Assunto: Precatórios de natureza alimentícia. Sua utilização para compensação de tributos e nomeação à penhora em executivos fiscais.
A Consulente pede-nos parecer jurídico acerca da possibilidade de o cessionário de precatório de natureza alimentar exercer o direito à compensação de tributos da entidade política devedora, fundado no poder liberatório do pagamento previsto no § 2º, do art. 78 do ADCT.
Indaga, também, acerca da possibilidade jurídica de o cessionário de precatório alimentar oferecer em penhora esse direito de crédito nas execuções fiscais movidas pela Fazenda Pública.
Junta vários acórdãos recentes do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em sentido contrário à pretensão da consulente, ou seja, pela impossibilidade da compensação, porque não há previsão no art. 78 do ADCT para ceder o precatório alimentar e nem para conferir-lhe poder liberatório do pagamento de tributos. A aceitação da penhora de precatório alimentar equivaleria à compensação de tributos.
Formula a consulente os seguintes quesitos:
1) Pede-se breves comentários sobre julgados do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que negam o poder liberatório do precatório alimentar e não admitem seu oferecimento à penhora, principalmente, por parte do cessionário (acórdãos anexos).
2) Se o precatório alimentar não for munido do poder liberatório, pergunta-se, é possível requerer o seu seqüestro depois de vencido e não pago?
3) Em caso de concluir pela inexistência do poder liberatório do pagamento pode o precatório alimentar ser oferecido em penhora na execução fiscal?
4) Se for acolhida a tese de que o precatório alimentar está munido do poder liberatório do pagamento de tributos o que mudaria em termos de utilização dessa espécie de precatório para garantia do juízo da execução? E como proceder para obter a futura quitação do débito tributário ou o sobrestamento da execução?
5) Qual o recurso cabível da decisão do Tribunal local que negar o poder liberatório do pagamento de tributo, ou da decisão que repelir a nomeação de penhora de precatório alimentar?
PARECER
Considerações iniciais
A matéria objeto de consulta envolve questões de natureza constitucional e legal, no plano material e no plano processual.
Dispõe o art. 78 e § 2º do ADCT:
“Art. 78. Ressalvados os créditos definidos em lei como de pequeno valor, os de natureza alimentícia, os de que trata o art. 33 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e suas complementações e os que já tiverem os seus respectivos recursos liberados ou depositados em juízo, os precatórios pendentes na data de promulgação desta Emenda e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 serão liquidados pelo seu valor real, em moeda corrente, acrescido de juros legais, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos, permitida a cessão dos créditos.(…)
§ 2º As prestações anuais a que se refere o caput deste artigo terão, se não liquidados até o final do exercício a que se refere, poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora.”(Disposições introduzidas pela EC nº 30, de 13-9-2000)
Duas questões devem ser enfrentadas. A primeira delas diz respeito à aplicabilidade imediata, ou não, do § 2º, do art. 78 do ADCT. A segunda questão consiste em saber se o precatório alimentar pode ser compensado com débitos tributários da entidade pública devedora, ou seja, se esse precatório alimentar possui, ou não, poder liberatório do pagamento de tributo.
Ambas as questões são objetos de apreciação pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (RE nº 500.400-RS, Rel. Min. Eros Grau e RE nº 566.349-MG, Rel. Min. Carmen Lucia), onde se reconheceu a existência de repercussão geral dos temas debatidos.
Da aplicação imediata do § 2º, do art. 78 do ADCT
Quanto à aplicabilidade imediata do § 2º, do art. 78, do ADCT há jurisprudência firmada, tanto no STJ como no STF no sentido de auto- aplicabilidade do comando retro referido. Confiram-se o ROMS nº 26.500.60, Rel. Min. Teori Albino Zawascki, j. em 4-6-2009, DJ de 15-6-2009 e a Adin nº 2.851-RO, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 3-12-2004.
Tudo indica não haver dificuldades na consagração dessa tese da aplicação imediata do § 2º, do art. 78, do ADCT.
Do poder liberatório do precatório de natureza alimentícia
Com relação ao tema que diz respeito ao poder liberatório do precatório de natureza alimentícia difícil é antever a decisão que a Corte Suprema tomará no bojo do RE 566.349, em virtude do aspecto político que envolve o tema. É certo, porém, que, em decisão monocrática, o Min. Eros Grau havia reconhecido o direito à compensação do precatório alimentício expedido contra autarquia de um Estado-membro com os créditos tributários do mesmo Estado-membro (RE nº 550.400-RS, DJ de 18-9-2007). Entretanto, por força do Agravo Regimental e por proposta do próprio Min. Eros Grau, a 2ª Turma do STF deliberou submeter o julgamento da causa do Plenário da Corte Suprema, conforme decisão publicada no DJ de 10-10-2008.
Dessa forma, aquela decisão monocrática não serve de paradigma, mesmo porque se tratava de compensar tributos de um Estado-membro com precatório alimentar expedido contra entidade autárquica que goza de independência financeira. Seus recursos financeiros não se confundem com os da administração direta.
Contudo, nada obsta externarmos nosso entendimento acerca do tema consultado à luz de dispositivos constitucionais interpretados de forma sistemática.
Dispõe o art. 100 da CF:
“Art. 100. À exceção dos créditos de natureza alimentícia, os pagamentos devidos pela Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.
§ 1º É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos oriundos de sentenças transitadas em julgado, constantes de precatórios judiciários, apresentados até 1º de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão seus valores atualizados monetariamente.
§ 2º As dotações orçamentárias e os créditos abertos serão consignados diretamente ao Poder Judiciário, cabendo ao Presidente do Tribunal que proferir a decisão exeqüenda determinar o pagamento segundo as possibilidades do depósito, e autorizar, a requerimento do credor, e exclusivamente para o caso de preterimento de seu direito de precedência, o seqüestro da quantia necessária à satisfação do débito”.
Para clareza do confronto a ser feito transcreve-se novamente o art. 78 e § 2º do ADCT:
“Art. 78. Ressalvados os créditos definidos em lei como de pequeno valor, os de natureza alimentícia, os de que trata o art. 33 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e suas complementações e os que já tiverem os seus respectivos recursos liberados ou depositados em juízo, os precatórios pendentes na data de promulgação desta Emenda e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 serão liquidados pelo seu valor real, em moeda corrente, acrescido de juros legais, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos, permitida a cessão dos créditos. (…).
§ 2º As prestações anuais a que se refere o caput deste artigo terão, se não liquidados até o final do exercício a que se refere, poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora.” (Disposições introduzidas pela EC nº 30, de 13-9-2000)
O § 2º, do art. 78, do ADCT não deve ser interpretado isoladamente sob o singelo argumento de tratar-se de norma excepcional estabelecendo um regime específico de pagamento, sob pena se conferir ao crédito alimentar privilegiado menos direito que ao crédito não privilegiado, objeto de parcelamento. As parcelas vêm sendo pagas porque são passíveis de seqüestro e de compensação com tributos da entidade política devedora, ao passo que, os créditos alimentares, por serem privilegiados foram excluídos do regime de parcelamento e podem, por essa razão, ter o seu pagamento suspenso por tempo indefinido, como vem acontecendo na realidade. Enquanto a fila de precatórios comuns está andando, a fila de precatórios alimentares acha-se paralisada desde 1998 em várias das entidades políticas. Trata-se, de um privilégio muito estranho que acarreta a punição do privilegiado. Será isso que a Constituição quer? A resposta é negativa. Impõe-se a busca de uma interpretação conforme a Constituição.
O privilégio de que gozam os créditos de natureza alimentícia deriva de sua insubmissão à ordem cronológica de apresentação de precatórios, na dicção expressa do texto constitucional “à exceção dos créditos de natureza alimentícia”, significando pagamento imediato. Os créditos de outra natureza sujeitam-se à inserção na ordem cronológica (art. 100 da CF) com a inclusão das verbas requisitadas até o dia 1º de julho de cada ano no orçamento do exercício seguinte (§ 1º, do art. 100) a fim de serem pagos até o final do exercício mediante utilização de verba consignada diretamente ao Poder Judiciário (§ 2º, do art. 100).
Portanto, há um interregno de seis meses a dezoito meses entre a data da requisição (até 1º de julho) e o prazo final para o pagamento da quantia requisitada. Esse interregno é afastado, com solar clareza, pelo texto constitucional em se tratando de condenação judicial referente à verba de natureza alimentar.
É verdade que, na prática, evoluiu-se para a formação de fila autônoma de precatórios de natureza alimentícia dada a impossibilidade financeira de pagar a todos os credores da espécie em um único momento. Diga-se de passagem, que essa situação é fruto, em sua maior parte, do descumprimento de leis salariais pelo poder público, em um primeiro momento e, ao depois, da resistência oferecida pelo mesmo poder público no cumprimento da ordem judicial, após o trânsito em julgado da decisão condenatória.
O certo é que, quando o legislador constituinte derivado promulgou a EC nº 30, de 13-9-2000, ele partiu do pressuposto de que os créditos de natureza alimentar são privilegiados impondo-se seu pagamento imediato, independentemente da observância daquele interregno de seis a dezoito meses acima mencionado. Daí a razão de sua não inclusão no regime excepcional de pagamentos em até dez parcelas anuais.
E mais, na época não havia, ainda, uma posição definitiva da Corte Suprema quanto à insubmissão de créditos alimentícios à ordem cronológica específica, o que só veio a acontecer com o advento da Súmula nº 655 publicada em 13-10-2003:
“Súmula 655 – A exceção prevista no art. 100, “caput”, da Constituição, em favor dos créditos de natureza alimentícia, não dispensa a expedição de precatório, limitando-se a isentá-los da observância da ordem cronológica dos precatórios decorrentes de condenações de outra natureza”.
Repita-se, por ocasião da promulgação da EC nº 30/2000 o entendimento era no sentido de pagamento imediato do crédito alimentar com a dispensa de ordem cronológica, como está expresso no caput do art. 100 da CF. Dessa forma, a sua previsão expressa no § 2º, do art. 78, do ADCT implicaria consagração do entendimento de que os créditos de natureza alimentícia devem ser incluídos na ordem cronológica, antecipando-se à decisão da Corte Suprema que só veio pacificar definitivamente a matéria com o advento da Súmula 655 em 13-10-2003, editada pelo STF na condição de intérprete máximo da Constituição Federal.
Contudo, o fato de os créditos de natureza alimentícia terem ficado à salvo de parcelamentos (porque devem ser satisfeitos imediatamente) não pode significar que esses créditos, representados por precatórios privilegiados não têm prazo de pagamento e não há sanções nas hipóteses de seu inadimplemento, como pretendem os governantes que, como é público e notório, partiram para o congelamento da fila de precatórios alimentícios. Não pagam e quando pagam, o fazem de forma esporádica dando preferência absoluta ao pagamento de parcelas dos precatórios não alimentares, porque expressamente munidos de mecanismos garantidores de seu cumprimento. De fato, na hipótese de inadimplemento, esses precatórios não-alimentares ensejam o seqüestro e a deflagração do poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora.
Não se pode interpretar o texto constitucional com uma visão positivista extremada apegando-se à expressão literal do § 2º, do art. 78 do ADCT ao ponto de negar a função da Justiça e contrariar o bom-senso, conferindo ao precatório não-alimentar mais direitos que ao precatório de natureza alimentícia, principalmente quando a jurisprudência está sublinhando exatamente a preferência absoluta dos precatórios alimentícios.
Incogitável a idéia de “punição” do credor de natureza alimentícia que o legislador constituinte quis privilegiar. Impõe-se o reconhecimento de que ao precatório de natureza alimentar não pago no prazo constitucional (no final de cada exercício) deve ser conferido o poder liberatório de que cuida o § 2º, do art. 78, do ADCT.
Visto sob outro ângulo e por meio de uma interpretação teleológica conclui-se que o crédito alimentício, representado por um precatório vencido e não pago há mais de dez anos como é comum no Estado de São Paulo, por exemplo, de há muito perdeu sua natureza alimentícia.
De fato, um vencimento ou provento que tenha sido ilegalmente suprimido, no todo ou em parte, durante anos perde a sua característica de crédito de natureza alimentícia por perda de sua finalidade: manter a subsistência do credor e seus dependentes no dia a dia. Os incômodos, as situações de desconforto suportados pelo credor são de natureza irreparável.
Ora, se não mais subsiste o pressuposto levado em conta pelo legislador constituinte derivado – pagamento imediato dos créditos alimentares – que o levou a não incluir expressamente esses créditos no comando previsto no § 2º, do art. 78, do ADCT parece óbvio que se devam considerar esses créditos munidos do poder liberatório do pagamento de tributos da entidade política devedora.
Pela mesma razão perde a característica de crédito alimentício se houver cessão desse crédito a terceira pessoa, principalmente, à pessoa jurídica que, evidentemente, não precisa de alimentos. Há jurisprudência nesse sentido:
“EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. POSSIBILIDADE DE HAVER CESSÃO DE CRÉDITO DE PRECATÓRIO ALIMENTAR. SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL. 1. Possibilidade de haver cessão de crédito de precatório alimentar. 1.1 Inexistindo norma proibitiva expressa, nada obsta que o titular de crédito de pensão previdenciária, amparado por precatório de natureza alimentar, o negocie por meio de cessão. Tal crédito não é intransferível, haja vista a transmissão aos herdeiros, logo, pode ser cedido, sob pena de reconhecer-se aos herdeiros direito maior do que ao próprio autor da herança, além da violação do direito de propriedade, uma vez que traz ínsito o direito de não ser proprietário, no caso, o direito de dispor (CF, art. 5º, XXII, CC/1916, art. 524; CC/2002, art. 1.228). A única conseqüência é a de que, com a cessão, o crédito perde a natureza alimentícia (CF, art. 100). 1.2 A cessão de crédito de precatório de natureza alimentícia não fere a coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI). O não pagamento sim, é que fere a coisa julgada, pois, na prática subtrai a efetividade da prestação jurisdicional no seu momento mais importante ao credor: receber o que lhe é de direito. Ainda, subtraindo a efetividade da prestação jurisdicional, o efeito prático é o da exclusão do Poder Judiciário, o que fere o princípio da ubiqüidade (CF, art. XXXV). 2 Substituição processual. A possibilidade de o titular de crédito amparado em título executivo cedê-lo está prevista no art. 567, II, do CPC, caso em que o cessionário substitui no processo o cedente. Despicienda, outrossim, a anuência da parte contrária (CPC, art. 42, § 1º), pois não há mais litígio. 3 Agravo desprovido” (Agravo de instrumento nº 70025419151, 1ª Câm. Cív. Tribunal de Justiça do RS, Relator Des. Irineu Mariani, DJ de 20-10-2008). No mesmo sentido os Agravos de Instrumentos ns. 70025243833, 70027617182 do mesmo Relator.
Da preferência absoluta dos créditos de natureza alimentar
Certo, entretanto, que o que há de incontroverso nos tribunais do País, até o presente momento, é apenas a preferência absoluta dos créditos de natureza alimentícia. Quanto ao poder liberatório dessa espécie de precatório pende de decisão da Corte Suprema.
Transcrevamos, a titulo ilustrativo, a ementa do acórdão proferido pelo STJ no Recurso em Mandado de Segurança nº 24.510-SP, em 21-5-2009, em que se fez referência a inúmeros precedentes do STF:
“EMENTA: CONSTITUCIONAL. PRECATÓRIO. CRÉDITO ALIMENTAR. PRIORIDADE EM RELAÇÃO AOS COMUNS. QUEBRA DA PRECEDÊNCIA. SEQUESTRO. CABIMENTO. 1. Os atos do presidente ou do colegiado de Tribunal de Justiça que disponham sobre processamento e pagamento de precatório não têm caráter jurisdicional, mas administrativo (Súmula 311/STJ; Súmula 733/STF). Segundo a jurisprudência do STF (v.g.: ADI 1.098, Min. Marco Aurélio, DJ de 25.10.96; RE 281.208, Min. Ellen Gracie, DJ de 26.04.02) e do STJ (v.g.: RMS 14.940/RJ, 1ª T., DJ de 25.11.2002 RMS 26.990/SP, 1ª T., DJe 28.08.2008; RMS 19.047/SP, 2ª T. DJ de 26.09.2005; RMS 17.824/RJ, 2ª T., DJ de 01.02.2006), esse entendimento é aplicável também às decisões que, no curso do processamento, deferem ou indeferem pedido de seqüestro de recursos públicos. 2. “A jurisprudência do Supremo, ao interpretar o disposto no caput do artigo 100 da Constituição da República, firmou-se no sentido de submeter, mesmo as prestações de caráter alimentar, ao regime constitucional dos precatórios, ainda que reconhecendo a possibilidade jurídica de se estabelecerem duas ordens distintas de precatórios, com preferência absoluta dos créditos de natureza alimentícia (ordem especial), sobre aqueles de caráter meramente comum (ordem geral)” (STA – Ag 90, Min. Ellen Gracie, DJ de 26.10.97). No mesmo sentido, reconhecendo a “preferência absoluta” dos créditos alimentares, cujo pagamento deve ser atendido prioritariamente: ADI-MC 571, Min. Néri da Silveira, DJ de 26.02.93 e na ADI 47, Min. Octávio Gallotti, DJ de 13.06.97. Nesse pressuposto, o pagamento de crédito comum antes do alimentar importa quebra de precedência, autorizando a ordem a expedição de ordem de seqüestro de recursos públicos. 3. Recurso provido”. (ROMS nº 24.510, Rel. Min. Denise Arruda, Rel. para acórdão, Min. Teori Albino Zavascki).
Dessa preferência absoluta do precatório alimentar é possível extrair-se a conclusão de que ele pode e deve, na hipótese de seu descumprimento, deflagrar o efeito liberatório do pagamento de tributo da entidade devedora. De fato, é inadmissível que créditos de natureza alimentícia, qualificados como de preferência absoluta, estejam desprovidos do mecanismo garantidor da efetivação dos direitos que protegem os créditos de outra natureza.
Ora, se o precatório alimentar preterido, o que se constata pelo simples confronto das duas filas de precatórios distintos, enseja o seqüestro (instituto garantidor previsto no § 4º, do art. 78 do ADCT) na linha da atual jurisprudência de nossos tribunais, parece lógico que ele possibilita, também, a utilização de outro instituto garantidor, ou seja, o poder liberatório do pagamento de tributos da entidade política devedora e inadimplente expressamente previsto no § 2º, do mesmo art. 78, do ADCT.
E mais, se ao invés do pagamento imediato, pressuposto levado em conta pelo legislador constituinte derivado, os créditos alimentares estão sendo preteridos pelos não-alimentares forçoso é concluir que aqueles créditos alimentares oriundos de precatórios pendentes na data da promulgação da EC nº 30/2000, bem como aqueles que decorram de ações judiciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 estão amparados pelo poder liberatório do pagamento de tributos a que alude o § 2º, do art. 78, do ADCT.
Destoa-se do bom direito a interpretação literal que leva a atribuir ao precatório, que goza de preferência absoluta, menos direito do que ao precatório não privilegiado submetido ao regime de pagamento parcelado em até dez anos.
A toda proclamação de direitos, e no caso trata-se de direitos fundamentais do cidadão-contribuinte, devem corresponder mecanismos assecuratórios com vistas à efetivação dos direitos proclamados. De nada adianta a proclamação do direito de preferência dos credores a título alimentício se estes estiverem desprovidos de meios assecuratórios que estariam ao alcance apenas dos credores não-alimentícios.
Não discrepa desse raciocínio a lição de grandes mestres do Direito Constitucional:
“A afirmação dos direitos fundamentais do homem no Direito Constitucional positivo reveste-se de transcendental importância, mas, como notara Maurice Hauriou, não basta que um direito seja reconhecido e declarado, é necessário garanti-lo, porque virão ocasiões em que será discutido e violado. Ruy Barbosa já dizia que uma coisa são os direitos, outra as garantias, pois devemos separar, ‘no texto da lei fundamental, as disposições meramente declaratórias, que são as que imprimem existência legal aos direitos reconhecidos, e as disposições assecuratórias, que são as que, em defesa dos direitos, limitam o poder. Aquelas instituem os direitos, estas, as garantias: ocorrendo não raro juntar-se, na mesma disposição constitucional ou legal, a fixação da garantia, com a declaração do direito’. Não são nítidas, porém as linhas divisórias entre direitos e garantias, como observa Sampaio Dória, para quem ‘os direitos são garantias, e as garantias são direitos’, ainda que se procure distingui-los”[1].
“A garantia dos direitos fundamentais enquanto direitos de defesa contra intervenção indevida do Estado e contra medidas legais restritivas dos direitos de liberdade não se afigura suficiente para assegurar o pleno exercício da liberdade. Observe-se que não apenas a existência de lei, mas também a sua falta pode revelar-se afrontosa aos direitos fundamentais. É o que se verifica, v.g., com as chamadas garantias de natureza institucional, com os direitos à prestação positiva de índole normativa, inclusive o chamado direito à organização a ao processo (Recht auf Organization und auf Verfahren) e, não raras vezes, com o direito de igualdade.
A concretização desses direitos exige, não raras vezes, a edição de atos legislativos, de modo que eventual inércia do legislador pode configurar afronta a um dever constitucional de legislar”[2].
Indubitável, pois que há de ser buscado um mecanismo assecuratório do direito à prioridade absoluta dos créditos de natureza alimentícia proclamada pelos tribunais.
Por isso, interpretação que afasta a incidência da norma do § 2º, do art. 78 do ADCT em relação aos créditos de natureza alimentar nega a proclamada prioridade absoluta e choca-se com o princípio da supremacia da Constituição, pois ela em seu art. 100 caput, interpretada pelo STF, conferiu privilégio especial a esses créditos.
Se o grande número de credores alimentícios, decorrente de desrespeitos às leis salariais cometidos pelos governantes, tornou inviável financeiramente o pagamento das condenações judiciais a esse título de uma só vez, conduzindo à formação de ordem cronológica em separado, por óbvio, essa espécie de precatório alimentar há de ter precedência absoluta sobre os não-alimentares, conforme já proclamada pela jurisprudência. Afinal, ele representa verbas alimentares ilegalmente subtraídas ao longo de tempo de seus legítimos titulares causando situações de desconforto para si e seus familiares.
A inversão que vem ocorrendo na prática , fato público e notório, é inconstitucional, imoral e intolerável em face da ordem constitucional vigente, que não permite que esses credores continuem morrendo na fila de precatórios alimentares, depois de obterem vitória na Justiça ao cabo de mais de cinco anos de discussão judicial.
Impõe-se o reconhecimento do direito à compensação de que cuida o § 2º, do art. 78, do ADCT aos credores alimentícios que tiveram seus precatórios descumpridos no final do exercício respectivo, principalmente, àqueles vitimados com a preterição no seu direito de precedência verificável mediante o confronto das duas filas de precatórios: alimentares e não-alimentares.
Concluir de forma diversa é violar o princípio da coisa julgada (art. 5º, XXXVI da CF), pois subordinar a definição da época do pagamento à vontade unilateral do governante equivale, na prática, à subtração da efetividade da jurisdição em seu momento mais importante para o demandante vitorioso, qual seja, o momento de receber o que lhe é devido. E, por conseguinte, vulnera, também, o princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV da CF), porque torna inócua a atuação do Poder Judiciário.
Do oferecimento à penhora do precatório alimentar pelo cessionário
Independentemente de o precatório alimentar ter, ou não, poder liberatório, como título representativo de crédito que é pode ele ser cedido, bem como oferecido à penhora para garantia do juízo da execução.
A consulente juntou diversos acórdãos recentes do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo adiante mencionados, todos em sentido contrário à possibilidade de penhora desses precatórios. Procedemos ao exame dos seguintes acórdãos: Ap. cível com revisão nº 912.959-5-9-00, Rel. Des. Danilo Panizza; Agravo Interno nº 911.455-5/3-01, Rel. Des. Teresa Ramos Marques; Agravo de Instrumento nº 814.098-5/4-00, Rel. Des. Guerrieri Rezende; Ap.. cível com revisão nº 898.086-5/4-00, Rel. Des. Edson Ferreira; Ap. cível com revisão nº 656.556-5/4-00, Rel. Des. Moacir Peres; Ap. cível com revisão nº 717.793-5-9-00, Rel. Des. Gonzaga Franceschini.
Esses acórdãos não admitem a compensação, que estaria limitada aos precatórios comuns, parcelados pela EC nº 30/2000. Um deles sustenta chega a sustentar que a compensação implicaria quebra de ordem cronológica estabelecida pelo art. 100 da CF.
A questão do poder liberatório, como antes mencionado, está para ser definido pelo Plenário da Corte Suprema.
Quanto à quebra de ordem cronológica, tese que encontra precedente na inusitada decisão proferida pelo Órgão Especial do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Incidente de Declaração de Inconstitucionalidade nº 4298966-6/01) incorre em manifesto equivoco, por negar efeito ao comando do § 2º, do art. 78 do ADCT. Absolutamente impossível o reconhecimento do poder liberatório dentro da ordem cronológica estabelecida pelo art. 100 da CF, pois, nem todos os credores por precatórios são devedores de tributos, além de outras inúmeras particularidades que inviabilizam a observância de ordem cronológica de apresentação dos precatórios na quitação de tributos da entidade política devedora por meio de precatórios de sua responsabilidade.
No que tange a nomeação à penhora de precatórios alimentares pelo cessionário não nos parecem acertadas as decisões estampadas nos acórdãos examinados, que alinham os seguintes argumentos: (a) precatório alimentar não permite cessão ao teor do art. 78 do ADCT; (b) aceitação da penhora implica compensação não permitida pelo § 2º, do art. 78, do ADCT; (c) o § 3º do art. 16 da Lei nº 6.830/88 veda a compensação; (d) falta a previsão legal referida no art. 170 da CTN.
Examinado-se atentamente o relatório desses julgados, salvo nos casos de mandados de segurança impetrados, nota-se que o próprio executado, ao nomear à penhora precatórios alimentares com fundamento no § 2º do art. 78 do ADCT, acabou por provocar a consagração de entendimento equivocado.
A extensão do poder liberatório do pagamento do tributo da entidade política devedora ao cessionário de precatório parcelado, operada pelo art. 78 do ADCT, por óbvio, não implicou, nem poderia implicar proibição de cessão de crédito de natureza alimentar, matéria regulada pelo Código Civil em seu art. 286. O que não pode ser cedido, penhorado ou renunciado são os direitos a alimentos de que cuida o Direito de Família (art. 1.707 do CC).
Quanto à alegada compensação pela penhora, o argumento, também, não procede. A penhora constitui garantia do juízo, indispensável ao exercício do direito de defesa por meio de embargos (§ 1º do art. 16 da Lei nº 6.830/80). O precatório objeto de penhora poderá ser arrematado por qualquer interessado e nem há necessidade de coincidência entre a entidade política exeqüente de tributo e aquela entidade política contra a qual foi expedido o precatório. Em outras palavras, o precatório estadual pode ser dado em penhora em uma execução federal e vice-versa. O precatório equivale a um titulo de crédito, pois o seu titular detém o direito de percepção do crédito, que pode ser cedido nos termos do direito comum.
Por isso, a aceitação da nomeação à penhora de precatório alimentar não pode ficar condicionada à existência de poder liberatório dessa espécie de precatório.
Inconsistente, outrossim, o argumento da falta de previsão legal. Não bastasse a jurisprudência do STJ e do STF no sentido da aplicação imediata do § 2º, do art. 78, do ADCT, a extinção do crédito tributário pela forma prevista nesse dispositivo transitório não se confunde com a modalidade de extinção, por via da compensação, prevista no art. 170 do CTN, a qual, se opera exclusivamente entre tributos.
Na compensação há faculdade do poder público de dispor a respeito. Na modalidade de extinção do crédito tributário prevista no § 2º, do art. 78, do ADCT há direito auto-exercitável do credor por precatório de extinguir o crédito tributário. Por isso, denominamos de dação em pagamento, porém, uma dação que independe da vontade da Fazenda. O fato de a doutrina e a jurisprudência ter batizado de compensação a essa modalidade de extinção do crédito por aplicação do comando previsto no ADCT não a transforma em mera faculdade do poder público de implementar, ou não, o disposto no art. 170 do CTN. A eficácia do § 2º, do art. 78, do ADCT não está na dependência da vontade dos legisladores de 27 Estados-membros e de mais de 5.500 Municípios.
A jurisprudência dos tribunais é tranqüila no sentido da possibilidade de penhora de créditos oriundos de precatórios cedidos a terceiros. Senão vejamos:
“EMENTA: PROCESSO CIVIL E TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. BEM NOMEADO À PENHORA. PRECATÓRIO DE EMISSÃO DA EXEQÜENTE, ADVINDO DE CESSÃO DE CRÉDITOS. POSSIBILIDADE. 1. A Lei 6.830/80, art. 9º, III e art. 11, VIII atribui ao executado a prerrogativa de nomear bens à penhora, que pode recair sobre direitos e ações. 2. A execução deve ser promovida pelo meio menos gravoso ao devedor. Inteligência do art. 620 do CPC. 3. Conseqüentemente, admite-se a nomeação, para fins de garantia do juízo, de crédito da própria Fazenda Estadual consubstanciado em precatório, máxime por suas características de certeza e liquidez, que se exacerbam quando o próprio exeqüente pode aferir-lhe a inteireza. (Precedentes: REsp. nº 739996/SP , Relator Ministro CASTRO MEIRA, DJ. 19.12.2005; REsp. nº 757303/SP, Relator Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, DJ. 26.09.2005; AgRg no REsp 434.722 – SP , Relator Ministro FRANCISCO FALCÃO, DJ de 03 de fevereiro de 2003; REsp 365-095 – ES, Relator Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, DJ de 9 de dezembro de 2003; AgRg no REsp 399557 – PR, Relator Ministro JOSÉ DELGADO, DJ de 13 de maio de 2002). 4. In casu, a recorrente nomeou à penhora precatório oriundo de cessão de crédito, tendo a 7ª Vara de Fazenda Pública deferido a sucessão processual por cessão de crédito, razão pela qual nenhum óbice há à aceitação da referida nomeação à penhora. 5. Recurso especial provido” (RESP nº 721.423/SP, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 18/9/2006, p. 270).
“PROCESSO CIVIL. PENHORA. PRECATÓRIO ORIUNDO DE CESSÃO DE CRÉDITO. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. 1.Agravo de instrumento para reformar decisão que inadmitiu recurso especial intentado contra acórdão que indeferiu nomeação à penhora de precatório oriundo de cessão de crédito. 2. A nomeação de bens à penhora deve-se pautar pela gradação estatuída nos arts. 11 da Lei nº 6.830/80 e 656 do CPC. No entanto, esta Corte Superior tem entendido que tal gradação tem caráter relativo, já que o seu objetivo é realizar o pagamento do modo mais fácil e célere. Pode ela, pois, ser alterada por força de circunstâncias e tendo em vista as peculiaridades de cada caso concreto e o interesse das partes. 3. No caso sub examine, a recorrente nomeou à penhora precatório oriundo de cessão de crédito. Com o objetivo de tornar menos gravoso o processo executório ao executado, verifica-se a possibilidade inserida no inciso X do art. 655 do CPC, já que o crédito do precatório equivale a dinheiro, bem este preferencial (inciso I, do mesmo artigo). 4. Precedentes. 5. Agravo conhecido para conferir provimento ao recurso especial (art. 544, § 3º, do CPC)” (AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 685.314 – SP, Rel. Min. José Delgado, DJ de 03/08/2005).
O E. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, também, vem admitindo a penhora de precatório cedido como demonstra a ementa abaixo transcrita:
“AGRAVO INTERNO. DIREITO TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. NOMEAÇÃO À PENHORA. CESSÃO DE PRECATÓRIO. AUSÊNCIA DE REQUISITOS FORMAIS. 1. Possibilidade de se negar seguimento a recurso que se mostra em confronto com jurisprudência dominante neste Tribunal, nos termos do art. 557, caput, do Código de Processo Civil. Ratificação da decisão pelo Colegiado. 2. É possível a nomeação à penhora dos créditos advindos de cessão de precatórios, consoante precedentes do E. STJ. Possibilidade, contudo, condicionada à observância de requisitos formais. Necessidade de comprovação do vencimento do precatório, da habilitação do cessionário nos autos da execução do crédito e do instrumento público de cessão, no qual conste o valor do precatório, o valor cedido, e o valor por ele pago. 3. Impossibilidade de nomeação à penhora de créditos de precatórios sem comprovação de habilitação nos autos dos processos em que estes foram expedidos. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO POR MAIORIA” ( Agravo Interno nº 70030178966, Rel. Dr. Miguel Ângelo da Silva, j. em 3/6/2009).
No que se refere especificamente à penhora de precatório alimentar oferecido pelo cessionário, a E. Terceira Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo admitiu a nomeação à penhora em voto fundamentado, que distingue o efeito liberatório do pagamento de tributo, da cessão de crédito decorrente de precatório alimentar, conforme se verifica na ementa abaixo:
“Processo de execução. Habilitação. Precatório. Cessão. 1. Os arts. 41 e 42 do CPC, que dizem respeito ao processo de conhecimento, impuseram como regra a estabilidade da relação processual e, havendo cessão da coisa ou do direito litigioso, o adquirente ou o cessionário somente poderá ingressar em juizo com a anuência da parte contrária. 2. No processo de execução, diferentemente, o direito material já está certificado e o cessionário pode dar início à execução ou nela prosseguir sem que tenha que consentir o devedor. 3. O direito de crédito, oriundo de precatório de natureza alimentar, não se confunde com os alimentos, previstos no Direito de Família e que se submetem às restrições do art. 1707 do CC/02. 4. O exame da CF permite diferenciar “efeito liberatório” de cessão de direitos creditórios e pagamento mediante compensação, de forma que a segunda não se apresenta incompatível com a sistemática dos precatórios. 5. O efeito liberatório é reservado ao crédito cujo precatório foi parcelado pela moratória do art. 78 do ADCT e não teve honrado o pagamento da parcela na época prevista, sendo inexistente em relação aos demais créditos consolidados em precatórios, inclusive os alimentares. Agravo provido” (Agravo de Instrumento nº 866.146-5/0, Rel. Des. Laerte Sampaio).
Como se vê, nenhum empecilho há na nomeação à penhora de precatório alimentar pelo cessionário. Aliás, com a cessão o precatório perde sua natureza alimentar, como proclamada pela jurisprudência do E. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que reflete a pura realidade . Se o cessionário for uma pessoa jurídica, incogitável a idéia de natureza alimentar.
Respostas aos quesitos
1 – Pede-se breves comentários sobre julgados do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que negam o poder liberatório do precatório alimentar e não admitem seu oferecimento à penhora, principalmente, por parte do cessionário (acórdãos anexos).
R: A questão do poder liberatório está sub judice perante a Corte Suprema, como já vimos. Quanto a nomeação à penhora de precatórios alimentares por parte do cessionário, conforme demonstrado no corpo deste parecer, os fundamentos dos venerandos acórdãos anexados na consulta não se sustentam à luz dos textos constitucionais e legais. Outrossim, discrepam da jurisprudência do STJ, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e do bem fundamentado acórdão proferido pela E. Terceira Câmara de Direito Público do próprio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que, muito acertadamente, separa a questão do poder liberatório do pagamento de tributo, que é uma coisa, da cessão de precatório de natureza alimentar, que é coisa diversa e que nada tem a ver com os alimentos regulados pelo Direito de Família.
2 – Se o precatório alimentar não for munido do poder liberatório, pergunta-se, é possível requerer o seu seqüestro depois de vencido e não pago?
R: Se for considerado que o precatório alimentar não tem poder liberatório do pagamento de tributos fica afastada a aplicação do art. 78 e § 2º do ADCT. Consequentemente, esse precatório deverá ser pago na forma prescrita no § 1º, do art. 100 da CF. O seu valor deverá ser incluído no orçamento do exercício seguinte, se apresentado o precatório até 1º de julho, e pago atualizadamente até o final desse exercício.
Na falta de previsão expressa, o seqüestro de precatório vencido e não pago não tem sido deferido pelo Judiciário, sem que haja preterição na ordem cronológica. Caracteriza-se a preterição ao direito de precedência a legitimar o seqüestro o atraso no pagamento de precatório alimentar verificável em confronto com a fila de precatório não alimentar.
3 – Em caso de concluir pela inexistência do poder liberatório do pagamento pode o precatório alimentar ser oferecido em penhora na execução fiscal?
R: Se concluir que o precatório alimentar não tem poder liberatório, esse precatório poderá ser oferecido à penhora em processo executivo fiscal como forma de assegurar o juízo da execução, a fim de possibilitar a defesa do executado por meio de embargos.
Como titulo representativo do direito de crédito o precatório alimentar pode ser oferecido à penhora em qualquer execução fiscal movida pela Fazenda Municipal, Estadual ou Federal por não implicar compensação. Esse direito penhorado pode ser arrematado por qualquer interessado. Só terá efeito compensatório se entender que o precatório alimentar é provido de poder liberatório. Caso contrário não, porque o sistema jurídico vigente não abriga a figura da adjudicação compulsória. A possibilidade de oferecer à penhora esse tipo de precatório pelo credor originário ou pelo seu cessionário tem amparo em vasta jurisprudência citada no corpo deste parecer.
4 – Se for acolhida a tese de que o precatório alimentar está munido do poder liberatório do pagamento de tributos o que mudaria em termos de utilização dessa espécie de precatório para garantia do juízo da execução? E como proceder para obter a futura quitação do débito tributário ou o sobrestamento da execução?
R: Na hipótese de a Corte Suprema decidir que o precatório alimentar vencido não pago adquire poder liberatório do pagamento de tributos, o credor originário ou seu cessionário com instrumento devidamente formalizado poderá proceder à compensação administrativa, bem como oferecer à penhora esse precatório alimentar nos casos de execuções já ajuizadas. No caso de rejeição dos embargos com a decisão transitada em julgado operará a extinção do crédito tributário sob execução até onde for compensável com o valor atualizado do precatório. Enquanto em vigor o § 2º, do art. 78, do ADCT não terá aplicação a restrição contida no § 3º, do art. 16, da Lei nº 6.830/80.
5 – Qual o recurso cabível da decisão do Tribunal local que negar o poder liberatório do pagamento de tributo, ou da decisão que repelir a nomeação de penhora de precatório alimentar?
R: Da decisão do tribunal que negar o poder liberatório do pagamento do tributo caberá recurso extraordinário na forma da letra “a” do inciso III, do art. 102 da CF. Se a negativa envolver aplicação do art. 170 do CTN caberá, também, o recurso especial, na forma do art. 105, III, “a” da CF. Após decisão contrária do STF pela negativa da compensação nos RREE mencionados no corpo deste parecer nenhum recurso caberá.
Da decisão do tribunal que repelir a nomeação à penhora caberá recurso especial para o Superior Tribunal de Justiça na forma acima, a menos que a negativa esteja fundada na ausência de poder liberatório do pagamento de tributo, hipótese em que cabível é o recurso extraordinário como já mencionado. Entretanto, como visto na resposta dada ao quesito 3, poder liberatório do pagamento de tributo e nomeação à penhora de precatório alimentar são coisas distintas.
É o nosso parecer s.m.j.
São Paulo, 27 de agosto de 2009.
Kiyoshi Harada
OAB/SP 20.317
Notas:
Informações Sobre o Autor
Kiyoshi Harada
Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.