interpretação legislativa.  São preceitos normativos amplos e de grande abrangência de casos. Portanto, a função social do contrato ganha força vinculante ao ser considerado também uma cláusula geral, com prioridade na interpretação e aplicação de outras normas tendo em vista se correlacionar com outros princípios constitucionais tais como o valor social da livre iniciativa (art. 1º, IV, CF) e da solidariedade social (art. 1º, III, CF), além do critério de interpretação e qualificação do contrato.


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O princípio da função social do contrato está atrelado à conformidade das relações jurídicas dos negócios ao ordenamento jurídico, preenchendo uma das condições necessárias para requerer a tutela do direito, além da licitude dos negócios. Os seus efeitos sociais se sobrepõem aos interesses exclusivos das partes, principalmente nos contratos de serviços essenciais para a comunidade.


A Constituição é a coluna vertebral de todo o ordenamento jurídico, sendo assim a sua interpretação, aplicação e compreensão irão se estender por todas as normas infraconstitucionais. Os princípios constitucionais, sendo o da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF) elevado a fundamento da República torna-se referência para a hermenêutica jurídica, e os valores sociais como a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais (art. 3º, III, CF) devem permear as políticas públicas e a promoção do bem comum.


Os interesses da sociedade ou da coletividade consolidam, para a comunidade jurídica, o entendimento que as relações intersubjetivas devem ser preservadas para o alcance da paz de forma a reduzir os conflitos dentro de um contexto social mais amplo, com ênfase ao solidarismo jurídico em detrimento ao individualismo.


“A propriedade não mais é vista como um direito ilimitado, total, devendo antes observar uma função social; a família deixa de ser considerada um valor em si mesma, passando a ser entendida como merecedora da tutela jurídica na medida em que represente um ambiente no qual seus integrantes possam se desenvolver plenamente; os contratos devem respeitar um crescente número de normas que procuram garantir a prevalência do interesse social sobre o interesse meramente privado, egoisticamente manifestado; a responsabilidade civil preocupa-se mais com a efetiva reparação e prevenção do dano do que com a identificação de um evento culpado, para sancioná-lo pela falta cometida”. [4]


Essa nova ordem constitucional levou à reformulação da disciplina contratual: a imensa desigualdade das partes nas relações obrigacionais, com contratos padronizados, levou inserir a vontade das partes, como comunhão de interesses, como elemento a ser considerado na celebração e no efetivo cumprimento do contrato. O contrato passa a ser um instrumento de cooperação, onde as partes devem se comprometer para o alcance do seu fim maior.


Os valores de uma sociedade livre, justa e solidária promovem uma mudança nos paradigmas do direito privado, em que os novos princípios da boa-fé objetiva, equilíbrio econômico e função social do contrato são incorporados e absorvidos pela nova hermenêutica da disciplina contratual.


“No modelo contemporâneo dos contratos, portanto, cada um dos princípios clássicos é confrontado com um novo princípio, capaz de moldar-lhe a aplicação e redefinir-lhe a abrangência.  A liberdade contratual é informada pela boa-fé, considerada em seu viés objetivo, a incidir em todas as fases da relação negocial, qualificando a conduta das partes e orientando a interpretação do contratado; o vetusto pacta sunt servanda é mitigado pela necessidade de se assegurar o equilíbrio entre a prestação e contraprestação, evitando-se contratações iníquas ou execuções desarrazoadas de obrigações inicialmente razoáveis; a relatividade dos efeitos do contrato é abrandada pelo reconhecimento e afirmação da sua função social”.[5]


Mas as discussões em torno da aplicabilidade efetiva da função social do contrato ainda é objeto de estudo na doutrina contemporânea. Muitos o consideram um princípio ético destinado a proteger a parte hipossuficiente e mitigar os efeitos externos negativos de terceiros envolvidos na relação negocial (repercussões do contrato perante terceiros).  A sua invocação não deve ser limitada ao arbítrio judicial diante da temerosidade de uma decisão não revestida de caráter social, mas sim de um assistencialismo.


O princípio da função social do contrato tem seu fundamento constitucional no princípio da solidariedade e na afirmação do valor social da livre iniciativa, cabendo ao Código Civil, enquanto legislação infraconstitucional, consolidar a funcionalização do contrato de forma a não causar efeitos negativos no contexto social e garantir a sua aplicabilidade a todo e qualquer tipo de contrato.


Os limites teóricos para a aplicação do princípio da função social do contrato, dentro da visão da doutrina moderna, podem ser: superar o voluntarismo das partes e reconhecer a elevada função do contrato como fato social, de interesse para a coletividade; necessidade de proteção ao crédito, assegurando o equilíbrio econômico nas relações negociais; publicidade do contrato para garantia do seu adimplemento, inclusive por limitar a conduta de terceiros, na qual o conhecimento do contrato e o agir em desacordo com as estipulações contratuais levariam ao risco de inviabilizar o seu cumprimento.


2. ANÁLISE ECONÔMICA DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO


Dentro da teoria contemporânea do Direito contratual ocupa papel relevante o princípio da função social do contrato, por meio do qual as partes devem exercer a sua liberdade de contratar de modo a respeitar os interesses da coletividade e da justiça social.


Deixando para trás a visão individualista, e abrindo a porta para o solidarismo constitucional, o contrato deixa de atender somente aos interesses das partes, e passa a ser de interesse de toda sociedade, atendendo duas novas demandas: i) em relação ao terceiro, que sofre um dano decorrente do inadimplemento do contrato – regime de responsabilidade solidária; ii) em relação ao terceiro que contribui para o inadimplemento contratual, prejudicando uma das partes – tutela externa do crédito.


A tutela externa do crédito reflete o princípio da função social do contrato tendo em vista que os terceiros devem respeitar o contexto social criado pelo contrato, devendo até se abster em situações que podem levar ao inadimplemento contratual.


Em situações de responsabilidade civil somente os direitos reais e da personalidade são dotados de uma eficácia erga omnes, podendo o titular ser ressarcido pelos danos provocados por terceiros.


Com a funcionalização do contrato, o direito de crédito se aproxima dos direitos reais porque passa a ser visto como um bem patrimonial da parte credora, e assim exige tutela do direito que se estende inclusive para o ambiente externo.


Mas a doutrina se divide quanto à tutela externa do direito de crédito. Na Alemanha e em Portugal é inadmissível a responsabilização de um terceiro pela violação de crédito alheio. No Brasil, a tendência é classificar os casos dentro do art. 37, do CDC, que trata da publicidade abusiva.


“Considera-se que o exercício da liberdade de contratar, de modo contrário à sua função social, constitui-se em abuso do direito. Eis que desse exercício, ocorre à violação de um direito de crédito alheio, do qual o terceiro tivera conhecimento”.[6]


No caso dos contratos de gaveta, onde a questão central envolve a abrangência da eficácia desta relação contratual perante terceiros, a sua interpretação deve ser realizada à releitura do princípio da relatividade dos efeitos do contrato, vinculada aos princípios da solidariedade e da função social do contrato.


“É a partir do princípio da solidariedade que deve se interpretar a função social do contrato, construindo-se assim mandamento jurídico determinador não somente do respeito mútuo entre os envolvidos na relação contratual, como também de terceiros que, de alguma forma, sofram efeitos derivados da relação contratual”.[7]


A função social do contrato está respaldada pelo princípio constitucional da solidariedade, e assim, exige dos seus contratantes e de terceiros alcançados pelos efeitos extrínseco do contrato a colaborarem entre si, de forma a garantir o seu adimplemento, uma vez que a sua existência seja conhecida pelas pessoas envolvidas no contrato.


A tendência atual da doutrina é interpretar a função social do contrato de acordo com os valores sociais traçados pela nova ordem jurídica: o respeito mútuo entre as partes, assim como de terceiros que sofrem os efeitos oriundos da relação contratual. A função social se apresenta como um fator limitador da conduta de terceiros, julgada de acordo com o princípio da boa-fé, sob um corte subjetivo, onde se pressupõe que o terceiro tenha ciência do contrato, e mesmo assim agiu em desacordo com o estipulado contratualmente, assumindo o risco do seu não cumprimento.


O princípio da solidariedade obriga um regime de cooperação não apenas entre as partes, mas também entre terceiros cuja obrigação varia conforme a sua posição nos efeitos externos do contrato.


Estudar a função social do contrato sob o olhar unicamente econômico é desconhecer toda a sua importância enquanto elemento pacificador das relações sociais. A releitura da relação obrigacional abraça outros conceitos, privilegiando outros princípios para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.


O certo é que a atividade econômica, mas do que nunca, está ultrapassando fronteiras e as relações intersubjetivas devem ser respaldadas por valores sociais amplamente divulgados. No direito contratual, onde antes a autonomia da vontade, imperava majestosamente, passou a ter como limitadores os princípios da boa-fé e da solidariedade social, alterando completamente a forma do contrato. Aliado a estes princípios, a função social do contrato extrapolou a relação entre as partes, e envolveu terceiros que não participaram do vínculo contratual, superando o princípio da relatividade das obrigações.


Sob os aspectos econômicos do contrato é preciso enfatizar a responsabilidade de terceiros que não são partes na relação contratual violada, ou seja,  quando terceiros infringem o pactuado entre as partes, levando-nos a uma reflexão encima dos princípios atuais do direito contratual.


Conforme Antonio Junqueira de AZEVEDO[8], os três princípios que regiam o direito contratual e tinham como centro a autonomia da vontade onde: i) as partes podiam convencionar livremente o que bem entenderem, dentro dos limites da lei (princípio da liberdade contratual lato sensu); ii) o contrato é lei entre as partes (princípio do pacta sun servanda); iii) o contrato obriga somente as partes, não estendendo os seus efeitos a terceiros ( princípio da relatividade dos efeitos contratuais). O reconhecimento da importância da ordem pública, pelos movimentos sociais da primeira metade do século XX, fez com que os juristas acrescentassem um quarto princípio contratual “supremacia da ordem pública”, que teve mais um papel limitador do que propriamente um princípio.


Atualmente, com a promoção do Estado Social os fundamentos do direito contratual estão se firmando, e em torno dos quatro princípios acima citados, outros três estão ocupando o seu espaço na doutrina atual dos contratos: os princípios da boa-fé objetiva, do equilíbrio econômico e da função social do contrato restringem a autonomia privada e reduz o alcance da liberdade contratual, tornando-se a nova ordem jurídica das relações negociais.


O princípio da boa-fé objetiva se prolonga da fase pré-contratual à pós-contratual, criando um compromisso entre as partes de informar, de sigilo e proteção. Este princípio foi abraçado pelo Código de Defesa do Consumidor (arts. 4º, III e 51, IV).


O princípio do equilíbrio econômico do contrato tem como foco de atuação a lesão e a onerosidade excessiva.


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O princípio da função social do contrato é o que mais reflete a demanda social da coletividade, pois ele propõe uma harmonia social pacificadora na relação contratual, protegendo a coletividade (contratos contra o consumidor), e também terceiros que podem sofrer ou causar danos à relação contratual estipulada e conhecida.


O princípio possui uma interpretação muito forte porque está estritamente vinculado a um dos fundamentos da República “o valor social da livre iniciativa” (art. 1º, IV, CF)., e assim os juristas se sentem comprometidos na análise abrangente do contexto social, não engessando o contrato entre as partes. O contrato está correlacionado aos interesses da sociedade. Cabe ressaltar ainda, dentro desse contexto, a importância do art. 170, caput, CF sobre a ordem econômica e da livre iniciativa.


Como ressalta Fernando NORONHA quando classifica a responsabilidade do terceiro como aquiliana:


“Efetivamente , se um contrato deve ser considerado como fato social, como temos insistido, então a sua real existência há de impor-se  por si mesma, para poder ser invocada contra terceiros, e, às vezes, para ser oposta por terceiros às próprias partes.  Assim é que não só a violação de contrato por terceiro pode gerar responsabilidade civil deste (como quando terceiro destrói a coisa que devia ser prestada, ou na figura da indução ao inadimplemento de negócio jurídico alheio), como também de terceiros podem opor-se ao contrato,  quando sejam por ele prejudicados (o instituto da fraude contra terceiros é exemplo típico disto”. [9]


Sendo assim, a análise econômica do princípio da função social do contrato pode ser concebida diante das transformações econômicas que o direito privado, principalmente na esfera dos contratos, sofreu do final do século XIX em diante. As mudanças sociais não foram em vão, e sendo o contrato um instrumento de harmonia social, não deve ficar aquém dos princípios que ordenam a nova ordem social, principalmente da solidarismo constitucional, o que pode ser confirmado pelas palavras de Michele GIORGIANNI sobre as conseqüências das transformações econômicas do Direito Privado:


“Que, deste modo, o Direito Privado tenha perdido o caráter de tutela exclusiva do indivíduo para “socializar-se”, como se costuma dizer, não se poderia colocar em dúvida. Não se deveria duvidar, por outro lado, seja dito incidentalmente, que a atividade econômica privada já transcende as fronteiras das relações entre indivíduos, e penetrou no centro do corpo social através das dilatadas dimensões da empresa econômica e através da possibilidade de satisfazer um número e uma variedade de necessidades antes nem mesmo imagináveis. Esta “socialização” já impregnou intimamente todos os institutos do Direito Privado, e não somente a propriedade, que mais freqüentemente chamou a atenção da doutrina”.[10]


A função social do contrato ultrapassa os contornos dos interesses individuais, pois busca o equilíbrio econômico entre os particulares e a coletividade. Sendo o contrato o instrumento de circulação de riquezas da sociedade, transferindo a riqueza produzida entre partes interessadas e cumprindo a sua efetiva função social. Como cláusula geral, ela se insere em duas categorias: a das cláusulas gerais do tipo restritivo e as de tipo regulativo, como por exemplo, a nulidade de cláusulas contratuais abusivas.


“Há, portanto, um valor operativo, regulador da disciplina contratual, que deve ser utilizado não apenas na interpretação dos contratos, mas por igual, na integração e na concretização das normas contratuais particularmente consideradas. Em outras palavras, a concreção especificativa da norma, em vez de já estar pré-constituída, pré-posta pelo legislador, há de ser construída pelo julgador, a cada novo julgamento, cabendo relevantíssimo papel aos casos precedentes, que auxiliam a fixação da hipótese e à doutrina”. [11]


O atual Código Civil é um sistema aberto, ou seja, cabe ao juiz a interpretação e aplicação dos dispositivos legais – maior liberdade de decisão -, principalmente àqueles que possuem as cláusulas gerais. A função social do contrato é a porta de entrada do direito contratual conforme prevê o art. 421, do CC, sendo um conceito jurídico indeterminado. Arruda Alvim confirma a interpretação das cláusulas gerais:


“O Código Civil possui uma linguagem permeada por cláusulas gerais, prenhe de conceitos vagos, ou seja, são idéias, núcleos de valores apresentados pelo legislador, mas cujo preenchimento demandará necessariamente que sejam completados pelo juiz à luz das circunstâncias do caso concreto”.[12]


Arruda Alvim afirma ainda que a função social do contrato seja uma norma de ordem pública e que as partes não podem dispor tendo em vista a autonomia da vontade. Mas, sempre é importante fazer cumprir o contrato e levá-lo a cumprir os seus resultados práticos, representativos da vontade dos contratantes.


A função social sempre traz uma preocupação com o bem-estar coletivo, e assim direcionar o seu uso aos ditames da justiça social de forma que se torne um atributo ou qualidade da propriedade e ou do contrato. É ir além da figura singular das partes interessadas.


Sendo assim é importante distinguir os dois aspectos do direito das obrigações: a liberdade de contratar e a liberdade contratual. Conforme Giselda HIRONAKA (1988), a liberdade de contratar refere-se à liberdade que cada um possui de realizar contratos, ou não os realizar, de acordo com a sua exclusiva vontade – elemento volitivo.


Já a liberdade contratual refere-se ao momento das partes discutirem os seus interesses e disporem as cláusulas contratuais – a busca do equilíbrio das desigualdades das partes, da ponderação para que não haja injustiças.


“A idéia dos limites impostos à liberdade contratual resulta do próprio fenômeno da publicização do Direito Privado, através da interferência do Estado nas relações havidas entre os particulares, em atenção às exigências do bem comum, do interesse coletivo, num último passo”. [13]


A doutrina da função social vem coroar a busca do equilíbrio nas relações privadas, harmonizar os interesses individuais com a nova ordem econômica e social dentro dos princípios da justiça social. Compreender o seu conteúdo e alcance requer a elaboração de instrumentos aptos e eficazes de promoção dos direitos de propriedade, contratos e empresa. Exige compreensão no sentido amplo dos institutos jurídicos em geral.


A necessidade de uma releitura dos institutos jurídicos do direito privado à luz da ordem social, desde León Duguit com o seu conceito de que a função social é um dever (propriedade-função), até as doutrinas atuais da função social como um aspecto qualitativo da ordem econômica e social (relações paritárias).


A solidariedade social, como um dos fundamentos da função social, refletiu na inovação da teoria dos contratos, exigindo um equilíbrio no interesse a ser disposto pelas partes, pois a liberdade de contratar está em função da igualdade e deve-se buscar a harmonia entre o interesse das partes e a finalidade social do contrato – publicização do contrato.


A relação de cooperação para o adimplemento contratual deve ser o objetivo maior da obrigação principal formalizada num contrato. O interesse do credor é digno de tutela do ordenamento jurídico, por isso as partes devem agir dentro de uma comunhão de interesses, como um elo de integração, e não de forma adversa, principalmente nas relações contratuais de massa.


A função social do contrato compartilha com os princípios da boa-fé e com o da ordem econômica o núcleo de interesse do contrato, e assim colabora para a construção de um ambiente contratual justo, ético e equitativo das relações negociais. Nas relações de ordem mercantil os três elementos contratuais reforçam a unidade de interpretação, fazendo com que o direito atue de forma protetiva das partes caracterizadas pela vulnerabilidade.


3. CONCLUSÃO


O princípio da função social, juntamente com os princípios da boa-fé e do equilíbrio econômico, compõe a nova hermenêutica do direito contratual. Eles devem ser interpretados em conjunto e dentro da nova ordem social – a ótica individualista substituída pela promoção do bem-estar coletivo.


A premissa básica para o operador do direito é contextualizar o princípio da função social do contrato além do interesse das partes contratantes, e estudar os seus efeitos externos à relação jurídica estipulada. O contrato não está numa “redoma de vidro” e alheio às variantes sociais. A liberdade contratual encontra o seu limite na função social do contrato.


O princípio da solidariedade social é um dos fundamentos constitucionais do princípio da função social do contrato, associado também ao “valor social da livre iniciativa” (art. 1º, III, da CF). Assim os contratantes e terceiros afetados pela relação jurídica devem contribuir para o adimplemento contratual. O clima deve ser de cooperação e responsabilidade para que o contrato cumpra com seus efeitos legais, e não fique circunscrito aos interesses individuais das partes.


A função social do contrato caminha em direção oposta ao princípio da relatividade, que busca o isolamento da relação contratual e restringe os seus efeitos às partes contratantes “o princípio da relatividade delimita o âmbito da eficácia do contrato com base na dicotomia parte versus terceiro: os contratos só produzem efeito relativamente às partes, não prejudicando ou beneficiando os terceiros cuja vontade não tenha participado da formação do vínculo contratual“. [14]


Enquanto o princípio da relatividade é interpretado sob a ótica das doutrinas individualistas – a autonomia da vontade como força obrigatória do contrato, não estendendo seus efeitos a terceiros da relação contratual “res inter alios acta” – o princípio da função social do contrato é o contrário, a doutrina do Estado Social consagra o seu fundamento legal, não entendendo terceiros como alheios ao ato do negócio – uma vez que esta extensão tenha por finalidade garantir o cumprimento e a segurança das relações contratuais – e trazendo outros princípios tais como da justiça social, da igualdade, da boa-fé, da solidariedade, do equilíbrio econômico para a interpretação dos efeitos do contrato.


Diante do exposto no texto, conclui-se que a interpretação clássica do princípio da relatividade vinculada à autonomia da vontade teve sua abrangência limitada pela função social do contrato, como demonstram as decisões judiciais e os trabalhos publicados por estudiosos, como, por exemplo, os contratos de exclusividade (distribuidoras de gasolina com postos vinculados, e a propaganda do Zeca Pagodinho com a cerveja Nova Schin).


“Pode-se então concluir que, à luz da nova principiologia contratual, a função social e o abuso de direito constituem fundamento para a responsabilização do terceiro que, ciente da existência de relação contratual anterior, não obstante contrata com o devedor obrigação incompatível com o cumprimento da primeira obrigação assumida por este”. [15]


A função social do contrato estipula um novo limite à liberdade contratual, reconstruindo o seu alcance em abraçar terceiros que não participara do vínculo obrigacional e que, portanto, não tinha nenhum dever em respeitar o disposto no contrato.


Deve-se observar que a função social do contrato não tem a pretensão de limitar a autonomia privada, e ser considerado apenas um instrumento de controle da liberdade de estipular as cláusulas que regem o contrato (liberdade contratual). Mas, é importante frisar, que o seu alargamento pode levar a um discurso jurídico-político de justiça social “vazio”, levando ao inadimplemento contratual por conceder a uma das partes a suposta função social do contrato. O contrato, como instituto jurídico, tem sua eficácia alcançada quando é devidamente cumprido e respeitado por todos os envolvidos.


As partes devem procurar cumprir a função juridicamente relevante do contrato (instrumento para a circulação econômica), com harmonia e cooperação social – “A funcionalização do contrato tem por conseqüência a ampliação da obrigação de contratar e, portanto, a limitação da liberdade de contratar”.[16] – Essa funcionalização pode ser direta, como nos casos previstos em lei, ou indireta, por meio da preservação dos bens ou da interpretação do juiz de acordo com a obrigação a ser cumprida.O juiz, na resolução de casos concretos, deve buscar os fins contratuais (vistas à função social), ou deveres de conduta (boa-fé objetiva).


A interpretação e aplicação do princípio da função social do contrato requerem um equilíbrio entre o princípio da solidariedade e da liberdade contratual para que o contrato atinja sua relevância jurídica concreta. Sua aplicação indiscriminada pode gerar riscos para o sistema tendo em vista o controle da legalidade das decisões judiciais.


“A aplicação direta dessa crítica ao direito brasileiro leva ao questionamento sobre qual é o verdadeiro limite dos juízes na aplicação da cláusula geral do artigo 421, do Código Civil. A aplicação do princípio da socialidade por meio de uma cláusula geral traz mais segurança do que a aplicação direta do princípio jurídico, sem mediação da lei, pois o sistema de uniformização das decisões dos tribunais e o controle da legalidade por parte do Superior Tribunal de Justiça podem ser um meio de balizar o conteúdo da cláusula geral”.[17]


O Direito e a Economia possuem uma interdisciplinariedade, com instrumentos eficazes para a melhoria do bem-estar da sociedade, e sendo o contrato o instrumento jurídico de circulação de mercadorias e riquezas, os princípios contratuais não podem estar desvinculados da busca do equilíbrio econômico, da livre iniciativa e da segurança jurídica. As decisões judiciais devem levar em consideração os seus efeitos econômicos e sociais na comunidade.


“Assim como a função social do contrato não pode anular a sua função econômica, deve ela ser estudada e empregada sob o prisma da economicidade, atuando quando estritamente necessário, dentro dos limites de razoabilidade e proporcionalidade com relação ao caso concreto, sempre levando-se em consideração os potenciais efeitos econômicos da solução jurídica eleita”.[18]


A função social do contrato rompe o paradigma individualista do modelo jurídico liberal, e insere na contextualização sociala sua finalidade, tendo como princípios norteadores o solidarismo jurídico, o equilíbrio econômico e a livre iniciativa.


“O contrato tem uma função importante no seio da sociedade capitalista (coesão, cooperação, regulação de comportamentos e expectativas dentro da ótica solidarista), o equilíbrio e a justiça da relação contratual será garantida por meio de uma regulação heterônoma à vontade das partes contratantes, seja através das normas legais imperativas de proteção de interesses públicos e sociais (inerentes ao Direito Social) – artigos 421, 157, 187, e 478, CC), seja pelo respeito aos usos e costumes (art. 113, CC) – visualizando-se, em todas essas formas, uma interação e uma mediação da sociedade no seio do contrato a fim de garantir-lhe funcionalidade”. [19]


Para invocar a função social do contrato numa relação jurídica, seja como princípio ou cláusula-geral, é importante compreender o seu conteúdo e abrangência para que a concepção moderna de contrato esteja sempre vinculada à cooperação, à solidariedade, à colaboração e à boa-fé, além dos institutos contratuais clássicos, e assim alcançar o cumprimento do que foi acordado entre as partes – finalidade maior do contrato.


 


Referências bibliográficas

ALVIM, Arruda.  A função social dos contratos no novo código civil.  In: Revista dos Tribunais, vol. 815.  São Paulo, set., 2003.  p. 11-31

AZEVEDO, Antonio Junqueira de.  Princípios do novo direito contratual e desregulamentação do mercado – Direito de Exclusividade nas relações contratuais de fornecimento – Função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para inadimplemento contratual.  In: Revista dos Tribunais, vol. 750.  São Paulo, abril, 1998.  p. 113-120

BRANCO, Gerson Luiz Carlos.  Função social dos contratos: interpretação à luz do Código Civil.  São Paulo: Saraiva, 2009.  p. 269-304

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Notas:

[1] HIRONAKA, Giselda M. F. Novaes (1988), p. 145

[2] MOURA, Mário Aguiar.  Função social do contrato. In Revista dos Tribunais, vol. 630.  São Paulo, abril/1988,  p. 247-249

[3] TEPEDINO, Gustavo et al.  (2006), .  p.11

[4] COSTA, Pedro Oliveira da (2005),  p.49

[5]  COSTA, Pedro Oliveira da (2005),  p. 52

[6] PINHEIRO, Rosalice Fidalgo & GLITZ, Frederico Eduardo Zenedin (2008), p. 341

[7] MOURA CORDEIRO, Eros Belin de & MOURA CORDEIRO, Noemia P.F. de (2008),  p.122

[8] AZEVEDO, Antonio Junqueira de (2000),  p. 115

[9] NORONHA, Fernando (1994),  p. 119

[10] GIORGIANNI, Michele (1998),  p. 49

[11] MARTINS-COSTA, Judith (1998),  p.41

[12] ALVIM, Arruda (2003),  p. 27

[13] HIRONAKA, Giselda M. F. Novaes (1988), p. 147

[14] NEGREIROS, Teresa (2002),  p. 212

[15] NEGREIROS, Teresa (2002),  p. 255 

[16] BRANCO, Gerson Luiz Carlos (2009), p. 275

[17] Idem, ibidem, p. 290

[18] FONSECA, Rodrigo Garcia da (2007),  p.186

[19] TIMM, Luciano Benetti (2008), p. 64


Informações Sobre o Autor

Ligia Neves Silva

Advogada e Mestranda em Direito Empresarial e Cidadania, do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA
Técnico de Nível Superior da Coordenadoria de Responsabilidade Social, da Itaipu Binacional, em Curitiba, Paraná. Foi Gestora do Programa de Proteção à Criança e ao Adolescente, da Diretoria Geral Brasileira.


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