Jornais de domingo, dia 5 de setembro de 2004, trazem duas notícias alarmantes: de um lado, estaria em preparação, visando congresso de psicólogos a se realizar em dezembro próximo, uma série de dispositivos modificando regras do segredo profissional. Cuidar-se-ia, entre outras hipóteses, daquela atinente à comunicação, partida dos psicólogos, de segredo constitutivo de violência praticada contra paciente por terceiros (ou do próprio cliente contra terceiros?). O noticiário é confuso. Não se tem nas mãos o texto das reformas em preparação, mas há comentários do advogado Marcelo Del Chiaro, procurador judicial do CREMESP, referindo que os profissionais daquela categoria estão aturdidos. O advogado teria dito: “ – Tudo aquilo que é ilícito deve ser denunciado. O que se está querendo é nortear um princípio quanto a isso. Os profissionais estão perdidos. Os conselhos, como autarquias, sofrem pressão do Ministério Público” (Folha do Cotidiano, 5/9/2004, pág. C1).
A comunicação passaria sem maiores preocupações se não estivesse interligada a outra, posta na mesma edição (pág. A6), sob o título: “Governo quer obrigar advogados a revelar operações suspeitas”. O texto vai adiante. Um certo Antenor Madrugada, responsável pelo Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional, órgão do Ministério da Justiça, teria dissertado: “ O que se quer é que os advogados sejam responsáveis, e temos certeza de que isso – que está acontecendo no mundo todo e não só no Brasil – será compreendido.” Complementa o enunciado: – Quando o advogado entrar em operações típicas de mercado, por exemplo, também deverá ter em relação a elas as mesmas diligências que as instituições financeiras”.
Competentíssimo criminalista ouvido, o advogado Antonio Sérgio Pitombo comenta: “ – Quando criam a obrigação de fazer delações, não há eficácia. O governo vai partir para traduções sem verificar a pertinência disso na advocacia brasileira.”
A leve ironia posta na frase de Pitombo explica muito bem o que tem sucedido, aqui, com a mania legiferante. Realmente, havia, até algum tempo atrás, a convicção de que os japoneses eram grandes imitadores no setor de automóveis, eletrodomésticos e produtos em geral. Passou-se a Taiwan e Coréia, com seqüenciamento na China. Agora mesmo os chineses se defendem de acusação de clonagem de novo modelo de automóvel fabricado nos Estados Unidos. Os juristas brasileiros, vez por outra, eram inventivos. Davam aos projetos de lei um certo toque de originalidade, mas, convenha-se, o plágio é menos desgastante e traz consigo uma certa porção de certeza quanto aos efeitos da experimentação. Foi assim com o Código de Processo Penal, inspirado no italiano e posto a viger em plena ditadura Vargas. Outras legislações poderiam ser lembradas, se houvesse o adequado desafio ao cronista. De qualquer forma, a tendência no Ministério da Justiça, identificando-se a vocações autoritárias, é a de restringir ao máximo as prerrogativas profissionais garantidoras do sigilo, estendendo-se a autêntica paranóia à violação das intimidades, do sigilo das comunicações, do segredo bancário e quejandos, com ou sem autorização judicial. Ao lado disso, vem funcionando a denominada “ delação premiada”, exemplo bastante de comportamento não ético do Estado na perseguição da delinqüência. Por fim, o incentivo oficial e oficioso ao dedodurismo relembra os tempos do “Reich”, fundando-se aquela tirania nas ofensas ao são sentimento do povo alemão.
As propostas de cinturamento da ampla defesa esbarrarão, sem dúvida, no artigo 60, § 4º, inciso IV, da Carta Magna, que impede até mesmo a discussão de proposituras que vulnerem os direitos e garantias fundamentais; e a proposta em questão ofende o artigo 5º, incisos XIV e LV, também da Constituição Federal. O segredo profissional do advogado se insere nas garantias fundamentais, consideradas cláusulas pétreas, imutáveis, conforme art. 60, § 4º, inciso IV, já citado. As pretensões, se aprovadas, resultarão, sem dúvida, na perda de confiança que o cliente há de ter em relação ao seu advogado, fazendo-o, quiçá, subtrair do conhecimento do consultor fatos imprescindíveis à ampla defesa, pois correrão o risco de ser “delatados”, se tais obrigações forem impostas ao profissional. Dessa forma, a ampla defesa não poderá ser exercida na sua inteireza, restando, apenas, como garantia meramente formal. Há dispositivos infra-constitucionais protegendo a mesma prerrogativa, mas não é preciso ir muito longe para refugar a triste idéia de algum escriba posto no Ministério da Justiça para o fim pretendido. A explicação é simples: se o psicólogo, o médico, o advogado, enfim, cooperam na prática de ilicitude qualquer, são co-autores ou partícipes, na forma da legislação em vigor, plenamente eficaz, aliás. Por outro lado, se aconselham o paciente, ou o cliente, a praticá-la, podem responder por incitação, em certos casos, ou mesmo em co-autoria. Podem acontecer hipóteses assemelhadas na competência civil, em que o advogado é procurado antes ou durante a concretização do fato jurídico.
A competência penal é diferente, já se percebe, porque o criminalista sempre é consultado depois que a conduta concretizou. Nessas alternativas, o advogado criminal, o médico e outros profissionais recebem o segredo e morrem com ele. Acontece o mesmo com sacerdotes. Lá em São Simão, terra do meu tio-avô Macário de Almeida (ele era cônego, dizia-se que fazia milagres), o velho cura ficava encostado no muro da matriz, aos domingos, a ver os passantes (parece filme de Marcelo Mastroiani). A batina estava poída de traças. As meias vermelhas, já gastas, traziam o sinal das costuras de piedosa cerzideira. Os fiéis entravam e saíam da igreja, pedindo a bênção do ancião. Este abençoava Gertrudes, Afanásio, Marocas, os mocinhos e os bandidos. Iam os paroquianos, depois, à mesa do almoço, certos de que o confessor levaria para o túmulo todos os segredos. Macário, realmente, sabia da verdade existente à margem da parecença. Levava a sério, como seus confrades, a lição do poeta anônimo: “ Guarda bem os teus segredos na gaveta mais fechada da tua alma. Guarda, fecha-os a sete chaves e joga as chaves no mar. Senão…
Informações Sobre o Autor
Paulo Sérgio Leite Fernandes
Advogado criminalista em São Paulo e presidente, no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas do Advogado.