No momento, a Universidade de
Brasília vive a possibilidade de admitir a implementação do sistema de cotas
para o ingresso de ”negros” na Universidade. Eu, apesar de todos os
pseudodebates[1]
a que compareci, em que a minha e outras dezenas de mentes foram simplesmente
marteladas repetidas e reiteradas vezes com a abissal diferença sócio-econômica
existente no Brasil entre negros e brancos, tendo como base dados do IPEA, não
me convenço de forma alguma de que a adoção de qualquer política de cotas seja
algo desejável.
Não, eu não nego a existência de uma vergonhosa
disparidade entre as “raças” em questão; nem o passado nada glorioso
brasileiro, eivado pelas mais variadas práticas racistas fomentadas pela
sociedade e até mesmo pelo Estado. Contudo, não consigo vincular uma coisa a
outra e acreditar que facilitar o ingresso de um maior número de “negros” na
UnB mudaria, ainda que indiretamente, para melhor a situação racista existente
no Brasil.
Agora, quem lê esse texto deve estar fazendo a
mesma pergunta que construí, resumidamente, no título: Por quê sou contra a
adoção de cotas para o ingresso de estudantes negros na universidade pública
brasileira, em especial, na de Brasília? Eu, realmente, curioso quanto ao
motivo que me faz pensar assim e movido pela minha qualidade de homem que sabe
que sabe (homo sapiens sapiens),
resolvi perguntar a mim mesmo e o resultado foi tão complexo que necessitei
realizar a catarse que agora pode ser lida.
O primeiro dos motivos que me veio à cabeça foi:
será que sou contra as cotas porquê assim o é a legislação nacional? Bom,
conforme nos explica Celso Antônio Bandeira de Mello, a partir de sua
hermenêutica do princípio constitucional da isonomia, o ordenamento brasileiro
é rígido na direção de que não só se pode como se deve discriminar. Sadios e
deficientes, adultos e crianças, homens e mulheres, ricos e pobres: são todos
iguais? Definitivamente, não. O abstracionismo de nossa legislação não chega a
tal absurdo cego em relação à diversidade óbvia. A isonomia é, essencialmente,
discriminatória. O que ela pretende, sim, é garantir que as discriminações
feitas não sejam arbitrárias nem aleatórias.
Como aferir isso? Segundo o tal Mello, fácil:
primeiro, a desequiparação não deve atingir, de modo atual e absoluto, um só
indivíduo; segundo, as situações ou pessoas desequiparadas pela regra de
direito devem ser efetivamente distintas entre si, vale dizer, possuam
características, traços, nelas
residentes, diferençados; terceiro, que exista, em abstrato, uma
correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a distinção de
regime jurídico em função deles, estabelecida pela norma jurídica; por fim,
que, in concreto, o vínculo de
correlação supra-referido seja pertinente em função dos interesses
constitucionalmente protegidos, isto é, resulte em diferenciação de tratamento
jurídico que seja fundada em razão valiosa – a lume do texto constitucional –
para o bem público.
Os primeiros passos da receita até que
contemplariam as tais cotas. Mas o que dizer do último passo? Como imaginar que,
em função de um número maior de proteínas no corpo – melanina, me disse uma
colega da Biologia – ainda que com implicações sociais, um negro terá um
tratamento diferenciado quando no ingresso a uma universidade? Combater
discriminação com mais discriminação é frutífero? É certo que um negro, que
durante toda sua juventude conviveu com o racismo, necessariamente se sentirá
menos ofendido pela entrada na Universidade? E seus futuros colegas brancos, se
racistas, deixarão de ter preconceito quando já adultos, com a agravante da
maior dificuldade para o ingresso acadêmico ?
Com as devidas ressalvas, uma analogia talvez
melhor ilustre meu pensamento. Entendo, mas não partilho inteiramente, que o
ponto de partida seja a noção de que a declarada democracia racial seria um
engodo histórico, e na verdade o racismo é, culturalmente, um dado intrínseco à
sociedade brasileira; uma chaga que deve ser exposta, e não ocultada. Pois bem,
traço então um paralelo ao instinto que separa cães e gatos. Na sua condição
estritamente animal, os cães têm inegável aversão aos gatos. Assim, são
análogas, num caso pelo instinto noutro pela cultura[2], as
condições que criam uma incompatibilidade de convívio harmônico e em
equilibrado entre cães e felinos e entre brancos e negros.
Tomando a universidade como um local de
concentração de brancos: será que se eu encher de gatos um canil, haverá
convivência pacífica? Os cachorros passarão a amar os gatos? Os felinos, lá
colocados, sairão servindo de exemplo para outros que queiram entrar? E
cachorros e gatos abdicarão de suas diferenças se confinados em um mesmo local?
Não seria melhor que desde filhotes estivessem em contato, sadio, uns com os
outros, em vez desse tardio convívio forçoso? O que dizer então de fomentar a
entrada de negros num local eminentemente, segundo a visão de quem é a favor
das cotas, racista?
Assim, com base no constitucional princípio
isonômico[3], e com
razoável certeza, posso concluir que o ordenamento jurídico brasileiro é
contrário à implementação de uma política de cotas. O que já me seria motivo
para ser contra as cotas.
Contudo, em verdade, ainda que eu tenha
o maior respeito e sinceramente esteja disposto a adotar em minha vida as
disposições legais brasileiras, dificilmente penso como penso em conseqüência
dos preceitos do ordenamento. Pensar isso seria cogitar que a cada semana, com
a sua imbatível média de MP’s, só o presidente da república já altera minha
linha de pensamento várias vezes e com uma incrível facilidade. Enfim,
inaceitável.
Certo é que só pensei no ordenamento
porque as regras nele embutidas são conforme a minha forma de valorar o mundo.
Só os mencionei porquanto os valores legalmente defendidos, que conforme o
“mestre dos magos” Miguel Reale constituem uma das três dimensões do Direito,
são compatíveis com os meus. Pensei então em “de onde vêm os meus valores?” e
conclui que, sendo eu um ser cultural, só poderiam vir a mim pela sociedade em
que estou imerso. Atingi assim meu segundo nível de reflexão interpessoal
abstrata (chique, não?) e passei a pensar sociologicamente.
Articulando os conceitos sociológicos a
que fui compelido a aprender, em duas disciplinas diferentes, para poder
avançar no meu ainda corrente curso de Direito, e somando-os a leituras
diversas, pude ver o seguinte. A cota é, obviamente, uma possibilidade social.
E um fato social deve gozar de generalidade, coercitividade, objetividade e autonomia moral. Em outras palavras,
deve ser assimilável pela sociedade para ser efetivo. Não vejo a política de
cumprindo este requisito.
O que se tenta é impor sua construção
teórica à sociedade. Sim, vivem-se situações racistas que são vergonhosas.
Valorizo a construção de uma linha de pensamento contrária a essa mácula.
Contudo, vendo o racismo como uma doença social, porquanto contraída há muito,
crônica portanto, infelizmente, não se pode ser remediar a sociedade num curto
prazo. O fim do racismo será fruto de uma correta e clara política de
conscientização somada à real eficácia dos mecanismos jurídicos já existentes,
mas, sobretudo, de uma auto-reflexão social construída argumentativamente.
Querer por fim ao racismo em curto prazo, mais que uma utopia, é correr o sério
e, penso eu, indesejável risco de agravá-lo. Enquanto não for algo socialmente
aceito – não pode ser implementado.
Não basta imaginar que de forma
hermética a sociedade universitária possa decidir com base em suas próprias
informações sem se regular pelo mundo da vida que lhe serve como ambiente. Suas
decisões na direção da construção do conhecimento, para serem legítimas, dependem
de aceitação da sociedade.
E como atingir essa aceitação social?
Penso numa nova mentalidade construída argumentativamente, nos moldes
eticamente defendidos por um amigo meu, de Alemanha, que fez relevantes visitas
ao meu plano de existência, a quem chamo carinhosamente de Jürgen “viva o
discurso” Habermans. Sinceramente, me sentiria bem mais compelido socialmente a
aceitar uma idéia formulada num debate racional em que eu pudesse fazer parte e
opinasse. Essa construção social eu estaria mais disposto a aceitar.
Pensando nisso, quase conclui que essa
seria a chave: fomentar discursos para que as pessoas se convencessem de que as
cotas são algo ruim. Mas… fiquei com um “mas” latejante na cabeça. E se o
resultado do debate fosse a favor das cotas? Eu aceitaria? Pelo fato de ser um
fruto social, todos deveriam aceitar? Disso, inúmeras outras perguntas, mais
gerais, me incomodaram: será que é apenas a sociedade a responsável por erigir
meus valores? Todo mundo que vive imerso numa mesma sociedade não tem os mesmo
valores. Ou têm? E eu, espécime exemplar de uma espécie auto-entitulada
superior dentre as demais; possuidor de não um, mas dois polegares opositores;
animal racional etc.; não defino nada? Não sou eu também um determinante? Nem
uma condicionantezinha? Uma variável mixuruca sequer? Sou nada?
Bom, depois de uma leve crise
existencial, bati o pé e afirmei (sempre sem me esquecer do intuito de
autoconvencimento) que sou eu quem, ainda que nem sempre conscientemente,
define os meus próprios valores. Mais ninguém. Nesse momento agradeci a ajuda
de outro alemão amigo meu (Hans Kelsen) que me mostrou que só estaria disposto
a aceitar a decisão social (engraçado que eu já tinha verificado isso quanto às
leis) se fosse compatível com os meus valores individuais. Bonito, não? Tem até
um ar bem romântico…
Qual onda de orgulho me contagiou pelo
final do trabalho: eu só poderia mudar meu pensamento se eu, eu e eu lhe desse
a autoridade e legitimidade para formular meus valores. A minha ética, minha
construção valorativa (repita isso e verifique a alta auto-estima que isso
provoca), define meu comportamento tanto em relação às situações reais como em
relação às definições do que deve ser, enfim de certo e errado. Por isso eu sou
contra as cotas: porque eu defini.
Mas, (esse “mas” nunca é bom), pensando
nisso, percebi que recaí na pergunta inicial de novo: por quê eu defini? Fui
então derrubado do romantismo e enfrentei a dura realidade. Meu primeiro
pensamento foi largar tudo. Até que, por acaso, deparei-me com alguns sujeitos
visitantes do plano do dever ser que intentaram definir a ética com base na
simples e evidente realidade. Comecei a me convencer de que estava encontrando
o caminho da razão (com trocadilho, por favor) para a minha ética.
Dentre esses sujeito que me acalmaram,
o sempre elegante, grande Kant. Sua teoria ética derivada da racionalidade
humana me forneceu um poderoso instrumento para aferir se minha visão da
possibilidade ética de se implantarem as cotas (a saber, nenhuma). O seu
imperativo categórico (mais elegante, impossível), “age de tal modo que a máxima do teu agir possa por
ti ser querida como lei universal”, transportado para a proposta das cotas,
eliminá-la-ia, porquanto para ser moralmente boa, deveria estendível a todos os
outros grupos sociais que compõem o “universal”. Daí, todos teria os
benefícios. Por vício lógico, depreende-se que, se todos gozam de determinado
benefício, então, em verdade, não há benefício algum.
Outro que me foi amigo nesse ponto foi
o “Jotaéce” Mill. Em sua praticidade diametralmente oposta ao “eleKant”,
baseou-se no altruísmo humano como fundamento moral ao princípio da maior
felicidade e defendeu que um ato moral deveria trazer o maior quociente de
felicidade para a maioria das pessoas. Assim a política de cotas deveria trazer
a maior felicidade para mais pessoas. Contudo, o que de fato acontecerá?
Porquanto não há estudo científico que certifique qualquer resultado nem, ainda
que adiantasse, experiência de comprovação, os negros, por uma simples
esperança de futura mudança do estado das coisas, seriam submetidos, de forma
facilitada pela lei, a um ambiente, segundo apontam, racista. Isso com certeza
seria ruim tanto aos olhos de quem não é racista, dado o peso da pena que tal
situação geraria a quem já por muito foi desprestigiado, quanto aos olhos de
quem é, pela convivência com que de si só merece desprezo.
Pensei também no sujeito com nome de
bala, Rawls, que cogitou, com base nas tradições contratualísticas, o véu da
ignorância. Sob ele, pode-se concluir, que nenhuma pessoa poderia, sem correr o
risco de ser desprestigiada, aceitar um benefício institucional a qualquer
grupo social, maioria ou minoria. Num pé de igualdade, ninguém seria favorável
às cotas.
Nessa linha estava me confortando, e
reatingindo aquele estado de paz interior em que realmente sou conforme ao que
eu penso. Determinava que acabar com discriminação
discriminando, mais que um contra-senso, seria perigo para a sociedade. O que
dizer então da segurança jurídica? Ora, ontologicamente, qual a diferença
argumentativa entre cotas para negros e cotas para baixinhos? Nenhuma. O mesmo
discurso epistemológico utilizado hoje para se favorecer os negros poderia ser
utilizado futuramente por quaisquer minorias, daí emergindo um perigo muito
grande para o Direito.
Afinal, percebi que minha estabilidade
de pensamento só era tão romântica porquanto vivesse no meu plano do dever ser,
no mundo do mudar o mundo. E, por um azar, imaginei como seria se estivesse no
plano do ser[4]… Essa não! Teria de
fazer o que fazem as pessoas que são: interagir com outras éticas! Essa idéia
perturbadora procedia! Tanto que não era exclusivamente minha, nem era nova.
Ora, claro: tanto era recorrente essa noção da existência de uma pluralidade de
sentidos para o certo e o errado que ela mesma deve ter movido todos os que
cogitaram, inclusive esses que citei, a firmar uma só ética que pudesse, de
forma correta e legítima, reger o mundo. Se não houvesse mais de uma ética no
mundo, para que iriam buscar uma só?
Dessa forma, apesar de todos os pontos
a mim favoráveis, legais, sociais e teoricamente éticos, não sabia eu de onde
eu havia tirado a minha reação a política de cotas. Só sabia que era contra, e
disso tinha certeza. Nesse absurdo, finalizei as minhas divagações a respeito
da causa que me fizera ser contra as cotas, e me centrei no que fazer agora que
sei que há vários motivos fortes para ser contra as cotas mas não sei qual
nasceu primeiro: ovo ou a galinha!
Eis que, tomado por um ímpeto
altruísta, decidi que não deveria apenas saborear o ovo, mas chocá-lo, fazer o
galináceo crescer e daí espalhar pra todo mundo os ovos que ele botasse. Lado
sério da metáfora granjeira: tenho é que me firmar nos meus valores,
aprimorá-los e tentar convencer a cada um e todo mundo de que estou correto.
Sim, eu posso não saber a origem concreta do meu valor, mas acredito que tenho
razão. Um “não às cotas!” é o meu primeiro porto seguro, é a minha primeira
bandeira. Já que consegui reunir todos esses argumentos, há de haver alguém a
quem eles possam convencer. E há de ser um número grande de pessoas que se
incomodarão com cotas para negros, por todas essas razões, no mínimo.
Em resumo, se eu tenho que escolher,
escolho, ainda que sem evidente relação de causa e conseqüência, ser contra a
adoção de uma medida que, no meu modo de ver: na intenção de fazer justiça,
fere um princípio constitucional justo; na intenção de harmonizar a sociedade,
fomenta conflitos; não é fruto de debate aberto, de contato franco entre
diferentes concepções, enfim, de um discurso racional; e que discrepa de várias
concepções éticas sérias, construídas na intenção de serem orientações
absolutas para o comportamento humano.
E, alem dessa escolha, defino a mim
mesmo (quem mais poderia fazê-lo) que não posso simplesmente me posicionar
contra e nada fazer, porquanto agindo assim possibilitaria que o resultado da
minha inércia fosse a implementação de cotas pela Universidade de Brasília em
que, ainda que fora do plano do ser, existo. Não seria capaz de ter o sono dos
justos de outra forma. Sem falar que o mundo das idéias é meu vizinho, e minhas
idéias poderiam cometer contra mim um atentado durante a noite.
Olha só! Descobri! Sou contra as cotas
porque tenho medo de conviver com tal política que se contrapõe à minha noção
de certo e errado! Ufa! Mas… mas (sempre ele) porque a minha noção se
contrapõe… deixa pra lá. Vou pedir pro editor suprimir esse último parágrafo.
Notas:
[1] Poucas
são as mentes que se posicionam abertamente contra a proposta de cotas.
[2]
Segundo o geneticista Sérgio Pena, que participou do projeto genoma, não há
dados genéticos que permitam cindir a unidade da “raça humana”.
[3]
Outro ponto sustentado no âmbito legal é que a nossa Constituição, como
fortemente inspirada em outras, muito bem poderia ter explicitado a possibilidade
do uso de cotas, como faz a da Espanha, uma de suas fontes. Assim, se não o
fez, não se dispõe a admiti-lo.
[4] Não se
esquecer de que eu sou uma “entidade abstrata”.
Informações Sobre o Autor
Luís Paulo Silva