Resumo: O presente artigo faz parte de uma série de publicações que possuem como enfoque específico o estudo das decisões judiciais, sua mecânica, seus elementos conformadores e variáveis que acabam por influenciar decisivamente na atividade judicante, com especial atenção à politização do Judiciário (ou politização das decisões judiciais). Paralelamente a tais elementos há que se ressaltar a coexistência de alguns fatos históricos que influenciaram fortemente a forma pela qual o Judiciário viria a se orientar. Tal é o escopo deste trabalho.
Sumário: 1. Dimensão histórica; 2. Dimensão filosófica;
O presente artigo faz parte de uma série de publicações que possuem como enfoque específico o estudo das decisões judiciais, sua mecânica, seus elementos conformadores e variáveis que acabam por influenciar decisivamente na atividade judicante, com especial atenção à politização do Judiciário (ou politização das decisões judiciais).
Paralelamente a tais elementos há que se ressaltar a coexistência de alguns fatos históricos que influenciaram fortemente a forma pela qual o Judiciário viria a se orientar.
1. DIMENSAO HISTÓRICA
Um destes fatos foi a formação do Estado do Bem Estar Social (Welfare State), a partir do início do século XX. É bem verdade que tal modelo de Estado já vinha tendo suas bases lançadas desde meados do século XIX – com as revoluções européias dos anos 1848, com a Comuna de Paris em 1871 – contudo foi com a Revolução Mexicana de 1910, com a Revolução Russa de 1917 e com o New Deal posterior à quebra da Bolsa em 1929 que realmente o Estado do Bem Estar Social teria seu delineamento mais expressivo.[1]
No Welfare State passou a haver a humanização do sujeito e, conseqüentemente, seu reconhecimento como detentor de direitos, segundo o qual o princípio da dignidade da pessoa humana tornar-se-ia basilar, tendo como fim último o maior bem-estar possível.[2]
Concomitantemente, outros dois princípios se evidenciam. O primeiro deles é o da constitucionalização da política – segundo o qual esta deveria constar expressamente nas Constituições – e o segundo deles é o princípio da positivação das normas programáticas do Estado – segundo o qual os objetivos e metas a serem alcançados pelo Estado passariam a integrar as Constituições.[3]
A partir de tal momento e a partir da discussão acerca da força normativa da Constituição, passou a haver maior pressões de classe a fim de dar concreção/eficácia aos princípios nela insculpidos. O Judiciário foi compelido a manifestar-se quanto a elementos crescentemente vagos e díspares.
Com a adoção do modelo Welfare State – “deslocando temporalmente o direito do tempo passado para o tempo futuro” – a promoção social passou a ser o elemento fundante do Estado, a ser concretizada através da maior intervenção deste. E, conforme Vianna acentua,
“(…) um dos impactos da legislação “welfareana” sobre a ordem jurídica foi a de fazê-la incorporar a vagueza e a imprecisão das normas de sentido promocional prospectivo, afetando a neutralidade do Judiciário e ampliando a criatividade do juiz no ato da interpretação.”[4]
Dessa forma, a politização – ou desneutralização – do Judiciário não adviria de uma anomalia do sistema, mas sim como própria imposição deste, pois segundo Cappelletti ressalta, tal mudança apenas foi concernente ao grau de aplicação, mas não de conteúdo, pois sempre foi assegurada ao magistrado uma parcela de discricionariedade.
Como arremata Vianna,
“A desneutralização do Judiciário seria, então, um dos efeitos do novo tipo de articulação, resultante da imposição do Welfare State, entre a esfera do público e a do privado, repercutindo sobre a clássica fórmula da separação entre poderes nos países de civil law, caudatários da Revolução Francesa e da sua concepção daquele Poder como a “boca inanimada da lei”.[5]
Cappelletti ainda adiciona que tal dinâmica ocorre em virtude do fato da vagueza da lei típicas do Welfare[6], a qual deixa muitas lacunas que devem ser supridas pelo intérprete. Como ele mesmo acentua que a interpretação possui um caráter de criatividade, a situação se torna bastante vulnerável à politização na medida em que o magistrado deve buscar dar aplicação à disposição constante numa Constituição Federal, por exemplo. Ao buscar atingir tal fim, impossível que não se envolva com a situação – uma vez que não há apenas uma situação a ser seguida, preferencialmente disposta em lei – e inevitável que se repolitize – busque os mesmos objetivos, políticos, diga-se de passagem, almejados pelo legislador quando da elaboração da lei.
Vianna acentua que o Estado do Bem Estar Social foi acompanhado do constitucionalismo moderno, “com a invasão da política pelo Direito”, este possuindo papel fortemente atuante em todas as dimensões do Estado, com a crescente admissão “da linguagem da Justiça, e não apenas a do Direito”.
Desta forma,
“a positivação do direito natural teria introduzido uma mudança de paradigma na ordem jurídica, levando o juiz a transcender as suas funções tradicionais de simplesmente adequar o fato à lei, uma vez que também lhe caberia a atribuição de inquirir a realidade à luz dos valores e dos princípios dispostos constitucionalmente. A filosofia política se faria exprimir, assim, nas ações do Poder Judiciário(…)”[7]
Nesse sentido, nas legislações típicas do Estado do Bem Estar Social não bastaria haver a norma jurídica válida e apta a produzir efeitos na sociedade, pois, conforme Piero Calamandrei, as leis são “fórmulas vazias” que são preenchidas com a objetividade – “lógica” – e com a subjetividade – “sentimento” – dos juízes. Para o autor,
“antes de aplicar uma lei, o juiz, como homem, é levado a julga-la; conforme sua consciência moral e sua opinião política aprove ou a reprove, ele a aplicará com maior ou menor convicção, isto é, com maior ou menor fidelidade. A interpretação das leis deixa ao juiz certa margem de opção; dentro dessa margem, quem comanda não é a lei inexorável, mas o coração mutável do juiz”.[8]
Trata-se de, sob um outro ponto de vista e segundo Otfried Höffe, conferir um caráter de justiça pessoal às relações, de virtude ética, sob um aspecto pessoal – em oposição a um aspecto institucional. Höffe destaca que
“Da práxis pessoal fazem parte as considerações e decisões de uma pessoa natural, seus interesses, motivos e intenções, finalmente os princípios e posições, o caráter (…) onde não se exploram, em detrimento de outros, lacunas e espaços discricionários do direito, ou onde prescrições jurídicas adequadas não são transgredidas porque o risco de ser descoberto é improvável. Em síntese, quem é justo no sentido pessoal conhece obrigações jurídicas a partir de uma convicção e não apenas por medo da punição.”[9]
2. DIMENSÃO FILOSÓFICA
Primeiramente há que se salientar que se trata de tarefa complexa – senão impossível – dissociar o Poder Judiciário da política[10], eis que aquele é parte integrante desta, tendo até mesmo deflagrado várias guerras em todo o mundo[11]. Por se tratar de elemento integrante do próprio Estado, não há meios de falar-se em um Judiciário alheio à política, pois, conforme Zaffaroni acentua, este já constituiu-se em instrumento de legitimação de práticas “segundo os momentos de poder”, propiciando o desenvolvimento do escravismo, mercantilismo e da própria nobreza em tempos remotos[12].
Zaffaroni ainda defende que
“Tão política é a questão judiciária que, praticamente, a Revolução Francesa foi desdobrada contra o poder arbitrário dos juízes, mais do que contra o poder monárquico, que em uma monarquia empobrecida e endividada era bastante precário; e a sentença aberrante da “Corte Taney” que mencionamos foi a gota que desencadeou a guerra civil norte-americana”.[13]
Outra questão que exsurge quando se discute a politização da justiça é a recorrência ao argumento de que tal fenômeno significaria infringir a clássica teoria da separação de poderes de Montesquieu. Todavia, tal afirmação não se sustenta na medida em que a própria teoria de Montesquieu foi deturpada por teóricos do Direito que efetuaram uma interpretação dogmática, extraindo erroneamente da mesma que haveria uma pretensa divisão de poderes, sem que houvesse a assunção de funções típicas de um Poder por outro Poder[14].
Sem dúvida alguma, a teoria de Montesquieu foi apoderada pelos revolucionários franceses, contudo
“Entendendo Montesquieu sociológica e politicamente – e não jurídica ou formalmente – não resta dúvida de que ele quer significar que o poder deve estar distribuído entre órgãos ou corpos, com capacidade de regerem-se de forma autônoma com relação a outros órgãos ou corpos, de modo que se elida a tendência “natural” ao abuso”.[15]
Desta forma, a crítica que se faz à politização da justiça com base na teoria de Montesquieu mostra-se infundada se se proceder a uma interpretação da mesma como meio de se coibir a concentração de poder e o seu conseqüente abuso, não guardando qualquer referência com uma teoria de divisão de poderes, como querem fazer crer alguns teóricos.
Por outro lado, Ronald Dworkin argumenta que quando comumente se discute a questão da politização da justiça, não está em questão a influência da política partidária sobre as decisões dos magistrados, mas sim se os magistrados estão valendo-se de fundamentos políticos para proferir suas decisões[16] – em detrimento de argumentos técnicos e jurídicos.
De fato, Zaffaroni alerta que quando comumente se discute tal tema muita confusão é produzida em virtude da alteração do foco de análise. Isto ocorre porque não se define adequadamente o que venha a ser “politização” do judiciário. Inicialmente, o autor parte do pressuposto de que “os poderes judiciários não podem deixar de estarem “politizados” no sentido de que cumprem funções políticas”, típicas de um determinado ramo do governo, conforme já advertido anteriormente, sendo que “não se concebe um ramo do governo que não seja político, justamente porque seja governo” [17]. Partindo-se de tal pressuposto, impossível seria retirar por completo o caráter político do Judiciário na medida em que, como também já foi dito, exerce uma parcela de poder típico do Estado.
Assim, Zaffaroni defende que quando comumente se discute “politização”, tanto no meio acadêmico quanto no sentido dado pelo senso comum, o termo é utilizado como a influência exercida por partidos políticos ou por determinados grupos específicos sobre juízes, o que o autor prefere chamar de “partidarização”. Já, o termo politização careceria de fundamentos porque “pode-se dizer não ser possível “politizar” um exercício de poder público que é essencialmente político”.
Contudo, Zaffaroni assume que além do fenômeno da partidarização há também um outro, na medida em que
“Trata-se, pois, de dois fenômenos diversos e que, portanto, exigem uma clara distinção: por um lado, quanto mais consciente seja um poder judiciário acerca de seu papel político, mais idôneo será para cumpri-lo e, assim, desempenhar suas funções, que são sempre políticas; ao contrário, quanto mais partidário ou parcializado, menos jurisdicional será.”[18]
Já, a fim de que se proceda à análise do fenômeno da politização, Dworkin defende que se faz necessário estabelecer-se distinção entre dois tipos de argumentos políticos de que os juízes podem valer-se para proferir um julgamento: argumentos de princípio político e argumentos de procedimento político. Aqueles são os que tutelam os direitos políticos de cidadãos de forma individualizada, ao passo que estes são os que tutelam os direitos políticos de uma coletividade, visando ao interesse público. Segundo Dworkin, as decisões dos magistrados devem fundar-se em argumentos de princípio político (e não de procedimento político) [19], pois
“os argumentos de princípio são argumentos destinados a estabelecer um direito individual; os argumentos de política são argumentos destinados a estabelecer um objetivo coletivo. Os princípios são proposições que descrevem direitos; as políticas são proposições que descrevem objetivos.”[20]
Em outras palavras, na medida em que os argumentos de procedimento político estabelecem objetivos a serem atingidos, tal tarefa incumbiria ao Parlamento, o qual, através da participação popular, capta os interesses da coletividade e os traduz sob a forma de leis. Por outro lado, porque os princípios são elementos que estabelecem direitos, que, em última análise se coadunam com os objetivos já pré-estabelecidos, não há óbice algum, segundo Dworkin, ao Judiciário declarar, de acordo com os casos específicos, quais direitos cabem a cada indivíduo. Ressalte-se que tal dinâmica de forma alguma fere o princípio democrático[21], que poderia ser questionado quando algum argumento de princípio político (segundo a teoria de Dworkin) fosse utilizado pelos Tribunais, uma vez que, efetivamente, os objetivos seriam delimitados por um poder legitimamente eleito, dotado de um mandato e sujeito ao controle popular.
Dworkin ainda ressalta que para se proceder a uma análise mais apurada de como a questão toma proporções extensas, há que se analisar o (s) conceito (s) de Estado de Direito.
Segundo a primeira concepção, a qual o autor chama de “centrada no texto legal”, Estado de Direito seria aquele regido por regras previa e rigidamente estabelecidas, que, em princípio espelhariam os anseios do coletivo, e que somente podem ser alteradas mediante regras também previamente definidas. Segundo tal concepção, tais regras devem ser obedecidas, independentemente de seu conteúdo e a que regime estejam vinculadas[22], pois tais elementos diriam respeito à justiça substantiva, a qual não pode ser enquadrada como “ideal do Estado de Direito”.[23] Tal concepção de Estado de Direito se aproxima àquela corporificada através da doutrina do rule of law, ou governo da lei, “fundamento do Estado de direito entendido, na sua acepção mais restrita, como Estado cujos poderes são exercidos no âmbito de leis preestabelecidas.”[24]
De acordo com a segunda concepção, chamada por Dworkin de “centrada nos direitos”, o Estado de Direito asseguraria aos indivíduos através do texto legal o exercício dos direitos morais que lhes é inerente. Ou seja, na medida em que os cidadãos são detentores de direitos e deveres morais entre si e de direitos políticos perante o Estado, cabe ao Estado positivar tais direitos e, uma vez insertos no texto legal, cabe aos cidadãos, quando for o caso, exigir a aplicação dos mesmos perante os órgãos que são postos à sua disposição (Judiciário). Ao passo que a concepção centrada no texto legal não considera quanto ao conteúdo insculpido na norma, a concepção centrada nos direitos pressupõe que o que foi insculpido na norma foi fruto dos anseios da coletividade e reflete os direitos individuais e morais inerentes aos indivíduos.
Nos casos em que houver mais de uma proposição para uma mesma questão, o julgador terá que efetuar a escolha pela opção mais adequada, e, segundo Dworkin e em consonância com a segunda concepção de Estado de Direito, “estruturar algum princípio que, para ele, capta, no nível adequado de abstração, os direitos morais das partes que são pertinentes às questões levantadas pelo caso (…)”.
Desta forma, na medida em que a concepção centrada nos direitos pressupõe que as normas constantes nos livros de regras são expressivas dos anseios coletivos, ao julgador não cabe recorrer a princípios que rumem contrariamente a tais regras, contudo, segundo Dworkin, cabe ao mesmo decidir com base em fundamento político nos casos em que dois (ou mais) princípios morais em conflito estejam albergados no livro de regras.
Contudo, conforme Dworkin, não se trata de completa transferência dos poderes políticos para os juízes, pois tal medida seria desastrosa para a democracia e a estabilidade das instituições. O que o autor ressalta é que tal parcial transferência acarretaria algumas conseqüências para a sociedade. Haveria a contemplação de alguns indivíduos que normalmente, em virtude do pequeno poder de influência que exercem sobre as forças da sociedade, não encontram ressonância de seus ideais e seus anseios no Legislativo. Dworkin argumenta, nesse sentido, que
“Como, normalmente, os ricos têm mais poder sobre o legislativo que os pobres, pelo menos a longo prazo, transferir algumas decisões do legislativo pode, por essa razão, ser mais valioso para os pobres. Membros de minorias organizadas, teoricamente, têm mais a ganhar com a transferência, pois o viés majoritário do legislativo funciona mais severamente contra eles, e é por isso que há mais probabilidade de que seus direitos sejam ignorados nesse fórum.”[25]
Em virtude de tal dinâmica é que Dworkin argúi que a concepção centrada nos direitos seria mais adequada, pois uma vez que o indivíduo poderia[26] pleitear no Judiciário o reconhecimento de tais direitos, poder-se-ia atingir, de forma igualitária e democrática, seu exercício, “a despeito do fato de nenhum Parlamento ter tido tempo ou vontade de impô-los”. Retirar tais poderes do Judiciário significa “despolitizar o poder judiciário” o que “implica subtrair-lhe funções próprias, reduzindo seu poder até torná-lo incapaz de executar suas funções”.[27]
Informações Sobre o Autor
Luciano Karlo Pertschi
Técnico Judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região. Pós Graduando em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Gama Filho, Graduado em Direito no Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA