Prescrição do crédito tributário e a questão do jus puniendi nos casos de crimes contra a ordem tributária tipificados no art. 1º, da Lei 8.137/90

Resumo: Este artigo busca analisar a questão da prescrição penal dos crimes tipificados no artigo 1º, da L. 8.137/90 naqueles casos em que se dá a extinção do crédito tributário pela ocorrência da prescrição ou decadência, consoante previsto no art.156, V, do Código Tributário Nacional.

Palavras-chave: prescrição, crimes contra a ordem tributária extinção da punibilidade.

Sumário: I. .Introdução. II.Das condutas caracterizadoras dos crimes previstos no artigo 1 da Lei 8.137 do bem jurídico tutelado e da indispensabilidade do crédito tributário definitivamente constituído para sua ocorrência. III.Do pagamento do tributo após o recebimento da denúncia. IV.Da extinção da punibilidade nos casos em que o crédito tributário for extinto pela ocorrência da decadência ou da prescrição. V. Conclusão.

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I. Introdução

O ponto que se quer investigar neste artigo é saber se atingido o crédito tributário por uma das formas de extinção capituladas no já referido art. 156, V, do CTN o Estado poderá perseguir a sanção penal aplicável.

Para tanto, analisar-se-á os dispositivos legais de regência, os caracteres do crime previstos no art. 1º, da Lei 8.137/90, e especialmente, o verbete da Súmula Vinculante n° 24.

II. Das condutas caracterizadoras dos crimes previstos no artigo 1º, da Lei 8.137, do bem jurídico tutelado e da indispensabilidade do crédito tributário definitivamente constituído para sua ocorrência

As condutas ensejadoras dos crimes que constituem objeto deste trabalho são as seguintes:

Art. 1º. Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:

I- omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;

II- fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;

III- falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;

IV- elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;

V- negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação;

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.”

Ressai, da redação do caput do dispositivo ora transcrito, que o crime em questão é daqueles classificados como material, isto é, exige que o resultado da ação criminosa seja alcançado, na espécie faz-se indispensável que haja a efetiva supressão ou redução do tributo ou contribuição social[1]. É dizer, sem a ocorrência de um desses resultados não se poderá falar na consumação de nenhuma das condutas delitivas descritas.

A análise de qualquer crime impõe ao intérprete a identificação de qual o bem jurídico tutelado, para tanto, no caso in analise, veja-se o disposto no art. 83, da Lei n° 9.430/96, verbis:

Art. 83. A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária previstos nos arts. 1º e 2º, da Lei n. 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e aos crimes contra a Previdência Social, previstas nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), será encaminhada ao Ministério Público depois de proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente.

§1º. Na hipótese de concessão de parcelamento do crédito tributário, a representação penal para fins penais somente será encaminhada ao Ministério Público após a exclusão da pessoa física ou jurídica do parcelamento.

§2º. É suspensa a pretensão punitiva do Estado referentes aos crimes previstos no caput, durante o período em que a pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no parcelamento, desde que o pedido de parcelamento tenha sido formalizado antes do recebimento da denúncia criminal.

§4º. Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos no caput quando a pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão do parcelamento.

§6º. As disposições contidas no caput do art. 34 da Lei n. 9.249, de 26 de dezembro de 1995, aplicam-se aos processos administrativos e aos inquéritos e processos em curso, desde que não recebida a denúncia pelo juiz.” (grifos nossos)

Por seu turno, dispõe o art. 34 da Lei n° 9.249/95:

“Art. 34. Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei n. 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei n. 4.729, de 14 de julho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia.” (grifo nosso)

De logo cumpre referir que a análise dos tipos penais em estudo nos permite aferir que busca o Estado, através do uso do direito penal, coagir os contribuintes a pagar em dia os tributos de que são devedores, em nítido uso indevido desse ramo do direito. O direito penal, sabemos, somente pode ser invocado quando outros meios de sanção não são suficientes a proteger determinado bem jurídico, daí falar-se em ultima ratio.

Portanto, não se é de admitir a utilização do direito penal como fonte subsidiária de cobrança de créditos tributários, como ocorre nos casos previstos no artigo 1º, incisos, da L. 8.137. Nada obstante, passamos às considerações que se seguem.

As disposições contidas nos dispositivos legais supratranscritos não deixam dúvidas quanto ao bem jurídico tutelado pela criminalização das condutas descritas no art. 1º, da Lei 8.137: o dinheiro a que tem direito o Estado quando ocorridos as hipóteses de incidência de determinado tributo.

Outra não pode ser a conclusão, especialmente frente a previsão de extinção da punibilidade nos casos em que o contribuinte recolhe integralmente o tributo, seja em pagamento único ou mediante parcelamento. O mesmo se deflui na hipótese de suspensão da pretensão punitiva do Estado quando os débitos fiscais relacionados ao crime forem parcelados. Em todos os casos, o Estado dá por desnecessária a persecução penal já que os recursos financeiros foram transferidos à sua titularidade, não havendo mais inadimplemento por parte do contribuinte.

Noutro giro, o art. 83, da L. 9.430, ao dispor que  “ a representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária previstos nos arts. 1º e 2º, da Lei n. 8.137, … será encaminhada ao Ministério Público depois de proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente” torna induvidosa a necessidade da constituição definitiva do crédito tributário para que, se for o caso, seja oferecida a denúncia pelo Ministério Público – registre-se que a nosso ver o crédito tributário só estará constituído em definitivo após não mais ser cabível impugnação ou recurso na esfera administrativa e quando não haja mais decisões pendentes no curso do processo administrativo fiscal[2].

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No entanto, mesmo com dispositivo legal tão claro, o Ministério Público insistia em oferecer denúncias pela suposta prática dos crimes objeto de nosso estudo mesmo sem a constituição definitiva do crédito tributário, o que, permissa venia, constituía conduta exagerada do Parquet. Diante dessa inaceitável situação, o STF editou a Súmula Vinculante n° 24, cujo teor é o  seguinte, verbis:

“Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei n. 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo.”

Após a edição da transcrita Súmula Vinculante, dúvidas não podem subsistir em relação à exigência de lançamento definitivo como condição para o oferecimento da denúncia pelo MP.[3]

III. Do pagamento do tributo após o recebimento da denúncia

Questão das mais importantes no tema sob enfoque é a possibilidade de o pagamento feito após o oferecimento da denúncia ser ou não apto a extinguir a punibilidade dos delitos em tela. Para nós o deslinde do tema está necessariamente relacionado ao bem jurídico que se quer preservar com a criminalização das condutas ora estudadas.

Dessarte, se o que se busca proteger é a arrecadação de tributos ao erário, nada impede que, em havendo o pagamento dos tributos devidos mesmo após o recebimento da denúncia seja extinta a punibilidade dos tipos penais descritos nos incisos I a V, do art. 1º, da L. n° 8.137/90.

Nesse sentido, há precedente do STF, conforme se vê do aresto que se segue, verbis:

“EMENTA: AÇÃO PENAL. Crime tributário. Tributo. Pagamento após o recebimento da denúncia. Extinção da punibilidade. Decretação. HC concedido de ofício para tal efeito. Aplicação retroativa do art. 9º da Lei federal nº 10.684/03, cc. art. 5º, XL, da CF, e art. 61 do CPP. O pagamento do tributo, a qualquer tempo, ainda que após o recebimento da denúncia, extingue a punibilidade do crime tributário”.

(HC 81929/RJ; Relator: Min. Sepúlveda Pertence; Relator para acórdão: Min. Cezar Peluso; Órgão Julgador: Primeira Turma; DJ de 27/02/2004) (grifo nosso)

Portanto, pago integralmente o tributo, mesmo que após o recebimento da denúncia, deve ser considerada extinta a punibilidade, tudo com base no art. 61, do Código de Processo Penal.

IV. Da extinção da punibilidade nos casos em que o crédito tributário for extinto pela ocorrência da decadência ou da prescrição

O pagamento, assim como a prescrição e a decadência constitui-se numa das formas de extinção do crédito tributário, cf. art. 156, V, do CTN:

Art. 156. Extinguem o crédito tributário:

I- o pagamento;

V- a prescrição e a decadência”;

Vê-se, portanto, que uma vez verificada a ocorrência da prescrição ou da decadência, ter-se-á o mesmo efeito que o pagamento em relação ao crédito tributário, in casu, sua extinção. É dizer, tanto havendo o pagamento ou restando configurada hipótese de prescrição ou decadência estará o tributo lançado fulminado, de modo há não mais haver tributo.

É que, conforme nos ensina Leandro Paulsen, em matéria tributária, tanto a prescrição quanto a decadência “extingue o próprio crédito tributário”, conforme se extrai do seguinte trecho, litteris:

“O artigo 156, V, do CTN, é inequívoco ao dispor no sentido de que a prescrição, assim como a decadência, extingue o próprio crédito tributário. Com isso, passamos a ter uma peculiaridade relevante no trato da prescrição em matéria tributária. Na medida em que a prescrição deixa de fulminar apenas a ação para extinguir o próprio direito,assemelha-se à decadência quanto aos seus efeitos. Com isso, decorrido o prazo prescricional, não há mais que se falar em crédito tributário. Daí o entendimento de que sempre foi possível, em matéria tributária, o reconhecimento de ofício da prescrição. Aliás, tornando-se insubsistente o crédito tributário, a execução perde o seu próprio objeto”.[4]

Ora, se não há mais tributo, do mesmo modo não subsiste o crime, que, para sua tipificação exige lançamento definitivo.

Dessarte, se se busca proteger o dinheiro do Estado que não chegou a ser transferido do patrimônio do contribuinte para o erário, valores estes devidos em face do não cumprimento de obrigação tributária, e se o crédito tributário fora fulminado seja pelo pagamento seja pela prescrição ou decadência, não pode o Estado prosseguir com sua pretensão punitiva, haja vista faltar-lhe o substrato essencial para tanto.

O precedente a seguir confirma nossa linha no sentido de qual o bem que se busca resguardar – ainda que com o indevido uso do direito penal, nos crimes em estudo. Tanto que o Supremo Tribunal Federal admite o prosseguimento de processo penal em relação a crimes conexos, mesmo reconhecendo a extinção da punibilidade do crime tributário, tornando evidente a diferença entre os valores tutelados:

“EMENTA: INQUÉRITO POLICIAL. Investigação sobre prática de delito de falsificação de documento público e de crime contra a ordem tributária. Arts. 297 do CP e 2º, I, da Lei nº 8.137/90. Sociedade comercial. Alteração fraudulenta do contrato social. Absorção docrime de falso pelo delito tributário, cuja punibilidade foi extinta com o pagamento do tributo. Inadmissibilidade. Potencialidade lesiva da alteração contratual, como meio da prática eventual doutros crimes, tributários ou não. HC denegado. O delito de falsificação de contrato social não é, em tese, absorvido por crime contra a ordem tributária, ainda que tenha servido de meio para sua prática”.

(HC 91542; Relator: Min. Cezar Peluso; Órgão Julgador: Segunda Turma; Publicado em 15/02/2008)

O julgado acima torna ainda mais nítido que a criminalização das condutas descritas no art. 1º, da L. 8.137/90 constitui desarrazoado uso do direito penal para a cobrança de tributos, pois, bem se vê que em relação ao crime de falso o pagamento do tributo não gerou qualquer efeito, estando este delito desvinculado de qualquer relação que envolva recursos financeiros, pois se busca a proteção da fé pública.

V. Conclusão

Assim, concluímos que, em sendo o crédito tributário extinto pela prescrição ou decadência, o MP não poderá oferecer denúncia por ausência de crédito tributário e, na hipótese de haver processo criminal em curso, o magistrado deverá invocar o art. 61, do CPP, para declarar extinta a punibilidade do delito, o mesmo ocorrendo naquelas hipóteses em que o pagamento do tributo é feito após o recebimento da denúncia.

 

Notas:

 
[1] Neste texto, sempre que fizermos referência a tributo, estar-se-á também incluindo a espécie tributária contribuição, eis que adotada a teoria tripartite que considera três as espécies tributárias: taxas, impostos e contribuições.

[2] Eventuais ações judiciais intentadas contra o crédito tributário constituído não têm o condão de desfazer o lançamento, de modo que não se pode concordar que este ato estatal somente se tornaria definitivo após decisão transitada em julgado em discussão judicial. Entendimento deste jaez tornaria desprovida de qualquer eficácia tanto a cobrança dos créditos fiscais, quanto a pretensão estatal de punir penalmente quem cometesse o ilícito in analise.

[3] Ainda que saibamos que a doutrina entenda que a ação penal para os tipos penais aqui estudados seja do tipo pública incondicionada, não concordamos com tal assertiva. É que, de fato, o Ministério Público só pode oferecer denúncia se houver lançamento definitivo, fato que, a nosso sentir, constitui verdadeira condição à atuação do Parquet.

[4] PAULSEN, Leandro. Direito Tributário: Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e da jurisprudência / Leandro Paulsen. 10. ed. rev. atual. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora; ESMAFE, 2008. p 1.062.


Informações Sobre o Autor

Catucha Moreira Gidi

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Advogada pós-graduada em Direito Público pelo JusPodivm/BA e Juíza Leiga do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia


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