Os Direitos Humanos e as Vítimas de Crimes Contra a Vida: A atuação seletiva das organizações defensoras dos direitos humanos de Alagoas diante dos crimes contra a vida e a ausência de políticas públicas de assistência às vítimas

Thatiane Oliveira Pita dos Santos – acadêmica de Direito na Faculdade de Direito de Alagoas/UFAL

Docente Orientadora: Profa. Ma. Lavínia Cavalcanti Lima Cunha (e-mail: [email protected])

Área: Direito Constitucional

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Resumo: O trabalho trata da atuação dos organismos de defesa de direitos humanos frente às vítimas de crimes contra a vida em Alagoas. Diante do descrédito dessas organizações perante a sociedade, procurou-se compreender o alcance de sua atuação e identificar possíveis omissões no que se refere à assistência a essas vítimas no estado. Para tanto, foi realizada pesquisa documental e bibliográfica, bem como foram feitas entrevistas com representantes do Estado. Por meio da pesquisa, foram explanadas informações estatísticas sobre a violência em Alagoas e identificadas as ações prioritárias das políticas de direitos humanos do estado. Foi constatado que o artigo 245 da CF/88 ainda não foi regulamentado, apesar dos inúmeros projetos de lei tramitando no Congresso Nacional que tratam da referida regulamentação, impedindo, assim, a efetivação dos direitos das vítimas e de seus familiares à assistência devida. A pesquisa mostrou que existe uma seletividade e omissão dessas organizações e que é necessária, além da conscientização da sociedade a respeito dos direitos das vítimas e deveres do Estado, a cobrança de ações do Legislativo e Executivo capazes de modificar essa realidade. Por fim, salienta-se a importância dos direitos humanos como direitos universais e fundamentais devendo alcançar a todos os indivíduos indiscriminadamente.

Palavras-chave: Direitos Humanos. Vítimas. Seletividade. Omissão. Efetividade.

 

Resumen: El trabajo trata de la actuación de los organismos de defensa de derechos humanos frente a las víctimas de crímenes contra la vida en Alagoas. Ante el descrédito de esas organizaciones ante la sociedad, se buscó comprender el alcance de su actuación e identificar posibles omisiones en lo que se refiere a la asistencia a esas víctimas en el estado. Para ello, se realizó investigación documental y bibliográfica, así como se realizaron entrevistas con representantes del Estado. Por medio de la investigación, se explicaron informaciones estadísticas sobre la violencia en Alagoas e identificadas las acciones prioritarias de las políticas de derechos humanos del estado. Se constató que el artículo 245 de la CF / 88 aún no ha sido regulado, a pesar de los numerosos proyectos de ley que tramitan en el Congreso Nacional que tratan de dicha reglamentación, impidiendo así la efectividad de los derechos de las víctimas y de sus familiares a la asistencia debida. La investigación mostró que existe una selectividad y omisión de esas organizaciones y que es necesaria, además de la concientización de la sociedad respecto de los derechos de las víctimas y deberes del Estado, el cobro de acciones del Legislativo y Ejecutivo capaces de modificar esa realidad. Por último, se subraya la importancia de los derechos humanos como derechos universales y fundamentales, que deben alcanzar a todos los individuos indiscriminadamente.

Palabras-clave: Derechos Humanos. Victimas. La selectividad. La omisión. Efectividad.

 

Sumário: Introdução; 1. Direitos humanos e as vítimas de crimes contra a vida; 1.1. Violência, crime e vítima; 1.1.1. Definição de violência; 1.1.2. Definição de crime; 1.1.3. Definição de vítima; 1.1.4. Os direitos humanos e o direito à vida; 2. A seletividade das entidades defensoras dos direitos humanos; 2.1. A atuação das organizações de defesa dos direitos humanos em Alagoas; 2.2. A violência em Alagoas; 2.3. Pesquisa junto às organizações de direitos humanos e órgãos do Estado de Alagoas; 3. O caminho para a abrangência e eficácia dos direitos humanos; 3.1. Regulamentação do artigo 245 da CF/88; 3.2. Garantias dos direitos das vítimas de crimes em Alagoas; 4. Conclusão. Referências.

 

INTRODUÇÃO

A ideia de Direitos Humanos surgiu na Babilônia quando Ciro, o grande, libertou os escravos, estabeleceu a igualdade racial e declarou que todos tinham direito de escolher a própria religião. A partir desse momento, essa concepção expandiu-se para a Índia, Grécia e Roma, onde nasce o conceito de “lei natural” (fcNOBRE, 2016).

A assinatura da Carta Magna, em 1215, pelo Rei João da Inglaterra, a Petição de Direito feita, em 1628, pelo Parlamento Inglês, bem como outros documentos históricos e até mesmo a criação da Organização das Nações Unidas – ONU, em 1945, após a segunda guerra mundial, foi fundamental para que, em 1948, fosse redigida a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Participaram dessa redação representantes de todas as regiões do mundo. Seu objetivo era preservar as gerações futuras das devastações causadas pelas guerras. Em seu texto, estão elencados os direitos internacionalmente reconhecidos como inerentes a todos os seres humanos, como o direito à vida, à segurança pessoal, à liberdade e a condições dignas de vida (UNIDOS PELOS DIREITOS HUMANOS, 2018).

Os Direitos Humanos, no Brasil, foram sendo reconhecidos ao longo das décadas, desde a Constituição Imperial de 1824, com a presença dos direitos civis e políticos que visavam assegurar a liberdade, a segurança individual e a propriedade, passando pelas Constituições de 1891, com o direito à liberdade religiosa, e a de 1934, com direitos trabalhistas, e seguintes até a Constituição Federal de 1988 – CF/88 (LIMA, 2018).

A Constituição Federal de 1988 traz, em seu artigo 1º, os princípios da cidadania, da dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho. Já no artigo 5º estão prescritos o direito à vida, à privacidade, à igualdade, à liberdade e outros direitos individuais e coletivos.

A Convenção Americana de Direitos Humanos, assinada em 22 de novembro de 1969, foi ratificada no Brasil, em 25 de setembro de 1992, durante a Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos. A convenção ficou conhecida como o Pacto de São José da Costa Rica. Porém, o reconhecimento de todos esses direitos fundamentais não tem impedido suas transgressões recorrentes mundo afora. No caso do Brasil, o número de homicídios a cada ano, por exemplo, são compatíveis com um estado guerra.

Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA mostram um aumento da violência a nível nacional nos últimos anos. Em Alagoas, mais especificamente, o aumento do número de homicídios entre os anos de 1996 a 2016 saltou de 741(1996) para 1820 (2016).

Nesse cenário, os organismos de defesa dos direitos humanos têm grande campo de atuação. Porém, suas ações parecem estar aquém do esperado pela sociedade de forma geral. Pois, não é incomum ouvir-se comentários pelas ruas afirmando que os direitos humanos são os “direitos dos bandidos”.

Alguns artigos defendem que os Direitos Humanos atuam “em prol dos criminosos”, tendo em vista as circunstâncias sociais, de extrema violência e impunidade, que levam a população a desejar fazer justiça com as próprias mãos, justificando sua atuação no sentido de impedir esse comportamento social e garantir a igualdade jurídica a todos os indivíduos. Porém, é muito provável que esse argumento seja insuficiente, visto que a população, possivelmente, mesmo que anseie por justiça, quer, antes de tudo, o amparo do Estado quando se encontra vitimada.

Surgem, no senso comum, questionamentos do tipo: “se ao preso é garantida a assistência à sua família (auxílio-reclusão) quem garante a assistência à família da vítima?”; “qual a proatividade que o Estado tem em conhecer a situação da família vitimada?”; “o fato do agressor, em muitos casos, ser economicamente hipossuficiente implica no desamparo da vítima?”. Mais do que ver a punição do agressor, é possível que o que o cidadão queira, na verdade, seja o amparo do Estado, ou no mínimo a mesma atenção despendida ao suposto criminoso ou criminoso de fato.

Nesse contexto, a pesquisa sobre a atuação das organizações de Direitos Humanos se fez oportuna no intuito de compreender os limites ou alcance de sua responsabilidade na assistência aos envolvidos em crimes contra a vida em Alagoas.

Para a elaboração do artigo, foi utilizado o método dedutivo e hipotético-dedutivo, em simultaneidade. Para tanto, foram realizadas pesquisas bibliográficas nas áreas de Direito, Sociologia e Filosofia, bem como foram utilizados dados estatísticos e informações disponibilizadas pelo Governo de Alagoas. Para um maior detalhamento sobre as atividades dos órgãos de Direitos Humanos de Alagoas, bem como para validação das informações obtidas mediante pesquisa documental, foram realizadas entrevistas por pautas com o mais recente Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB e com o Chefe Especial de Unidades Penitenciárias da SERIS/AL. Também foi realizada entrevista informal com membro do Conselho Regional de Serviço Social 16ª Região. O presidente o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos de Alagoas foi contactado, mas não se pronunciou sobre o assunto.

Nessa perspectiva, a pesquisa em questão contribuiu para um maior esclarecimento sobre a atuação dos organismos de Direitos Humanos de Alagoas nos crimes contra a vida, levando em consideração tanto o agressor quanto a vítima, na compreensão do nível de responsabilização que, de fato, deve ser atribuída e cobrada dessas organizações.

A pesquisa importou num maior esclarecimento para a sociedade sobre a função das organizações de direitos humanos diante desse tipo de crime, podendo provocar o início de outras discussões sobre o tema. Podendo servir, também, de impulso para o estudo da necessidade de efetivação dos Direitos Humanos como um todo, tendo em vista as lacunas assistenciais hoje existentes, para posterior desenvolvimento de políticas públicas por parte do Estado, na busca pela efetividade desses direitos.

 

1. DIREITOS HUMANOS E AS VÍTIMAS DE CRIMES CONTRA A VIDA

1.1 Violência, crime e vítima

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Para que se possa adentrar na discussão sobre os direitos humanos e sobre as vítimas de crimes dolosos contra a vida, como sendo titulares desses direitos, faz-se necessário o entendimento do que vem a ser a “violência”, o “crime” e a “vítima” de forma clara e incontroversa.

 

1.1.1 Definição de Violência

A violência é objeto de estudo de várias áreas da ciência, como a sociologia, antropologia, teologia, psicologia e filosofia. Cada qual tratando o tema sob os seus mais variados aspectos, tendo em vista sua complexidade, partindo de diferentes definições e métodos de investigação.

A filosofia problematiza o conceito, refaz questionamentos, partindo da consideração de aspectos metafísicos, epistemológicos e éticos. No que se refere à conceituação da violência, Chauí (1998, p.3) diz que: “ Etimologicamente, violência vem do latim vis, força, e significa: 1) tudo o que age usando a força para ir contra a natureza de algum ser (é desnaturar); 2) todo ato de força contra a espontaneidade, a vontade e a liberdade de alguém (é coagir, constranger, torturar, brutalizar); 3) todo ato de violação da natureza de alguém ou de alguma coisa valorizada positivamente por uma sociedade (é violar); 4) todo ato de transgressão contra aquelas coisas e ações que alguém ou uma sociedade define como justas e como um direito; 5) consequentemente, violência é um ato de brutalidade, sevícia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão, intimidação, pelo medo e pelo terror. A violência se opõe à ética porque trata seres racionais e sensíveis, dotados de linguagem e de liberdade como se fossem coisas, isto é, irracionais, insensíveis, mudos, inertes ou passivos. Na medida em que a ética é inseparável da figura do sujeito racional, voluntário, livre e responsável, tratá-lo como se fosse desprovido de razão, vontade, liberdade e responsabilidade é tratá-lo não como humano e sim como coisa, fazendo-lhe violência nos cinco sentidos em que demos a esta palavra.”

Já a Sociologia analisa a violência considerando o seu relativismo no que se refere ao período histórico, tipo de sociedade, cultura etc. Sobre o assunto, Porto (2010, p. 34) diz que não existe uma definição que se aplique a qualquer sociedade e que o relativismo pode ser limitado na preservação da integridade física e moral do indivíduo. Assim, o ato violento ocorre toda vez que tal integridade é atingida.

 

   1.1.2 Definição de Crime

Segundo Capez (2012, p. 125), o conceito de crime envolve três aspectos: material, formal e analítico. O autor conceitua o termo crime de acordo com tais aspectos da seguinte forma:

“Aspecto material: é aquele que busca estabelecer a essência do conceito, isto é, o porquê de determinado fato ser considerado criminoso e outro não. Sob esse enfoque, crime pode ser definido como todo fato humano que, propositada ou descuidadamente, lesa ou expõe a perigo bens jurídicos considerados fundamentais para a existência da coletividade e da paz social.

Aspecto formal: o conceito de crime resulta da mera subsunção da conduta ao tipo legal e, portanto, considera-se infração penal tudo aquilo que o legislador descrever como tal, pouco importando o seu conteúdo. Considerar a existência de um crime sem levar em conta sua essência ou lesividade material afronta o princípio constitucional da dignidade humana.

Aspecto analítico: é aquele que busca, sob um prisma jurídico, estabelecer os elementos estruturais do crime. A finalidade deste enfoque é propiciar a correta e mais justa decisão sobre a infração penal e seu autor, fazendo com que o julgador ou intérprete desenvolva o seu raciocínio em etapas. Sob esse ângulo, crime é todo fato típico e ilícito.”

Por sua vez, Greco (2015, p. 195) considera que os conceitos formal e material não conseguem definir o que seria o crime. Pois, enquanto o conceito formal diz que a violação de lei, somada à ausência de causa de exclusão de ilicitude ou dirimente da culpabilidade, constitui crime; e o conceito material diz que o crime existe quando a conduta do agente atinge os bens mais importantes; poderá, ainda, um bem de fundamental importância ser atacado sem que seja constituído crime se não houver lei penal que o tutele.

Diante dessa fragilidade conceitual, Greco (2015, p. 196) filia-se ao chamado conceito analítico por este considerar os elementos que compõem a infração penal. De acordo com a visão analítica, crime é o fato típico, ilícito e culpável. Sendo o fato típico composto pela conduta dolosa ou culposa, comissiva ou omissiva, pelo resultado, pelo nexo de causalidade entre a conduta e o resultado e pela tipicidade; o ilícito, a conduta contrária ao ordenamento jurídico, salvo amparo nas excludentes da ilicitude; e culpável aquele que é passível de reprovação pessoal. Sobre a culpabilidade, menciona como elementos a) a imputabilidade; b) a potencial consciência de ilicitude; c) a exigibilidade de conduta diversa.

Segundo Zaffaroni (1996, p. 324): “(…) delito é uma conduta humana individualizada mediante um dispositivo legal (tipo) que revela sua proibição (típica), que por não estar permitida por nenhum preceito jurídico (causa de justificação) é contrária ao ordenamento jurídico (antijurídica) e que, por ser exigível do autor que atuasse de outra maneira nessa circunstância, lhe é reprovável (culpável).”

Como observado, há uma certa dificuldade em conceituar o crime de forma única, pois cada autor dá a ênfase aos aspectos que acredita ser de significativa relevância. Porém, todos consideram que, na prática do crime, há a violação de um bem tutelado juridicamente.

A respeito do crime, o Código Penal Brasileiro diz:

“Art. 18 – Diz-se o crime:

Crime doloso

I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;

Crime culposo

II – culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.

Parágrafo único – Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.”

O trabalho em tela tratará dos crimes dolosos contra a vida.

1.1.3 Definição de Vítima

No que se refere à conceituação do termo “vítima”, a Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder (1985) diz o seguinte:

“1. Entendem-se por “vítimas” as pessoas que, individual ou coletivamente, tenham sofrido um prejuízo, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou mental, um sofrimento de ordem moral, uma perda material, ou um grave atentado aos seus direitos fundamentais, como consequência de atos ou de omissões violadores das leis penais em vigor num Estado membro, incluindo as que proíbem o abuso de poder.

  1. Uma pessoa pode ser considerada como “vítima”, no quadro da presente Declaração, quer o autor seja ou não identificado, preso, processado ou declarado culpado, e quaisquer que sejam os laços de parentesco deste com a vítima. O termo “vítima” inclui também, conforme o caso, a família próxima ou as pessoas a cargo da vítima direta e as pessoas que tenham sofrido um prejuízo ao intervirem para prestar assistência às vítimas em situação de carência ou para impedir a vitimização. (RESOLUÇÃO 40/34 DA ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS, 1985).”

Segundo Calhau (2009), o termo vítima pode apresentar vários sentidos. Quando se fala no sentido geral, há referência à pessoa que sofre os resultados provocados pela ação dela mesma ou de outrem. No sentido jurídico-geral, é considerada vítima a pessoa que sofreu ofensa ou ameaça de algum bem tutelado pelo direito, como o direito à vida.

Porém, dentro do conceito de vítima, no sentido jurídico-geral, há dois desdobramentos: um que considera a pessoa que sofreu diretamente as consequências da agressão ao bem tutelado e outro que considera o indivíduo e a sociedade que sofrem diretamente as consequências dos crimes. O primeiro se refere à vítima no sentido jurídico-penal-restrito e o último à vítima no sentido jurídico-penal-amplo (CALHAU, 2009).

Santos (2011, p. 1), ao fazer uma análise histórica sobre o tema, relata que: “A vítima passou por três fases principais na história da civilização ocidental. No início, fase conhecida como idade de ouro, a vítima era muito valorizada, valorava-se muito a pacificação dos conflitos e a vítima era muito respeitada. Depois, com a responsabilização do Estado pelo conflito social, houve a chamada neutralização da vítima. O Estado, assumindo o monopólio da aplicação da pretensão punitiva, diminuiu a importância da vítima no conflito. Ela sempre era tratada como uma testemunha de segundo escalão, pois, aparentemente, ela possuía interesse directo na condenação dos acusados. E, por último, da década de cinquenta para cá, entramos na fase do redescobrimento da vítima, onde a sua importância é sob um ângulo mais humano por parte do Estado.”

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Como relatado, ao longo da história, a vítima passou por três fases distintas: período de vingança privada, período do esquecimento da vítima e período de redescobrimento da vítima. Na primeira fase, a chamada “idade de ouro”, a vítima estava legitimada a agir contra seu agressor por meio da vingança. Entretanto, muitas vezes, a reação das vítimas ou de seus familiares não era proporcional à ofensa sofrida, chegando a atingir outras pessoas não inicialmente envolvidas no conflito. Quando se percebeu, com o surgimento da sociedade organizada, que a vingança não era a conduta mais adequada, foram criadas regras de convívio, surgindo a figura do juiz imparcial.

Assim, a segunda fase inicia-se com a chegada da Idade Média, onde a vítima passa a uma posição secundária, sendo o Estado o titular para a imposição de sanções. A vítima passa a ser esquecida e considerada apenas um instrumento processual que auxiliaria o Estado na condenação do delinquente.

Na terceira fase, pós Segunda Guerra mundial, a vítima vai sendo redescoberta, tamanha a consternação mundial devido ao Holocausto. O Estado Liberal passa a ser substituído pelo Estado Democrático de Direito, que tem como fundamento a dignidade da pessoa humana. Com base nesse princípio, passa a ser discutida a reparação de danos para as vítimas criminais e demais direitos em defesa dos interesses dos ofendidos, visando ao amparo das vítimas pelo Estado, como sujeito de direitos, e não mais como mero objeto de prova no âmbito processual (SANTOS; FERRAREZI, 2015).

Porém, o abandono da vítima ainda é realidade atual no Brasil. Interessante e oportuna a citação feita por João Carlos Santos, apud Garcia Pablos, conforme citado por Valdenia Brito Monteiro (2002, p.230): “O abandono da vítima do delito é um fato incontestável que se manifesta em todos os âmbitos: no Direito Penal (material e processual), na Política Criminal, na Política Social, nas próprias ciências criminologistas. Desde o campo da Sociologia e da Psicologia social, diversos autores, têm denunciado esse abandono: O Direito Penal contemporâneo – advertem – acha-se unilateral e equivocadamente voltado para a pessoa do infrator, relegando a vítima a uma posição marginal, ao âmbito da previsão social e do Direito Civil material e processual. A Criminologia tampouco tem mostrado sensibilidade pelos problemas da vítima do delito, pois centra interesse exclusivamente na pessoa do delinquente. O sistema legal define com precisão os direitos – o status – do infrator (acusado), sem que referidas garantias em favor do presumido responsável tenha lógico correlato uma preocupação semelhante pelos da vítima.”

O autor chama a atenção para o abandono da vítima, que vai desde o âmbito jurídico ao social. Esse fato é um importante indicador de que o abandono social pode ser reflexo da omissão do sistema jurídico, que possivelmente contribui para a ausência de políticas públicas voltadas para o amparo às vítimas. Ressalte-se que esse assunto será melhor tratado nas seções seguintes.

Segundo João Carlos Santos, apud  Maria Helena Diniz, “a vítima para o Direito Penal é o: 1. Sujeito passivo do crime. 2. Aquele contra quem se perpetrou o delito ou contravenção”. Afirma, ainda, Santos (2011, p. 1): “Entendemos que vítima é aquela pessoa que sofre algum tipo de dano, seja ele de ordem física, moral, econômica e psicológica. A vítima ainda é tratada com menos interesse para a sociedade como o “criminoso”, “infractor” ou “delinquente” é tratado no sistema penal, com mais rigor e com a anuência da comunidade clamando por aplicações de sanções severas e urgentes.”

Infere-se que o conceito de vítima vai além do indivíduo diretamente afetado, mas estende-se aos que sofreram indiretamente, de alguma forma, os efeitos da violência. Ou seja, quando se fala em crimes contra a vida, a vítima é o indivíduo que teve sua vida cerceada e também sua família e outros que venham a sofrer as consequências do crime. Assim, o termo vítima, nesta pesquisa, se refere a todos esses indivíduos que foram, de uma forma ou de outra, atingidos por esse tipo de violência.

1.1.4 Os direitos humanos e o direito à vida

Segundo Carvalho (2017, p. 21), Direitos Humanos é um conjunto de direitos indispensáveis à vida digna, uma vez que são pautados na liberdade, igualdade e dignidade, sendo esses, direitos essenciais ao ser humano.

Sobre o conceito de Direitos Humanos, Freitas (2015, p. 20) diz: “Os Direitos Humanos externam os valores fundamentais do Ser Humano, compõem o núcleo básico do direito internacional vinculativo de todos os ordenamentos jurídicos, são os direitos ligados diretamente à natureza, à essência humana; são os Direitos Fundamentais conectados imediatamente com a Dignidade Humana. Assim, falar em Direito Humano é ter em mente algo essencial ao Ser Humano, isto é, que integra a sua natureza existencial e dessa é indissociável, de forma que, uma vez infringido, a consequência imediata será a cessação da existência do Ser Humano ou a sua descaracterização como tal, daí se concluir que os Direitos Humanos são o núcleo essencial dos Direitos Fundamentais, representam aqueles direitos que se confundem com a própria Dignidade Humana.”

Castilho (2012, p. 14) menciona o seguinte sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Os três primeiros artigos da Declaração sintetizam o que se considera fundamental para a humanidade: que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos, são dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade; que toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos na Declaração, sem distinção de qualquer espécie (raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição); e que toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.”

O autor segue conceituando os Direitos Humanos como sendo direitos universais, indivisíveis e pertencentes a toda e qualquer pessoa humana, independente de lei, sendo eles, mais especificamente, o direito à vida, à liberdade, à igualdade e à segurança.

Para Casado Filho (2012, p. 21), o conceito se resume na seguinte afirmativa: “Direitos Humanos são um conjunto de direitos, positivados ou não, cuja finalidade é assegurar o respeito à dignidade da pessoa humana, por meio da limitação do arbítrio estatal e do estabelecimento da igualdade nos pontos de partida dos indivíduos, em um dado momento histórico.”

       O autor (p. 92), ao citar os direitos incluídos esse conjunto de direitos, cita o direito à vida, afirmando o seguinte: “Direito diretamente ligado à existência do ser humano e, por consequência, condição para o exercício dos demais direitos, o direito à vida é assegurado pela Constituição a todos os brasileiros e estrangeiros, sem qualquer distinção entre eles. Tal direito é previsto logo no caput do artigo reservado para os direitos civis e políticos: o art. 5° da Constituição.”

Porém, ao apontar as questões relacionadas à interpretação do direito à vida, se restringe: a) ao aborto e aos direitos do nascituro; (b) às pesquisas com células-tronco; (c) à pena de morte; e (d) ao direito a receber medicamentos.

Ramos (2017, p. 615), ao se referir ao direito à vida, aduz o seguinte: “O direito à vida engloba diferentes facetas, que vão desde o direito de nascer, de permanecer vivo e de defender a própria vida e, com discussões cada vez mais agudas em virtude do avanço da medicina, sobre o ato de obstar o nascimento do feto, decidir sobre embriões congelados e ainda optar sobre a própria morte. Tais discussões envolvem aborto, pesquisas científicas, suicídio assistido e eutanásia, suscitando a necessidade de dividir a proteção à vida em dois planos: a dimensão vertical e a dimensão horizontal.”

O mesmo autor cita, ainda, que o Estado possui três obrigações no que se refere ao direito à vida, sendo elas:

“• A obrigação de respeito consiste no dever dos agentes estatais em não violar, arbitrariamente, a vida de outrem.

  • A obrigação de garantia consiste no dever de prevenção da violação da vida por parte de terceiros e eventual punição àqueles que arbitrariamente violam a vida de outrem.
  • A obrigação de tutela implica o dever do Estado de assegurar uma vida digna, garantindo condições materiais mínimas de sobrevivência..”

Entretanto, ao se aprofundar na questão, se atém: aos direitos do nascituro; à discussão sobre a eutanásia, distanásia e suicídio; e à pena de morte. Desse modo, possível observar a omissão da discussão doutrinária no que se refere às vítimas de determinados crimes muito presentes na sociedade, como o homicídio.

Os crimes contra a vida estão tipificados nos artigos 121 (homicídio), 122 (induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio), 123 (infanticídio) e 124 ao 128 (aborto) do Código Penal Brasileiro/1940.

A Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, logo em seu artigo 1, diz que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”.

A CF/88, em seu artigo 245, preconiza que “A lei disporá sobre as hipóteses e condições em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso, sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilícito”.

Segundo o artigo 387, do Código de Processo Penal: “O juiz, ao proferir sentença condenatória: IV – fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido”.

Da mesma forma, o Código Civil (2002) prescreve:  “Art. 948. No caso de homicídio, a indenização consiste, sem excluir outras reparações: I – no pagamento das despesas com o tratamento da vítima, seu funeral e o luto da família; II – na prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima.”

Em 29 de novembro de 1985, foi adotada, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, na sua resolução 40/34, a Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder. Na Declaração, consta o seguinte: “21. Os Estados deveriam reexaminar periodicamente a legislação e as práticas em vigor, com vista a adaptá-las à evolução das situações, deveriam adotar e aplicar, se necessário, textos legislativos que proibissem qualquer cato que constituísse um grave abuso de poder político ou econômico e que incentivassem as políticas e os mecanismos de prevenção destes atos e deveriam estabelecer direitos e recursos apropriados para as vítimas de tais atos, garantindo o seu exercício.”

Em artigo publicado na revista eletrônica da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ, Ramos (2010) elucida o seguinte:

“Trata-se de consenso internacional que a pessoa humana deve estar protegida contra a violência. A violência é algo abominável e os Estados devem envidar todos os seus esforços na proteção da integridade das pessoas, protegendo o seu direito de existir e de viver em segurança. Todavia, o direito humano à segurança nem sempre é reconhecido como tal pelos grupos de direitos humanos no Brasil, que, pelo contrário, interpretam como indevida essa classificação, justificando que somente há violação de direitos humanos quando o Estado é o agente (esquecendo-se de que o Estado também age por omissão).

Conquanto o Brasil esteja presente no Haiti numa missão da ONU há mais de quatro anos, para auxiliar aquele país na garantia do direito humano à segurança e à proteção contra a violência, provocada pelas investidas de gangues que instalam o terror, a pergunta que fica é: Por que no Brasil os direitos humanos não têm sido invocados para proteger a população do terror imposto por facções criminosas e por agentes criminosos isolados, que roubam, estupram e matam com grande frequência? Por que os direitos humanos têm sido invocados tão somente para proteger aquele que pratica a violência, esquecendo-se das vítimas efetivas e daquelas em potencial?

[…]

Tão fundamental para a existência humana, os direitos à vida e à segurança pessoal justificaram a própria criação do Estado. O reconhecimento desses direitos como tal, traduzem-se em condição necessária para o aperfeiçoamento da pessoa humana e para o desenvolvimento da civilização, motivo pelo qual não há como deixar de lhes reconhecer a categoria de direitos humanos inatos e fundamentais. Nenhum direito humano é mais sagrado do que o direito à vida e à segurança pessoal. O homem se libertou da barbárie ao entregar ao Estado o direito de punir aquele que praticou um crime, impedindo que a sociedade (vítimas potenciais) pratique justiça pelas próprias mãos.”

Surge a discussão sobre o dever de agir do Estado na promoção e proteção dos Direitos Humanos. A perspectiva de que o Estado deve ser vigiado para não violar os Direitos Humanos cede espaço, ante o cenário de crescente violência atual, à cobrança de seu dever de garantir esses direitos através de ações preventivas e reparatórias, no caso abordado neste trabalho, com relação às vítimas de crimes contra a vida. Vejamos o que salienta Streck (2008, p. 1):

“(…) a Constituição determina – explícita ou implicitamente – que a proteção dos direitos fundamentais deve ser feita de duas formas: por um lado, protege o cidadão frente ao Estado; por outro, protege-o através do Estado – e, inclusive, por meio do direito punitivo – uma vez que o cidadão também tem o direito de ver seus direitos fundamentais tutelados em face da violência de outros indivíduos.

Quero dizer com isso que este (o Estado) deve deixar de ser visto na perspectiva de inimigo dos direitos fundamentais, passando-se a vê-lo como auxiliar do seu desenvolvimento (Drindl, Canotilho, Vital Moreira, Sarlet, Streck, Bolzan de Morais e Stern) ou outra expressão dessa mesma idéia, deixam de ser sempre e só direitos contra o Estado para serem também direitos através do Estado.”

Resta a reflexão sobre a atuação do Estado na defesa dos Direitos Humanos vista de vários ângulos onde cabem a sua presença. Um desses ângulos é o da vítima de crimes contra a vida. Essa nova perspectiva chama a atenção para a necessidade de superar a estigmatização do Estado como inimigo dos direitos fundamentais e começar a visualizar a responsabilidade dele como garantidor desses direitos efetivamente.

Portanto, fica claro que o Estado tem o dever de não violar a vida de outrem, porém claro também está que esse mesmo Estado tem a obrigação de assegurar o direito à vida. E quando não o faz, essa omissão se transforma também numa forma de violência.

 

2. A SELETIVIDADE DAS ENTIDADES DEFENSORAS DOS DIREITOS HUMANOS

A sociedade brasileira, nos últimos anos, tem convivido com a violência crescente, constatada no número de homicídios registrados todos os dias. Somado a isso, tem-se um sistema jurídico lento e presídios lotados.

Essa realidade está presente em Alagoas, onde o sistema prisional, que tem capacidade para 3721 apenados, possui uma população carcerária recolhida de 4797 presos, um excedente de 28,9% da capacidade total de recolhimento. Entretanto, esse número de encarcerados não representa a totalidade de apenados, pois a população carcerária geral registrada, em 07 de fevereiro de 2019, foi de 8.728 apenados. Assim, além da parcela que está recolhida no sistema prisional, são contabilizados os condenados que estão cumprindo pena no regime semi-aberto, aberto e em penitenciária federal (DUP/AL, 2019).

Segundo o Chefe Especial de Unidades Penitenciárias da SERIS/AL, o agente penitenciário Milton Pereira dos Santos Júnior, diante dessa realidade, a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB tem cumprido bem seu papel na assistência aos apenados, mantendo um relacionamento estreito com o sistema prisional, apurando denúncias e se fazendo presente em eventuais ocorrências.

Porém, é nesse contexto que tem sido cada vez mais frequente ouvir-se nas ruas, de cidadãos comuns, que “os direitos humanos só defendem bandidos”, numa demonstração de insatisfação social com a assistência recebida pelos agressores, somada à repulsa ao injusto cometido contra a vítima, que raramente recebe algum tipo de assistência.

Isso se deve a constatações que partem das experiências de pessoas que, de alguma forma, foram atingidas por essa violência e vivenciaram o abandono, dores e prejuízos advindos do crime, tendo que lidar com isso sozinhas, enquanto assistiam ao ofensor receber a atenção e amparo estatal. Onde se inserem os órgãos de direitos humanos dentro desse contexto?

No entendimento de Francesco (2017, p. 1), os direitos humanos lutam contra arbitrariedades do Estado, logo, deve atuar contra as arbitrariedades do agente policial. No caso de vítimas que não são vítimas das arbitrariedades do Estado, essas não são objeto de preocupação dos Direitos Humanos, devendo ser cuidadas pela Assistência Social. Contudo, o mesmo autor afirma que os Direitos Humanos devem atuar em prol do cumprimento dos direitos das vítimas de crimes contra a vida que não tiverem obtendo do Estado a devida assistência.

Para Zapater (2015), os direitos humanos são direitos de “bandidos” e de “não-bandidos”, são direitos de todos, pois decorre da ideia de igualdade jurídica. O autor lembra que também é comum a expressão “bandido bom é bandido morto”. E defende que esse comportamento ocorre porque “muitas pessoas se identificam mais com as vítimas do que com os acusados de crime, e se sentem mais ameaçadas pela violência urbana decorrente da criminalidade (temor este natural, legítimo e justificado) do que pela violência praticada por um agente do Estado […]”. Salienta que não se pode confundir o direito da vítima com a satisfação do sentimento de vingança. Ainda sobre os direitos das vítimas, afirma Zapater (2015, p. 1): “Mas é bem verdade que os direitos das vítimas de crimes – os direitos verdadeiros, previstos em lei – muito raramente são abordados, seja pelas autoridades, pela imprensa e mesmo por parcela expressiva de entidades que militam na defesa dos direitos humanos. Talvez apenas por desconhecimento, mas muito provavelmente porque estes direitos implicam a adoção de políticas públicas que envolvem custo. Mais fácil é manipular a opinião pública e sustentar que o direito da vítima consiste na punição do acusado, de preferência, da forma mais severa possível, e ainda que ao arrepio da lei. E, como se sabe, fazer propaganda política com todas as seduções da lei penal é mais popular e mais barato.

Para Almeida (2018, p. 1), essa fala “direitos dos bandidos” é uma afirmação ressentida, na qual se tem a ideia de que algo próprio tem sido tirado e transferido a outra pessoa. Ela afirma que: “Nesse curioso raciocínio aritmético, os Direitos Humanos são como um cobertor curto: alguém tem que passar frio! Decreta-se, então, que seja o outro. É evidente que se trata de um raciocínio equivocado. Então, porque cada vez mais pessoas são convencidas de sua legitimidade? Em que consistem precisamente os Direitos Humanos? Uma vez que os Direitos Humanos dizem respeito fundamentalmente ao direito de todo ser humano ter reconhecida sua humanidade, chama a atenção que possa existir um raciocínio que comporte a possibilidade de o humano não ser humano. Nesse procedimento banal reside enorme perigo.”

Assim, a autora chama a atenção para o fato de que, ao partir de uma crítica aos Direitos Humanos, devemos refletir que esses direitos se fundamentam na igualdade de todos os homens e que, por isso, todos têm os mesmos direitos.

No ano de 2012, José Augusto Lindgren Alves, então embaixador do Brasil em Sarajevo e membro do Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial da ONU, já alertava sobre o descrédito dos direitos humanos:

“Os direitos humanos se encontram em fase de evidente desprestígio. Os motivos do descrédito não são apenas as violações que prosseguem, nem distorções decorrentes de valores não ocidentais. São também, e sobretudo, sua extensão conceitual exagerada, promovida pela esquerda culturalista pós-moderna, assim como a repetição inercial de ações e posturas, hoje anacrônicas, inerentes ao sistema de proteção internacional existente. Para recuperá-los em sentido construtivo é necessário voltar à Declaração Universal de 1948, atualizar o discurso originalmente construído contra ditaduras e readaptar o sistema à situação das democracias atuais ameaçadas.

[…]

Eu próprio, calejado pela experiência de mais de trinta anos dedicados ao tema, agora me irrito com a necessidade de explicar o que venho fazendo nesse campo, para ser levado a sério. Antes, o difícil era vencer os preconceitos “nacionalistas” associados à noção de soberania. Hoje, o mais difícil é explicar que os direitos humanos não são tudo aquilo que tem sido feito em seu nome, muitas vezes para atacar o Estado de forma leviana.

[…]

O problema, agora, é o excesso. Estando os direitos humanos da Declaração Universal de 1948 amplamente reconhecidos e regulados, uma parte dos militantes autoproclamados de esquerda continua a usar os direitos como base para tudo, ainda que para isso seja necessário distorcê-los. Propõe, em nome dos direitos de minorias, uma gama de obrigações particularizadas que quase nenhum Estado tem condições de cumprir. Define práticas de denúncias e incremento de penas para alguns crimes, desacompanhadas de medidas que ataquem as causas profundas e assegurem consistência no campo social. Estende conceitos contemporâneos a obras, episódios e contextos em que se tornam absurdos. Associa-se às forças tradicionalistas mais reacionárias de grupos específicos no contexto do anti-imperialismo. Faz vista grossa para práticas tradicionais atentatórias aos direitos humanos porque inerentes às respectivas etnias. Em resumo: por conta do “direito à diferença”, substitui a política universalista abrangente por campanhas em prol de objetivos etnoculturais enquadradas naquilo que Badiou denomina “logomaquia dos direitos humanos” (Badiou, 2009, p.143). A satisfação dos “culturalistas”, de qualquer forma, é impossível, na medida em que novas comunidades de identificação com novas diferenças são incessantemente criadas, outras susceptibilidades afloram, os crimes e violações continuam, e múltiplas exigências se agregam continuamente.”

O autor fala, ainda, que quando os direitos humanos não são interpretados como empecilho à ação policial, são associados a noções cada vez mais destoantes da Declaração de 1948: intangibilidades culturais; “direitos de religiões” e direitos coletivos de minoria.

Os direitos culturais que, assim como os outros direitos, eram individuais, hoje se apresentam como “direitos das culturas”, posto acima dos indivíduos e acima dos demais direitos estabelecidos na Declaração. O que acontece com o direito à cultura, ocorre no que se refere aos direitos humanos que têm sido invocados para a militância de causas e grupos determinados, que podem até ter reivindicações legítimas, mas que não decorrem de necessidades universais. E é nesse contexto de confusão que os direitos humanos entram em descrédito (ALVES, 2012).

 

2.1 A atuação das organizações de defesa dos direitos humanos em Alagoas

Ao acessar os portais de informação do Governo do Estado de Alagoas, não são muitas as informações obtidas sobre o funcionamento de órgãos de defesa dos Direitos Humanos. No Primeiro Relatório de Direitos Humanos no Brasil, que traz informações datadas dos anos 1996 e 1997, consta que o extinto Fórum Permanente Contra a Violência em Alagoas, ONG criada em 1991, desenvolvia um “trabalho sistemático de coleta e análise de dados e denúncia das violações de direitos humanos em Alagoas, sobretudo das práticas de violência contra a vida.” (grifo nosso) (DHNET, 1998).

Esse Fórum, que articulava entidades da sociedade civil, tinha como foco de suas ações o combate à identificação e repressão da participação de policiais militares no crime organizado e em grupos de extermínio. Na época, Alagoas era marcada por um histórico de crimes encomendados, com assassinatos de grande repercussão envolvendo políticos, como os casos Paulo César Farias, Ceci Cunha e Silvio Viana. Todos tinham como ponto em comum a impunidade (DHNET, 1998).

Em entrevista ao site UOL Notícias, em 18/02/2011, o então o juiz auxiliar da presidência do Tribunal de Justiça e professor da Universidade Federal de Alagoas, Dr. Alberto Jorge Lima, disse: “Nossa legislação é muito permissiva, tolerante e anacrônica. O processo de júri no Brasil é feito para não funcionar, facilita em demasia quem comete crime. A lei promove uma série de recursos. Quando o acusado tem um bom advogado, ele vai usar o anacronismo da lei para postergar, ainda mais quando ele sabe que ele é culpado”.

Em sua declaração, referia-se ao caso PC Farias, ocorrido no ano de 1996. O magistrado completa falando sobre o foro privilegiado: “Esse foro é absurdo porque esquece os direitos fundamentais das vítimas. Isso dificulta muito a punibilidade. Prova disso são os raros casos de condenação que existem de autoridades”.

Foi nesse contexto, de duas décadas (80 e 90) de numerosos crimes e impunidade contumaz, que através do Fórum foram realizadas algumas ações de combate à violação dos direitos humanos. Dentre essas ações, as capacitações em direitos humanos voltadas para policiais civis e militares. Foi também proposta, na época, a criação da Comissão de Direitos Humanos na Assembleia Legislativa e na Câmara Municipal de Maceió. Esta somente foi criada em 2002, estando atualmente ativa com a seguinte finalidade: “[…] Receber, avaliar e fazer investigação de denúncias relativas às ameaças ou violações de direitos humanos; fiscalizar e acompanhar programas e projetos governamentais relativos à proteção e à promoção dos direitos humanos; colaborar com entidades não governamentais nacionais e internacionais que atuem na defesa e na promoção dos direitos humanos; opinar sobre todas as proposições legislativas que versem sobre a temática dos direitos humanos; pesquisar e estudar a situação dos direitos humanos no Estado de Alagoas, inclusive para fins de divulgação pública e fornecimento de subsídios para as demais comissões.” (Resol. 433/2002).

Assim como o Fórum Permanente Contra a Violência em Alagoas, o Centro de Apoio às Vítimas de Crime em Alagoas (CAV Crime) não está mais em atividade. Esse Centro, criado em 2001, ofertava, diariamente, atendimento jurídico, psicológico e social gratuitos para as vítimas de crimes, como tentativa de homicídio, lesão corporal grave, estupro, atentado violento ao pudor, cárcere privado e sequestro. Além do atendimento, também atuava na prevenção da violência através de trabalhos educativos em escolas e associações (COSTA, 2009).

O CAV Crime funcionava por meio de convênio firmado entre a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República e a Secretaria da Mulher, da Cidadania e dos Direitos Humanos, seguindo as diretrizes nacionais do Programa de Proteção às Vítimas e Testemunhas Ameaçadas. Tinha como objetivo o combate à impunidade através do atendimento às vítimas do crime e aos seus familiares e dependentes. Na época, foi referência no Brasil, sendo chamado a contribuir para a capacitação de profissionais para a implantação de novos centros em outros estados (CHAGAS, 2009).

Em cartilha elaborada pelo CAV Crime, em 2009, para maior esclarecimento da população, descreveu seus serviços ofertados, a saber:

Setor Jurídico – objetiva favorecer o acesso à justiça de forma que o indivíduo em condição de vítima participe ativamente dos procedimentos legais oriundos do crime sofrido; orientando sobre os trâmites cabíveis e acompanhando as vítimas aos espaços que se fizerem necessários.

Setor de Serviço Social – Realiza avaliação socioeconômica e cultural dos (as) usuários (as) a fim de viabilizar o acesso dos mesmos às políticas públicas, articulando e fomentando a rede de serviços existente, contribuindo para o fortalecimento da autonomia dos usuários para que se reconheçam enquanto sujeitos de direitos.

Setor de Psicologia – Busca trabalhar o processo de reorganização psicoemocional da vítima, com foco na violência sofrida, criando espaços de escuta e análise dos fatos vividos, visando à superação do trauma e a formulação de novos projetos de vida.

Percebe-se que foi pensada uma assistência que desse o amparo à vítima e a seus familiares desde a ocorrência do crime, com a devida orientação sobre os procedimentos legais a serem adotados, passando pela consideração da possível situação de vulnerabilidade econômica, até o suporte psicológico necessário para a reestruturação do indivíduo e de sua família. É importante destacar que havia orientação comportamental não somente para as vítimas, mas também para os profissionais de atendimento. Orientações como não paternalizar, não distanciar-se em excesso, não culpabilizar, não reforçar a vitimização etc. Condutas que são de extrema importância para que a vítima e familiares se sintam amparados, seguros e capazes de superar a violência sofrida, bem como as suas consequências.

Porém, durante seu funcionamento, o CAV Crime enfrentou dificuldade de ordem política/institucional. Sua existência, como projeto social, ficava condicionada à celebração de convênios que muitas vezes eram interrompidos, pois as renovações demandavam tempo que repercutiam no financiamento e, consequentemente, no comprometimento dos serviços prestados, visto que estes eram paralisados enquanto os valores não fossem depositados, o que acabou por fragmentar a equipe de trabalho. Essa dificuldade no financiamento ao longo dos anos se agravou a ponto de inviabilizar a sobrevivência do projeto (COSTA, 2009).

Atualmente, o cidadão pode fazer uma rápida pesquisa no site do Governo de Alagoas e encontrará as Secretarias que compõem sua estrutura. Dentre elas, está a Secretaria de Estado da Mulher e dos Direitos Humanos (SEMUDH). Esta secretaria é órgão da Administração Direta, criado pela Lei n° 6.326, de 03 de julho de 2002, com a finalidade de atuar na “formulação, coordenação e monitoramento dos direitos da população no intuito de assegurar a sua integração na vida política, econômica, social e cultural como cidadão, sob a perspectiva de gênero, classe e raça nas políticas públicas estaduais, na forma definida em seu Regimento Interno”. O órgão descreve sua missão e plano de ação nos seguintes termos:

“Tendo como missão a articulação de políticas públicas que contribuam para alcançarmos melhores indicadores sociais e, consequentemente, uma melhor qualidade de vida para os alagoanos, a Secretaria da Mulher e dos Direitos Humanos possui em sua estrutura quatro superintendências: de Políticas para a Mulher; de Políticas para os Direitos Humanos e a Igualdade Racial; de Políticas dos Direitos da Pessoa com Deficiência e a de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon).

Faz parte do nosso plano de ação atuar para garantir a aplicabilidade da Lei Maria da Penha, como uma das formas de combate à violência contra a mulher, assim como a busca pela capacitação e ampliação do mercado de trabalho que absorva a mão de obra feminina.

O enfrentamento ao preconceito e a violência contra a diversidade, seja de orientação sexual, de identidade, de gênero, religiosa, de raça ou de etnia, além de promover a comunicação e o acesso aos serviços públicos para Pessoas com Deficiência, também faz parte de nossas metas.

Tudo isso mostra a grande responsabilidade que temos em mãos na busca de uma conquista por um mundo mais justo e igualitário, tendo como principal meta o respeito a você, pessoa humana. (SEMUDH).

Como citado, a SEMUDH é composta por quatro superintendências, porém nenhuma trata especificamente da violação dos direitos humanos decorrente da prática de crimes contra a vida. Navegando pelo seu site, é possível acessar relatórios e dados que tratam da atenção aos deficientes, dos direitos da mulher, dentre outros assuntos, mas nenhum trata da violação ao direito à vida ou dos crimes violentos no estado, bem como nada consta sobre as vítimas de crimes violentos.

Outra curiosidade é que, das últimas 40 notícias que constam no site, referentes ao período de 31/10/2018 a 13/12/2018, quatro tratam de igualdade racial (10%), uma trata de pessoa não binária (2,5%), dezesseis tratam de notícias gerais que versem sobre direitos humanos (40%), onze tratam da mulher (27,5%), seis tratam de deficientes (15%) e duas falam de doenças (5%). Nenhuma notícia trata das vítimas de crimes contra a vida, nem mesmo nas notícias gerais que, em alguns casos, abordam igualdade racial, cidadania da comunidade de  Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais ou Transgêneros – LGBT, diversidade religiosa, direitos da população indígena e direitos da mulher. Tal fato leva a crer que Alagoas vive tempos de paz, não fossem as informações obtidas através das estatísticas da segurança pública, assunto abordado no próximo tópico.

Na tentativa de encontrar um órgão responsável pelo amparo às vítimas de crimes contra a vida, a pesquisa se estendeu à Secretaria de Estado da Assistência e Desenvolvimento Social- SEADES. Essa secretaria possui cinco áreas de atuação: a) proteção social básica; b) proteção social especial; c) segurança alimentar e nutricional; d) vigilância social e e) gestão do trabalho. Segundo a SEADES, a área de proteção social especial: “é destinada a famílias e indivíduos que se encontram em situação de risco pessoal e social, por ocorrência de abandono, maus tratos físicos e/ou psíquicos, abuso sexual, uso de substâncias psicoativas, cumprimento de medidas socioeducativas, situação de rua, situação de trabalho infantil, entre outras situações de violação dos direitos.

A área de proteção social especial é dividida em serviços de média complexidade – Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos – PAEFI e serviços de alta complexidade. Os serviços de média complexidade são ofertados pelo Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS, que tem como público-alvo: “Pessoas e famílias que sofrem algum tipo de violação de direito, como violência física e/ou psicológica, negligência, violência sexual (abuso e/ou exploração sexual), adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas ou sob medidas de proteção, tráfico de pessoas, situação de rua, abandono, trabalho infantil, discriminação por orientação sexual e/ou raça/etnia, entre outras.”

O CREAS tem como objetivos o fortalecimento da família como agente de proteção, a inclusão de famílias nos sistemas de proteção social e nos serviços públicos, o combate às violações de direitos na família e a prevenção da reincidência da violação de direitos. Sua equipe é composta por assistentes sociais, psicólogos e advogados. Esses profissionais atuam na identificação das necessidades das pessoas que buscam ou são encaminhadas ao CREAS, na orientação sobre direitos, na atenção especializada e encaminhamentos para outros serviços da Assistência Social ou de outras políticas, como educação, orientação jurídica, saúde, trabalho e renda, acesso à documentação, habitação etc. (BRASIL, 2018).

Já os serviços de alta complexidade tem uma assistência mais ampla, pois eles garantem a proteção integral das famílias e indivíduos que sofreram violação de direitos. É ofertada moradia, alimentação, higienização e trabalho protegido para esses assistidos em situação mais grave. A rede de assistência em Alagoas conta com algumas instituições de acolhimento para crianças e adolescentes, para mulheres em situação de violência, albergue e entidades de atendimento a idosos (BRASIL, 2018).

A informação é de que o Estado de Alagoas possui 30 (trinta) instituições de acolhimento, sendo 12 na capital. Destas, 9 (nove) atendem idosos, 01 (uma) atende mulheres em situação de violência e 1 (um) albergue atende pessoas em situação de rua e/ou em trânsito (SEADES, 2018).

Esse trabalho desenvolvido pela SEADES é de extrema importância para a sociedade por se tratar do amparo a pessoas que estão sob uma grave situação de violação de seus direitos. Porém, não possui a abrangência e especificidade necessária para assistir as vítimas de crimes contra a vida.

 

2.2 A violência em Alagoas

Alagoas é o segundo menor estado brasileiro, com uma área de total de, aproximadamente, 27.779,343 km². Sua população residente é estimada em 3.375.823 habitantes, sendo 1.029.129 destes residentes na capital alagoana (segundo dados do anuário de 2017). Os habitantes do sexo masculino representam 48% da população e 52% são do sexo feminino (BRASIL, 2018).

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2010), a concentração, por faixa etária, da população alagoana se divide da seguinte forma:

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De acordo com o gráfico, observa-se que a população de adolescentes e adultos, juntas, representam quase a metade da população, atingindo um percentual de 47% do total de habitantes.

Partindo para a análise da criminalidade no estado, que ocupou o 8º lugar no ranking dos estados mais violentos do Brasil, no primeiro semestre de 2018, segundo Carvalho (2018), dados fornecidos pelo Núcleo de Estatística e Análise Criminal (NEAC) – com foco nos Crimes Violentos Letais e Intencionais- CVLI, como homicídio doloso, roubo seguido de morte (latrocínio), lesão corporal com resultado morte, resistência com resultado morte e outros crimes violentos contra a pessoa que resultem em morte – compõem o Boletim Mensal da Estatística Criminal de Alagoas do qual constam os seguintes dados:

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Observa-se que houve uma discreta redução, no ano de 2018, do número de homicídios no estado, porém estes números ainda são altos.

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Apesar da população feminina ser maioria no estado (52%), apenas 4,5%  dos crimes letais intencionais vitimam mulheres.

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As duas faixas etárias mais atingidas pela violência são, juntas, as maiores demograficamente. Porém, o que chama a atenção é que a faixa etária de 18 a 29 anos, apesar de representar 19% da população, é a mais afetada pela violência, chegando a atingir o alarmante percentual de 47,3% de vítimas de crimes violentos letais intencionais.

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A arma de fogo é a mais utilizada no cometimento de crimes violentos letais e intencionais, com um altíssimo índice de 74,5%.

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O ambiente residencial e vias públicas são os locais onde ocorrem mais de 90% dos crimes violentos letais e intencionais.

Maceió, devido, em parte, a sua grande população, lidera o ranking de homicídios dolosos em Alagoas.

 

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As percentagens de vítimas de crimes violentos letais e intencionais por cor ou raça são relativamente aproximadas das percentagens do censo do IBGE/2010 quanto aos agrupamentos de cor ou raça. Comparativamente, o que mais divergiu foi o grupamento da cor branca, pois enquanto foi declarado que 31,6% da população é branca, 17,1% dos crimes atingiram esse grupo. De outro lado, a proporção de pardos atingidos por esses crimes é a mais alta, chegando a quase ¾ do total de crimes. O grupamento da cor preta foi o que mais se aproximou em termos percentuais nas investigações de declaração de raça e de atingidos pelo crime.

Assim, identifica-se que a população mais atingida por crimes violentos letais e intencionais, em Alagoas, é formada por homens, com idade entre 18 e 29 anos, pardos, que em sua grande maioria são vítimas de arma de fogo nas imediações de sua casa ou vias públicas, sendo Maceió o município com o maior número dessas vítimas em Alagoas.

Nos três últimos anos, Alagoas beirou o alarmante número de 2000 vítimas ao ano de crimes violentos letais e intencionais. Porém, essas vítimas não são enxergadas pela Secretaria de Estado da Mulher e dos Direitos Humanos, visto que não são amparadas, não são sequer citadas como prioridade de ação das políticas de Direitos Humanos do Estado de Alagoas, não possuindo, esta Secretaria, nenhuma ação voltada à defesa de seus direitos, nem à correspondente assistência de qualquer que seja a natureza.

Ademais, constatou-se que constam das prioridades das políticas de direitos humanos a questão da igualdade racial, com enfoque na afrodescendência e indígenas, e da defesa das mulheres, porém as maiores vítimas de crimes contra a vida são homens pardos.  E se for feita a análise de que, além das 1519 vítimas fatais do ano de 2018, restam sem assistência suas famílias e dependentes, que também são vítimas do mesmo crime, percebe-se o caos social vivenciado nos últimos tempos e tem-se a noção primária de tamanha omissão das organizações de Direitos Humanos do Estado.

Segundo Alves (2012), “o sistema internacional de proteção existente, aí incluído o ativismo das ONGs de direitos humanos, foi montado para combater ditaduras”, não estando preparado para lidar com desafios democráticos, nem com situações que envolvem graves ameaças à democracia, como o fortalecimento extraordinário da criminalidade comum. Por isso, muito tem que ser repensado. O autor enfatiza:

“Se, quando se escreveu a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a preocupação dos redatores era voltada contra os abusos de regimes arbitrários, nas condições correntes no Brasil, no México, na Colômbia, em áreas localizadas nas cidades dos Estados Unidos, da maioria dos países democráticos, a grande ameaça à segurança dos indivíduos não é governamental. Ao contrário, é criminal, difusa, frequentemente oriunda de partes do território onde o Estado não consegue fazer-se presente. As ligações entre policiais e outros agentes governamentais com o crime organizado são fatos lamentáveis, que escapam à vontade dos regimes democráticos. Cabe ao Estado, como primeiro responsável pela situação dos direitos humanos, exercer, quando necessário, seu “monopólio da violência legítima”, no dizer weberiano, para combater o crime e as ligações espúrias. Sem o controle estatal de áreas anômicas, como as intricadas favelas em que traficantes se escondem, os próprios criminosos se atribuem as funções de reguladores e executores da justiça à sua maneira nas comunidades. O Estado que simplesmente se esquiva nada pode fazer para a defesa e a promoção social de seus habitantes, nem para proteger corretamente a cidadania em geral. Tampouco pode atuar contra os negócios ilícitos de seus agentes corruptos.” (grifo nosso).

O autor chama a atenção para a necessidade de se tratar os direitos humanos com a universalidade que lhe é inerente, deixando de lado o “culturalismo obsessivo, que essencializa e separa em segmentos étnicos a humanidade e os Estados”. Que não se deve pensar em “direitos das etnias” pois estes podem “fortalecer a identidade ou esmagar o indivíduo”, que é preciso salvar os direitos humanos do descrédito em que se encontra e para isso é preciso assumir a universalidade dos direitos fundamentais para a vida humana (ALVES, 2012).

2.3 Pesquisa junto às organizações de direitos humanos e órgãos do Estado de Alagoas

Na busca por um maior entendimento e maiores informações sobre as atividades dos órgãos de Direitos Humanos de Alagoas, bem como pela validação das informações obtidas mediante pesquisa documental, foram realizadas entrevistas por pautas com o mais recente Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB e com o Chefe Especial de Unidades Penitenciárias da SERIS/AL. Foi realizada, também, entrevista informal com membro do Conselho Regional de Serviço Social 16ª Região.

O Dr. Ricardo Moraes, último Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB, afirmou, na entrevista realizada no dia 07 de fevereiro de 2019, que a comissão trabalha mediante denúncias, que durante o seu tempo na Comissão não atuou em casos em prol das vítimas de crimes dolosos, que nunca atuou como assistente de acusação, a não ser nos casos envolvendo vítimas de agentes do Estado, pois é o que chega para a Comissão como denúncia.

Ressaltou que a Comissão defende os direitos de todas as vítimas, mas o que chega são denúncias de maus tratos a presos e crimes praticados por agentes do Estado, por isso tem atuado de forma restrita nesses casos. Que após processo há indenização às famílias de vítimas de agentes públicos. Mas que a OAB tem se manifestado nos casos de assassinatos de policiais, comparecendo ao sepultamento e emitindo notas de repúdio.

Esclareceu, no que se refere às vítimas de crimes contra a vida, que a OAB não faz investigação, mas provoca a abertura de processo no Ministério público. Que desconhece a existência de algum amparo às vítimas de crimes dolosos contra a vida pelo Estado de Alagoas ou por qualquer ONG aqui no estado. Que tem conhecimento de que existia o CAV Crime que prestava serviços voltados para as vítimas e que, diante de sua extinção, não houve continuidade desse tipo de assistência prestada. Afirmou também que não tem conhecimento de movimento algum para a restauração desse tipo de serviço de amparo à vítima no Estado.

Esclareceu que a OAB não trabalha contra a segurança pública, mas em prol das garantias dos direitos humanos de todos. Que o histórico de Alagoas com o caso da “gangue fardada” contribuiu para o enfoque na postura da Comissão de Direitos Humanos no que se refere aos casos envolvendo vítimas de policiais. Que não tem conhecimento da existência de ADI por omissão relativa à regulamentação do art. 245 da CF/88 e que acredita não existir.

Já o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil informou que não há proposição em andamento na OAB ou mesmo ajuizamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão referente ao artigo 245 da CF/88.

Em entrevista realizada no dia 13/02/2019, com o Chefe Especial de Unidades Penitenciárias da SERIS/AL, o agente penitenciário Milton Pereira dos Santos Júnior, foi informado que dos 8.728 apenados, 1.203 foram condenados à prestação pecuniária. O entrevistado afirmou, ainda, que a OAB/AL é bastante atuante no que se refere à assistência aos apenados, sempre apurando denúncias, fazendo-se presente em eventos e mantendo contato frequente com o sistema prisional, seja através de telefonemas ou ofícios.

Já com relação ao Conselho Estadual dos Direitos Humanos de Alagoas, afirmou nunca ter sido contactado, não sabendo nem quem são seus representantes.

Em entrevista informal, realizada no dia 26 de fevereiro de 2019, com Franqueline Terto dos Santos, membro do Conselho Regional de Serviço Social 16ª Região, foi afirmado que “os CREAS atendem casos de violação de direitos, mas nas orientações técnicas não fazem referência a vítimas de crime”. A conselheira afirmou, ainda, não ter conhecimento de ações da Secretaria de Assistência Social do Estado de Alagoas nesse sentido e acredita não haver. Recordou a existência passada do CAV Crime que fazia esse trabalho que considera muito importante diante da violência atual.

Foi feito contato telefônico com o presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos de Alagoas, que concordou em participar da pesquisa via e-mail, porém não houve resposta ao questionário enviado. O Conselho não se pronunciou sobre o tema. O questionário complementar enviado à OAB/AL também não foi respondido.

 

3. O CAMINHO PARA A ABRANGÊNCIA E EFICÁCIA DOS DIREITOS HUMANOS

Antes de tudo, é preciso que se esclareça que o reconhecimento da importância da vítima através de um amparo legal voltado para a sua assistência não implica em uma diminuição dos direitos dos acusados de crime ou já condenados. O preso, por exemplo, deve ser tratado com dignidade, mas a sua vítima não pode ser negligenciada, devendo ser conferida a ela, pelo menos, assistência igual à destinada ao seu agressor. Mesmo porque os Direitos Humanos são para todos os humanos e não para grupos humanos (SOARES e ALBUQUERQUE, 2011).

Ocorre que, hoje, há um claro desequilíbrio entre os direitos das vítimas e os direitos dos suspeitos ou autores de delitos. E essa reparação se faz fundamental e urgente, visto que grandes são os prejuízos para as vítimas e para o próprio Estado Democrático de Direito. A pacificação social, dever do Estado, fica comprometida quando os princípios basilares de uma sociedade são violados ou negligenciados (SOARES e ALBUQUERQUE, 2011).

É evidente a necessidade da oferta, pelo Estado, de uma assistência social institucionalizada que trabalhe no amparo às vítimas, bem como a seus familiares e/ou dependentes, dando-lhes suporte psicológico, financeiro e jurídico de forma continuada e eficaz (OLIVEIRA, 2017).

A previsão legal, no que se refere aos direitos das vítimas, já é uma realidade em vários países, países estes que dispõem de uma estrutura de assistência e amparo a essas vítimas, como aponta MANSOLDO (2012):

“No direito espanhol, há a possibilidade de ser fixado o valor da reparação na própria sentença criminal. Já nos Países como a Bélgica, França, Itália, Alemanha e Espanha já contam com alguns programas de reparação dos danos causados às vítimas de delitos. Alguns juristas alemães aderiram às tendências do direito penal internacional e sugere a criação de procedimentos de reparação, isto prévio ao processo, momento em que são reunidos a vítima, o infrator, o Ministério Público e o Juiz, viabilizando a reconciliação através de um acordo de compensação.

Na nova Zelândia, desde 1963, existe um programa que auxilia a vítima do delito, o que representa um programa de compensação de responsabilidade pública. Bem como nos Estados Unidos existem mais de quinhentos programas assistenciais. Fundada em 1975, a Organização Nacional para Assistência (NOVA), sediada em Washington, é uma das mais antigas organizações no mundo na prestação de assistências às vítimas. Existe o modelo cubano de caixa de ressarcimento que também vem sendo exemplo, e países como o Peru e Bolívia já aderiram a essa medida. No Canadá, existem diversos programas de serviços de mediação comunitária, reconciliação e ajuda a vítimas de crimes sexuais.

Apesar das já mencionadas previsões legais, internacionais e nacionais, esta ainda não é uma realidade no Brasil. Países como França, Itália, Bélgica, Nova Zelândia, Alemanha, Espanha e Estados Unidos possuem programas de reparação dos danos causados às vítimas de delitos. Até mesmo Cuba, Peru e Bolívia possuem ações nesse sentido (OLIVEIRA, 2011 apud MANSOLDO, 2012).

Enquanto isso, o artigo 245 da CF/88 completou 30 anos sem qualquer regulamentação a despeito de sua urgência. Como se trata de uma norma constitucional de eficácia limitada, segue sem efetividade e com aplicabilidade diferida, permanecendo inaplicável enquanto o legislador não define o âmbito de assistência às vítimas de violência de crimes dolosos. Isso significa que, quando o Estado falha em impedir a ocorrência de um crime, a vítima segue desamparada pela inexistência da previsão de hipóteses de auxílio e socorro a ela e a seus familiares. Terão, seus familiares e dependentes, que arcar com as consequências sociais do crime enquanto o Estado fecha os olhos e cruza os braços (OLIVEIRA, 2017).

Uma recente decisão do judiciário do Distrito Federal, publicada na página 696 do Diário de Justiça do Distrito Federal (DJDF), de 14 de dezembro de 2018, Processo n. 0708227-18.2018.8.07.0007 – procedimento comum, ilustra bem essa realidade. A autora, ao ajuizar processo pedindo reparação do Estado pelo crime que tirou a vida de seu familiar, obteve sentença na qual o magistrado considerou que o Estado não é culpado pelo crime e que o art. 245 da CF/88 não foi ignorado, apenas não foi regulamentado, não podendo ser suprido por ato jurisdicional. Assim, julga improcedentes os pedidos e condena a autora ao pagamento das custas e honorários de sucumbência, suspendendo a exigibilidade dos encargos, nos termos do art. 98, §3º do CPC/15.

“N.  – PROCEDIMENTO COMUM – A: . Adv (s).: DF56006 – . R: . Adv (s).: Nao Consta Advogado. Poder Judiciário da União TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO  E DOS TERRITÓRIOS 8ª Vara da Fazenda Pública do DF Fórum VERDE, Sala 408, 4º andar, Setores Complementares, BRASÍLIA – DF – CEP: 70620-000 Horário de atendimento: 12:00 às 19:00 Número do processo:  Classe judicial: PROCEDIMENTO COMUM (7) Assunto: Indenização por Dano Moral (10433) Requerente:  Requerido:  SENTENÇA Trata-se de ação pelo procedimento comum proposta por  em face do , postulando a condenação do réu a lhe indenizar pelos danos morais e materiais sofridos pela requerente. (DJDF, 2018, p. 696)”

Não se pode dizer que o magistrado está equivocado. A sentença tem fundamentação, porém o questionamento é o seguinte: na sentença há justiça? Não se visualiza justiça quando a vítima de um crime fica no desamparo ante a omissão do Estado. A justiça não é celebrada quando o magistrado está impedido de garantir a assistência à vítima por falta de fundamento legal. O que há é a dupla punição da vítima, a desestruturação da família e o desajuste social decorrentes do descaso.

 

3.1 Regulamentação do artigo 245 da CF/1988

Nessas três últimas décadas, houve algumas tentativas de regulamentação do artigo 245 da CF/1988. Foram propostos 16 Projetos de Lei tratando do assunto, conforme tabela anexa, dentre os quais 11 foram arquivados por fim da legislatura, pareceres contrários ao mérito, inadmissibilidade total e improvidência. E outros 4 foram apensados ao PL 3503/04, de autoria de José Sarney, que trata dos direitos das vítimas de ações criminosas e regulamenta o art. 245 da CF para criar o Fundo Nacional de Assistência às Vítimas de Crimes Violentos (Funav). Atualmente, esse Projeto de Lei tem 21 (vinte e um) outros Projetos de Lei a ele apensados por tratarem de assuntos correlatos (assistência às vítimas, indenização à vítima de disparo de arma de fogo de agente público, criação do Fundo de auxílio à vítima, pagamento de pensão pelo homicida, pensão à família de taxista vítima de crime doloso, indenização à vítima de feminicídio, etc). Consta no projeto de lei supra as seguintes prescrições (BRASIL, 2004):

“Art. 2º São direitos assegurados à vítima: I – receber tratamento digno e compatível com a sua condição por parte dos órgãos e autoridades públicas; II – ser informada sobre os principais atos do inquérito policial e do processo judicial referentes à apuração do crime, bem como obter cópias das peças de seu interesse; III – ser orientada quanto ao exercício oportuno do direito de queixa, de representação, de ação penal subsidiária e de ação civil por danos materiais e morais;

[…]

VIII – receber especial proteção do Estado quando, em razão de sua colaboração com a investigação ou processo criminal, sofrer coação ou ameaça à sua 2 integridade física, psicológica ou patrimonial, estendendo-se as medidas de proteção ao cônjuge ou companheiro, filhos, familiares e afins, se necessário for; IX – obter do autor do crime a reparação dos danos causados, por meio de procedimentos judiciais simplificados e de fácil acesso; X – obter assistência financeira do Estado, conforme as hipóteses, forma e condições estabelecidas nesta Lei.

[…]

Art. 3º Considera-se vítima, para os efeitos desta Lei, a pessoa que suporta direta ou indiretamente os efeitos da ação criminosa consumada ou tentada, vindo a sofrer danos físicos, psicológicos, morais ou patrimoniais, ou quaisquer outras violações dos seus direitos fundamentais, bem como os familiares próximos.

Art. 4º A União dará assistência financeira às vítimas ou herdeiros e dependentes carentes quando verificada a prática, no território nacional, dos crimes dolosos: I – de homicídio (art. 121 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal); II – de lesão corporal de natureza grave de que resulta debilidade permanente de membro, sentido ou função, incapacidade permanente para o trabalho, enfermidade incurável ou perda ou inutilização de membro, sentido ou função (art. 129, § 1º, inciso III, e § 2º, incisos I, II e III, do Código Penal); III – contra a liberdade sexual cometido mediante violência ou grave ameaça (arts. 213 e 214 do Código Penal); IV – de homicídio ou lesão corporal de natureza grave provocados por projétil de arma de fogo, quando ignorado o autor e as circunstâncias do disparo, ainda que inexista dolo. Parágrafo único. A assistência de que trata o caput consistirá no pagamento de quantia única à vítima ou a seus herdeiros e dependentes carentes, dispensando-se, para esse fim, a comprovação da autoria do crime ou o pronunciamento final das instâncias de persecução criminal.

Art. 5º A quantia repassada a título de assistência às vítimas de crimes violentos é impenhorável e destinar-se-á ao custeio dos gastos funerários, tratamento e despesas médicas, alimentação ou outras despesas essenciais à manutenção da saúde e do bem-estar.”

O projeto exclui da assistência as vítimas que contribuíram para a ocorrência do crime ou agravamento de suas consequências, as que possuem seguro privado cuja apólice contemple os crimes enumerados no art. 4º e as vítimas com danos causados por veículos automotores. Sub-roga a União no direito de indenização da vítima ou dos herdeiros e dependentes carentes contra o autor do crime, prevendo a restituição do benefício nos casos de simulação de fatos, utilização da assistência financeira para outros fins e sentença penal absolutória que reconheça a inexistência do fato. Também institui, no âmbito do Ministério da Justiça, o Fundo Nacional de Assistência às Vítimas de Crimes Violentos – FUNAV, apontando suas fontes de recurso.

Os demais projetos a este apensados são, em sua maior parte, semelhantes ao supracitado, prevendo fundo de auxílio, dispensando comprovação de autoria do crime ou pronunciamento final das instâncias de persecução criminal, sub-rogando a União quanto à indenização, definindo a finalidade do auxílio financeiro, dentre outros. Destaque-se o projeto de lei nº 1692/2015, de Mara Gabrilli, que inclui no rol dos crimes dolosos contra vida a serem considerados para consecução do benefício, os dolosos contra a vida consumados e tentados e todos os demais crimes dolosos com resultado morte, consumados e tentados, mesmo que praticados por adolescentes. O referido projeto peca em outros aspectos, como ao definir o valor do auxílio-vítima em um salário-mínimo e meio, sem deixar espaço para a avaliação dos danos e correspondente indenização adequada a cada caso. No caso do projeto de lei nº 1831/2015, de Eduardo da Fonte, só pode-se lamentar o desperdício de tempo do legislador ao fazer uma simples cópia do mencionado projeto de Mara Gabrilli, o que demonstra a forma irresponsável e desleixada com que o assunto vem sendo tratado no Congresso Nacional.

Comprovação de tamanho descaso é que o último despacho do PL nº 3503/04 data de 13/08/2015, nos seguintes termos:

“Defiro o Requerimento n. 2.653/2015, nos termos do art. 141 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Revejo o despacho inicial aposto ao Projeto de Lei n. 3.503/2004, para incluir a análise pela Comissão de Seguridade Social e Família. Por versar a referida proposição matéria de competência de mais de três Comissões de mérito, consoante o disposto no art. 34, II, do RICD, decido pela criação de Comissão Especial. Publique-se. Oficie-se.       [ATUALIZAÇÃO DO DESPACHO DO PL n. 3.503/2015: À CSSF, à CSPCCO, à CFT (mérito e art. 54 do RICD) e à CCJC (mérito e art. 54 do RICD). Proposição sujeita à apreciação do Plenário. Regime de tramitação: Urgência – art. 155 do RICD]

Essa foi a última ação legislativa do projeto, com quatro anos de tramitações infindáveis e nenhuma resolução. O que é pouco se considerar-se que o primeiro PL tratando sobre o tema foi proposto em 1988. São 30 anos de tentativas de regulamentação frustradas, três décadas de omissão e descaso estatal. O mais curioso é que, no supracitado despacho, ele é classificado como de regime de tramitação de urgência, com fundamento no art. 155 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados (Resolução da Câmara dos Deputados Nº 17, de 1989):

“Art. 155. Poderá ser incluída automaticamente na Ordem do Dia para discussão e votação imediata, ainda que iniciada a sessão em que for apresentada, proposição que verse sobre matéria de relevante e inadiável interesse nacional, a requerimento da maioria absoluta da composição da Câmara, ou de Líderes que representem esse número, aprovado pela maioria absoluta dos Deputados, sem a restrição contida no § 2º do artigo antecedente.”

Não é compreensível que uma matéria seja definida como prioritária por ser de “relevante e inadiável interesse nacional” e que após três anos ainda permaneça sem aprovação.  

 

3.2 Garantias dos direitos das vítimas de crimes contra a vida em Alagoas

Há grande discussão sobre a responsabilidade do Estado na reparação dos danos às vítimas de crimes. Os que são favoráveis afirmam que tendo o Estado assumido a responsabilidade pela segurança de seus cidadãos, proibindo a vingança privada, ao falhar como defensor dessa segurança, deve proceder com a devida compensação e indenização. Os que são contra alegam que não é dever do Estado proteger os cidadãos uns dos outros, não sendo possível o controle total do crime e muito menos a reparação dos seus danos devido à excessiva onerosidade que isso representaria (SANTOS; FERREREZI, 2015).

Não obstante as respeitáveis alegações, é evidente o dever do Estado na prestação da segurança e garantia do amparo e assistência nas situações em que falhar como garantidor da pacificação social. Vejamos o que diz a Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às vítimas da Criminalidade e abuso de Poder de 1985:

“12. Quando não seja possível obter do delinquente ou de outras fontes uma indenização completa, os Estados devem procurar assegurar uma indenização financeira:

  1. a) Às vítimas que tenham sofrido um dano corporal ou um atentado importante à sua integridade física ou mental, como consequência de atos criminosos graves;
  2. b) À família, em particular às pessoas a cargo das pessoas que tenham falecido ou que tenham sido atingidas por incapacidade física ou mental como consequência da vitimização.
  3. Será incentivado o estabelecimento, o reforço e a expansão de fundos nacionais de indenização às vítimas. De acordo com as necessidades, poderão estabelecer-se outros fundos com tal objetivo, nomeadamente nos casos em que o Estado de nacionalidade da vítima não esteja em condições de indenizá-la pelo dano sofrido.

Serviços

  1. As vítimas devem receber a assistência material, médica, psicológica e social de que necessitem, através de organismos estatais, de voluntariado, comunitários e autóctones.
  2. As vítimas devem ser informadas da existência de serviços de saúde, de serviços sociais e de outras formas de assistência que lhes possam ser úteis, e devem ter fácil acesso aos mesmos.”

Está claro que as vítimas e suas famílias possuem o direito à reparação dos danos sofridos, devendo esta ser assegurada pelo Estado mediante indenização financeira e assistência necessária, seja ela material, médica, psicológica e/ou social.

Para tanto, deve o Estado dispor de um sistema jurídico capaz de garantir a efetividade dos direitos reconhecidos constitucionalmente e, em consequência, uma estrutura de organizações capazes de conferir a aplicabilidade da lei no âmbito social.

A regulamentação do art. 245 da CF/88 deve dar início às ações necessárias para a valorização e amparo às vítimas. A criação do fundo de indenização, de políticas públicas- com inserção dos direitos das vítimas de violência no rol de prioridades das políticas de Direitos Humanos- e de órgãos de operacionalização da justiça, como o extinto Centro de Apoio às Vítimas de Crime de Alagoas, são medidas necessárias para a garantia de atendimento aos direitos das vítimas de crimes contra a vida de forma permanente e contínua. Tais medidas devem ser tomadas não como projetos ou em formato de ONGs, devem ter a dimensão de que necessitam, sendo tratadas como ações institucionalizadas pelo Estado, seu principal responsável.

É preciso que seja revista a situação de desigualdade existente entre o acusado de crime de violência e a vítima. Enquanto os acusados gozam de garantias constitucionais efetivas, como a assistência financeira aos familiares de condenados por crimes, as vítimas, aqui incluídos os dependentes e familiares, não gozam da mesma assistência pelo Estado (SOARES; ALBUQUERQUE, 2011).

Como constatado na pesquisa junto à SERIS/AL (2019), apenas 13,7% dos apenados foram condenados à prestação pecuniária. Quanto à reparação dos danos provocados pela infração penal, MANSOLDO (2012) reforça o seguinte:

“No direito processual penal brasileiro, existe a possibilidade de ajuizamento de ação por iniciativa privada, além da influência da decisão condenatória na reparação do dano, mediante sua execução, sem necessidade de novo processo de conhecimento perante o juízo cível (CPP, art. 63). Observa-se que a reparação de danos neste caso não aparece como sanção pública, mas sim, como interesse particular da vítima, que deve lutar para alcançá-la. Trata-se de uma reparação com efeitos secundários da condenação penal. A doutrina é crítica neste sentido, pois, a reparação de danos é vista como mera relação privada, sendo que, deveria haver uma conotação penal e pública. (GOMES; MOLINA, 2010, p. 484 e 485).

O art. 387 do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941), que cuida da sentença penal condenatória, teve acrescido o inciso VII que estipula que na sentença o juiz fixe, desde logo, valor mínimo para reparação dos danos provocados pela infração penal, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido.

Pelo Código Penal (BRASIL, 1940), existem benefícios ao acusado que são condicionados, também, à reparação de danos à vítima, tais como o sursis (CP, art. 78 § 2º), o livramento condicional (CP, art. 83, IV), a reabilitação criminal (CP, art. 94, III) ou a diminuição da pena (CP, art. 16). Importante observar em relação a estes artigos que há sempre a possibilidade do autor do delito comprovar a sua impossibilidade de assumir, financeiramente, a respectiva reparação, fato que gera a não satisfação da vítima.

O grande problema é que, no Brasil, a maioria dos infratores são pessoas pobres e incapazes de reparar o dano. Diante disso, todo e qualquer avanço no campo da reparação do dano esbarra na impossibilidade material dos réus.

A autora segue abordando a necessidade de que a multa penal, destinada ao fundo penitenciário, seja redirecionada ao ressarcimento dos prejuízos da vítima. Pois, entende ser obrigação do Estado o cuidado com o sistema prisional, da mesma forma que é dele a responsabilidade pela garantia da segurança da população, devendo promover a indenização nos casos em que falha como garantidor. E aponta, como alternativa, a criação de um fundo de reparação de danos às vítimas, a ser constituído das receitas obtidas com multas e verbas estatais.

Ainda sobre as previsões legais relativas às vítimas presentes no ordenamento jurídico brasileiro, MANSOLDO (2012) lembra que:

“Visando a proteção da vítima, a Lei n. 9.807/99 estabelece normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas, institui o Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas e dispõe sobre a proteção de acusados ou condenados que tenham voluntariamente prestado efetiva colaboração à investigação policial e ao processo criminal. (BRASIL, 1999).

A Lei n. 9.099 de 1995 instaurou um novo modelo de justiça criminal e conferiu à vítima papel de destaque na resolução do caso. Os conceitos aplicados pela Lei dos Juizados Especiais promoveram uma mudança radical na clássica mentalidade repressiva do Estado e da sociedade. O art. 62 dispõe sobre os objetivos principais da referida Lei: “Reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade”. (BRASIL, 1995).

Nota-se uma inversão de prioridades, pois a aplicação de uma pena não privativa de liberdade aparece em segundo lugar e em primeiro lugar o atendimento da expectativa da vítima.

Institutos como a conciliação (art. 73), a transação (art. 76), fundamentam a prioridade da solução do conflito sem o desenvolvimento de todo o procedimento sumaríssimo, ou seja, é determinado um rito célere na busca da pacificação social.

Outro instituto que se destaca em relação à reparação de danos à vítima é a suspensão condicional do processo (art. 89), isto, porque a reparação é uma condição para a efetivação da suspensão. Neste caso, a reparação é causa de extinção de punibilidade e o autor do delito pode realizar o pagamento da reparação durante o período de prova e não logo no início da medida.

Por fim, ressalta-se que, no que diz respeito às perspectivas para a reparação do dano, mesmo diante dos últimos avanços da Vitimologia, muito ainda precisa ser feito. Embora a Lei n. 9.099/95 e as outras leis acima referidas tenham trazido importantes instrumentos para a busca da reparação, o certo é que existe a necessidade de uma mudança de postura e de mentalidade, tanto do Poder Público, como de toda sociedade, para a implementação efetiva das garantias já previstas e das que podem ser editadas.

É importante destacar que a lei nº 9.099/95 (BRASIL, 1995) é de grande relevância, pois busca a pacificação social através da resolução do conflito, com o envolvimento da vítima, priorizando o atendimento da sua expectativa e colocando a aplicação da pena não privativa de liberdade em segundo plano, o que reflete até mesmo nos presídios que encontram-se superlotados, contribuindo para a promoção do princípio da dignidade da pessoa humana dentro do sistema prisional. Porém, é insuficiente nos casos de crimes contra a vida, só alcançando alguns casos de aborto, pois os Juizados Especiais Criminais somente têm competência para a conciliação, o julgamento e a execução das infrações penais de menor potencial ofensivo (contravenções penais e crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, cumulada ou não com multa).

Já a lei nº 9.807/99 (BRASIL, 1999) é restrita a vítimas e testemunhas que estejam ameaçadas, o que nem sempre é o caso das vítimas de crimes contra a vida em geral.

Ainda sobre o desequilíbrio entre acusados e vítimas, dissertam Soares e Albuquerque (2011):

“Ao supostamente negar assistência às vítimas de violência de crimes dolosos, o sistema jurídico termina por gerar desigualdades e impedimentos para cidadania, com reflexos na concepção de inefetividade de direitos humanos das vítimas e mesmo no fomento de discurso de natureza sofista (midiático) sobre a ideia de que os direitos humanos são voltados para os acusados ou para lhe assegurar privilégios e impunidade. Portanto, as vítimas de crimes dolosos reclamam uma ordenação que resgate a estabilidade aviltada e que lhes conceda proteção estatal correspondente à concedida aos acusados, de maneira que ambos possam realizar seus direitos fundamentais, até porque não equivale em assistências antagônicas nem implica que uma gere a exclusão da outra.

A assistência dada aos acusados volta-se à proteção das pessoas frente a eventuais violações das liberdades individuais eventualmente produzidas pelo Estado, daí a prescrição de uma série de direitos – (devido processo legal, ampla defesa, contraditório, assistência jurídica integral e gratuita, princípio da inocência, etc.)- como obrigações negativas do Estado, o que não serve para justificar as limitações dos encargos do Estado frente às vítimas de violência, ainda mais que a proteção dos direitos do acusado não tem o mesmo fundamento que a assistência defendida para vítima. Não se visualiza fator discriminem que justifique uma atenção especial na legislação de assistência ao acusado e permita a omissão frente às vítimas de violência de crimes dolosos, devendo a assistência do poder público ao acusado e à vítima de violência conservar o mesmo plano de existência.”

Dessa forma, em obediência ao princípio da igualdade, da legalidade, da dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade da lei, que, de acordo com Ramos (2011), visa equilibrar os direitos individuais com os anseios da sociedade, a vítima deve ser enxergada e amparada pelo sistema jurídico brasileiro, deve ser assistida pelo Estado e deve ser inserida no rol de prioridades das políticas de Direitos Humanos no Brasil. Para tanto, o Art. 245 da CF/88 deve ser regulamentado, tomando como diretrizes a Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às vítimas da Criminalidade e abuso de Poder de 1985 e a própria Constituição Federal do Brasil/1988.

A Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, como defensora da Constituição, da ordem jurídica do Estado Democrático de Direito, dos direitos humanos e da justiça social e tendo também como finalidade pugnar pela boa aplicação das leis e pela rápida administração da justiça, conforme prescreve a Lei nº 8.906/94 (BRASIL, 1994), tem sido omissa quanto à cobrança pela efetividade dos direitos das vítimas de crimes contra a vida.

Vejamos o que diz o Art. 103 da CF/88:

Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade:

I –  o Presidente da República;

II –  a Mesa do Senado Federal;

III –  a Mesa da Câmara dos Deputados;

IV –  a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito   Federal;

V –  o Governador de Estado ou do Distrito Federal;

VI –  o Procurador-Geral da República;

VII –  o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;

VIII –  partido político com representação no Congresso Nacional;

IX –  confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

Não é novidade que a ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) por Omissão é remédio para os casos em que as normas Constitucionais, por falta de atuação normativa do Poder Legislativo, Executivo e Judiciário, não são obedecidas, ou seja, quando ocorre a violação negativa do texto constitucional.

A OAB, como legitimada ativa para impetração da ADI por omissão, deve assumir a sua responsabilidade de cobrança da efetividade do dispositivo constitucional que garante os direitos das vítimas de crimes contra a vida. É louvável e indispensável a assistência que tem sido pela OAB/AL dispensada aos apenados. Porém, é preciso que se vá além dos presídios, ao encontro de outras vítimas que estão desamparadas nos hospitais ou em seus lares esfacelados pela violência.

A pretensão de proposição do projeto de lei de iniciativa popular “Justiça – Direito de todos”, que dispõe sobre a regulamentação do art. 245 da CF/88, é um exemplo da inquietude da população pela observância desses direitos. Ainda está em fase de subscrição, mas de qualquer forma, representa mais uma tentativa de efetivação dos direitos das vítimas respaldada no clamor social (SANTOS; FERRAZERI, 2015).

Enquanto os responsáveis pela mudança dessa realidade não assumem essa responsabilidade, resta à vítima um último recurso – o mandado de injunção (OLIVEIRA, 2017).

O inciso LXXI do art. 5º da CF/88 prescreve: “Conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.”

O mandado de injunção somente pode ser impetrado por pessoa física ou jurídica prejudicada pela ausência de norma, logo, necessita de um caso concreto para ser usado. O suprimento da omissão deve se fazer pelo próprio judiciário. Porém, na prática, essa medida não é garantia de atendimento ao direito pleiteado, como foi o caso da decisão mencionada na seção 4 deste trabalho, onde foi negado pelo magistrado o pedido de reparação ao Estado pelo crime que tirou a vida do familiar da autora.

Sobre as funções judiciais em matéria penal, vale ressaltar o que diz LIMA (2012, p. 28):

“O Judiciário, para além da resolução dos conflitos interpessoais, realiza, no sistema adotado entre nós, também, o controle das relações normatizadas entre o Estado e as pessoas, velando para que o primeiro obedeça às normas constitucionais, notadamente quanto aos limites determinados pelo princípio constitucional da dignidade humana.Um dos principais instrumentos para realizar essa função é o controle da constitucionalidade, que garante unidade intrassistemática, eliminando leis e atos normativos conflitantes com a Constituição, constituindo, na expressão de Cappelletti,o núcleo da justiça constitucional34.Esse controle, não obstante hoje generalizado, foi questionado por concepções de direito e Estado transpersonalistas, distintas das democracias e plasmadas em estruturas autoritárias traduzidas pelo, e é questionado por argumentos fundados na “vontade da maioria”, constituídos a partir das democracias representativas35.Independentemente das divergências das posições ditas substancialistas ou procedimentalistas – cujos modelos, no entanto, convergem no tocante à relevância da justiça constitucional e a função que lhe incumbe na asseguração dos direitos individuais –, e mesmo sem ter em conta a questão da legitimidade dos governantes edo parlamento nas democracias representativas, de natureza presidencialista, que pode ser levantada, mormente nos países da América Latina36, o ativismo judicial,no marco do Direito Penal, máxime de um Direito Penal em real expansão, parece-nos inquestionável e imprescindível.Se é discutível a ampliação das funções do Judiciário, seja pela consolidação do controle jurisdicional sobre o legislador, ou mesmo do aumento do poder de interpretação dos juízes, nas esferas civil e administrativa, na seara penal, essa ampliação representa importante instrumento de garantia para todas as camadas sociais (governantes, governados, empresários, trabalhadores, funcionários,desempregados, com e sem-terras etc.).É que a assunção de um papel de intérprete que põe em evidência, inclusive contra as maiorias eventuais, os valores mais densos e essenciais ao ser humano e à coexistência, extraídos principalmente da Constituição (não de qualquer Constituição,mas de uma Constituição como a nossa), faz do Judiciário, na esfera penal, não um pai para uma sociedade órfã37, mas o necessário avaliador das possibilidades de redução das liberdades individuais de toda e qualquer pessoa, pertencente a todo e qualquer estrato social.Sua atuação, portanto, representa, no Estado Democrático de Direito, para além do necessário contrapeso “à paralela expansão dos ‘ramos políticos’ do Estado moderno” em um sistema democrático de checks and balances 38, a garantia de uma proteção mínima, jurisdicional, aos direitos fundamentais constitucionalizados, o que,em sede penal, traduz-se não só pela contração dos processos de criminalização, mas também pela necessidade de incriminação quando indispensável aos próprios direitos fundamentais.O papel que do juiz criminal se espera, no modelo democrático e constitucional contemporâneo, para além do conhecimento do legislado, das formas procedimentais e das decisões pretorianas mais significativas, de seu envolvimento com o Direito Internacional, especialmente com os Direitos Humanos e sua inserção nos problemas da América Latina, do país, do seu Estado e da sua comunidade, é a capacidade que deve ter de interpretação da Constituição, particularmente da hermenêutica dos Direitos Fundamentais e dos essenciais à coexistência, máxime em Estados como o nosso, cujo poder político resta contaminado pela corrupção e o fisiologismo em todos os níveis.Os conteúdos constitucionais são especificados e executados tanto pelo legislador quanto pelo juiz. Aquele com a margem de especificação-execução muito mais estendida, este, embora com margens muito mais estreitas, detentor, mormente em sede de Direito Penal e no campo restrito do caso único que lhe é apresentado, do poder-cognitivo de decisão final.”

Diante de tamanha relevância das funções judiciais, o acionamento do judiciário pela vítima surge como uma forma de cobrança, de tentativa de alcance aos seus direitos – assim como os projetos de lei de iniciativa popular. Porém, para uma cobrança mais efetiva por parte da sociedade, faz-se necessário o esclarecimento aos cidadãos de seus direitos e dos meios para obtê-los.

Assim, ações de cunho social, com viés educativo por parte dos operadores do direito e acadêmicos de Ciências Jurídicas, são essenciais para viabilizar o movimento social em prol da concessão de direitos negligenciados, como é o caso dos direitos das vítimas de crimes contra a vida.

 

4. CONCLUSÃO

A pesquisa procurou compreender as ações das organizações de direitos humanos no Estado de Alagoas, no intuito de identificar uma provável seletividade em sua atuação, mais especificamente no que se refere a uma possível omissão quanto ao amparo às vítimas de crimes dolosos contra a vida.

A partir de uma análise histórica da vítima em diferentes fases da evolução humana, constatou-se que a tendência atual é de sua valorização no sistema jurídico. Porém, se comparado a outros países, o Brasil está atrasado em seu sistema jurídico e políticas públicas no tocante a esse tema. A própria doutrina não se aprofunda na discussão da situação da vítima em crimes muito presentes na sociedade atual, como o homicídio.

Foi constatado, a partir de pesquisa documental, que a assistência às vítimas de crimes contra a vida não faz parte do rol de prioridades das políticas de direitos humanos em Alagoas e que as pessoas mais atingidas por esses crimes também estão fora desse rol.

Longe de desmerecer as ações do Conselho de Direitos Humanos de Alagoas na luta contra a discriminação em virtude de raça, de gênero, de orientação sexual ou de religião, são ações de grande relevância para a promoção da igualdade e justiça social. A questão é que estão ocorrendo sérias violações aos direitos humanos em decorrência da violência urbana e as vítimas dessas violações estão desassistidas.

Em entrevista com a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil de Alagoas, foi constatado que não há atuação da comissão no que se refere à assistência a essas vítimas, a não ser que se tratem de vítimas de agentes do estado.

Apesar do histórico de violência pelo qual Alagoas passou, com os abusos por parte de agentes do estado, é preciso que se leve em conta que as mudanças sociais requerem posturas diferentes dos órgãos de direitos humanos. É essa postura diferenciada que a sociedade tem cobrado em seu discurso de descrédito nesses órgãos.

A Comissão afirmou, também, que não há movimentos para a criação de instituições governamentais semelhantes ao extinto CAV Crime e nem qualquer outra ação, até mesmo jurídica, que busque a efetivação do direito de assistência a essas vítimas. Que, diga-se de passagem, precisa ter caráter institucional, fazendo parte das políticas do Estado, devidamente aparelhada para que não seja interrompida, como mostrado na experiência do mencionado projeto social CAV Crime.

Foi identificado que, apesar das previsões de assistência à vítima e responsabilização do Estado na Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder – 1985 e na Constituição Federal do Brasil – 1988, a vítima ainda segue sem seus direitos efetivados e tendo que arcar, sozinha, com os prejuízos e consequências, sejam físicas, emocionais, psíquicas, sociais e financeiras, advindas do crime.

As ações e dispositivos legais em prol da vítima, disponíveis hoje, ainda são insuficientes para dar vida aos direitos constitucionais a ela conferidos.

O artigo 245 da CF/88, que trata da assistência às vítimas de crimes dolosos, carece de regulamentação faz mais de 30 anos, apesar da existência de um número considerável de projetos de lei que dispõem sobre essa regulamentação. O que demonstra não haver, assim, a devida atenção por parte do legislativo, no que se refere à efetivação desses direitos.

Alguns indivíduos pleiteiam, sem êxito, no judiciário, a reparação de seus danos pelo Estado, normalmente familiares de vítimas mais conscientes de seus direitos, enquanto uma considerável parcela da população, também atingida pela violência, segue desavisada e igualmente desamparada.

As políticas de direitos humanos, em Alagoas, não priorizam esses indivíduos e os órgãos capazes de mudar essa realidade, como a Ordem dos Advogados do Brasil – que, aliás, tem prestado um excelente trabalho junto aos apenados do sistema prisional de Alagoas – e a Secretaria da Mulher e dos Direitos Humanos do estado de Alagoas, não têm atuado em prol do atendimento desses direitos.

Diante dessa infeliz realidade, cabe aos operadores do direito e acadêmicos das Ciências Jurídicas cobrarem ações da OAB, seja pela impetração da ADI por Omissão ou por outras ações de cobrança ao legislativo, cobrar ações junto ao Poder Executivo e promover o esclarecimento junto à população sobre os direitos das vítimas e deveres do Estado.

É preciso que a sociedade perceba os direitos humanos como inerentes a todos, a cada indivíduo, que sejam reconhecidos em sua universalidade e em seu nível fundamental de importância para a humanidade. É preciso salvar os direitos humanos para que todos os humanos sejam salvos.

É preciso, também, lembrar que a pacificação social, dever do Estado, existe quando os princípios basilares de uma sociedade não são violados ou negligenciados (SOARES e ALBUQUERQUE, 2011). Assim, se há um discurso de inquietude vindo das ruas é porque há um desequilíbrio no pacto social. Esse desequilíbrio precisa ser ajustado, não impondo sofrimentos “proporcionais” aos indivíduos, mas restabelecendo a paz através da solução dos conflitos, da reparação dos danos e do tratamento isonômico.

A pesquisa foi relevante por confirmar que existem seletividade e omissão das organizações de direitos humanos de Alagoas e por apontar que é papel dos operadores do Direito chamar a atenção para essa omissão quanto às vítimas, cobrando dos legisladores a aprovação de leis regulamentadoras e do Estado, como um todo, posteriores políticas públicas dotadas de amparo legal e estrutura institucional que sejam suficientemente capazes de assistir a vítima em todos os aspectos em que foi violada.

Já está mais do que na hora das organizações de direitos humanos deixarem de atuar de forma compartimentalizada e enxergarem os indivíduos de forma universal, como sujeitos dotados de direitos fundamentais que não podem ser violados. A oneração do Estado não pode ser mais usada como desculpa para não reparar os danos às vítimas, já que esse mesmo Estado é causador desses danos quando se omite e não cumpre com seus deveres (de educação, de segurança etc.) perante seus cidadãos.

As organizações de direitos humanos devem agir de forma a garantir a dignidade humana de quem sofreu violações, sejam por parte do Estado ou de outros indivíduos da sociedade. Focar em indivíduos, não em grupos, viabiliza a abrangência que organizações dessa natureza devem ter para que atendam a todos de forma justa e isonômica.

 

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Pública do DF Fórum VERDE, Sala 408, 4º andar, Setores Complementares, BRASÍLIA –

DF – CEP: 70620-000 Horário de atendimento: 12:00 às 19:00 Número do

processo: 0708227-18.2018.8.07.0007 Classe judicial: procedimento comum (7) Assunto:

Indenização por Dano Moral (10433) Requerente: Ana Paula de Almeida

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