Parcerias Público Privadas como forma de diminuição do aparato estatal


Sumário: Introdução. 1. Administração pública e direito administrativo brasileiro. 1.1 Histórico da Administração Pública e Direito Administrativo brasileiro .1.2 Reforma do Estado e a Crise do Serviço público. 2. Contrato de gestão e parcerias público-privadas. 2.1 Contrato de Gestão e os Princípios da Legalidade e da Licitação no Direito Brasileiro (art. 37, XXI e § 8º da CF/88). 2.2 As “Garantias” do Poder Público ao Parceiro Privado e Suas (in) Constitucionalidades. 2.2.1 Vinculação de Receitas e Art. 167, IV, CF/88 e Instituição de “Fundos Especiais”. 2.2.2 Fundo Garantidor de Parcerias (FGP) e o art. 100, CF/88: Burla ao Regime constitucional de Pagamento da Dívida Pública Mediante Precatórios? 2.3 A Arbitragem nos Contratos de PPP e as Prerrogativas do Poder  Público: o Princípio da Indisponibilidade do “Interesse Público”. Conclusão. Referências.


INTRODUÇÃO


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O Estado moderno passa por uma enorme transformação social e econômica, resultado de rápidas e constantes mudanças causadas num espaço de tempo limitado e que acabam afetando diretamente as estruturas e instituições modernas, gerando inúmeras incertezas quanto à eficácia destas.


O panorama sócio-econômico altera-se constantemente, repercutindo diretamente na política e no direito. As instituições não conseguem acompanhar o ritmo frenético da sociedade atual, sendo, para tanto, imperioso uma imediata redefinição do papel do Estado e da Administração Pública.


Nesse espectro, a Administração Pública assume especial relevo, pois cabe à ela concretizar o interesse público diante dos casos concretos, possibilitando a realização de uma verdadeira e transparente democracia.


Assim, é dever do Estado e mais especificamente da Administração Pública brasileira adaptar-se às novas circunstâncias do mundo moderno, mesmo que, para tanto, tenha que rever muitos de seus conceitos tradicionais, implementando novas formas de administrar a “res pública” através de uma maior aproximação com entidades privadas.


A administração da coisa pública deve valer-se de novas alternativas para lidar com as crescentes exigências que surgem, expurgando antigos apegos a determinados dogmas tidos antes como quase absolutos.


A tradicional separação entre público e privado, entre regime jurídico-administrativo e o regime privado devem continuar existindo. Contudo, não mais dicotomizada como anteriormente. Hoje, existem inúmeros pontos de convergência entre tais regimes.


Assim, o presente trabalho propõe algumas reflexões sobre o contrato de gestão e as Parcerias Público-Privadas no contexto do Direito Administrativo/ Constitucional brasileiro.


Princípios como o da supremacia ou indisponibilidade do interesse público devem ser encarados sob novo enfoque, mais próximo do Novo Direito Administrativo. A própria noção de interesse público deve ser revista, sob pena do autoritarismo imperar disfarçadamente sob os auspícios do bem comum.


Dessa forma, a pesquisa ora elaborada utilizará o método de abordagem indutivo, pois, a partir do estudo de casos particulares (contrato de gestão e Parcerias Público-Privadas), busca-se chegar a conclusões gerais acerca desses novos institutos no ordenamento jurídico e na Administração Pública brasileira.


Desse modo, poderá se ter uma breve noção de todo contexto que circunda os institutos acima referidos, fazendo-se uso do método de procedimento sistemático. Através do método de abordagem comparativo, objetiva-se tecer algumas comparações entre diversos ordenamentos (francês e common law), diversas normas (Lei de Licitações, Lei de Responsabilidade Fiscal) em face do sistema brasileiro de contrato de gestão e PPP, como forma de propiciar conclusões acerca de seu atendimento aos anseios da sociedade. Por fim, será utilizado o método monográfico donde poderão ser estabelecidas diversas avaliações acerca de normas e princípios aplicáveis ao tema.


Para tanto, o estudo pretende versar sobre diversas polêmicas acerca da introdução do contrato de gestão e Parcerias Público-Privadas no contexto brasileiro, sob um enfoque eminentemente constitucional e de acordo com a dimensão do impacto no aparelhamento estatal. Nessa senda, será delineado no primeiro capítulo (item 1.1) um histórico acerca da evolução da Administração Pública e do Direito Administrativo no Brasil. O item 1.2 do mesmo capítulo tratará da Reforma do Estado e a crise do Serviço Público em face do aparato estatal brasileiro.


No segundo capítulo, será tratado especificamente do Contrato de gestão e Parcerias Público-Privadas, sendo o item 2.1 focado no contrato de gestão, organizações sociais e os princípios da legalidade e da licitação no direito brasileiro. Ponto de extrema relevância e enorme controvérsia se estudará no item 2.2, onde discorreu-se sobre as “garantias” nos contratos de PPP e suas (in) constitucionalidades: 2.2.1) vinculação de receitas, instituição de fundos especiais e o art. 167, IV, CF/88; 2.2.2) Fundo Garantidor de Parcerias (FGP) e o art. 100, CF/88.


Por fim, no item 2.3 será desenvolvido pesquisa acerca da aplicabilidade da “arbitragem” nos contratos de PPP e as prerrogativas do Poder Público sob enfoque do princípio da supremacia e da indisponibilidade do interesse público.


1. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E DIREITO ADMINISTRATIVO BRASILEIROS


1.1 Evolução histórica da Administração Pública e Direito Administrativo no Brasil


Quando o Brasil fora descoberto por Portugal, estavam em vigor as Ordenações Afonsinas (1446-1511). Posteriormente, foram substituídas pelas Ordenações Manuelinas. Ambas não tiveram aplicação na nova colônia (Brasil).


Entretanto, as Ordenações Filipinas ou do Reino, possuíram grande aplicação no Brasil, sendo somente substituídas pelos grandes diplomas normativos do século XIX e início do século XX, tais como, Código Criminal do Império (datado de 1830), Código de Processo Criminal (datado de 1832), Código Comercial (editado em 1850) e o Código Civil de 1916 (Clóvis Beviláqua).


Dessa forma, criaram-se as raízes da Administração Pública brasileira e do ordenamento jurídico pátrio. Como bem salienta Assis apud Di Pietro (2002, p. 04):


“a formação de um aparelhamento administrativo no Brasil pela coroa portuguesa tem início com o estabelecimento das Donatárias em 1532, momento em que a política lusa norteava-se no sentido de transformar a terra conquistada em colônia de exploração sob o esteio jurídico do Tratado de Tordesilhas e de várias bulas pontifícias”. (sem grifos no original)


Juntamente com a coroa portuguesa, a igreja contribuiu significativamente para a formação da estrutura estatal brasileira. Tanto que a Virgínia Maria Almoêdo de Assis assevera a desnaturação do papel exercido pelo clero no Brasil colônia, onde não havia uma organização eclesiástica da igreja, donde deveria haver uma comunidade de cristãos existia na verdade uma estrutura administrativa, juridicamente traçada a serviço do Estado. Assim, a carreira eclesiástica transformara-se em carreira do funcionalismo público (2002).


Quanto ao sistema legislativo, havia uma coexistência de normas (alvarás, cartas régias, bandas, ofícios) expedidas pelo rei de Portugal e normas locais (ordens e outros).


As capitanias hereditárias foram a primeira forma de sistema político adotado no Brasil, ainda sob influência do feudalismo. Nesse sistema, havia governadores das capitanias (territórios) dotados de poderes administrativos exercidos sobre a coisa pública. Os donatários ou capitães recebiam mediante carta de doação (juntamente com cartas de forais, especificando direitos, foros, tributos) parte desses territórios, sob cláusula de inalienabilidade, porém transmissíveis ao herdeiro varão. Esses capitães também exerciam, de modo restrito, poderes administrativos e jurisdicionais em suas parcelas de terra.


As capitanias podiam ser, ainda, divididas em sesmarias (regime agrário que dera origem aos grandes latifúndios), sendo a provável origem do embate agrário existente até hoje no Brasil.


Através das cartas dos forais houve a instituição de oficiais responsáveis pela a arrecadação dos tributos reais. Essas cartas, segundo Di Pietro (2002, p. 6): “…outorgavam poderes de jurisdição cível e criminal aos donatários, competência para escolher os oficiais encarregados de administrar a justiça e os homens que procederiam à eleição de vereadores nas vilas…”


Os donatários podiam nomear seu ouvidor, que exercia função administrativa e judiciária.


Posteriormente, a organização administrativa brasileira passou a um regime de unidade administrativa, sendo todo poder transferido para a pessoa do Rei, com a conseqüente derrogação das cartas de doação e forais.


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Em decorrência, passasse os poderes administrativos e jurisdicionais ao Governador Geral, restando alguns poucos poderes aos donatários ou capitães.


Por isso, para alguns doutrinadores como Clóvis Beviláqua, o regime de capitanias hereditárias exercera papel relevante na formação do futuro regime federativo brasileiro, pois apesar de ter-se implantado um governo geral centralizado, as capitanias foram o início do que posteriormente fora denominado províncias, mais tarde os Estados da república federativa do Brasil.


Mais tarde criara-se o Conselho de Estado, nos moldes do direito francês, com atribuição de consultoria acerca de dos negócios graves e medidas gerais da pública administração (2002). Contudo, ao contrário da França, tal órgão não possuía poder jurisdicional, somente administrativa. Havia, portanto, a implantação do sistema de dualidade de jurisdição (administrativa e contenciosa) similar à francesa.


Durante o período imperial e sob o plasmo da Constituição de 1824 o Brasil fora dividido nas anteriormente mencionadas províncias. Estas assumem relativa autonomia em face do governo central, apesar da estrutura unitária.


Desse modo, a Administração Pública brasileira fora sendo organizada e adquirindo forma através de extenso corpo de leis. O Direito Administrativo também, nessa época, passa a ter autonomia perante o Direito Civil.


Cabe salientar que os atos dos agentes administrativos não eram passíveis de análise do Poder Judiciário. Nesse sentido, as autoridades administrativas possuíam alto grau de poder político ou discricionariedade elevada. Mister asseverar de que ainda existia nesse momento o Poder Moderador (criado por Dom Pedro I) que exercia grande influência no Poder Executivo.


Após, já no período republicano (1889), há a extinção do malfadado Poder Moderador (império do arbítrio) e do Conselho de Estado. Mediante decreto extingue-se o modelo de dualidade de jurisdição. A Administração Pública passa a ser controlada pelo Poder Judiciário. Assim, o país passava a adotar o sistema de jurisdição una, semelhante ao dos EUA.


Havia, nesse aspecto e através dos institutos do mandado de segurança e do princípio do due process of law (depois desmembrado em outro princípio, qual seja, o da razoabilidade), sob clara influência do common law (direito anglo-saxão) no direito brasileiro.


Entretanto, inúmeras teorias, tais como: sobre contratos administrativos, “exceptio non adimpleti contractus” (exceção de contrato não cumprido), servidões administrativas, teoria da imprevisão, teoria do risco (responsabilidade objetiva do Estado), das concessões e permissões de serviço público delegadas ao particular, fato do príncipe, fato da Administração e teoria dos atos administrativos dentre outras, foram adaptadas ao direito administrativo brasileiro oriundas da jurisprudência administrativa francesa.


Posteriormente à primeira Constituição da República, datada de 1891, de cunho liberal (Estado Liberal), adveio a Constituição de 1934 (Era Vargas) de cunho nitidamente social. O Estado Social era implementado com forte ação estatal na promoção de direitos básicos como saúde, educação e emprego. O funcionalismo público consegue novas garantias (exigência de concurso público, estabilidade, aposentadoria).


Fato de extrema relevância fora à instituição na carta de 1934 do mandado de segurança e da ação popular, pois dessa forma aumentara o controle judicial e participação popular no que concerne aos atos praticados pela Administração Pública.


Muitas leis que disciplinam a Administração Pública foram editadas a partir daí, aumentando significativamente a abrangência dos serviços públicos. Conseqüentemente cresce o Poder de Polícia exercido pela Administração Pública.


O tamanho desta assume grande relevo, sendo a provedora e realizadora do Estado Social.


O Direito Administrativo brasileiro, por sua vez, também se personifica, tornando-se independente e autônomo.  De acordo com Di Pietro (2002, p. 17):


“Na realidade, já estava definido, nessa época, o direito administrativo como ramo autônomo do direito público, com institutos, princípios e regime jurídico próprio, tendo por objeto os órgãos, agentes e pessoas jurídicas administrativas que integram a Administração Pública, a atividade não contenciosa que exerce e os bens de que se utiliza para a consecução de seus fins, de natureza pública.”


Convém ressaltar ainda, de que outros importantes institutos do Direito Administrativo como a autarquia, entidade paraestatal, noção de interesse público e de mérito administrativo, fora resultado da influência marcante do direito italiano.


Já do direito alemão houve contribuição a despeito da discricionariedade administrativa e os conceitos jurídicos indeterminados.


Em que pese a importante revolução histórica que teve a Administração Pública brasileira e o Direito Administrativo pátrio, somente com a promulgação da Constituição Federal de 1988 eles adquiriram sua plenitude. Com o advento do Estado Democrático de Direito passam a ter preponderância em suas relações os princípios e valores fundamentais do homem (mesmo que implicitamente contidos na Constituição) e não mais a lei formal. Princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade, razoabilidade, publicidade e mais tarde o da eficiência (introduzido pela Emenda Constitucional 19/98) passaram a ter status constitucional (art. 37 e ss. CF/88).


Nesse sentir, imperioso destacar a definição de Direito Administrativo, exposta por Justen Filho (2005, p. 01):


“O direito administrativo é o conjunto das normas jurídicas de direito público que disciplinam as atividades administrativas necessárias à realização dos direitos fundamentais e a organização e o funcionamento das estruturas estatais e não estatais encarregadas de seu desempenho.”


Por fim, necessário destacar mais uma vez o importante fator introduzido pela Magna Carta de 1988, qual seja, a maior participação do cidadão no controle e gestão da Administração Pública, com inúmeros dispositivos que autorizam essa imediata participação popular frente aos órgãos estatais.


1.2 Reforma do Estado e a Crise do Serviço Público: o Modelo Gerencial


A reforma do Estado fora colocada inicialmente ainda no século XIX (Estado Liberal). Portanto, apesar de sua atualidade, não se trata de movimento novo. Ainda no limiar do século XX começara uma reestruturação da Administração Pública em âmbito mundial.


Exemplo disso, no Brasil, fora à criação de autarquias (instituto do açúcar e do álcool, instituto do café) e empresas estatais (RFFSA – Rede Ferroviária Federal S/A, bancos, indústrias, etc.).


Paralelamente, entretanto, permanecia o modelo burocrático de Administração Pública. Tal modelo permanece até os dias atuais, sendo objeto de muita discussão entre especialistas acerca de sua reforma.


O Estado Social provedor de políticas públicas, fomentador da economia, assistencialista, universal, carece de reformulação imediata. As obrigações assumidas foram tantas que hoje não mais consegue prestar nem mesmo os serviços públicos mais básicos de forma eficiente.


Com o advento da chamada “globalização” essa situação agravou-se.  O Estado burocrático (principalmente o concebido durante o século XX) não tem mais espaço diante da pós-modernidade.


Em que pese à maneira como fora formulado esse modelo burocrático de Administração Estatal (formalista ao extremo, com normas rígidas e procedimentos complexos) atualmente apresenta-se superado. Na época de sua formulação havia sim um fundado receio de arbítrio por parte dos governantes e a influência destes na atividade administrativa.


Havia, nesse sentido, grande controle dos abusos porventura praticados por agentes públicos e políticos.


Ocorre, que a Constituição Federal de 1988 abarcou essa velha concepção de modelo de Estado (burocrático). Em decorrência, repleta de formalismos (muitas vezes desnecessários) e procedimentos complexos. Assim, lhe é imputada a ineficiência como característica fundamental. O Direito Administrativo brasileiro denota bem essa concepção (rescisão unilateral dos contratos administrativos, as cláusulas exorbitantes e outras tantas).


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Outra característica marcante desse modelo é o autoritarismo excessivo do Poder Estatal em face dos administrados. Obviamente, há justificativas para tanto: o Brasil apresenta elevadíssimos índices de corrupção, assim, o formalismo e autoritarismo existentes no Estado representariam garantias à malversação da coisa pública.


Mas uma clara constatação pode ser realizada: se com a Constituição Federal de 1988 o Brasil tornara-se efetivamente um Estado Democrático de Direito não seria contraditório o velho modelo burocrático na Administração Pública?


Nesse diapasão, cabe salientar a explanação de Justen Filho (2005, p. 18 e 19)


“No Brasil, em especial, é imperioso destacar a necessidade de revisão do direito administrativo, que ainda está entranhado de concepções não democráticas, provenientes do passado. A Constituição Federal de 1988 coroou um lento processo de aperfeiçoamento democrático da nação brasileira. Consagrou o Estado Democrático de Direito (…) Apesar disso, a atividade administrativa estatal continua a refletir concepções personalistas de poder, em que o governante pretende imprimir sua vontade pessoal como critério de validade dos atos administrativos e invocar projetos individuais como fundamento de legitimação exercitada”[1].


A administração burocrática implementada no século XIX fora de grande valia, pois rompeu com a administração patrimonialista[2] donde prevalecia o império do arbítrio, típico de regimes como do absolutismo e feudalismo. Assim, nesse contexto histórico a administração burocrática fora necessária e desempenhara importante papel na limitação do poder do soberano sobre os “súditos” e mais tarde administrados.


Com o modelo burocrático a lei passara a imperar, delimitando todos os “passos” dos agentes públicos ao contrário da discricionariedade estatal exacerbada existente no modelo patrimonialista, onde, não raro, havia apropriação da “res pública” por uma minoria de “servidores” amigos do governante.


No entanto, já no fim do século XX (anos 80 e 90), os EUA e Reino Unido lideraram um movimento que objetivava reestruturar a Administração Pública e o Estado Social. Tal ação convencionou-se de neoliberalismo, modelo de forte oposição ao Estado providência, que tinha no Estado subsidiário ou mínimo sua máxima.


Falava-se, mesmo antes, da “crise do Estado” e da “crise do serviço público” como fatores de uma nova reestruturação da Administração Pública. Sua estrutura rígida e demasiadamente controlada pela lei, não mais atingia eficientemente os administrados.


A administração burocrática apresentava-se profundamente desgastada. O formalismo antes necessário para evitar atitudes arbitrárias pelos chefes do Executivo agora “emperrava” a máquina estatal, excessivamente burocrática, por conseguinte, dotada de pouca ou nenhuma eficiência.


Nesse contexto, importante as palavras de Modesto (2005, p. 468 e 469):


“A Administração é cada vez mais dependente do particular, sendo carente não apenas de recursos privados, mas de informação e de colaboração, encontrando-se crescentemente fragilizada em face da multiplicidade e força de interesses em conflito afetados pela própria atividade administrativa e pela dimensão e variedades das demandas que lhe são dirigidas cotidianamente. O aparato público diminui, (…), mas são ampliadas suas responsabilidades, dilatando-se a interferência do Estado tanto na regulação de mercados quanto no plano de fomento das atividades de interesse social. A Administração Pública internacionaliza-se, integrando-se com Administrações de outros Estados soberanos.”


A partir daí, pode-se constatar o surgimento de um novo modelo de Administração Pública, denominado gerencial.  Esse novo modelo propôs o Estado como uma grande empresa, em que os clientes seriam todos os cidadãos, sendo a eficiência, avaliação de desempenho e controle de resultados suas características básicas.


Nessa senda, valiosa definição de administração gerencial explica MAFRA FILHO (2006, p. 03)


“A administração gerencial repousa em descentralizações política e administrativa, a instituição de formatos organizacionais com poucos níveis hierárquicos, flexibilidade organizacional, controle de resultados, ao invés de controle, passo a passo, de processos administrativos, adoção de confiança limitada, no lugar de desconfiança total, em relação aos funcionários e dirigentes, e por último, uma administração voltada para o atendimento do cidadão e aberta ao controle social.”


Conforme o mesmo autor, o modelo gerencial de administração da coisa pública significa utilizar parâmetros de eficiência de acordo com o quase-mercado ou concorrência administrada (2006). A administração gerencial caracteriza-se por uma maior participação da iniciativa privada ou entidades não-estatais na prestação de serviços públicos.


Cabe ressaltar que a primeira tentativa de implantação desse modelo fora anterior às idéias neoliberais do final do século XX. Em 1967, sob o regime militar, fora editado o Decreto-Lei nº 200 que previa a “Reforma do Estado”, contendo inúmeras disposições ligadas ao modelo gerencial de gerir a coisa pública. Contudo, o regime de exceção não era adequado ao implemento de tal inovação, sendo provável responsável pelo fracasso desse novo modelo, pois o autoritarismo e falta de transparência são totalmente incompatíveis com o modelo gerencial.


No plano legislativo, dois importantes diplomas foram responsáveis pela alteração do modelo da Administração Pública: o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado[3] em 1995 e a Emenda Constitucional nº 19 de 1998.


Ambos positivaram a intenção de uma nova Administração Pública para o Brasil.


Na administração gerencial o controle é realizado “a posteriori”, diferentemente da administração burocrática em que o controle era exercido “a priori”, através de pesados procedimentos baseados na desconfiança perante os agentes públicos.


Denota-se a escolha do legislador infra-constitucional assim como do poder constituinte derivado de, definitivamente dotar a Administração Pública de novos institutos e atributos, a fim de proporcionar maior participação popular na tomada de decisões, menos autoritarismo estatal, técnicas empresariais, dentre tantas outras inovações trazidas a lume.


Desse modo, surgem as agências reguladoras (estado regulador), agências executivas, organizações da sociedade civil, fundações de apoio, organizações sociais e contrato de gestão, concessões de serviço público na modalidade de parcerias público-privadas dentre outros institutos que auxiliam o poder estatal.


A despeito desses dois últimos institutos, o contrato de gestão e organizações sociais e, parcerias público-privadas serão tratadas proposições e questionamentos na segunda parte desse trabalho.


2. CONTRATO DE GESTÃO E PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS


2.1 Contrato de Gestão, Organizações Sociais (Lei nº 9.637/98) e os Princípios da Legalidade e da Licitação e no Direito Brasileiro (art. 37, XXI e § 8º da CF/88).


O contrato de gestão constitui um dos novos institutos incorporados ao Direito Administrativo brasileiro. Sua origem está no direito francês, passando por várias denominações e estágios (contratos de programa, contratos de empresa, contratos de plano e contratos de objetivos), mas com as mesmas características fundamentais, o maior controle dos resultados e a maior eficiência da máquina estatal.


De acordo com Di Pietro apud Figueiredo (2004, p. 173):


“O contrato de gestão foi idealizado no direito francês como  meio de controle administrativo ou tutela sobre as suas empresas estatais. Mas, antes disso, o contrato de gestão já era utilizado como meio de vincular a programas governamentais determinadas empresas privadas que recebiam algum tipo de auxílio por parte do Estado. Mais recentemente, os contratos de gestão passaram a ser celebrados com os próprios da Administração Direta, portanto, com entes sem personalidade jurídica própria; (…)”


Trata-se de instrumento que possibilita maior flexibilidade aos órgãos públicos. Podem ser realizados, assim, acordos ente órgãos da administração direta com a indireta e ainda com o parceiro privado e de entidades não-estatais ou paraestatais, sem fins lucrativos (organizações sociais, sobretudo), mas que possuam finalidade pública ou visem à prestação de um serviço público.


Cabe salientar, que o contrato de gestão promovido entre entes da administração direta (sem personalidade jurídica) não seria possível, pelo menos sob essa mesma denominação. Tratar-se-ia, como bem diz Celso Antonio Bandeira de Mello[4] (2005) e Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2006) de convênios e não contratos. Contudo, por força do disposto no art. 37, § 8º da Lei Maior, admite Bandeira de Mello, a possibilidade de lei futura regular “contratos” de gestão entre entidades da administração indireta.


A introdução do contrato de gestão no ordenamento jurídico pátrio fora mediante a edição de variados decretos, tais como o Decreto nº 137 de 1991 (Programa de Gestão de Empresas Estatais) que disciplinava a matéria em âmbito federal.


Entretanto, não tal disciplina não obteve maior repercussão no âmbito da Administração Pública brasileira, provavelmente devido à fragilidade de sua legitimação legal (Decretos – menor controle do legislativo, atenuando a saudável política do “check and balances” ou “freios e contrapesos” elaborada por MONTESQUIEU[5]).


Nessa esteira, é oportuno o ensinamento de DI PIETRO apud BITTENCOURT (2006, p. 01)


“tendo sido a matéria disciplinada apenas por meio de decreto, os poucos contratos de gestão na esfera federal acabaram sendo impugnados pelo Tribunal de Contas, já que as exigências de controle ou decorrem da própria Constituição ou de leis infraconstitucionais, não podendo ser derrogadas por meio de decreto ou de contrato.”


Conforme a mesma administrativista, os primeiros contratos de gestão celebrados no direito brasileiro foram entre a Companhia Vale do Rio Doce – CVRD, e a Petróleo Brasileiro S.A – Petrobrás sob os auspícios do Decreto nº 137/91 que instituiu o Programa de Gestão das Empresas Estatais e o Serviço Autônomo Associação das Pioneiras Sociais[6].


Maria Sylvia Zanella Di Pietro ressalta a dificuldade de adaptar-se o instituto do contrato de gestão à realidade do Direito Administrativo brasileiro, pois ao contrário daquele – baseado essencialmente nas decisões do Conselho de Estado e demais órgãos de jurisdição administrativa – o modelo pátrio mostrara-se rígido e com controles que impediriam sua eficácia.


Mas somente com a introdução do inciso XXI ao art. 24 da Lei nº 8.666/93 fora que o contrato de gestão assumira maior relevo nas relações tomadas no âmbito administrativo. Para tanto, necessário a transcrição do referido dispositivo:


“Art. 24- É dispensável a licitação: (…);


XXIV – para a celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais, qualificadas no âmbito das respectivas esferas de governo, para atividades contempladas no contrato de gestão”. (grifei)


A Lei nº 9.637 de 15 de maio de 1998 tratou da qualificação das entidades como organizações sociais, a criação do Programa Nacional de Publicização (forma disfarçada de privatização), a extinção dos órgãos e entidades que menciona e a absorção de suas atividades por organizações sociais. Com o advento da mencionada norma, deu-se uma positivação mais detalhada acerca do contrato de gestão (arts. 5º a 7º).


Segundo essa lei, organizações sociais são pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde (art. 1º). Denota-se, claramente, o intuito do legislador de “privatizar” o maior número possível de atividades ou serviços públicos não-exclusivos do estado.


Contudo, tais entidades se submetem ao controle pela Administração Pública e pelo Tribunal de Contas, pois recebem incentivos e recursos públicos.


Assim dispõe a Lei nº 9.637 sobre o contrato de gestão na Administração Pública brasileira:


“Seção III


Do Contrato de Gestão


Art. 5o Para os efeitos desta Lei, entende-se por contrato de gestão o instrumento firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada como organização social, com vistas à formação de parceria entre as partes para fomento e execução de atividades relativas às áreas relacionadas no art. 1o.


Art. 6o O contrato de gestão, elaborado de comum acordo entre o órgão ou entidade supervisora e a organização social, discriminará as atribuições, responsabilidades e obrigações do Poder Público e da organização social.


Parágrafo único. O contrato de gestão deve ser submetido, após aprovação pelo Conselho de Administração da entidade, ao Ministro de Estado ou autoridade supervisora da área correspondente à atividade fomentada.


Art. 7o Na elaboração do contrato de gestão, devem ser observados os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, economicidade e, também, os seguintes preceitos:


I – especificação do programa de trabalho proposto pela organização social, a estipulação das metas a serem atingidas e os respectivos prazos de execução, bem como previsão expressa dos critérios objetivos de avaliação de desempenho a serem utilizados, mediante indicadores de qualidade e produtividade;


II – a estipulação dos limites e critérios para despesa com remuneração e vantagens de qualquer natureza a serem percebidas pelos dirigentes e empregados das organizações sociais, no exercício de suas funções.


Parágrafo único. Os Ministros de Estado ou autoridades supervisoras da área de atuação da entidade devem definir as demais cláusulas dos contratos de gestão de que sejam signatários”. (sem grifos no original)


Em que pese o intuito de modernização e de busca pela eficiência na Administração Pública, o contrato de gestão vem sofrendo inúmeras críticas por parte da doutrina.  Pois, o art. 12, caput, § 3º e art. 13 da Lei nº 9.637/98 estabelecem que recursos orçamentários e bens públicos poderão ser destinados para o cumprimento do contrato de gestão, inclusive com a dispensa da licitação pública (art. 24, XXIV, da Lei nº 8.666/93, alterado pela Lei nº 9.648/98). E ainda, de acordo com o art. 14 seria possível a cessão de servidores públicos às organizações sociais (pagos pelo Estado!).


Dessume-se grandes riscos de violação ao princípio da legalidade, insculpido no art. 37, caput, da Constituição Federal de 1988.


Diante do disposto na lei sobre organizações sociais, BANDEIRA DE MELLO (2005) entende existir flagrante inconstitucionalidade, devido à burla à exigência de concurso público para admissão de pessoal e licitação na contratação de entidades privadas, dentre outras.


Certamente a Lei nº 9.637/98 prevê responsabilização das organizações sociais perante todos os atos que pratiquem, até mesmo a responsabilidade solidária em caso de irregularidade ou ilegalidade praticada por seus agentes privados. Entretanto, sua aplicação em um país demasiadamente corrupto parece um tanto utópica.


Seriam, assim, esses contratos alheios ao regime publicístico típico dos contratos administrativos em geral? Tudo indica que não.


O ensinamento de Di Pietro (2006) expõe com clareza a impossibilidade da derrogação do regime jurídico-administrativo (normas de ordem pública) nos contratos de gestão, pois apesar de os serviços serem prestados por entidades privadas (organizações sociais) continuam a ser públicos, portanto, sujeitos aos ditames constitucionais.


Segundo a autora: “fica muito nítida a intenção do legislador de instituir um mecanismo de fugir ao regime jurídico de direito público a que se submete a Administração Pública”.


O ponto mais polêmico reside na hipótese de dispensa de licitação prevista pela Lei nº 9.637/98 e a alteração do art. 24, XXIV, Lei nº 8.666/93 pela Lei nº 9.648/98.


Questiona-se, dessa forma, se a escolha da organização social seria decisão totalmente discricionária do Poder Público ou deveria obedecer ao princípio constitucional da licitação, próprio de todo contrato administrativo?


A doutrina majoritária e a jurisprudência entendem não ser discricionária essa escolha, devendo o administrador público obedecer ao princípio da licitação nesse caso. Assim, decidiu o Tribunal de Contas da União (RDA, 201/311-319) e Supremo Tribunal Federal[7] pela observância obrigatória de licitação na contratação de organizações sociais em homenagem ao princípio da isonomia e legalidade.


No mesmo sentido pensa Justen Filho (2004, p. 266) que assevera:


“O contrato de gestão não é espécie de porta aberta para escapar das limitações do direito público. Portanto e até em virtude da regra explícita do art. 37, inc. XXI, da CF/88, o Estado é obrigado a submeter seus contratos de gestão ao princípio da prévia licitação.”


Segue o administrativista:


“Deve partir-se do ponto de vista de que, havendo possibilidade de competição, será exigível a licitação. A inexigibilidade[8] poderá derivar da ausência de pluralidade de potenciais interessados em participar da contratação. Mas, para tanto, será imperioso que o Estado divulgue sua intenção de promover contratos de gestão com determinado objeto. Não é possível que as contratações de gestão se façam-se às ocultas, sem cumprimento do requisito da publicidade”.


A questão fundamental reside na possibilidade de uma lei ordinária (Lei nº 9.648/98) alterar outra lei ordinária (Lei nº 8.666/93), introduzindo nova possibilidade de dispensa de licitação no ordenamento jurídico pátrio. Aparentemente, não haveria qualquer conflito, pois uma lei ordinária pode alterar outra de mesma hierarquia. No entanto, essa alteração parece ferir princípios constitucionais altamente relevantes, como da legalidade, isonomia, indisponibilidade de interesse público e da licitação prévia.


Sobretudo, hoje, na era da constitucionalização do direito, mais principiológico do que legislado, parece contraditória a inclusão do inciso XXIV ao art. 24 da Lei nº 8.666/93. Assim, que disposição deve prevalecer? Os princípios informadores ou a lei? Certamente que a primeira opção e esse é o entendimento majoritário.


Ademais, conforme salienta Bandeira de Mello (2005, p. 211): “É evidente (…) que nem por ato unilateral da Administração, nem por contrato, poderiam ser modificadas disposições de lei.”


Para o administrativista (2005, p. 221) a Lei nº 9.637/98 padece de sérias inconstitucionalidades tais como: receber bens públicos móveis e imóveis, recursos orçamentários e até servidores custeados pelo Estado. Finaliza o mestre: “não necessita demonstrar habilitação técnica e econômica-financeira de qualquer espécie. Basta a concordância do Ministro (de Estado) da área”.


Prossegue Bandeira de Mello (2005, p. 222): “Trata-se, pois, de outorga de discricionariedade literalmente inconcebível, até mesmo escandalosa, por sua desmedida amplitude, e que permitirá favorecimentos de toda espécie.”


Assim, seu entendimento é pelo respeito aos princípios constitucionais da isonomia, legalidade e da prévia licitação. Ao contrário de Marçal Justen Filho, que considera o contrato de gestão como sucedâneo do regime de concessões estabelecido pela Lei nº 8.987/95, Celso Antônio Bandeira de Mello discorda categoricamente de tal afirmação.


Este (2005, p. 223) é mais rígido expondo que: “os serviços trespassáveis a organizações sociais são serviços públicos insuscetíveis de serem dados em concessão ou permissão”. Logo como sua prestação se constitui em “dever do Estado”, conforme artigos citados (205, 206 e 208), este tem que presta-los diretamente.


O incipiente contrato de gestão representa assim novo instituto a serviço de uma reformulação da Administração Pública brasileira. Contudo, através dos argumentos já despendidos anteriormente, tal nova modalidade de contrato administrativo ainda carece de melhor análise, principalmente acerca de suas possíveis inconstitucionalidades.


2.2 As “Garantias” Previstas na Lei 11.079/04 e suas (In) Constitucionalidades


A lei de Parcerias Público-Privadas, no Brasil, fora editada em 30 de dezembro de 2004 sob número de 11.079, introduzindo variadas novidades legislativas ao ordenamento jurídico brasileiro. Convém fazer aqui um breve relato a despeito dessa nova modalidade de licitação pública. As leis nº 8.666/93 (Licitações e contratos administrativos) e nº 8.987/95 (concessões e permissões de serviços públicos) serão fonte subsidiária da nova norma em apreço. A nova lei de PPP está em consonância com o art. 22, XXVII da Constituição Federal (normas gerais de licitação e contratação).


Trata-se, de influência do commow law (direito anglo-saxão) implementado em diversos países do mundo, em especial, Inglaterra (origem), Portugal e Chile, dentre outros. A experiência nesses países apresentou aspectos positivos, mas também inúmeros fatores negativos, que, entretanto, não serão objeto de análise no presente estudo.


Maria Sylvia Zanella Di Pietro entende tratar-se de processo de privatização disfarçado, fuga do regime publicístico, fato corriqueiro enfrentado pelo Novo Direito Administrativo brasileiro[9]. Apesar disso, a autora admite haver inúmeras semelhanças entre o regime de PPP e o das concessões de serviço público, previstos na Lei nº 8.987/95. Assim, tal modalidade não seria propriamente uma inovação no âmbito legislativo pátrio, mas conseqüência lógica do processo de globalização e convergência entre público e privado (ao contrário do antigo Direito Administrativo que separava nitidamente o público do privado).


Autores como Gustavo Henrique Justino de Oliveira (2005) consideram que o modelo de contratação de PPP seria conseqüência do novo Estado Regulador (fiscalizador) e do Estado Contratual (que utiliza-se de agentes e recursos privados para fomentar a economia). Para o autor, apesar do Estado prestador ter desaparecido, subsiste o dever estatal de promover o desenvolvimento econômico, a fim de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, conforme estabelece o art. 5º, § 2º da Lei Maior.


De acordo com a teoria clássica dos contratos administrativos o Estado deve sempre buscar o interesse público em suas relações. Assim, para o Direito Administrativo, a estipulação de cláusulas exorbitantes seria legitimada diante desse princípio irrevogável pela Administração Pública. Contudo, a evolução do Direito Administrativo começa a admitir um nivelamento das partes.


Nesse sentido, García de Enterría e Ramon Fernandez apud Oliveira (2005, p. 103): “não é possível ignorar que hodiernamente a ‘Administração negocia e que a negociação converteu-se em um instrumento imprescindível para a tarefa de administrar”. (sem grifos no original)


De acordo com o art. 2º da Lei em comento, Parceria Público-Privadas consiste no contrato administrativo de concessão, na modalidade patrocinada ou administrativa.


O § 1º desse mesmo artigo assim define: “Concessão patrocinada é a concessão de serviços públicos ou de obras públicas de que trata a Lei nº 8.987 de 13 de fevereiro de 1995, quando envolver, adicionalmente à tarifa cobrada dos usuários contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado” e no § 2º dispôs que: “Concessão administrativa é o contrato de prestação de serviços de que a Administração seja usuária direta ou indireta, ainda que envolva execução de obra ou fornecimento e instalação de bens”. (grifei)


No art. 4º da Lei nº 11.079/04 (PPP) há estipulação de uma série de diretrizes a serem seguidas tanto pelo Poder Público bem como pelo parceiro privado: I – eficiência no cumprimento das missões de Estado e no emprego dos recursos da sociedade; II – respeito aos interesses e direitos dos destinatários dos serviços e dos entes privados incumbidos da sua execução; III – indelegabilidade das funções de regulação, jurisdicional, do exercício do poder de polícia e de outras atividades exclusivas do Estado; IV – responsabilidade fiscal na celebração e execução das parcerias; V – transparência dos procedimentos e das decisões; VI – repartição objetiva de riscos entre as partes; VII – sustentabilidade financeira e vantagens socioeconômicas dos projetos de parceria. (grifei)


Já no art. 5º da mesma lei diz que: VII – os critérios objetivos de avaliação do desempenho do parceiro privado; VIII – a prestação, pelo parceiro privado, de garantias de execução suficientes e compatíveis com os ônus e riscos envolvidos, observados os limites dos §§ 3o e 5o do art. 56 da Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, e, no que se refere às concessões patrocinadas, o disposto no inciso XV do art. 18 da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995; IX – o compartilhamento com a Administração Pública de ganhos econômicos efetivos do parceiro privado decorrentes da redução do risco de crédito dos financiamentos utilizados pelo parceiro privado; § 1o As cláusulas contratuais de atualização automática de valores baseadas em índices e fórmulas matemáticas, quando houver, serão aplicadas sem necessidade de homologação pela Administração Pública, exceto se esta publicar, na imprensa oficial, onde houver, até o prazo de 15 (quinze) dias após apresentação da fatura, razões fundamentadas nesta Lei ou no contrato para a rejeição da atualização. (sem grifos no original)


Conclui-se que, esses contratos, teriam vários dispositivos constantes na lei que limitam a margem de discricionariedade do administrador público com isso garantindo maior respeito aos ditames constitucionais (p.ex: responsabilidade fiscal – art. 4º, IV – repartição objetiva dos riscos e sustentabilidade financeira – art. 4º, VI e VII). Entretanto, outros vários dispositivos denotam uma outorga desmedida de discricionariedade ao agente público nas relações travadas com particulares (p.ex: atualização automática dos valores contratuais sem necessidade de homologação pela Administração Pública – art. 5º, § 1º). Mister salientar que, a Lei de PPP vem sofrendo pesadas críticas da doutrina, principalmente no que diz respeito às inovações introduzidas pelo novel instituto, muitas delas suspeitas de ilegais e até mesmo inconstitucionais.


Em seu art. 6º há previsão da contraprestação da Administração Pública ao parceiro privado, dentre outros: I – ordem bancária; II – cessão de créditos não tributários; III – outorga de direitos em face da Administração Pública; IV – outorga de direitos sobre bens públicos dominicais; V – outros meios admitidos em lei.


No entanto, o ponto de maior divergência reside exatamente nas disposições constantes do art. 8º da Lei nº 11.079/04, as chamadas “garantias” do contrato de Parceria Público-Privada. São as seguintes: I – vinculação de receitas, observado o disposto no inciso IV do art. 167 da Constituição Federal; II – instituição ou utilização de fundos especiais previstos em lei; III – contratação de seguro-garantia com as companhias seguradoras que não sejam controladas pelo Poder Público; V – garantia prestada por organismos internacionais ou instituições financeiras que não sejam controladas pelo Poder Público; V – garantias prestadas por fundo garantidor ou empresa estatal criada para essa finalidade; VI – outros mecanismos admitidos em lei.


Como se depreende, existem grandes inovações introduzidas pela lei de PPP, muitas delas de constitucionalidade duvidosa e possíveis afronta a outras normas de direito público como a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/00) e Lei de Licitações e Contratos administrativos (Lei nº 8.666/93). O estudo de cada uma das garantias mostra-se rico no campo doutrinário e legislativo, contudo, nesse breve estudo será objeto de análise duas das principais garantias do Poder Público ao parceiro privado.


2.2.1 Vinculação de Receitas e Art. 167, IV, CF/88 e Instituição de Fundos Especiais


A Lei nº 11.079/04 ou lei de PPP estipulou uma série de garantias do Poder Público ao parceiro privado. Dentre elas, destacam-se as dos incisos I e II do art. 8º, que prevêem a vinculação de receitas e instituição de fundos especiais como forma de pagamento.


Conforme ensina Harada apud Di Pietro (2005, p. 174)


“Com relação à vinculação de receitas e à instituição de fundo previstas nos incisos I e II do art. 8º (…) Entende o jurista (Kiyoshi Harada) que os dois incisos são inconstitucionais, por infringirem o art. 167, IV, da Constituição. No que diz respeito à vinculação de receita, o dispositivo constitucional prevê algumas exceções, dentre elas a referente à ‘prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no artigo 165, § 8º’. Vale dizer que é possível a vinculação de receita de impostos para prestar garantias apenas no caso de operações de crédito por antecipação de receita.” (grifei)


Para Harada[10]:


“O legislador ordinário partiu da equivocada premissa de que, respeitada a vedação do art. 167, IV da CF, restrita à vinculação da receita de impostos, todas as demais receitas públicas poderiam ser vinculadas para garantia de quaisquer obrigações pecuniárias contraídas pelo poder público.  Nada mais absurdo. Em primeiro lugar, as garantias mencionadas no texto constitucional referem-se exclusivamente às operações de crédito por antecipação de receita. Essas operações de crédito, previstas no § 8º do art. 165 da CF, conforme escrevemos, “constituem uma modalidade de empréstimo de curto prazo a serem devolvidos no mesmo exercício financeiro. Para tanto a Constituição até abre exceção ao princípio da vedação da vinculação do produto de arrecadação de impostos a órgãos, fundos ou despesas, permitindo a utilização de receitas futuras como instrumento de garantia nas ´operações de crédito por antecipação de receitas´ (art. 167, IV)” (3). Logo, é o próprio texto excepcional que veda a prestação de garantias para outros fins. Atualmente, as operações de crédito por antecipação de receitas (AROs) só podem ser realizadas nos estritos termos do art. 38 da Lei de Responsabilidade Fiscal, Lei Complementar nº 101/2000.”


Em segundo lugar, a expressão ´prestação de garantia´ utilizada no texto da Carta Política não tem o sentido emprestado pelo legislador infraconstitucional, que confundiu noções de direito público com noções de direito privado. Na verdade, nenhum tipo de receita pública pode ser dada em garantia no sentido regulado pelo Código Civil, como veremos mais adiante.  O gênero receita pública, desdobra-se em três espécies: (a) receita originária (a patrimonial mobiliária e imobiliária, e, a industrial, comercial e de serviços); (b) receita tributária (as taxas, os impostos, a contribuição de melhoria, as contribuições sociais de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas; as contribuições sociais de seguridade social e o empréstimo compulsório); (c) receita creditícia (o crédito público ou a dívida pública, interna e externa).            


A vedação constitucional do art. 167, IV diz respeito à vinculação da receita de impostos, subespécie do gênero receita pública, no pressuposto de que o produto da arrecadação de imposto destina-se ao custeio de serviços públicos gerais, assim entendidos, aqueles desenvolvidos pelo Estado debaixo do regime jurídico de direito público. Daí, a divisão doutrinária dos tributos, em vinculados e desvinculados da atuação específica do Estado. Os impostos pertencem à categoria de tributos desvinculados de qualquer atuação específica do Estado, (4) ao passo que, a taxa, por exemplo, é tributo vinculado à atuação específica do Estado. O imposto é tributo de destinação extrínseca, ao passo que, as demais espécies tributárias são tributos de destinação intrínseca, isto é, o produto de sua arrecadação é vinculado à despesa que fundamentou sua instituição. Por isso, a utilização de receitas do INSS, por exemplo, para construção de estradas, como já aconteceu, caracteriza gravíssimo desvio acarretando sanções políticas, administrativas e penais.


Deveras, o direcionamento do produto de arrecadação tributária, principal e regular fonte de receita pública, dá-se por meio da Lei Orçamentária Anual, aprovada pela Casa do Povo (art. 165, III e §§ 5º, 6º, 7º e 8º da CF). Por isso, o princípio da legalidade das despesas públicas é corolário do princípio da legalidade tributária. Tanto a receita compulsória, como a despesa pública hão de ser previamente aprovadas pelo povo, por meio do Parlamento. Não há como o legislador ordinário, fora a Lei Orçamentária Anual, vincular receitas públicas estimadas à esta ou àquela finalidade, com total esvaziamento das funções, política e econômica do Orçamento Público, verdadeiro instrumento de exercício da cidadania à medida em que o povo decide onde, quanto e como gastar.


Desse modo, finaliza o tributarista apud Di Pietro (2006,  p. 174) entende que:


“A entidade política mutuante é obrigada a manter, permanentemente, na lei orçamentária anual dotação específica para garantia do pagamento da dívida, enquanto esta perdurar. (…) não há, portanto, possibilidade jurídica de a receita pública em geral garantir obrigações pecuniárias contraídas pelo Poder Público em face deste ou daquele particular. Do contrário, violados restariam os princípios da impessoalidade e da moralidade, insertos no art. 37 da CF e que são de observância impositiva, nos precisos termos do art. 100, caput, da Carta Política”. (sem grifos no original)


O assunto em pauta é bastante tormentoso, existindo enorme divergência na doutrina quanto à (in) constitucionalidade dos referidos dispositivos da nova Lei de PPP.  Por fim, cabe destacar os dizeres de JUSTEN FILHO (2004, p. 41) que definindo fundos especiais diz que estes são “certas rubricas orçamentárias ou mera destinação de verbas”, podendo apresentar-se como fundo-sujeito ou fundo-objeto. Os primeiros possuindo personalidade jurídica própria, já o segundo seria mero conjunto de bens e recursos.


Segundo Blanchet (2005), os fundos especiais aludidos pela Lei nº 11.079/04 se enquadrariam na denominação de “fundo-objeto”, portanto, sem personalidade jurídica, seja de direito público seja de direito privado. Dessa forma, tal autor entende constitucional tal norma.


Com relação ao inciso II do art. 8º da Lei nº 11.079 haveria sérios indícios de inconstitucionalidade de sua redação. Esse é o entendimento de HARADA apud DI PIETRO (2006, p. 174):


“(…) Kiyoshi Harada afirma ser também inconstitucional porque “atenta contra os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade, da moralidade e da publicidade (art. 37 da CF); dribla o art. 165, § 9º, II, da CF e o art. 36 do ADCT; infringe o art. 167, IV, da CF; contraria o princípio da quantificação dos créditos orçamentários inserto no art. 167, VII; violenta o princípio da fixação prévia das despesas que está previsto no art. 167, II. Ademais, esvazia em parte, o conteúdo dos arts. 70 e 71 da CF, que cometem ao Congresso Nacional a importantíssima missão de fiscalizar e controlar os gastos públicos, ferindo de morte o princípio da legitimidade que deve presidir o controle sob o prisma da legalidade e da economicidade da execução orçamentária e financeira”.”


Diametralmente oposta é a posição de Fernão Justen de Oliveira (2005) que entende não somente constitucionais as garantais prestadas pelo Poder Público, bem como necessárias à atratividade e viabilidade econômica dos futuros projetos  de Parcerias Público-Privadas (ressalta-se aqui que o parceiro privado somente começa a receber dividendos do Estado após a conclusão do projeto de PPP!).


Nessa senda, resta evidente o grande embate promovido pela edição da Lei nº 11.079/04. Assim, convém explicitar os dois entendimentos básicos na doutrina acerca da nova Lei. O primeiro posicionamento consiste naqueles que entendem a Lei de PPP como legalmente válida e constitucional, possuindo, segundo esses autores, variados dispositivos que protegem a res pública (p.ex: compartilhamento dos riscos, observância da Lei de Responsabilidade Fiscal, etc.), talvez mais do que nos típicos contratos administrativos. Já a segunda posição diz ser a Lei de PPP uma afronta à Lei de Licitações e Contratos administrativos, à LRF e ainda inconstitucional em diversos dispositivos (tais como o que prevê a vinculação de receitas, pois burlaria o art. 167, IV e art. 100 ambos da CF/88).


2.2.2 Fundo Garantidor de Parcerias Público-Privadas (FGP – art. 16, caput, Lei nº 11.079) e o Regime Constitucional de Precatórios (art. 100, CF/88).


O art. 16 da Lei nº 11.079/04 previu a instituição de Fundo Garantidor de Parcerias Público-Privadas (FGP) que terá por finalidade prestar garantia de pagamento de obrigações pecuniárias assumidas pelos parceiros públicos federais em virtude das parcerias de que trata a lei de PPP.


Seu § 1º dispõe que o FGP seria de natureza privada e com patrimônio próprio, separado do patrimônio dos cotistas, sujeito, assim, a direitos e obrigações próprias.


Já o art. 17 da mesma norma estabelece que o FGP será criado, gerido e representado judicial e extrajudicialmente por instituição financeira controlada, direta e indiretamente, pela União e em respeito ao inciso XXII do art. 4º da Lei nº 4.595/64.


Fernão Justen de Oliveira (2005) entende que a redação do art. 16, § 1º afastaria o regime de precatórios constante do art. 100 da Constituição Federal de 1988. O mesmo pensa Carlos Ari Sundfeld (2005) que considera FGP responsável imediato, como pessoa de direito privado, pelo adimplemento de suas obrigações, sujeitando-se à execução judicial de seus débitos pelo regime comum do Código de Processo Civil (art. 18, § 7º). Para esse publicísta, o patrimônio do Fundo Garantidor de PPP é composto de bens privados, integralizados pelos sócios quotistas, depois de atendidas as exigências de desafetação dos bens públicos (art. 16, § 7º). Assim, para esses autores não haveria afronta ao art. 100 da CF/88 (regime de precatórios para pagamento da dívida pública).


Completa Sundfeld (2005, p. 43):


“Em suma, o FGP é nova espécie de pessoa jurídica governamental federal, concebida para fins específicos, mas enquadrada no gênero “empresa pública”, pois seu capital é inteiramente público, subscrito pela União, suas autarquias e fundações públicas, no limite expressamente previsto pela lei (art. 16, caput). Sua instituição observou inteiramente a exigência do art. 37, XIX, da CF, tendo sido autorizada pela Lei de PPPs, com todos os requisitos necessários.”


A justificativa para o oferecimento de tantas “garantias” do Poder Público para o parceiro privado nesses contratos de Parceria Público-Privada, para esse jurista e tantos outros, é justificável diante de vultosos investimentos despendidos. Alegam que isso é inegável. Entretanto, tal afirmação não pode ser beneplácito para ilegalidades, irregularidades ou mesmo inconstitucionalidades.


Em sentido oposto posiciona-se di pietro (2005, p. 177) que assim assevera:


“Ocorre que o fundo, para ser assim considerado e existir validamente, tem que ser criado por lei que indique as receitas que ficarão vinculadas ao mesmo. O fundo é uma receita específica que a lei afasta do caixa único e vincula a um fim determinado. Sem receita vinculada, o fundo não tem existência legal. Não há possibilidade de ser o fundo criado por instituição financeira, ainda que esta integre a Administração Indireta. (…) Também é juridicamente inaceitável que autarquias e fundações públicas em geral,  não identificadas na lei, possam destinar uma parte de sua receita e de seu patrimônio à constituição desse fundo. As entidades da Administração Indireta estão sujeitas ao princípio da especialidade, que significa a vinculação aos fins para os quais foram instituídas. Elas não podem destinar parcelas de sua receita ou de seu patrimônio a finalidade diversa, sem autorização legislativa específica. (…) Sem autorização legislativa específica, essa destinação caracterizaria ato de improbidade administrativa definido no artigo 10 da Lei nº 8.429, de 2-6-92. Há que se lembrar, também, que essa destinação não poderá fazer-se com infringência à Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 4-5-200) exatamente pelo fato de tratar-se de lei complementar a que as leis ordinárias se sujeitam hierarquicamente.”


De acordo com a administrativista, apesar da lei expressamente dizer que o Fundo Garantidor de Parcerias Público-Privadas possui natureza privada, seu patrimônio é constituído de receitas e bens públicos oriundos da União, suas autarquias e fundações públicas. Assim, tais receitas e bens não perderiam sua natureza pública. E ainda, tais bens seriam impenhoráveis por força do art. 100 da Lei Maior.


Portanto, para parte considerável da doutrina, dentre eles nomes como Di Pietro e Bandeira de Mello consideram que a nova Lei nº 11.079/04 estaria fulminada de inconstitucionalidades. Em que pese a valiosa intenção do legislador ordinário em oferecer maiores atrativos à iniciativa privada para a consecução do projetos de PPP (chegando a instituir verdadeiras normas de direito privado na Lei em comento), isso não pode significar a derrogação total do regime público à que a Administração Pública brasileira deve estar submetida. A busca pelo desenvolvimento como direito fundamental da população não deve passar por cima de outros direitos e garantias fundamentais (como os da igualdade e da legalidade) encartados na Lei Maior.


2.3 A “Arbitragem” nos Contratos de Parcerias Público-Privadas e as Prerrogativas do Poder Público: o Princípio da Indisponibilidade do “Interesse Público”.


A clássica teoria geral dos contratos administrativos estabelece que em tais contratos a Administração Pública deve sempre buscar o interesse público em suas contratações. Existem leis e princípios como o da supremacia e indisponibilidade do interesse público que corroboram esse entendimento, admitindo, inclusive, a estipulação de cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos. É o chamado regime jurídico de direito público, essência do Direito Administrativo clássico.


Haveria justificativa, assim, para um tratamento desigual nesses contratos, onde o Poder Público apresenta-se supremo diante do particular contratante. Muito embora essas justificativas possuam razão de existir, hodiernamente em face do Novo Direito Administrativo, devem ser “relativizadas”, conforme doutrina mais abalizada.


Problema fundamental que se apresenta consiste na determinação, hoje, do que seria interesse público. Certamente, sua conotação sofrera inevitáveis alterações.


 Nesse sentido, justifica Justen Filho (2005, p. 35 e 36):


O agente (público) é um servo do interesse público – nessa acepção, o interesse público é indisponível. Essas concepções são relevantes, mas propiciam problemas insuperáveis, relacionados com a ausência de instrumento jurídico para determinar o efetivo interesse público. Isso dá margem a arbitrariedades ofensivas à democracia e aos valores fundamentais. (…) Na atualidade, o exercente do poder político refugia-se no princípio da supremacia do interesse público para evitar o controle ou o desfazimento de atos defeituosos, violadores de garantias constitucionais. Mais ainda, a teoria da supremacia e indisponibilidade do interesse público não esgota o regime de direito público, que comporta outros princípios ainda mais fundamentais.


Para o publicista, interesse público é um conceito jurídico indeterminado de difícil definição, portanto, passível de desvio e abuso pelo administrador público. Marçal Justen Filho (2005) argumenta que o que chama-se corriqueiramente de interesse público em um Estado Democrático de Direito deve estar de acordo com os direitos fundamentais dos cidadãos (tanto da maioria bem como da minoria). Distingue “interesse do aparato estatal”, “interesse da Administração Pública” e “interesse da sociedade”. Mesmo este último não representaria exatamente o interesse público atual.


Na verdade, segundo Cassese apud Justen Filho (2005, p.43): “não existe o interesse público, mas os interesses públicos, no plural”.  Na sociedade moderna existiriam diversos interesses públicos todos supremos e indisponíveis, podendo haver até mesmo conflito entre eles (assim como acontece entre direitos e garantias fundamentais no Direito Constitucional).


De acordo com o proposto por Marçal Justen Filho (2005) a “supremacia do interesse público” não raro serve aos maus governantes como modo de justificação de arbitrariedades e abusos por eles cometidos. Por isso, ressalta que a tese da supremacia e da indisponibilidade do interesse público deve estar acompanhada da diferenciação entre interesse público primário (da coletividade, sociedade, indivíduos) do secundário (da Administração Pública, do Estado). Assim, propõe a mudança de “interesse público” para “interesses coletivos”.


Conforme Juares Freitas já dizia, justen filho (2005, p. 45) complementa: “A atividade administrativa do Estado Democrático de Direito subordina-se, então, a um critério fundamental que é anterior à supremacia do interesse público. Trata-se da supremacia e indisponibilidade dos direitos fundamentais”.


Tratar-se-ia, segundo Marçal, da “personalização” do Direito Administrativo, mais consensual, mais democrático, menos autoritário, que rejeita a supremacia da burocracia sobre a sociedade civil. Enfiam, mais próximo dos valores que convergem na valorização da dignidade da pessoa humana, base de todo Estado democrático moderno.


O art. 11, III da Lei nº 11.079/04 dispõe expressamente que a licitação de Parcerias Público-Privadas poderá submeter-se ao: III – emprego dos mecanismos privados de resolução de disputas, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos termos da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, para dirimir conflitos decorrentes ou relacionados ao contrato.


A norma em comento adota mecanismo bastante incipiente no direito brasileiro, qual seja, a “arbitragem”. Mesmo no direito privado brasileiro ainda trata-se de mecanismo de pouco uso e entendimento geral. Quiçá, por conseqüência, no direito público pátrio, onde ainda haveria evidentes resquícios do tempo do regime militar (autoritarismo, indisponibilidade geral do interesse público) incorporados ao regime jurídico-administrativo.


Para Bandeira de Mello (2005) tratar-se-ia de modalidade incompatível com o regime jurídico-administrativo publicístico, sendo totalmente descabida sua adoção no âmbito do direito público. Contudo, conforme a exposição de outros autores, dentre eles JUSTEN FILHO (2005) evidenciam que tal questionamento deve ser analisado com cautelas e sob um enfoque da evolução do Direito Administrativo brasileiro e de seus princípios basilares.


A Lei de Arbitragem estabelece em seu art. 1º que: “As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”.


O ponto de maior divergência consiste na possibilidade ou não da disposição de direitos pelo ente estatal ou Administração Pública através da utilização da justiça privada por meio da arbitragem.


Ocorre, no entanto, segundo Gustavo de Oliveira (2205) que diante do Novo Direito Administrativo e da nova forma de “contratualização administrativa” e a relativização  do interesse público a disposição de direitos na busca pelo interesse público também seria forma de atendimento ao princípio da indisponibilidade do interesse público.


Se a única forma de atingir os “interesses coletivos” representa a Administração Pública transacionar direitos para alocar investimentos privados, por que não utilizar-se da arbitragem?  Do contrário, aí sim, estaria o Estado dispondo do interesse público, pois a não adoção de métodos de rápida solução não conseguiria atrair interessados privados na construção de rodovias, escolas e hospitais, por exemplo, impossibilitando a promoção do interesse público geral.


O Estado estaria dispondo o interesse público se ficasse inerte, sem fomentar a economia e promover a realização de inúmeros projetos que beneficiem à sociedade. Depende, portanto, do contexto em que está contido o conceito de indisponibilidade do interesse público.


O formalismo exagerado pode significar exatamente o impedimento do atendimento do interesse público. Mas, certamente o medo da inflação da corrupção através esses contratos de Parcerias Público-Privadas justifica tanta controvérsia e receio por parte da doutrina a respeito da adoção da arbitragem.


Entretanto, o mais correto parece ser a busca por maiores e mais eficazes mecanismos de controle “a posteriori” da Administração Pública. A adoção de novos institutos privados pelo Direito Administrativo deve ser encarada com cautelas, contudo, trata-se de sua nova estrutura (Direito Administrativo Contemporâneo) onde cada vez mais o regime privado estará próximo do regime de direito público.





CONCLUSÃO


A nova ordem mundial exige do Estado e da Administração Pública uma profunda mudança estrutural, sob pena de tornarem-se incapazes de promover o interesse público ou bem comum à sociedade moderna.


Nesse espectro, a Administração Pública assume especial revelo, pois é ela a responsável imediata pela promoção dos direitos fundamentais dos cidadãos. Assim, reflexões sobre novos institutos como o contrato de gestão e as Parcerias Público-Privadas, inseridos no Novo Direito Administrativo, é fundamental para a eficácia das atividades administrativas.


Os antigos dogmas do Direito Administrativo devem ser relativizados, ou melhor, contextualizados e modernizados. A noção de interesse público e inúmeros outros conceitos típicos desse ramo do direito devem ser objeto de cautelosa análise e adaptação às inovações.


Nessa senda, o primeiro capítulo (item 1.1) pretendeu demonstrar como o aparato estatal brasileiro e seu Direito Administrativo foram sendo formados desde o período colonial.


O (item 1.2) do mesmo capítulo tratara da Reforma do Estado e a Crise do Serviço Público, fato evidenciado em todos países ocidentais e que causaram grande atenção da mídia e da população em geral.


Já no segundo capítulo fora dissertado sobre o contrato de gestão, sua introdução ao ordenamento jurídico pátrio, as organizações sociais que estão intrinsecamente ligadas a esta modalidade de contratação em face de relevantes princípios constitucionais como o da legalidade e licitação prévia.


No (item 2.2) fora tratado das polêmicas garantias do Poder Público ao parceiro privado e suas possíveis (in) constitucionalidades: 2.2.1) vinculação de receitas, instituição de fundos especiais em face do art. 167, IV, CF/88; 2.2.2) Fundo Garantidor de Parcerias Público-Privadas (FGP) em face do art. 100, CF/88.


Por fim, tentara-se tratar da arbitragem nos contratos de modalidade PPP e as prerrogativas do Poder Público sob o enfoque do princípio constitucional da supremacia e da indisponibilidade de interesse público. Tais questões mostraram ser demasiadamente tormentosas e de grande divergência doutrinária e jurisprudencial.


 


Referências:

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Notas:

[1] Segue JUSTEN FILHO: “A concepção de um Estado Democrático de Direito é muito mais afirmada (semanticamente) na Constituição do que praticada na dimensão governativa. Isso deriva da ausência de incorporação, no âmbito do direito administrativo, de concepções constitucionais fundamentais. É essa visão constitucionalizante que se faz necessária para o direito administrativo brasileiro, o que importa a revisão dos conceitos pertinentes ao chamado regime de direito público (…)”.

[2] Cláudio Eduardo Regis de Figueiredo (Administração Gerencial e A Reforma Administrativa no Brasil, 1ª edição (ano 2002), 3ª tiragem, Curitiba: Juruá, 2004, p. 54 e 55)

[3] Entre outras previsões, dizia o Plano Diretor da Reforma do Estado: “A administração pública gerencial constitui um avanço e até um certo ponto um rompimento com a administração pública burocrática. Isto não significa, entretanto que negue todos os seus princípios. Pelo contrário, a administração pública gerencial está apoiada na anterior, da qual conserva, embora flexibilizando, alguns dos seus princípios fundamentais, como a admissão segundo critérios de mérito, a existência de um sistema estruturado e universal de remuneração, as carreiras, a avaliação constante de desempenho, o treinamento sistemático. A diferença fundamental está na forma de controle, que deixa de basear-se nos processos para concentrar-se nos resultados, e não na rigorosa profissionalização da administração pública, que continua um princípio fundamental”.

[4] Para Celso Antônio Bandeira de Mello os contratos realizados entre administração direta e indireta seriam inválidos ou impossíveis (2005, p. 208 e 216). Assevera que: “obviamente, a autonomia gerencial, administrativa e financeira das entidades da Administração Indireta, jamais poderia ser ampliada por ‘contrato’. (…) Haveria, pois, invasão de poderes do Legislativo pelo Executivo; portanto, ofensa à cláusula pétrea da “separação de Poderes” (art. 60, § 4º, III, da Constituição Federal). Ademais, esposa o doutrinador: “órgãos não têm autonomia – logo, não haveria como amplia-la”.

[5] Teorizado em sua obra: O Espírito das Leis.

[6] Maria Sylvia Zanella Di Pietro ( Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e parceria público-privada e outras formas, 5ª edição, 2ª reimpressão, SP: Atlas, 2006, p. 259.

[7] STF – 1ª Turma – Rextr. N. 99.239/DF – Rel. Min. Néri da Silveira, DJU 27.02.07, p. 2.956.

[8] Referido autor desconsidera o cabimento de dispensa de licitação, somente admitindo a inexigibilidade do procedimento licitatório em casos especiais.

[9] Marçal Justen Filho e Gustavo Justino de Oliveira consideram os contratos de PPP como evidência da evolução do contratualismo administrativo clássico existente no Brasil, agora mais consensual, menos autoritário.

[10] Jus Navegandi, 2005.


Informações Sobre o Autor

Rafael Uberti Machado

Advogado. Graduado pela UNIFRA. Especialista em Direito Constitucional pelo IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público). Especialista em Direito Público. Diplomado pela Escola da Magistratura do Estado do Rio Grande do Sul – AJURIS


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