Os direitos fundamentais das minorias sexuais e de gênero: análise de viradas paradigmáticas no panorama jurídico da Índia, Paquistão e Nepal

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Resumo: Examina-se o acórdão da Suprema Corte indiana, em National Legal Services Authority v. Union of India and Others, cotejando-o com o posicionamento da Suprema Corte paquistanesa, em Dr. Muhammad Aslam Khaki & Another v. Senior Superintendant of Police (Operation), Rawalpindi & Others (direitos fundamentais das comunidades transgêneras tradicionais do subcontinente indiano), e o aresto da Suprema Corte nepalesa, em Sunil Babu Pant and Others v. Nepal Government and Others (direitos fundamentais das minorias sexuais), a par dos dispositivos a respeito na Constituição nepalesa de 2015. Constata-se a proibição constitucional à discriminação à identidade de gênero e à orientação sexual. Infere-se que assiste às minorias sexuais e de gênero se identificarem como homens, mulheres, pessoas do terceiro gênero ou pessoas sem gênero determinado, independente de intervenção cirúrgica e de congruência do seu psiquismo com os caracteres biológicos de nascimento. Propõe-se que espaços abertos ao público se adaptem ao acolhimento de minorias sexuais e de gênero. Depreende-se que as políticas públicas de cotas e as demais ações estatais de inclusão social devem abarcar a parcela das minorias sexuais e de gênero que se encontra, em consequência da sua identidade de gênero e orientação sexual, em vulnerabilidade socioeconômica. Preconizam-se atividades estatais preventivas e repressivas de assédio e de violência de gênero. Aventa-se a destinação de cotas a representantes de minorias sexuais e de gênero no Poder Legislativo e em órgãos colegiados do Poder Executivo.

Palavras-chave: Minorias sexuais e de gênero. Direitos fundamentais. Índia, Paquistão e Nepal.

Abstract: This paper examines the judgment by the Supreme Court of India in National Legal Services Authority v. Union of India and Others, comparing it to the decisions rendered by the Supreme Court of Pakistan in Dr. Muhammad Aslam Khaki & Another v. Senior Superintendent of Police (Operation), Rawalpindi & Others (fundamental rights of traditional transgender communities of the Indian subcontinent), and by the Supreme Court of Nepal in Sunil Babu Pant and Others v. Nepal Government and Others (fundamental rights of sexual minorities), also considering the provisions concerning the matter in the 2015 Constitution of Nepal. It establishes that it is unconstitutional the discrimination against gender identity and sexual orientation. It infers that sexual and gender minorities have the right to identify themselves as men, women, people of the third gender or people without a set gender, whether they have undergone surgery or not, regardless of the congruence between their psyche and their biological characters at birth. It proposes that spaces open to the public be adapted to receive gender and sexual minorities. It concludes that public quota policies and other state-sponsored social inclusion actions must incorporate sexual and gender minorities who, as a result of their gender identity and sexual orientation, find themselves socially and economically vulnerable. It recommends state-employed preventive and punitive measures against gender-related persecution, harassment and violence, and suggests that quotas be reserved for sexual and gender minorities in the Legislative Branch and in commissions of the Executive Branch.

Keywords: Sexual and gender minorities. Fundamental rights. India, Pakistan and Nepal.

Sumário: 1. Introdução; 2. Os fundamentos constitucionais do acórdão da Suprema Corte da Índia no caso Nalsa; 3. A Suprema Corte do Paquistão na Era Chaudhry. 4. A Constituição do Nepal de 2015 e o caso Sunil Babu Pant; 5. Conclusão; Referências.

1. INTRODUÇÃO

Em National Legal Services Authority v. Union of India and Others (o chamado caso NALSA[1]), a Seção de Litígios de Interesse Público da Suprema Corte da Índia, por meio de órgão fracionário à época composto pelos Justices K. S. Panicker Radhakrishnan[2] e Arjan Kumar Sikri[3], conferiu aos integrantes das comunidades transgêneras históricas ou tradicionais, em acórdão lavrado em 15 de abril de 2014, a faculdade de optarem pelas identidades de gênero masculina ou feminina ou, ainda, por se reconhecerem como terceiro gênero, declarando imoral e ilegal[4] condicionar-se a identidade de gênero de tais pessoas transgêneras à prévia cirurgia de redesignação sexual (CRS)[5], ao mesmo tempo que incumbiu a União e os Estados-membros de propiciarem serviços públicos diferenciados a esse segmento da sociedade, na condição de grupo vulnerável e tertium genus (ÍNDIA, 2016d).

Em outras palavras, a parte dispositiva do aresto (conforme se depreende da análise conjunta dos seus §§ 12 a 18 e 129 a 130) assegurou o direito de hijras[6] e de eunucos de serem tratados como terceiro gênero, apartados da divisão binária de gênero, no que se refere aos direitos previstos quer na Parte III da Constituição da República da Índia[7] (em que se situa o rol expresso de direitos fundamentais daquela Carta Magna, ao longo dos seus arts. 12 a 35), quer nos Direitos Legislados Federal e Estadual indianos, bem como garantiu aos membros das comunidades transgêneras tradicionais da Índia o direito de decidirem qual será a sua identidade de gênero e, por conseguinte, encarregou os Governos Central e Estaduais da Índia de concretizarem estas medidas legislativas e administrativas (concebidas, reprisa-se, para os transgêneros em sentido estrito, é dizer, os integrantes das comunidades transgêneras históricas) (ÍNDIA, 2016d):

1. O reconhecimento jurídico da identidade de gênero[8] escolhida pelas pessoas transgêneras, independente de a escolha recair sobre o gênero masculino, o gênero feminino ou o terceiro gênero.

2. A prestação aos transgêneros de tratamento próprio de quem, na qualidade de cidadãos, sob as ópticas[9] social e educacional, pertence a classes desfavorecidas (“backward classes of citizens”[10]) e, por consequência, faz jus a todos os sistemas de reserva de cotas de acesso a instituições educacionais e a cargos públicos.

3. O monitoramento sorológico, específico para transgêneros, do Vírus da Imunodeficiência Humana[11].

4. A assistência médico-hospitalar ao público transgênero e a criação de dependências exclusivas para pessoas transgêneras, à semelhança do que ocorre com indivíduos dos gêneros masculino e feminino, que dispõem, por exemplo, de banheiros públicos privativos.

5. A formulação de políticas públicas (a) de bem-estar social voltadas aos transgêneros, (b) atinentes a questões psicossociais que afligem as pessoas hijras e as pessoas transgêneras em geral (tais quais, a disforia de gênero[12], a pressão e os estigmas sociais e tendências comportamentais de medo, de vergonha, de depressão e de suicídio), (c) de conscientização social, que permitam aos indivíduos transgêneros se sentirem integrados à vida em sociedade, sem serem vistos, de forma pejorativa, como intocáveis[13], e (d) de resgaste do respeito e do lugar que já desfrutaram na tessitura cultural e social da Índia[14] (mesmo em períodos e em espaços geográficos de preponderância islâmica, a exemplo do Império Mogol[15], na Idade Média indiana), até a persecução penal, desencadeada pelo Império britânico, a partir do século XVIII.

A par disso, estipulou o prazo de seis meses para a análise e a implementação das recomendações de Comitê de Especialistas[16] constituído, em momento anterior a tal julgamento, com o fito de sugerir providências estatais sobre a matéria (ÍNDIA, 2016d).

Ao longo deste artigo jurídico, examinam-se as razões de decidir de índole constitucional invocadas pela Suprema Corte indiana no caso NALSA, cotejando-se tal aresto com julgados paradigmáticos das Supremas Cortes do Paquistão e do Nepal, assim como com a Constituição nepalesa de 2015, tendo-se em mira não só a finalidade de proporcionar à comunidade jurídica de língua portuguesa familiaridade com o estado da arte da proteção dos direitos fundamentais de grupos transgêneros tradicionais na Índia e no Paquistão e de minorias sexuais e de gênero no Nepal, como também o desiderato de propor, em considerações finais, subsídios à promoção dos direitos fundamentais das minorias sexuais e de gênero brasileiras, inspirados nos recentes avanços experimentados nos ordenamentos jurídicos indiano, paquistanês e nepalês.

2. OS FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS DO ACÓRDÃO DA SUPREMA CORTE DA ÍNDIA NO CASO NALSA

K. S. Radhakrishnan (§§ 34, 49, 54, 55, 59, 66, 67, 68 e 75), em seu voto condutor, ao examinar os arts. 14, 15, 16, 19 e 21 da Constituição indiana, (1) alicerçou-se na premissa de que a ordem constitucional, ao se referir aos termos pessoa(s), cidadão(s) e sexo, no contexto dos destinatários da tutela constitucional dos direitos fundamentais, adota a neutralidade de gênero, porque vislumbra todos os seres humanos (não só aqueles que se adéquam a categorias convencionais de homens e mulheres, mas também hijras e demais transgêneros), e, lado outro, (2) adotou interpretação ampliativa do princípio da igualdade e da proibição constitucional à discriminação sexual, ao divisar, em seu campo de incidência, a interdição a condutas discriminatórias quanto à identidade de gênero (enxergou na discriminação de identidade de gênero uma espécie de discriminação sexual[17]), de maneira que a salvaguarda da dignidade sexual humana implica o respeito à identidade de gênero de cada pessoa, dando-se a primazia ao fator psicológico e a testes psicológicos e, portanto, à autoidentificação, em detrimento do sexo biológico e de testes biológicos, do paradigma binário de gêneros masculino e feminino (apesar de abraçado pela legislação infraconstitucional indiana) e da existência ou não de procedimento médico-cirúrgico[18] (ÍNDIA, 2016a; ÍNDIA, 2016d; KANG; KRISHNA DAS, 2016, p. 72; SAHU, 2016, p. 170-173).

Assim, depreende-se do voto condutor (§§ 34, 49, 54, 55, 59, 66, 67, 68 e 75) de Radhakrishnan, sob o ponto de vista do Direito Constitucional Positivo indiano, o seguinte raciocínio (ÍNDIA, 2016a; ÍNDIA, 2016d; KANG; KRISHNA DAS, 2016, p. 72; SAHU, 2016, p. 170-173):

1. O direito fundamental de não sofrer discriminação sexual (arts. 15 a 16 da Constituição indiana) diz respeito à prevenção de atos diretos ou indiretos que acarretem tratamento desfavorável a uma pessoa natural, em virtude dos seus caracteres biológicos ou da sua identidade de gênero e orientação sexual[19] (quer considere a si mesma homem, quer considere a si mesma mulher, quer considere a si mesma nem homem nem mulher) discreparem de generalizações e estereótipos inspirados na separação binária de gênero (esposado pela legislação infraconstitucional indiana, em contrariedade à ordem constitucional).

2. A discriminação sexual de hijras e demais indivíduos transgêneros, devido não só ao preconceito ante a sua orientação sexual, como também ao não reconhecimento estatal da sua identidade de gênero, redunda em níveis extremados de discriminação[20], em graves constrangimentos no acesso ao mercado de trabalho, a serviços de saúde e educação e a locais de convivência social (como restaurantes, shopping centers e banheiros públicos), e em propensão a frequentes assédios, atos de violência e abusos sexuais em espaços abertos ao público, em ambientes domésticos, no sistema penitenciário e em face da conduta policial, de que resulta, por sua vez, o menoscabo ao direito fundamental à igualdade perante a lei e à isonômica proteção legal (art. 14 da Constituição indiana), máxime no que concerne a direitos civis e sociais, assim como aos demais direitos fundamentais relacionados ao exercício da cidadania, pois a ordem constitucional franqueia o tratamento igualitário a todas as pessoas naturais (o texto constitucional menciona o vocábulo pessoa de forma genérica, sem restrições no tocante ao gênero).

3. Ao radicar no preceito constitucional (art. 19(1)(a) da Constituição indiana) que agasalha o direito fundamental à liberdade de manifestação e expressão (freedom of speech and expression) os valores e os direitos fundamentais alusivos à vida privada (privacy)[21], à autoidentidade, à autonomia e à integridade da pessoa, estende-os aos integrantes das comunidades transgêneras tradicionais da Índia, assegurando a estes o direito de exprimirem a sua identidade de gênero de diversas formas e repertórios comportamentais, tais quais suas vestimentas e o modo de se vestirem, sua aparência, suas palavras e ações, como reflexos da personalidade de cada um, a serem respeitados pelo Estado indiano, observada a limitação geral do art. 19(2) daquela Constituição, o qual possibilita o Direito Legislado restringir, de maneira razoável, as liberdades de manifestação e expressão, bem como de reunião, de associação e de locomoção, em nome da segurança estatal, de relações amistosas com Estados estrangeiros, da ordem pública, da decência ou moralidade, assim como em virtude de contempt of court[22], difamação ou incitamento a ofensas.

4. Ao enxergar no gênero componente central da identidade humana e da maneira como o ser humano vê a si mesmo, respalda o direito à identidade e à autodeterminação de gênero nos direitos fundamentais à vida e à liberdade pessoal (art. 21 da Constituição indiana, considerado o cerne daquela Carta Magna), desdobrados nos direitos fundamentais de todos os indivíduos à dignidade, inclusive à dignidade da existência humana (“dignity of human life”), às autonomias negativa (o direito fundamental de não sofrer indevida interferência de outrem) e positiva (o direito fundamental de decidir sobre si mesmo, o que inclui escolher como se expressará e as atividades que desempenhará nas searas pública e privada), à vida privada, à autoexpressão e aos outros elementos da conjuntura humana, por meio dos quais a pessoa natural atribui sentido ao próprio existir (“aspects of life which go to make a person´s life meaningful”).

Em que pese a compreensão tripartite da Suprema Corte da Índia, em National Legal Services Authority v. Union of India and Others, acerca da identidade de gênero mostrar sintonia com a definição desta delineada pela Associação Americana de Psiquiatria, no DSM-5, na medida em que a APA a descreve como “categoria de identidade social” referente “à identificação de um indivíduo como homem, mulher ou, ocasionalmente, alguma categoria diferente de masculino ou feminino” (ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA, 2014, p. 451, grifo nosso), o Poder Judiciário indiano, em tal julgamento, circunscreveu-se, rememore-se, a uma acepção restrita de transgênero, adstrita às comunidades transgêneras históricas do subcontinente indiano e, portanto, distinta do seu sentido abrangente, acolhido pelo DSM-5, segundo o qual se cuida de “amplo espectro de indivíduos que, de forma transitória ou persistente, se identificam com um gênero diferente do de nascimento” (ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA, 2014, p. 451).

É que a Suprema Corte indiana, por intermédio dos votos de Radhakrishnan e Sikri (§§ 11 a 16, 43 a 44, 46, 70 a 74, 107 a 109), bipartiu o vocábulo transgênero nas acepções lato sensu, atinente à parcela de seres humanos cuja identidade, expressão e/ou comportamento de gênero dissente do seu sexo biológico (rol indeterminado a priori, em que podem ser inseridas pessoas homossexuais, bissexuais[23], transexuais[24], travestis[25] e crossdressers[26]), e stricto sensu, que concerne ao conjunto de grupos transgêneros tradicionais da Índia, inspirados, principalmente (mas não só, conforme atrás realçado), pela cultura e religião de matriz hinduísta (tais quais, hijras ou hijaras, eunucos, kothis, aravanis ou thirunangi, jogappas ou jogtas e shiv-shakthis[27]), reservando o campo de incidência daquele julgamento, segundo frisado por Sikri (§§107 a 109), aos transgêneros em sentido estrito, com base no entendimento de que as comunidades transgêneras históricas da Índia e de países vizinhos do subcontinente indiano (como Nepal, Paquistão e Bangladesh) possuem o diferencial (ausente em outras regiões do globo) de terem consolidado, no decurso dos séculos, o segmento social do terceiro gênero, chamado na Índia de hizra (ÍNDIA, 2016d), fenômeno narrado pelo DSM-5 como o de “culturas com outras categorias de gênero institucionalizadas além de masculino ou feminino” (ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA, 2014, p. 458, grifo nosso).

Esse alcance restrito do caso NALSA, em discrepância com o posicionamento contemporâneo da Associação Americana de Psiquiatria, foi reiterado, a contrario sensu, em 30 de junho de 2016, pelos Justices A. K. Sikri e N. V. Ramana, quando, a propósito da petição incidental protocolizada pela União, assentaram (§ 2.º) não haver necessidade de aclaramento do acórdão de 15 de abril de 2014, porquanto o aresto impugnado já havia excluído de sua abrangência, de forma nítida, os homossexuais e os bissexuais (o que, de fato, ocorreu), adscrevendo o âmbito de sua aplicação às comunidades transgêneras tradicionais da Índia, a exemplo daquelas formadas por hijras e eunucos (ÍNDIA, 2016e).

3. A SUPREMA CORTE DO PAQUISTÃO NA ERA CHAUDHRY

Essa tônica da Suprema Corte da Índia no caso NALSA, centrada na proteção de comunidades transgêneras tradicionais, tem como precursora a Suprema Corte do Paquistão, em Dr. Muhammad Aslam Khaki & Another v. Senior Superintendant[28] of Police (Operation), Rawalpindi & Others, feito no qual, via provimentos jurisdicionais datados de 4 de novembro de 2009, 20 de novembro de 2009, 23 de dezembro de 2009, 22 de março de 2011 e 25 de setembro de 2012, sem se reportar, de molde explícito, à categoria de terceiro gênero, assegurou, capitaneada pelo então Chief Justice Iftikhar Muhammad Chaudhry[29], tratamento igualitário a eunucos em direitos e obrigações, estipulando correlatos deveres prestacionais dos Governos Federal e Provinciais, de que se sobressaem (PAQUISTÃO, 2016a; PAQUISTÃO, 2016b; REINO UNIDO, 2016, p. 13-14):

1. O direito de terem carteiras nacionais de identidade e dados cadastrais oficiais compatíveis com o seu status de eunucos[30];

2. O tratamento isonômico relativamente ao direito à vida, ao direito à dignidade, ao direito de propriedade, aos direitos sucessórios relacionados a bens móveis e imóveis, ao direito ao alistamento eleitoral e ao exercício do direito de votar e de ser votado (capacidades eleitorais ativa e passiva)[31], ao direito ao acesso a instituições educacionais (a partir da infância, alcançando os ensinos superior, técnico e vocacional) e a atividades laborais respeitáveis (usufruindo de políticas públicas similares às ações afirmativas desenvolvidas em favor de pessoas com deficiência);

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3. A proteção do aparelho estatal em face de assédios e demais condutas abusivas e discriminatórias (oriundas, entre outros, de agentes públicos, mormente policiais), bem como da atuação de terceiros, que se identificam como eunucos, visando à prática de delitos.

4. A CONSTITUIÇÃO DO NEPAL DE 2015 E O CASO SUNIL BABU PANT

A vigente Constituição da República Federal Democrática do Nepal de 2015 aproxima-se da orientação jurisprudencial fixada pela Suprema Corte nepalesa, cujo acórdão paradigmático a respeito dessa temática adotou em 2007 enfoque mais dilatado, em contraste com as Supremas Cortes da Índia, em National Legal Services Authority v. Union of India and Others, e do Paquistão, em Dr. Muhammad Aslam Khaki & Another v. Senior Superintendant of Police (Operation), Rawalpindi & Others, já que o órgão de cúpula do Poder Judiciário nepalês, apesar da sua ênfase na proteção das pessoas de terceiro gênero, firmou juízo de valor conclusivo, em sua ratio decidendi, em prol, de maneira explícita, do resguardo de todos os grupos LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e intersexuais[32]), e não apenas da parcela das comunidades transgêneras que desfruta de histórica presença no cenário cultural e religioso do subcontinente indiano (ÍNDIA, 2016d; NEPAL, 2016a, p. 262-286; NEPAL, 2016b; PAQUISTÃO, 2016a; PAQUISTÃO, 2016b; REINO UNIDO, 2016, p. 13-14).

Na esteira desse entendimento pretoriano, a nova Constituição nepalesa, ao situar as minorias sexuais e de gênero no elenco de grupos marginalizados, confere-lhes, em seu art. 42, o direito de participarem de órgãos estatais, à luz do princípio da inclusão, a título de desdobramento do direito à justiça social, e, como corolário do direito à igualdade, veda, em seu art. 18(3), qualquer tentativa de obstar a edição de disposições legais específicas, direcionadas à proteção, ao fortalecimento (“empowerment”) ou ao desenvolvimento daquelas (NEPAL, 2016b).

Em seu art. 12, franqueia àqueles que adquiriram a nacionalidade nepalesa, em razão da ascendência biológica (jus sanguinis), o direito à expedição de certificado de nacionalidade em que conste a identidade de gênero (NEPAL, 2016b).

A gênese dos arts. 12, 18(3) e 42 da Constituição nepalesa de 2015 foi antecedida pelo julgamento, em 21 de dezembro de 2007, pela Suprema Corte do Nepal, do caso Sunil Babu Pant and Others v. Nepal Government and Others, quando, por meio de voto condutor do Justice Balram K. C., a que anuiu o pronunciamento do Justice Pawan Kumar Ojha, estendeu os direitos fundamentais da ordem constitucional à época vigente (então catalogados na Parte III, arts. 12 a 32, da Constituição Interina de 2007) às “pessoas com terceira espécie de identidade de gênero, outra que não masculina ou feminina, e diferente orientação sexual”[33] (grifo nosso), e aos demais componentes do segmento LGBTI, ao acentuar que, sendo todos cidadãos do Nepal e pessoas naturais, devem usufruir, sem prejuízo da própria identidade de gênero, dos direitos estatuídos “pelas leis nacionais, pela Constituição e por instrumentos de proteção internacional dos direitos humanos”[34] (NEPAL, 2016a, p. 262-286, NEPAL, 2016b; NEPAL, 2016c).

Em tal julgado, a Suprema Corte nepalesa concitou a Assembleia Nacional Constituinte a esculpir no elenco explícito de direitos fundamentais da nova Constituição a proibição não só da discriminação sexual, prevista no art. 13(2)(3), 20(1), 34(4) e 142(4) e dos itens 7.1.1 e 7.6.1 do Anexo 4 da Constituição Interina, como também das discriminações quanto à identidade de gênero e à orientação sexual (NEPAL, 2016a, p. 262-286; NEPAL, 2016c).

A despeito da Constituição nepalesa de 2015 estar aquém do proposto pela Suprema Corte do Nepal, por não encerrar cláusula expressa a interditar a discriminação relacionada à orientação sexual, alberga normas (1) que proscrevem, com clareza solar, a discriminação relativamente à identidade de gênero e, por outro lado, (2) que promovem, de forma manifesta, a igualdade de gênero (ainda que o foco seja os direitos das mulheres, e não das minorias sexuais e de gênero em geral, cuida-se de evolução, comparada com a predecessora Constituição Interina de 2007).

De fato, além dos indicados arts. 12, 18(3) e 42, cabe citar, nessa matéria, o preâmbulo, o art. 18(4)(5), o art. 19(1), o art. 38(1), o art. 50(1) e o art. 252(6)(a) da atual Carga Magna nepalesa (NEPAL, 2016b): 

1. O § 5.º do preâmbulo, ao preconizar a proteção e a promoção da solidariedade de cunho social e cultural, da tolerância e da harmonia e da unidade na diversidade, por meio do reconhecimento das características multiétnicas, multireligiosas, multiculturais e da diversidade regional, estabelece o propósito de se construir uma sociedade igualitária, ancorada nos princípios da inclusão proporcional e da participação, com o fim de propiciar igualdade econômica, prosperidade e justiça social, mediante a eliminação da discriminação estribada em classes, castas, regiões, idioma, religião, gênero e nas formas de intocabilidade derivadas do sistema de castas.

2. O art. 18(4) veda a discriminação de gênero no que concerne à remuneração e aos benefícios da seguridade social atinentes àqueles que exercem a mesma atividade laboral, ao passo que o art. 18(5) preceitua a igualdade de gênero dos descendentes, quanto ao direito de propriedade dos bens herdados dos seus ancestrais.

3. O art. 19(1), entre outras vedações, proíbe que os meios de comunicação façam apologia da discriminação de gênero.

4. O art. 38(1) garante às mulheres a isonomia de gênero no tocante ao direito de linhagem.

5. O art. 50(1) encastoa, entre os princípios reitores do Estado, o fomento à igualdade de gênero.

6. O art. 252(6)(a) enumera, entre as qualificações do cargo de Presidente ou membro da Comissão Nacional das Mulheres, haver dado contribuição de destaque, nos dez anos anteriores, aos direitos ou interesses das mulheres, à justiça de gênero, ao desenvolvimento das mulheres ou aos direitos humanos e ao Direito.

5. CONCLUSÃO

Conquanto o alcance formal das decisões judiciais adotadas pela Suprema Corte da Índia, em National Legal Services Authority v. Union of India and Others, e pela Suprema Corte do Paquistão, em Dr. Muhammad Aslam Khaki & Another v. Senior Superintendant of Police (Operation), Rawalpindi & Others, haja se circunscrito a comunidades transgêneras tradicionais ou históricas do subcontinente indiano, os fundamentos jurídicos de tais provimentos jurisdicionais, sob a perspectiva dos direitos fundamentais, aplicam-se, de forma plena, a todos os grupos cuja vulnerabilidade decorra da sua orientação sexual e/ou identidade de gênero, raciocínio inspirado no enfoque ampliativo esposado pela Suprema Corte do Nepal em Sunil Babu Pant and Others v. Nepal Government and Others (a contemplar as minorias sexuais em geral) e, de modo menos explícito, ainda assim, significativo, pela Constituição nepalesa de 2015.

Do exame conjunto das orientações jurisprudenciais sedimentadas nas referidas decisões judiciais, pelas Supremas Cortes da Índia, do Paquistão e do Nepal, conjugado, igualmente, com a análise da Constituição do Nepal de 2015 a respeito da matéria, depreendem-se estas conclusões (aplicáveis à contextura brasileira):

(a) A proibição constitucional à discriminação sexual (prevista no art. 3.º, inciso IV, da Constituição brasileira de 1988) importa a interdição não só à discriminação quanto ao sexo biológico, mas também, e, sobretudo, no tocante à identidade de gênero e à orientação sexual.

(b) Como ressonância dos direitos fundamentais à identidade de gênero e à orientação sexual, assiste aos integrantes das minorias sexuais e de gênero (grupos minoritários, sob o ângulo da orientação sexual e da identidade de gênero) a faculdade de se identificarem como homens, mulheres, pessoas do terceiro gênero ou pessoas sem gênero determinado, independente quer de intervenção cirúrgica, quer de congruência do seu psiquismo com os caracteres biológicos de nascimento (genótipo e fenótipo), em atos de cunho público e privado, inclusive em documentos de identificação pessoal, registros, formulários, bancos de dados e cadastros (exempli gratia, passaportes, registros civis de nascimento de pessoas naturais, prontuários médicos e assentamentos funcionais).

(c) À vista da interface entre os princípios da dignidade da pessoa humana, da isonomia (em que se agasalham a igualdade jurídica de todos os seres humanos, em direitos e deveres, e a promoção da igualdade de oportunidades), da justiça social, da fraternidade e da solidariedade, a acessibilidade a espaços (estatais e não estatais) abertos ao público deve ser adaptada ao acolhimento de minorias sexuais e de gênero (verbi gratia, usuários de serviços públicos, agentes públicos, trabalhadores em geral, consumidores e fornecedores de serviços e produtos), mormente das pessoas naturais que não se reconhecem como homens tampouco como mulheres ou, por outros motivos, não se enquadram em tais modelos comportamentais binários, conjuntura ilustrada pela necessidade de banheiros privativos para indivíduos transgêneros. 

(d) Com fulcro em tais normas principiológicas, a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal devem distender as políticas públicas de cotas que já adotam (e que venham a adotar) à parcela das minorias que se encontra, em consequência da sua identidade de gênero e/ou orientação sexual, em estado de vulnerabilidade socioeconômica, a qual faz jus a ações do Poder Público de inclusão social nos campos da saúde, da assistência social e da educação, bem como no que se refere ao acesso a oportunidades de trabalho nos setores público e privado, além de atividades estatais preventivas e repressivas de condutas de assédio moral e sexual e de violência de gênero em ambiências públicas e privadas, incluindo-se a intimidade familiar, a seara laboral, as instituições educacionais, as unidades de saúde e a Administração Pública (a exemplo do Sistema Único de Saúde, do Sistema de Segurança Pública, da Administração Penitenciária e das Forças Armadas). A ampliação da igualdade de gênero no Poder Legislativo e em órgãos colegiados de formulação de políticas públicas do Poder Executivo implica a destinação de cotas a representantes não só de mulheres em geral, como também dos grupos de minorias sexuais e de gênero (tais quais, lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e intersexuais).

 

Referências
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Notas
[1] Na literatura jurídica de língua inglesa, é denominado de NALSA judgment (KANG; KRISHNA DAS, 2016, p. 64).

[2] Nome judiciário: K. S. Radhakrishnan. Aposentou-se em 14 de maio de 2014 (ÍNDIA, 2016b).

[3] Nome judiciário: A. K. Sikri (ÍNDIA, 2016c).

[4] Paulo Roberto Iotti Vecchiatti assevera a crueldade de “condicionar a mudança de prenome e sexo jurídico da pessoa à realização de uma cirurgia altamente invasiva”, levando em conta que, em muitas circunstâncias, a pessoa transexual não está em condições de realizá-la (pode-se aventar, em acréscimo a essa lição doutrinária, as hipóteses em que não se sente preparada do ponto de vista psicológico e/ou não possui recursos financeiros e/ou amparo estatal para tanto), ou não almeja fazê-lo (há o caso emblemático “de travestis, que não desejam realizar a cirurgia de transgenitalização”) (VECCHIATTI, 2015, p. 300).

[5] Mais conhecida pela sigla em inglês: SRS (Sex reassignment surgery) (ÍNDIA, 2016d).

[6] Uma pessoa hijra, indivíduo transgênero de genótipo masculino, castrado ou não, com vaginoplastia e implantes de seios ou não, veste-se com roupas femininas, matiza características masculinas e femininas, vincula-se à comunidade de mesmo nome, segue as normas comunitárias e as orientações de determinado guru, sem se enquadrar na moldura comportamental nem de homem nem de mulher (CHETTIAR, 2016, p. 752).

[7] Promulgada em 26 de novembro de 1949, a maioria dos dispositivos da Constituição da República da Índia iniciou sua vigência somente em 26 de janeiro de 1950, conforme se depreende da interpretação conjunta do seu art. 394 (constante da Parte XXII, na qual se encontram suas disposições transitórias) e do seu preâmbulo (ÍNDIA, 2016a).

[8] A identidade de gênero diz respeito à “sensação ou percepção pessoal quanto a qual seja o seu gênero”, de modo independente “da sua constituição física ou genética” (CUNHA, 2015, p. 19).

[9] Empregou-se a grafia óptica, em vez de ótica, em respeito ao ensinamento do Prof. José Maria da Costa de que aquela se refere à visão, enquanto esta concerne à audição (COSTA, 2016).

[10] A expressão “backward classes of citizens”, em referência a cidadãos de classes desfavorecidas (marginalizadas), é recorrente na Constituição indiana, a qual comete ao Estado o dever prestacional de promover ações afirmativas em proveito daqueles, sob os prismas social e educacional ― art. 15(4)(5) ―, em que se inserem as cotas em cargos públicos ― art. 15(4) ―, incluindo-se no Poder Judiciário ― art. 124A(1) ― e nos Governos locais ― arts. 243D(6) e 243T(6) (ÍNDIA, 2016a).

[11] Mais conhecido pela sigla em inglês: HIV (human immunodeficiency virus) (DELAMARE, 2002, p. 651-652, p. 1.122-1.123).

[12] A Associação Psiquiátrica Americana ― APA, na quinta edição do seu Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), adotou a locução disforia de gênero, ao deixar de considerar transtorno mental a ausência de conformidade entre o gênero atribuído pela família e sociedade à pessoa e a sua identidade de gênero. Dessa feita, o DMS-5 define disforia de gênero como o “sofrimento que pode acompanhar a incongruência entre o gênero experimentado ou expresso e o gênero designado de uma pessoa”, e ressalta que tal termo “é mais descritivo do que o termo anterior transtorno de gênero, do DSM-IV, e foca [rectius: enfoca] a disforia como um problema clínico, e não como identidade por si própria”. (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2016; ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA, 2014, p. 451-452, grifo original).

[13] Os intocáveis (dalits) constituem o extrato mais humilde da pirâmide social indiana, a ponto de não terem casta própria (daí a denominação depreciativa de párias). Embora a intocabilidade haja sido abolida pelo art. 17 da Constituição indiana, a qual, em seu art. 15(1)(2), proíbe a discriminação baseada, entre outros critérios, na casta, inclusive para fins de serviço público compulsório ― art. 23(2) ―, bem como de (ine)elegibilidade e de acesso a cargos públicos e a instituições educacionais ― arts. 15(2), 29(2) e 325 ―, a violação a direitos humanos, em função do sistema de castas, ainda se faz vigorosa na Índia, sobretudo quanto aos dalits, nomeadamente em vilarejos e comunidades rurais, em decorrência da opressão pelas castas superiores, reforçada por autoridades dotadas de poder de polícia ou de fiscalização, privando-os de condições dignas de trabalho, de moradia, de alimentação e de educação, além de mantê-los sujeitos a agressões sexuais e a outras formas de violência, assim como a níveis extremos de miséria e degradação humana (HANCHINAMANI, 2016, p. 15, 18-19, 29; ÍNDIA, 2016d; MAJID, 2016, p. 263-265).

[14] “Na sociedade indiana os transexuais são nominados de hijras, as quais são vistas como uma figura mítica em alguns momentos, mas hoje relegadas a [rectius: à] prostituição para sua sobrevivência, em que pese começarem, aos poucos, a livrar-se desta condição de marginalidade, aos quais se permite indicar a letra E, de eunuco, no passaporte no campo reservado ao sexo ou gênero, desde 2005, posicionamento confirmado pela Suprema Corte daquele país [em] abril de 2014.” (CUNHA, 2015, p. 126-127).

[15] Não se confunde com o Império Mongol.

[16] Intitulado de Comitê de Especialistas sobre Questões relacionadas aos Transgêneros (Expert Committe on Issues relating to Transgender) (ÍNDIA, 2016d).

[17] Ao interpretar o art. 3.º, inciso IV, da Constituição brasileira de 1988, Maíra Coraci Diniz desenvolve semelhante exegese ampliativa da proibição constitucional da discriminação sexual, a englobar a interdição à discriminação a respeito da identidade de gênero: “Ao proibir expressamente a discriminação em razão do sexo, o texto constitucional traz um arcabouço que visa [a] proteger as relações de gênero dentro da sociedade brasileira. […] Portanto, o princípio da não discriminação em razão do sexo ampara o direito fundamental à identidade, pois não permite que se discrimine uma pessoa transexual no seu direito de ver reconhecida a sua identidade de gênero no seu meio social.” (DINIZ, 2014, p. 39-40).

[18] Similar pensamento, na literatura jurídica pátria, Hélio Veiga Júnior articula, aos olhos dos direitos da personalidade: “[…] no que se refere à transexualidade, é importante analisar que a condição de transexual decorre de constatação psicológica e não física, uma vez que ocorre a permanência do sexo psicológico sobre o sexo anatômico. Portanto, ainda que não ocorram intervenções cirúrgicas ou hormonais no transexual, as quais visam apenas a [rectius: à] mudança anatômica, o seu direito ao gênero como um direito da personalidade deve ser reconhecido. Nesse sentido há que se falar que a realização da cirurgia de transgenitalização não é um requisito de validade para que a transexualidade seja caracterizada ou reconhecida, uma vez que esta não se trata de uma questão de mera sexualidade, mas, verdadeiramente, de identidade. […] Percebe-se, assim, que a transexualidade transcende ou até mesmo pode prescindir [d]a transgenitalização, pois esta é uma mera forma de se modificar, pela vontade do transexual, o seu sexo.” (VEIGA JÚNIOR, 2016, p. 137-138).

[19] Consubstancia orientação sexual, e não opção sexual, porque, dilucida Leandro Reinaldo da Cunha, em sua tese de doutorado sobre identidade e redesignação de gênero, “o indivíduo não efetiva uma escolha por esta ou aquela conduta, apenas tem aquele interesse, desejo ou vontade sexual vinculada para tal ou qual sentido” (CUNHA, 2015, p. 38). A orientação sexual se distingue da identidade de gênero: aquela concerne à “existência ou não de interesse sexual (no sentido de manutenção de relação sexual), e se tal desejo se destina a [rectius: à] pessoa do mesmo gênero ou não”, ao passo que esta constitui uma construção cultural e “uma percepção social que o próprio indivíduo tem de si”. Como exemplo ilustrativo da diferença entre orientação sexual e identidade de gênero, cita a situação recorrente em que o transexual “apresenta repugnância, ordinariamente, pela relação homossexual, pois responde aos estímulos de outro sexo, já que não se vê como alguém que mantém ou busca manter relações sexuais com pessoas do mesmo sexo que ele” (CUNHA, 2015, p. 25, 38, 39).

[20] Na dogmática brasileira, são dignas de nota as reflexões de Clarindo Epaminondas de Sá Neto e Yara Maria Pereira Gurgel sobre a marginalização das pessoas transexuais: “Não sofrem somente discriminação social, mas também são vítimas de maus-tratos, violações e agressões e, inclusive, homicídios. Como resultado desses prejuízos e da discriminação que as priva de fontes de trabalho, tais pessoas encontram-se praticamente condenadas a condições de marginalização, que se agravam nos numerosos casos de pertencimento aos setores mais desfavorecidos da população, com consequências nefastas para [a] sua qualidade de vida e sua saúde, registrando altas taxas de mortalidade, o que já foi devidamente provado em estudos apresentados pela comunidade científica brasileira e internacional.” (SÁ NETO; GURGEL, 2016, p. 82).

[21] Em sua tese de doutorado, a postular a identidade de gênero como direito da personalidade, Camila de Jesus Mello Gonçalves infere que assiste à pessoa transexual o direito de ocultar da coletividade e do Poder Público seus caracteres biológicos, exteriorizando, perante o corpo social e o aparato estatal, tão só a sua identidade de gênero: “O elemento biológico, que identifica e caracteriza o aparelho e os órgãos sexuais naturais, porque integrante da vida privada, é ocultado, de modo que apareça somente a identidade de gênero, relacional, construída em interação e, bem por isso, relevante para o grupo.” (GONÇALVES, 2014, p. 275). Ao acentuar o mister de “compatibilizar o interesse individual com o coletivo, na consideração de que as normas jurídicas destinadas à identificação dos membros da coletividade são de ordem pública”, obtempera que, “embora o sexo original restrinja-se à intimidade, a individualização de cada pessoa com base em seu nome e estado civil, familiar e político importa ao Estado e à sociedade”, com o fito de que haja a “correta identificação das pessoas, sem a qual não há possibilidade da segurança e certeza necessárias para a vida coletiva” (GONÇALVES, 2014, p. 275).

[22] “Pode-se definir o contempt of court como a ofensa ao órgão judiciário ou à pessoa do juiz, que recebeu o poder de julgar do povo, comportando-se a parte conforme suas conveniências, sem respeitar a ordem emanada da autoridade judicial.” (ASSIS, 2003, p. 20).

[23] A bissexualidade relaciona-se à “circunstância em que a pessoa sente atração físico-sexual tanto por pessoas que revelam ser do mesmo gênero que ela, como também para com do gênero oposto”, isto é, “apresenta uma atuação dúplice, por vezes agindo como heterossexual, e outras como homossexual, numa conduta que transita por esta ou aquela orientação sexual, com interesse voltado para ambos os sexos” (CUNHA, 2015, p. 42-43).

[24] “O transexual possui um psiquismo contrário ao do sexo físico que apresenta, com desejos vinculados aos de quem possui uma condição sexual distinta da que ele apresenta em seu fenótipo, ou então apresenta percepção de que a definição sexual que lhe é atribuída não corresponde com a realidade, não lhe sendo própria, [uma] vez que vítima de um erro da natureza.” (CUNHA, 2015, p. 31).

[25] “A travestilidade, diretamente, não está relacionada ao desejo e à atração sexual, e são diversos os motivos pelos quais uma pessoa passa a travestir-se. A travesti é aquela pessoa que se veste e se comporta como pessoa pertencente ao outro grupo sexual, mas, intimamente, não deixa de se sentir conforme [o] seu sexo biológico: homem ou mulher, mantendo, portanto, sua identidade de gênero.” (SANCHES, 2015, p. 273).

[26] “Embora as significações sobre o termo possam variar, grosso modo, uma pessoa que se identifica como crossdresser pode ser definida como alguém que eventualmente usa ou se produz com roupas e acessórios tidos como do sexo oposto ao que lhe foi assignado ao nascer.” (VENCATO, 2016, p. 369). Por conseguinte, é uma espécie de travestilidade. Sua principal manifestação contemporânea vem a lume em “clubes de indivíduos que compartilham a experiência de se vestirem como alguém do sexo oposto ao de nascimento, sem a reivindicação do pertencimento a ele, sendo imensamente mais comum o crossdressing de-homem-para-mulher” (GARCIA; MIRANDA; BARBOSA; VICENTE; PEREIRA; ANTÔNIO; OLIVIERA; BOA SORTE, 2016, p. 82).

[27] Hijras ou hijaras: pessoas de sexo biológico masculino que se identificam como mulheres, “não homens” ou uma categoria intermediária entre homens e mulheres, perfilhada por homens castrados, não castrados e hermafroditas (pessoas intersexuais). Eunucos: homens emasculados. Kothis: pessoas do sexo biológico masculino, com graus diferentes de feminilidade, que nem sempre se identificam como hijras ou indivíduos transgêneros. Aravanis ou thirunangi: hijras habitantes do Estado de Tamil Nadu, no Sul da Índia. Jogappas ou jogtas: servos da deusa Renukha Devi (chamada igualmente de Yellamma Devi, entre outras denominações), com templos situados nos Estados de Maharashtra e de Karnataka, no Oeste e no Sudeste da Índia, respectivamente. Como se trata de comunidade plural, constituída também por pessoas de sexo biológico feminino (jogtis) e homens heterossexuais (jogtas em sentido estrito), nominam-se de jogti hijras os transgêneros do sexo biológico masculino. Shiv-shakthis: homens com expressão de gênero feminina e sob a influência espiritual de alguma das deusas hindus, os quais se vinculam, em sua maioria, a normas, procedimentos e costumes de comunidades de mesmo nome, orientados por gurus. Nesse sentido, vide §§ 12 a 16, 43 a 44 e 108 a 110 do aresto do caso NALSA (ÍNDIA, 2016d).

[28] Em vez de Superintendent, o Poder Público, no Paquistão, optou pela grafia menos usual Superintendant (PAQUISTÃO, 2016a; PAQUISTÃO, 2016b).

[29] Chaudhry foi Chief Justice da Suprema Corte paquistanesa durante três mandatos não consecutivos: de 30 de junho de 2005 a 9 de março de 2007, de 20 de julho de 2007 a 3 de novembro de 2007 e de 22 de março de 2009 a 11 de dezembro de 2013 (WIKIPEDIA, 2016).

[30] Veiga Júnior resplende que a discrepância entre a identidade de gênero e os documentos de identificação pessoal sujeita as pessoas transexuais a frequentes constrangimentos incompatíveis com a dignidade de tais seres humanos e com os seus direitos personalíssimos, notadamente o direito à liberdade sexual, considerando que tais documentos “promovem discriminação, comentários pejorativos e jocosos ou tratamentos involuntariamente errôneos que mitigam a dignidade do transexual”. Exemplifica: “[…] o transexual que se apresenta com sua identidade social, da forma como realmente deveria ser tratado, pelo prenome escolhido e gênero verdadeiro, e em seguida é obrigado a mostrar a um funcionário, público ou privado, seus documentos inalterados, com prenome escolhido de acordo com o sexo morfológico no nascimento, sofre com olhares e comentários aleatórios que apenas promovem a diminuição da dignidade do transexual […].” (VEIGA JÚNIOR, 2016, p. 150-151) Mesma conclusão a que chega Gonçalves: “É exatamente a apresentação de documentos compatíveis com a aparência que preservará o transexual das situações vexatórias, as quais, diante do constrangimento que causam, colocam a pessoa em situação de vulnerabilidade e exposição, contribuindo para que se torne (e seja mantida) vítima de violência e discriminação.” (GONÇALVES, 2014, p. 276).

[31] Para a contextualização dos conceitos de capacidades eleitorais ativa e passiva, confira-se a lição de Rodrigo López Zilio (ZILIO, 2008, p. 118).

[32] “A intersexualidade surge como uma condição genética, física ou anatômica do sujeito, que apresenta um fenótipo que não permite a clara definição entre a conceituação binária homem/mulher, seja por apresentar estrutura genital que não autoriza a sua alocação em um dos grupos, ou em face de presença de aspectos da genitália condizentes com os dois conceitos.” (CUNHA, 2015, p. 29).

[33] Em 2 de abril de 2014, a Corte Superior da Austrália, em NSW Registrar of Births, Deaths and Marriages v. Norrie, assegurou a Norrie May-Welby (nascido com o sexo biológico masculino, realizara a cirurgia de redesignação de gênero) a alteração do seu registro civil, para nele constar como de sexo “não específico”. Declarou-se a potestade da Agência de Registros de Nascimentos, Óbitos e Matrimônios do Estado de Nova Gales do Sul de assim proceder, salientando-se que nem todos os seres humanos podem ser classificados como pertencentes ao sexo masculino ou feminino, bem como que a seção 32D da Lei de Registros de Nascimentos, Óbitos e Matrimônios de 1995 permite àquele que sofreu tal procedimento cirúrgico não se vincular ao sexo masculino nem feminino e manter o status de sexo indeterminado, porquanto tal diploma legislativo não exige a opção entre ambos os sexos (§§ 1.º a 3.º e 36 a 48). Reiterou o seu entendimento consignado em AB v. Western Australia (§ 23), de 6 de outubro de 2011: há circunstâncias nas quais o sexo e as características de gênero não são, inequivocadamente, masculinas ou femininas, motivo por que podem ser ambíguas (AUSTRÁLIA, 2016a; AUSTRÁLIA, 2016b; AUSTRÁLIA, 2016c).

[34] Tradução livre nossa para o português brasileiro da tradução oficial em língua inglesa.


Informações Sobre o Autor

Hidemberg Alves da Frota

Pós-Graduado Especialista em Direito Público: Constitucional e Administrativo pelo Centro Universitário de Ensino Superior do Amazonas CIESA. Agente Técnico-Jurídico do Ministério Público do Estado do Amazonas MP/AM


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