Precatório. Comentários a EC nº 62/2009. Parte I


A EC nº 62, de 9-12-2009, que instituiu o regime especial de pagamento de precatórios pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, introduziu alterações profundas nas regras permanentes da Constituição Federal (art. 100 e parágrafos).


Devido à extensão da matéria, em um primeiro momento, examinaremos as alterações introduzidas nas regras permanentes da Constituição, e ao depois, na segunda etapa, passaremos a analisar o regime especial de pagamento de precatórios instituído pelo art. 97 do ADCT, acrescentado pela Emenda sob comento.


Art. 100, caput


O caput do art. 100 mantém o critério de pagamento da condenação judicial “na ordem cronológica de apresentação de precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim”.


É a preservação do princípio da moralidade pública expressa no art. 37, da CF.


Por isso, incluiu no regime de precatório as condenações em verbas de natureza alimentícia. Isso enseja, na prática, a formação de duas filas distintas de precatórios judiciais em razão do privilégio de que gozam as verbas alimentícias como, aliás, já vinha sendo feito como decorrência de criação pretoriana.


Art. 100, § 1º


O § 1º define o que são débitos de natureza alimentícia (salários, vencimentos, pensões etc.) conferindo-se preferência sobre todos os demais débitos, excetuados aqueles referidos no § 2º a seguir comentado. No nosso entender as enumerações do § 1º não são taxativas.


Para dar maior transparência e conferir efetividade a essa norma é preciso que seja aberta dotação específica para as despesas com precatórios de natureza alimentícia. É indispensável, também, que o fluxo de pagamentos a favor de cada modalidade de precatórios não repercuta ou impeça o avanço de outra, independentemente do exercício a que se refira, observada sempre a preferência dos precatórios de natureza alimentícia.


Outrossim, é preciso fazer o confronto entre as duas filas de precatórios (fila de precatórios comuns e a de precatórios privilegiados) para constatação da quebra de ordem cronológica para fins do § 6°, sob pena de o credor privilegiado ser punido por conta desse estranho privilégio, como tem permitido parcela da jurisprudência atual, que proclama a tese da quebra da ordem cronológica pela preterição do direito de precedente em cada classe de precatórios. Sob esse argumento foi afastado liminarmente pelo Min. Joaquim Barbosa do STF o bem fundamentado seqüestro decretado pelo eminente Presidente do E. TJESP contra a Municipalidade de Santo André. A prevalecer tal raciocínio bastará paralisar a fila do precatório alimentício que jamais haverá cogitação da quebra de ordem cronológica, como vinha acontecendo no Município de São Paulo durante vários anos.


Art. 100, § 2º


O § 2º atribuiu privilégio qualificado ou privilégio especial aos credores de débitos de natureza alimentícia que tenham 60 (sessenta) anos de idade ou mais na data da expedição do precatório, ou que sejam portadores de doenças graves, definidas em lei, até o valor equivalente ao triplo do fixado em lei para requisição de pequeno valor previsto no § 3º, objeto de comentário a seguir.


Em que pese a boa vontade do legislador constituinte derivado e que vai de encontro aos artigos 196 e 230, da Constituição Federal, essa regra, que cria um privilégio dentro da classe de credores privilegiados, é de difícil execução por três razões básicas:


a) Normalmente, em ações de servidores que buscam os valores sonegados pelo poder público figuram um número considerável de autores em litisconsórcio, e, nas iniciais, não constam a data de nascimento de cada um deles, nem há junção de documentos de identidade em que se pudesse aferir a idade de cada um, porque não configura requisito da petição inicial. Logo, perder-se-á um tempo considerável para fazer o fracionamento do precatório para separar os credores com privilégio qualificado. Nas futuras ações é importante que constem da petição inicial o requisito da idade.


b) Em relação aos portadores de doença grave, a única lei existente até agora é a Lei de nº 7.713/88, cujo art. 6º, inciso XIV define as doenças graves para efeito de isenção do imposto de renda. Pergunta-se, aplica-se essa lei para efeito de pagamento de precatórios com privilégio qualificado? Certamente, levará anos para pacificar a jurisprudência até que sobrevenha uma lei específica sobre o assunto.


c) Quanto ao limite equivalente a três vezes ao valor das obrigações definidas em lei de pequeno valor o preceito acha-se relativamente comprometido em sua efetividade, embora, teoricamente correta e justa por compatibilizar o tratamento privilegiado aos idosos e aos doentes com os recursos financeiros disponíveis. Como cada entidade política devedora tem a liberdade de fixar esse valor, respeitando o piso estabelecido no § 4º, algumas unidades da Federação vêm adotando o regime de valor indexado, que pode alterar a cada mês. Isso poderá, não só, dificultar a elaboração de conta para apuração do valor a ser pago, como também, criar incidentes processuais gerando discussões em torno do valor correto a ser observado. De fato, não é impossível a alteração do valor indexado exatamente no dia em que se procedeu elaboração da conta, quando ainda não divulgado o novo valor.


Louve-se, entretanto, a fixação de data certa para credores com idade de 60 anos ou mais para a data da expedição do precatório. A redação original desse dispositivo não fixava essa data, pelo que, poderia gerar dúvidas e incertezas, ocasionando incidentes processuais (data da conta, data da expedição do precatório etc.). Sem fixação de um critério objetivo a norma não teria efetividade.


Art. 100, § 3º e 4º


Nos termos do § 3º não se aplica a inserção de precatório na ordem cronológica em se tratando de obrigações definidas em lei como de pequeno valor.


Conforme § 4º, as entidades políticas devedoras dispõem da faculdade de fixar, por leis próprias, esses valores segundo as respectivas capacidades econômicas, respeitando o mínimo igual ao valor do maior benefício do regime geral de previdência social que atualmente é de R$ 3.416,54. Se não for fixado esse valor, no prazo de 180 dias contados da promulgação desta Emenda sob comento, aplicar-se-á o disposto no § 12, do art. 97 do ADCT a ser objeto de comentários na parte II deste estudo.


Art. 100, § 5º


O § 5º mantém o final do período requisitorial em 1º de julho de cada ano. Os precatórios apresentados até essa data deverão ter os seus valores incluídos na Lei Orçamentária Anual do exercício seguinte, para os fins de pagamentos até o final desse exercício pelos valores monetariamente atualizados.


O dispositivo mantém, portanto, o mesmo interregno de seis a dezoito meses para pagamentos dos valores requisitados.


Para prevenir desvios, o ideal seria prescrever o depósito mensal em duodécimos até o dia 20 de casa mês, a exemplo do que ocorre com as verbas pertencentes aos Poderes Legislativo e Judiciário, ao Ministério Público e à Defensoria Pública (art. 168, da CF), conforme proposta que havíamos apresentado.


Art. 100, § 6º


O § 6º prescreve que as dotações orçamentárias e os créditos abertos serão consignados diretamente ao Poder Judiciário, cabendo ao Presidente do Tribunal que proferiu a decisão exeqüenda:


a) determinar o pagamento integral do precatório;


b) autorizar a requerimento do credor preterido em seu direito de precedência o seqüestro da garantia respectiva;


c) autorizar o seqüestro da quantia correspondente à verba tempestivamente requisitada e não incluída na LOA.


Pela proposta que apresentamos, a hipótese de seqüestro abrangia, também, o não pagamento do precatório incluído no orçamento até o final do exercício seguinte, como determina o § 5º retro comentado.


Com a eliminação da parte final da proposta suprimiu-se o mecanismo assecuratório da fiel execução do disposto no § 5º. Só não se pode mais, impunemente, deixar de fazer a inclusão orçamentária dos valores requisitados como era de praxe no Município de São Paulo, a partir do ano de 2002. Contudo, o seqüestro como conseqüência da omissão orçamentária estava e continua implícito no texto constitucional.


Mas, como não há vontade política em fazer cumprir os precatórios a omissão servirá de pretexto para permitir que o “calote” continue. O desvio de recursos destinados ao pagamento de precatórios, tanto quanto a sua não inclusão orçamentária, caracteriza crime de responsabilidade e ato de improbidade administrativa. Todavia, nenhum governante leva a sério essas ameaças contidas nas leis respectivas, porque as providências para sua responsabilização, nesse sentido, nunca resultaram em efetiva condenação. Não se tem notícia, até hoje, de que algum governante tenha sido afastado de seu cargo por sonegação de inclusão orçamentária ou por desvio de verba incluída, ou, que tenha se tornado inelegível deixando de concorrer às eleições. Somente alterando a lei de regência da matéria (Lei nº 8.429/92) para tornar exeqüível a decisão de primeira instância poderá se reverter essa cultura do calote de precatórios desenvolvida por maus governantes.


Art. 100, § 7º


O § 7º prescreve que o Presidente do Tribunal competente que, por ato omissivo ou comissivo, retardar ou tentar frustrar a liquidação de precatório incorrerá em crime de responsabilidade e responderá, também, perante o Conselho Nacional de Justiça.


O legislador constituinte derivado partiu do princípio de que o Presidente do Tribunal que proferir a decisão exeqüenda é o responsável maior pela regularidade dos pagamentos de precatórios judiciais.


De fato, cabe a ele ordenar o pagamento dentro da ordem cronológica e determinar o seqüestro da quantia respectiva no caso de quebra dessa ordem cronológica a requerimento do credor preterido e no caso de não inclusão orçamentária da verba requisitada dentro do período requisitorial. No nosso entender cabe, também, o seqüestro das verbas incluídas no orçamento e não esgotadas até o dia 31 de dezembro de cada ano, a menos que a entidade devedora comprove que as arrecadações das receitas ficaram aquém da estimativa, fato que não tem acontecido na realidade, pois a regra geral é o superávit orçamentário. A responsabilização perante o Conselho Nacional de Justiça é uma inovação positiva à vista da profícua atuação desse órgão para coibir o abuso de autoridades judiciárias cada vez mais crescente. Temos notícias de casos de pedidos de seqüestros que levam meses para merecer um despacho burocrático absolutamente desnecessário: “diga a Fazenda”; “ao Ministério Público para manifestação”; “ao Depri para informar” etc. etc. Os tribunais, na verdade, dispõem de um sistema informatizado que, em questão de segundos, consegue informar a eventual quebra de ordem cronológica. Evidente, pois que despachos da espécie ensejam a aplicação do § 7º sob comento.


Art. 100, § 8º


O § 8º veda a expedição de precatórios complementares ou suplementares. Trata-se de incorporação da jurisprudência do STF que declarou a inconstitucionalidade da medida então adotada pelo Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que previa a expedição de ofício requisitório para pagamento em 90 dias do saldo do precatório representado por juros e correção monetária. A menos que se dê uma interpretação ampla ao disposto na parte final do § 5º para abranger não apenas a correção monetária, mas também, os juros devidos o débito nunca será quitado definitivamente, ensejando expedição de novos precatórios a cada atraso no pagamento dessas verbas acessórias.


Esse parágrafo 8º proíbe, ainda, o fracionamento do precatório para fins de enquadramento de parcela do total como requisitório de pequeno valor, que é pago sem a formalidade da expedição de precatório judicial (§ 3º). O legislador constituinte é de uma riqueza ímpar na explicitação de normas latentes, sempre que essas favorecerem a Fazenda Pública.


Art. 100, § 9º


O § 9º, que é auto-aplicável, determina a compensação unilateral da dívida ativa constituída contra o credor original da entidade política devedora, antes da expedição do precatório judicial, abrangendo inclusive, as parcelas vincendas de parcelamentos (Refis) ressalvados apenas aqueles cuja execução esteja suspensa em virtude de contestação administrativa ou judicial. Para tanto, o § 10 prescreve que o Tribunal solicite à Fazenda devedora informações acerca de eventuais débitos do precatorista, que deverão ser fornecidas em 30 dias, sob pena da perda do direito de abatimento.


Além dessa compensação unilateral pela Fazenda Pública implicar, necessariamente, atraso na expedição de precatório por conta da burocracia com a elaboração de ofício, sua expedição e vinda das informações, o citado § 9º contem vícios de ilegalidade e de inconstitucionalidade.


Nota-se, de pronto, a violação do princípio da paridade das partes. Se a Fazenda pode compensar unilateralmente o seu crédito tributário com o débito resultante de sua condenação judicial segue-se que qualquer credor de precatório (cessionário ou não), também, deveria ter o direito de compensar o tributo devido a Fazenda, concedendo-se ao precatório o poder liberatório de pagamento de tributos nos mesmos moldes estabelecidos no § 2º, do art. 78, do ADCT. Outrossim, o dispositivo anula os benefícios do Refis IV instituídos pela Lei nº 11.941/2009, ao compensar as parcelas vincendas.


Mas, o vício mais grave é o de natureza constitucional consistente na violação do princípio do devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF) que abarca, necessariamente, o princípio do contraditório e ampla defesa (art. 5º, LV, da CF).


Quem lida com a matéria tributária sabe que as três Fazendas vêm mantendo na inscrição da dívida ativa, por tempo indefinido, créditos tributários extintos pela prescrição. Nessas hipóteses, de nada adianta a ressalva estabelecida em relação aos créditos tributários com exigibilidade suspensa por decisão administrativa ou decisão judicial, pois o crédito tributário prescrito não suscita discussão judicial, senão quando ajuizada a execução fiscal. É claro que a compensação unilateral pela Fazenda desses créditos tributários extintos pela prescrição – insusceptíveis de cobrança judicial – viola o princípio do devido processo legal de que é corolário o princípio do contraditório e ampla defesa. Nem se argumente com o uso de via processual adequada para contestar a compensação indevida, pois a solução do litígio levaria anos. Eventual ressarcimento posterior não tem o condão de eliminar o problema, pois ninguém poderá perder a liberdade e os seus bens sem o devido processo legal. O contraditório e ampla defesa deve preceder a privação do patrimônio do precatorista. E mais, a supressão da via judicial para defesa dos interesses do contribuinte implica, também, violação do princípio do livre acesso ao Poder Judiciário previsto no art. 5º, XXXVI, da CF. Outrossim, não se pode pretender transformar a Presidência do Tribunal em órgão de solução de litígio de natureza tributária , violando o princípio do juiz natural. Em caso de impugnação do valor do tributo compensando, a menos que se trate de mero erro aritmético, a solução da lide há de ser, necessariamente, remetida à via ordinária


Art. 100, § 11


O § 11 faculta ao credor por precatório a sua utilização para aquisição de imóveis de propriedade do ente político devedor, conforme estabelecido em lei ordinária. Trata-se de encampação da proposta apresentada pela OAB. A depender da boa vontade do ente político devedor essa faculdade do credor, que não configura um direito assegurado constitucionalmente, não sairá do papel. Para criar um direito a favor do precatorista é preciso impor obrigações ao ente político devedor.


Art. 100, § 12


O § 12 muda o critério de atualização de valores de requisitórios expedidos a partir da data da promulgação da Emenda sob comento, ou seja, a partir de 10-12-2009. Os novos índices de atualização somente têm aplicação após a expedição do precatório. Essa atualização consistirá na aplicação do índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança (TR), e, para fins de compensação da mora, a incidência de juros simples no mesmo percentual que remunera a caderneta de poupança, ficando expressamente excluída a incidência de juros compensatórios.


A exclusão dos juros compensatórios, introduzidos nas expropriatórias por criação pretoriana, está correta. Sua acumulação com os juros moratórios conduz a uma incoerência, pois o expropriado não pode ser, ao mesmo tempo, titular da coisa desapropriada a justificar incidência de juros compensatórios, e da indenização a justificar juros moratórios pelo atraso no seu pagamento. Ora, a indenização substitui a coisa expropriada recompondo o patrimônio do expropriado em nada acrescentando.


Os juros compensatórios surgiram nas expropriatórias indiretas como sucedâneo de juros moratórios, na época, não passível de aplicação senão após o trânsito em julgado da sentença condenatória proferida contra a Fazenda Pública (art. 3º, do DL nº 22.785, de 31-5-1953). Porém, a partir do advento da Lei nº 4.414/1964, a proibição legal foi revogada passando a Fazenda responder pelos juros na forma do Código Civil. Desde então deveria ter cessado a incidência de juros compensatórios. Porém, o que aconteceu foi exatamente o contrário: os juros compensatórios passaram a incidir, também, nas expropriatórias diretas. Isso fez com que as sentenças de desapropriação representassem o título mobiliário de maior rentabilidade no País (12% de juros compesnatórios e 6% de juros moratórios a.a, além da correção monetária).


A tentativa de suavizar o impacto desses juros pela MP nº 2.183-56, de 24-8-2001, reduzindo o seu percentual para 6% a.a. não prosperou. O STF suspendeu a aplicação dessa Medida Provisória sob o fundamento de que os juros compensatórios à taxa de 12% a.a é uma criação pretoriana fundada no preceito constitucional da justa indenização (Adin MC nº 2332-DF, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 13-9-2001).


Resta verificar qual o rumo que a jurisprudência da Corte Suprema seguirá em face da Emenda que suprimiu os juros compensatórios que a Suprema Corte havia criado com fundamento no princípio constitucional do prévio pagamento da justa indenização. A percepção de juros compensatórios em desapropriação direta é direito fundamental do expropriado? É um direito suprimível por meio de emenda?


Art. 100, § 13


O § 13 permite a cessão parcial ou total do crédito representado por precatório a terceiros, independentemente da concordância da Fazenda devedora. Entretanto, os efeitos da cessão só serão produzidos após comunicação, por meio de petição protocolada, ao tribunal de origem e à entidade devedora (§ 14). Nesta hipótese, não se aplica ao cessionário os privilégios concernentes à natureza alimentícia do débito, à idade avançada do cedente, nem as facilidades concernentes às obrigações de pequeno valor. Faltou conferir efeito liberatório a esses precatórios cedidos após seu o vencimento, segundo proposta que apresentamos. O que motivava a procura desses precatórios é exatamente a possibilidade de sua compensação com os créditos tributários da Fazenda devedora. Sem a cessão de crédito muitos dos credores não receberão em vida os valores representados pelos precatórios sob moratória sem prazo definido.


Mesmo sem efeito liberatório esses precatórios adquiridos por terceiros servirão para assegurar o juízo da execução, assim como servirão de instrumento de blindagem patrimonial.


Outra questão que merece lembrança é a que diz respeito à possibilidade do exercício da cessão de direitos decorrentes da ação judicial em curso. No meu entender, como não há vedação constitucional, são aplicáveis as disposições do art. 41 e seguintes do CPC. Havendo expressa concordância do cedente, o cessionário poderá substituir a parte originária no processo (art. 42, § 2º, do CPC), hipótese em que o precatório será expedido em seu nome, tornando-se credor original para efeito do § 9º, do art. 100, da CF.


Art. 100, § 15


O § 15 comete à lei complementar o estabelecimento do regime especial de pagamento dos créditos dos precatórios dos Estados, Distrito Federal e Municípios, dispondo sobre vinculações à receita corrente liquida e forma e prazo de liquidação.


Esse parágrafo deve ser interpretado com intensa restrição, sob pena de se permitir a instituição de um regime excepcional permanente, como o instituído pelo art. 97 do ADCT.


O art. 100 e § § 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 9º e 13 inserem-se no âmbito dos direitos e garantias fundamentais insusceptíveis de supressão ou limitação, até mesmo por emendas. Daí o vício de inconstitucionalidade, tanto da Emenda 30/2000, como da Emenda 62/2009 sob comento.


O que a lei complementar poderá fazer é simplesmente aumentar o elenco das hipóteses excepcionais do art. 167, IV da CF,que veda a vinculação da receita de impostos a órgãos, fundos e despesas, de sorte a assegurar o pagamento tempestivo dos precatórios judiciais. Já existem vinculações para a educação, para a saúde e para a administração tributária. Poderá, haver, agora, vinculação para pagamento de precatórios. Vinculação significa, assegurar fontes fixas para custeio de despesas. Nada tem a ver com a idéia de moratória.


Art. 100, § 16


O § 16, por fim, faculta a União assumir os débitos dos Estados, Distrito Federal e dos Municípios representados pelos precatórios, refinanciando-os diretamente.


Se houvesse vontade política, os débitos deveriam ser pagos em títulos de dívida pública de emissão dos entes devedores, com aval do Tesouro Nacional dotados de poder liberatório após os vencimentos respectivos, como dispunha a nossa proposta inicial.


E mais, se de fato quisesse resolver o problema bastaria a União assumir de fato essas dívidas e quitá-las imediatamente, pois o total de débitos em precatórios equivale a menos do que o valor correspondente a seis meses de juros que o País vem pagando por conta de sua dívida. E mais, poderia, também, destinar uma parte dos fabulosos royalties provenientes da exploração, não só do petróleo, gás natural e xisto betuminoso, como também, de outros recursos da natureza como recursos minerários e recursos hídricos. Enfim, fontes alternativas para resgates desses precatórios, que vêm sendo empurrados com a barriga ao longo das décadas, não faltam. Só não há vontade política de cumprir as decisões judiciais.


Considerações finais.


O art. 100 e parágrafos que já contém dificuldades na rápida implementação do regime de pagamento de precatórios, causando incidentes processuais antes inexistentes, não se aplicam à maioria dos Estados e Municípios que, por estarem em mora na data da promulgação da Emenda sob comento, foram automaticamente incluídos no regime especial de pagamento de precatórios. Dependendo da opção feita pelo ente devedor (pagamento em 15 anos ou depósito de 1/12 por mês de percentual da receita líquida) a moratória não terá prazo final. Poderá o “calote” perdurar por 50 ou 100 anos conforme a vontade dos governantes. Bastará que continue a política de supressão parcial ou total das vantagens legais conferidas aos servidores públicos, ou a política de desapropriações em massa para gerar milhares de novos precatórios, agora, sem prazos de vencimentos.


Tudo indica que a cada PEC do precatório aperfeiçoam-se os mecanismos para premiar os maus governantes e impor um sacrifício cada vez maior aos credores do poder público. Não faz o menor sentido aplicar regras excepcionais aos precatórios resultantes de ações judiciais propostas contra o poder público após a promulgação da Emenda sob comento.


Ao eliminar a figura da mora do precatório, deixando-o sem prazo de vencimento, o legislador constituinte derivado violou o princípio da razoabilidade, que se impõe como um limite à ação do legislador.



Informações Sobre o Autor

Kiyoshi Harada

Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.


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