Prisão por dívida civil


Sumário: 1. Introdução.2 Emenda nº 45/04. 3. Conclusão


O Decreto-lei nº 911/69 que prevê a prisão do depositário infiel sempre foi aplicado pelos tribunais pátrios, indiferentes ao disposto no § 2º, do art. 5º, da CF no sentido de que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.


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É que a Suprema Corte mantinha o velho entendimento de que o tratado tem o mesmo status de lei ordinária geral (RREE ns. 200.385-RS e 344.458-RS e HC 72.131). Daí a constitucionalidade do Decreto-lei nº 911/69 que encontra guarida no inciso LXVII, do art. 5º, da CF que, ao proibir a prisão por dívida civil, ressalva, expressamente, a do depositário infiel.


Para reverter essa jurisprudência foi acrescido o § 3º, ao art. 5º, da CF, pela EC nº 45/04, nos seguintes termos:


“§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.


Criou-se, desta forma, o inusitado processo legislativo de votação em dois turnos, por três quintos dos votos das duas Casas do Congresso Nacional para resolver definitivamente sobre tratados internacionais, como prescreve o inciso I, do art. 49, da CF.


Após a EC nº 45/04 a jurisprudência dos tribunais tendo como paradigma o acórdão proferido pelo STF no RE nº 466.543[1], Rel. Min. Cezar Peluso, passou a negar vigência ao Decreto-lei nº 911/69 baseado no princípio da hierarquia supra legal dos tratados e convenções aprovados na forma do § 3º, do art. 5º, da CF, porém, sem ter a mesma hierarquia de norma constitucional. Nesse sentido foi a recente decisão proferida pelo STJ no Resp nº 914.253 de que foi Relator o Min. Luiz Fux.


Ora, isso não resolve o problema em definitivo. Dizer que as disposições do Decreto-lei nº 911/69, do Código Civil e do Código de Processo Civil pertinentes ao assunto não têm aplicação em razão da hierarquia supra legal do tratado ou da convenção internacional, que seriam equivalentes às emendas constitucionais, não basta.


É preciso que a Corte Suprema se pronuncie claramente quanto à vigência ou à revogação do inciso LXVII, do art. 5º, da CF que permite a prisão do infiel depositário.


Afinal, tratado aprovado em dois turnos e por três quintos dos votos revoga ou não o citado inciso LXVII? Em caso afirmativo, porque não se reconheceu essa revogação por tratados aprovados na forma prevista pelo legislador constituinte original? Em outras palavras, por que razão vem sendo ignorado pela maioria dos componentes da Corte Suprema o disposto no § 2º, do art. 5º, da CF? Afinal, qual a função desse § 2º?


Esse § 2º, no nosso modo de entender, permite ampliar o bloco da constitucionalidade em consonância com as exigências da realidade atual, caracterizada pela internacionalização das normas protetoras dos direitos humanos.


O nosso País firmou e aprovou, voluntariamente, em 1992, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que proíbe a prisão por dívida civil.


Assim, o inciso LXVII, do art. 5º, da CF, que permite a prisão do infiel depositário tornou-se incompatível com o disposto no item 7, do art. 7º desse tratado internacional, que veda a prisão por dívida civil. Por isso, deve-se entender como revogado esse dispositivo constitucional. Nada há de estranho nessa tese que conduz à revogação de preceito constitucional pelo Decreto-legislativo que aprova o tratado, sem observar o processo legislativo próprio de Emenda Constitucional. É que o que revoga o texto constitucional conflitante não é o Decreto-legislativo, mas o tratado internacional aprovado pela forma prevista na Constituição Federal.


Seja como for, o que não é admissível é considerar constitucional o Pacto de São José da Costa Rica, que proíbe a prisão por dívida civil, e ao mesmo tempo, considerar vigente o preceito constitucional que permite a prisão por dívida civil.


Ou se admite a revogação da norma constitucional que autoriza a prisão do infiel depositário, ou se declara a inconstitucionalidade do tratado na parte que permite essa prisão.


Dizer que o Decreto-lei nº 911/69 e as normas do Código Civil e do Código de Processo Civil que versam sob matéria são inaplicáveis, porque afrontam a hierarquia da lei, posto que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos teria hierarquia supra legal por força do disposto no art. 3º, do art. 5º, da CF não nos convence.


Primeiro, porque a citada Convenção Americana foi aprovada antes da Emenda nº 45/04 que introduziu o § 3º, do art. 5º, da CF. Em segundo lugar, porque nenhuma lei ordinária, geral ou especial poderia regular a prisão do depositário infiel tornando letra morta o inciso LXVII, do art. 5º, da CF, o que, equivaleria à sua revogação, pois nenhum instrumento normativo poderia conferir-lhe eficácia.


É preciso que a Corte Suprema enfrente essa questão desfazendo essa situação dúbia. Já há julgados proclamando a ilegalidade do Decreto-lei nº 911/69 como se pudesse existir lei legal e lei ilegal.





Nota:
[1]
O min. José Celso de Mello votou no sentido de conferir ao Pacto de São José da Costa Rica (art. 7º) o status de norma constitucional de acordo com o § 2º do art. 5º da CF.


Informações Sobre o Autor

Kiyoshi Harada

Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.


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