Resumo: Artigo científico que investiga a história da tributação e sua relação com a distribuição de rendas, procurando demonstrar como o princípio da solidariedade influiu ideologicamente na interpretação constitucional. Destaca a presença do princípio da solidariedade na Constituição brasileira. Explana o que caracterizaria a “justiça fiscal” e recorda como, na história, diferentes sociedades visualizavam a distribuição de rendas, até a evolução histórica desembocar no Estado fiscal. Demonstra que a Constituição faz uma clara opção pela luta pela igualdade, ao mesmo tempo em que busca garantir a liberdade de iniciativa. Por fim, defende a tese de que a tributação tem função muito mais ampla do que aquela normalmente visualizada, devendo servir como instrumento adicional na luta pela redução das desigualdades.
Palavras-chave: Estado fiscal; tributação; solidariedade; distribuição de renda.
Abstract: Scientific paper investigating the history of taxation and its relation with income distribution. It aims to demonstrate how the solidarity principle has ideologically influenced constitutional interpretation. It highlights the presence of solidarity principle in the Brazilian Constitution. It also explains what characterizes the “fiscal justice” and recalls how different societies saw income distribution throughout the times, until this historical evolution reaches the fiscal State. It demonstrates that the Constitution clearly opts for fighting for equality at the same time as it aims to guarantee the freedom of initiative. Finally, it defends the thesis that taxation englobes a much wider function than the one normally seen, and that it should be used as an additional tool in the fight for reducing inequalities.
Keywords: Fiscal State; taxation; solidarity; income distribution.
Sumário: Introdução. 1 A Redistribuição de Riquezas. 2 Justiça Fiscal. 3 O Estado Fiscal. 4 O Sistema Tributário e o Anseio pela Igualdade. Considerações Finais. Bibliografia
Introdução
O artigo 3º, inc. I, da Constituição brasileira (BRASIL, 2008, on line) posiciona o princípio da solidariedade entre um dos objetivos da sociedade: “construir uma sociedade justa, livre e solidária”. Tomando o princípio da solidariedade social como ponto de partida, que implicações sua presença no ordenamento pátrio há de provocar sobre o Direito Tributário? E como o sistema tributário adotado pela Constituição brasileira pode refletir, em seus fundamentos, o princípio da solidariedade?
Não se pode pensar na construção de uma sociedade solidária sem a solução do problema atinente à distribuição de renda que, como é sabido, encontra no Brasil um dos seus piores exemplos já que, historicamente, o país apresenta abismos sociais chocantes, apresentando regiões altamente desenvolvidas, que rivalizam com os países ricos, e outras de pobreza extrema, semelhantes àqueles encontradiços em pobres regiões africanas.
O presente artigo pretende destacar o papel – pouco lembrado – do Direito Tributário em seu aspecto modificador da realidade. O princípio da solidariedade vem sendo destacado como um fator de justificação da própria tributação, relegando ao limbo das teorias ultrapassadas as concepções de que o tributo nasceria do poder estatal ou do benefício ocasionado pelo Estado aos cidadãos. Pretende-se posicionar a questão da tributação analisada sob seu aspecto distribuidor de renda. Por isso, questiona o papel do próprio sistema tributário e, por conseqüência, a atual visão do Direito Tributário em seu caráter prospectivo, de modificação do status quo. Tece, também, um breve histórico do Estado fiscal, demonstrando que a visão da tributação integrada aos objetivos fundamentais da Constituição é uma decorrência do aprimoramento do próprio Estado.
1 A Redistribuição de Riquezas
Toda sociedade organizada tem sempre uma questão a solucionar: de que forma os recursos produzidos e arrecadados pelo poder central serão redistribuídos.
O sistema de redistribuição de bens abrange o sistema arrecadatório, desempenhado principalmente pela tributação, o sistema financeiro, que dispõe como tais recursos serão canalizados dentro do Estado, e o sistema distribuidor, que diz como os recursos retornarão à sociedade. Muito comum é que a classe detentora do poder decida não distribuir e aplicar os recursos arrecadados na própria estrutura burocrática; ou, ainda mais usual, é redistribuir os bens de forma a manter as desigualdades. Em suma, “quem detém o poder decide se e como deve ocorrer a redistribuição dos bens circulantes”.1 (FAEDDA, 2007, on line, versão nossa).
Segundo Faedda (2007, on line, versão nossa): “Os sistemas redistributivos permitem a um poder central acumular bens e reutilizá-los de modo estratégico: eis porque quando nasce uma economia redistributiva se tem o pressuposto para o desenvolvimento de classes sociais e de um Estado.”2
Muito embora participe apenas da primeira fase desse sistema redistributivo (arrecadação) o tributo exerce importantíssima função redistributiva porque o simples fato de se decidir sobre quem incidirão os tributos já implica em redistribuição: incidindo sobre a sociedade em geral, uniformemente, a implicação será de concentração de renda; recaindo mais severamente sobre os ricos do que sobre os pobres, a tendência será de redistribuição, salvo se o retorno dos recursos, no terceiro instante, da aplicação, se der em favor da mesma classe dominante.
Lobo Torres (2005, p. 348) distingue entre os princípios da distribuição e da redistribuição de rendas. Este último teria natureza orçamentária: “Leva em conta simultaneamente as vertentes da receita e da despesa, ao fito de transferir renda dos mais ricos para os pobres e miseráveis. Opera sob a consideração da justiça por transferência, particular subprincípio da justiça distributiva.”
Já o princípio da distribuição de rendas não se ocupa com as transferências, mas com a tributação de acordo com a capacidade do contribuinte e sua justiça: “John Rawls observa que o princípio da distribuição de rendas, subordinado ao ramo das finanças públicas que Musgrave chama de distributivo (distribution branch), atua mediante a tributação e os ajustes na propriedade; ao dispor sobre o imposto de heranças e ao estabelecer restrições ao direito de doar, não tem por objetivo coletar tributos para o governo, mas corrigir a distribuição de riquezas e prevenir as concentrações de poder que prejudiquem o ‘justo valor da liberdade política e a igualdade de oportunidade’. (LOBO TORRES, 2005, p. 348)
O que importa fixar, por ora, é que o sistema tributário está incluso no sistema redistributivo que é, talvez, a principal função do Estado.
Nas sociedades antigas o chefe acumulava bens mediante a coleta de tributos e dessa forma passava a ser possuidor de um privilégio que também seria um dever moral, qual seja, redistribuir os bens aos súditos. (FAEDDA, 2007, on line)
No Estado moderno ocidental, essa situação não foi modificada, muito embora não se encontre mais uma pessoa natural que seja a responsável pela redistribuição; esta função foi delegada a um ente criado pelo intelecto humano: o Estado.
Porém, seria um equívoco afirmar que as preocupações com a justiça na redistribuição de recursos seja uma característica típica do ideal de Estado democrático. Note-se que mesmo no Islamismo, onde não há uma contundente divisão entre Estado e religião, o conceito de redistribuição está presente: “esse [o direito islâmico] prevê um tipo de imposto, a zekaa, qual seja, a décima sobre o bruto, recolhida sobre os bens em geral que resulta uma verdadeira esmola legal, que a própria lei destina aos pobres, aos soldados da guerra santa, à libertação dos escravos e dos devedores.3” (FAEDDA, 2007, on line, versão nossa)
Na história e em sociedades muito diferentes das atuais, a preocupação em garantir um mínimo de recursos para as classes carentes já estava presente, como ocorria, por exemplo, entre os astecas. Nos primórdios de sua organização social, os soberanos tinham o dever de zelar pelos pobres, viúvas e órfãos. Na ocasião de sua investidura, os sacerdotes relembravam ao soberano seu dever de distribuir alimentos aos idosos. À época dos festejos em honra à deusa Xilonen estes recebiam vestidos e víveres. (FAEDDA, 2007, on line)
Nas civilizações clássicas como na Grécia e na Roma antiga os tributos quase sempre recaíam sobre o povo, os camponeses, os estrangeiros e os comerciantes. Justiça social, na época, dizia respeito apenas às classes importantes.
No período feudal, em que as terras do reino estavam nas mãos de reis, nobres e Igreja, estes as arrendavam a pobres camponeses que, em troca, deviam trabalhar parte da semana para o senhor feudal. O rei dependia muito dos barões feudais, em especial porque eles arrecadavam os tributos; tal direito – de tributar – era adquirido pelos nobres que pagavam ao monarca pelo direito de seu exercício. Pela tributação, o camponês adquiria o direito de explorar a terra (PEREIRA, 1999, p. 7-8). A nobreza estava dispensada de pagar tributos, posto que, de acordo com o pensamento medieval, já prestava grandes favores ao reino ao fornecer exércitos para sua defesa. Da mesma forma, o clero não pagava tributos por desempenhar missão espiritual e educativa, esta limitada aos jovens da nobreza. (PEREIRA, 1999, p. 9)
O antigo regime francês, afrontado pela Revolução de 1789, caracterizava-se por ser altamente discriminatório em termos tributários, conforme jocosamente explana Nogueira (1997, p. 72): “A nobreza não estava sujeita a impostos porque – tal a fundamentação política e filosófica então imperante – já contribuíam com o derramamento do seu sangue na defesa do Reino. Assim também o alto clero, já tão atarefado em rezar o tempo todo para a salvação das almas, de tal modo que, graças a tais e tão exaustivos sacrifícios, todos pudessem, na outra vida, encontrar um bom lugar no reino de Deus. O peso da tributação recaía basicamente sobre os desafortunados e, dentre estes, a nova classe burguesa que, […] em verdade assumiu a liderança na derrubada da velha ordem, trazendo a reboque a plebe. […]. A ‘universalidade’ tributária conduziria a um desejado nível de ‘igualdade’ em decorrência da supressão dos privilégios fiscais.”
A noção moderna de Estado surge com o renascimento, momento a partir do qual faz sentido falar-se em cidadania. Antes, o indivíduo pagava ao chefe, amo ou rei para obter segurança e paz. No Estado constitucional hodierno, o tributo deriva de uma ordenação legal, sendo expressamente autorizado pela Constituição e decorrente da própria soberania do Estado (PEREIRA, 1999, p. 13). Ainda que se vislumbrem tentativas ou inclinações nas sociedades antigas visando alguma justiça fiscal, a realidade é que essa aspiração somente é encampada de forma expressa, como um objetivo fundamental, pelo Estado moderno.
Interessante exemplo de sistema tributário, onde o objetivo de redistribuição de rendas comparece de forma expressa, é o suíço, país europeu obviamente distanciado do Brasil, sob todos os aspectos. Muito embora o território suíço tenha pequenas proporções, adota-se um sistema federal de tributação, concedendo-se a cada Cantão grande autonomia tributária. No cantão Jura a tributação chega a ser definida, de forma literal, como instrumento de redistribuição de riquezas. (BORGHI apud SACCHETTO, 2005, p. 200)
2 Justiça Fiscal
Falar-se em distribuição justa do ônus tributário ou de redistribuição justa dos recursos arrecadados é o mesmo que se falar em “justiça fiscal”; esse termo abrange a justiça orçamentária, tributária e financeira propriamente dita (transferências intergovernamentais e subvenções econômicas e sociais). (LOBO TORRES, 2005, p. 123). O princípio da solidariedade vale-se e depende da chamada justiça fiscal.
A questão referente à justiça fiscal era praticamente ignorada na antiguidade, mas no Estado pós-moderno passa a ter importância fundamental: “O riquíssimo pensamento greco-romano sobre a justiça, de Platão e Aristóteles até Cícero, não contempla, senão incidentalmente, a questão do justo fiscal. A filosofia medieval é que vai recorrer ao argumento de que o tributo exigido além das necessidades do príncipe representa um furto, só constituindo peccatum, em contrapartida, o não pagamento do imposto justo.” (LOBO TORRES, 2005, p. 125)
Segundo Ferreira (1986, p. 177) deve-se compreender como prática da justiça fiscal: “a) Eqüidade: o repartir dos gravames de maneira justa, proporcionalmente à capacidade de cada um, observando, assim, a chamada, ‘igualdade natural’; b) A honestidade absoluta na aplicação das receitas, destinadas ao bem comum, na ordem inversa da arrecadação, visando atender a cada um, segundo as suas necessidades.”
A justiça fiscal é o caminho mais eficiente para a efetivação da justiça distributiva, “pela sua potencialidade para proceder, sob vários aspectos, à síntese entre a justiça social e a política.” (LOBO TORRES, 2005, p. 124)
Lobo Torres (2001, p. 275) menciona três formas possíveis de se atingir a justiça social através da justa distribuição de renda. A primeira visão é de que a distribuição de rendas seria obtida espontaneamente, através do desenvolvimento econômico e da economia de mercado. Uma segunda hipótese, consiste na transferência de bens da classe rica para a classe pobre. A terceira vertente é a que delega a certas instituições sociais (Igrejas, sindicatos, empresas, entidades não-governamentais) a função de redistribuição de rendas.
No Brasil, especialmente em épocas como do “milagre brasileiro”, no início da década de 70, surgiu o conhecido discurso de que antes de se promover uma adequada distribuição de renda deveria se esperar até que “o bolo crescesse” o que se demonstrou simples discurso protelatório de mudanças sociais.
Em apertada síntese, pode-se dizer que a solidariedade se opera pela distribuição das riquezas (PIRES, 2005, p. 155) e o Estado brasileiro está obrigado a atuar, de todas as formas possíveis para que a distribuição de rendas se dê de forma rápida, eficiente e enquadrada na noção de justiça fiscal e esse comando atinge de forma retumbante o Direito Tributário. O crescimento econômico é desejado por todos: pobres e ricos, liberais e socialistas. Mas a Constituição não o coloca como objetivo primordial já que a economia e a história vêm evidenciando que o simples crescimento não importa, necessariamente, em melhoria da qualidade de vida dos cidadãos.
3 O Estado Fiscal
Hoje tem-se o Estado necessariamente vinculado à tributação e é difícil imaginar-se o tributo sem a presença do Estado, ante o moderno monopólio estatal do direito de tributar. Como recorda Supiot (2007, p. 183) o Direito nasceu bem antes do Estado e o mais provável é que sobreviva a ele. Da mesma forma, o tributo antecede ao Estado e mesmo em caso de futuro desaparecimento deste, muito provavelmente, permanecerá existindo (NOGUEIRA, 1997, p. 131). Não há, portanto, correlação necessária entre Estado, tributação e Direito. Nabais (2004, p. 193) aponta espécies de Estados que prescindiam ou prescindem da tributação, como o Estado absolutista instaurado pelo iluminismo, os Estados puramente socialistas e, por fim, Estados que vivem de grandes arrecadações provindas de matérias primas como petróleo, gás natural, ouro ou até mesmo de jogos, como Mônaco e Macau.
“Os impostos são o que pagamos por uma sociedade civilizada” (HOLMES apud NABAIS, 2005, p. 134). É a noção, amparada no raciocínio lógico, de que mesmo aquele que paga tributos sem receber o correspondente em benefícios estatais, tem interesse na manutenção do Estado, pois não haveria espaço para a propriedade privada numa sociedade instável, onde imperasse apenas a força bruta. Lobo Torres (2005, p. 71) chega a usar a expressão “preço da liberdade” para designar o fundamento do Estado Fiscal.
O antigo Estado patrimonial baseava-se na existência de privilégios para certas classes, como o clero e a nobreza. Pretendendo a liberdade, a burguesia necessitava encontrar alguma forma de manutenção financeira do Estado e a tributação é a única maneira pela qual pode ser preservada a maior parcela possível de liberdade ao cidadão sem colocar-se em risco a sobrevivência do próprio Estado.
Greco (2005, p. 182) delineia as características básicas do Estado fiscal: “na medida em que a sociedade quer um Estado que não seja proprietário de todos os bens (de cuja exploração resultariam recursos suficientes para seu funcionamento) e, mais, se ela pretende que esse Estado faça algo (p. ex., proveja à seguridade social), o dinheiro de que necessita deverá vir de alguma outra origem que não seja a mera exploração do seu patrimônio. Vale dizer, virá da tributação. Daí falar-se em “Estado fiscal” como aquele que, para subsistir, necessita de tributos.”
Para Franco (1974, p. 437), o Estado fiscal criado pela ascensão ao Poder da classe burguesa, apresenta as seguintes características: “Drástica liquidação do patrimônio principalmente imobiliário do Estado e da Igreja (e sua transferência às mãos produtivas da burguesia), a nova estruturação do sistema de produção (valorização da atividade empreendedora-empresarial e da riqueza mobiliária em detrimento da terra como fator de produção) e a afirmação do tributo como dever fundamental de cidadania no contexto de uma nova dimensão do princípio da igualdade de todos perante a lei (fim dos privilégios odiosos das imunidades fiscais do patrimônio pretérito).”
O Estado fiscal foi, indiscutivelmente, construído pela burguesia. Sob o ponto de vista tributário, apresenta fases distintas. Na primeira delas, que vai do século XVIII ao século XIX, são objeto de tributação especialmente as classes agrárias e o consumo. A tributação sobre empresários e trabalhadores é leve. Há, nessa época, uma clara ligação entre a representatividade cidadã e o pagamento do tributo: os eleitores e cidadãos passíveis de concorrer aos cargos públicos eram somente aqueles que financiavam o Estado pelo pagamento do tributo. Trata-se do sistema do voto censitário que durou por décadas. (GODÓI, 2005, p. 153). “Apresenta [o Estado fiscal], em sua primeira fase, a feição de Estado Liberal Individualista (ou estado Guarda-Noturno, ou Estado do Capitalismo Selvagem – como se prefira); nele prevalece a idéia de liberdade individual, cultivada pelo liberalismo dos séculos XVIII e XIX.” (LOBO TORRES, 2005, p. 70).
A segunda fase do Estado fiscal inicia com o século XX, especialmente após a primeira guerra mundial. Nela afirma-se o sufrágio universal, não se confundindo mais eleitor e contribuinte. Com o advento do Estado social, a necessidade de tributação aumenta abruptamente. Também nessa época percebe-se mais claramente a importância extrafiscal do tributo. “Do Estado fiscal decorre a imprescindibilidade do tributo, e a partir dessa imprescindibilidade delineia-se o dever fundamental de pagar impostos (o tributo por excelência no contexto do Estado Fiscal).” (GODÓI, 2005, p. 154-157). “Em sua segunda fase, correspondente ao breve século XX (de 1919 a 1989, aproximadamente), o Estado Fiscal se desenvolve sob a forma de Estado de Bem-estar (ou Estado Social de Direito, ou Estado da Sociedade Industrial).” (LOBO TORRES, 2005, p. 70)
Por fim, a terceira fase do Estado Fiscal “corresponde ao Estado Democrático de Direito (ou Estado Pós-positivista, ou Estado da Sociedade de Risco), que se afirma após a queda do Muro de Berlim.” (LOBO TORRES, 2005, p. 70)
No que se convencionou chamar de Estado fiscal, está necessariamente presente a idéia redistributiva em favor daqueles que não têm condições de contribuir. Essa característica é notadamente assumida pelo Estado, não como uma simples conseqüência do formato de arrecadação tributária, mas como objetivo fundamental. (NABAIS, 2005, p. 129)
A idéia de Estado fiscal parte do pressuposto de que há uma clara divisão entre Estado e sociedade. Não que seja uma separação estanque e absoluta, mas uma preponderância na preocupação do Estado em resolver a questão política e da sociedade em solucionar a questão econômica. Ainda que a sociedade possa atuar na questão política e o Estado na econômica, isso se dá de forma complementar. (NABAIS, 2004, p. 195)
Pensadores que pregam a solidariedade social não podem prescindir de um Estado fiscal, porém Marx e Engels não dedicaram à tributação atenção central porque esta importa, indubitavelmente, num reconhecimento tácito do sistema capitalista e dos rendimentos privados. O simples discutir sistemas fiscais representaria uma aceitação do sistema de manutenção do Estado, razão pela qual o tema não é recorrência central do estudo socialista. (MAISON apud NOGUEIRA, 1997, p. 123)
Por mais surpreendente que possa parecer ao analista superficial, o direito de tributar nasce, justamente, da opção da Constituição brasileira pela liberdade de iniciativa e proteção à propriedade privada (art. 5º, incs. XXII e XXIII da Constituição). O caminho adotado pela Constituição, entretanto, implica em compromissos no sentido contrário: o Estado fiscal não prescinde do combate à injustiça social ocasionada pela liberdade de iniciativa. Cabe ao Estado, ao aceitar a liberdade de iniciativa, remediar os desequilíbrios por ela ocasionados.
A atual Constituição brasileira modifica sua antiga visão sobre a anterior, de 1967, valorizando não apenas os aspectos formais do Estado, mas incluindo valores de direito material. Os objetivos do Estado passam a ser tão importantes, ou mais, do que sua forma. Como afirma Greco (2005, p. 177), o poder de tributar passou de um “poder juridicizado” para um “poder juridicizado funcionalmente justificado”. Isso significa que só se encontram fundamentos: “na medida em que, além de atender aos requisitos formais e materiais de sua emanação, os preceitos por ele editados estejam no plano concreto efetivamente direcionados à busca da construção da sociedade livre, justa e solidária ou, pelo menos, que não neguem o valor solidariedade social nem prejudiquem, dificultem ou discriminem as formas sociais de cooperação.” (GRECO, 2005, p. 177)
Diante da atual Constituição brasileira, não mais se pode dissociar tributação e solidariedade, mesmo na hipótese da redução ao um “Estado fiscal mínimo”; em qualquer caso, ainda que reduzido, o Estado fiscal mínimo será solidarista, tendo em vista o fato de que a solidariedade se trata de um direito e um dever invioláveis.4
A ênfase constitucional passou de um “poder fazer” para um “dever fazer” o que abre a possibilidade de se discutir, por exemplo, a destinação dos recursos arrecadados (GRECO, 2005, p. 177) pois estes não podem, pela nova visão constitucional, ser direcionados em sentido contrário aos princípios e objetivos constitucionalmente consagrados. “Assim, na ponderação de valores constitucionais, o peso do valor ‘arrecadação’ (por estar circunscrito ao âmbito tributário) é menor do que o peso do valor ‘solidariedade social’ (por ser um objetivo fundamental).” (GRECO, 2005, p. 177)
É por essa razão que hoje se interpretam os dispositivos constitucionais tendo-se em mira muito mais os objetivos buscados pela Constituição, e não apenas seu sentido literal: “Vale dizer, a avaliação do preceito tributário não é feita apenas à vista dos seus pressupostos de emanação (validação condicional), mas também em função de seus resultados e da sintonia com os objetivos constitucionais (validação finalística).” (GRECO, 2005, p. 178).
A solidariedade, enquanto princípio estrutural presente no ordenamento pátrio, busca realizar a junção entre os ideais de liberdade, defendidos pela visão liberal, aos ideais de igualdade, pretendidos pelo socialismo. Dentro desses ideais, inaceitáveis seriam as visões de liberdade econômica absoluta, porque estariam por demais afastados da visão de igualdade; também seriam inviáveis os princípios comunistas de extinção da propriedade privada, porque atentariam contra os ideais de liberdade (ao menos a liberdade conceituada pelo burguês). Dessa forma, o Estado social existe para contrabalançar os ideais de liberdade e igualdade, sendo que o princípio estrutural da solidariedade procura amalgamar esses ideais, defendendo a existência da liberdade de iniciativa, mas impondo limites às desigualdades originadas da sociedade capitalista.
4 O Sistema Tributário e o Anseio pela Igualdade
A questão da justiça social está obviamente ligada ao problema da distribuição de renda que, no Brasil, assume contornos especialmente graves. Tem razão Machado (2006, p. 67) quando afirma que a distribuição de renda há de ser garantida especialmente pelo gasto público. De fato, o assunto da distribuição de renda envolve inúmeros fatores, como a dotação inicial da riqueza do indivíduo considerado, a estrutura familiar, características da sociedade em que vive etc. Qualquer teoria que tente explicar as razões da desigualdade verificada no Brasil há de levar em consideração todos esses e outros fatores. (CORREA, 1998, p. 25)
Portanto, a tributação é apenas um desses componentes, não solucionará unilateralmente a questão, o que não significa dizer que não possa ou não deva exercer papel importante para o atingimento dos objetivos constitucionais de erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, inc. III).
“O princípio da solidariedade social implica, pelo menos, que todos contribuam para as despesas coletivas de um Estado de acordo com a sua capacidade, tributando-se os cidadãos de modo a que as desigualdades efetivas entre estes se esbatam – e desejavelmente se extingam – propiciando, a cada um, uma existência mais digna e plena, porque mais livre.” (SANCHES; GAMA, 2005, p. 90)
Neste ponto, a opção do constituinte é de que a tributação garanta a mantença do Estado Democrático de Direito que, por seu turno, há de zelar pela redução das desigualdades. Resta bastante evidenciado, portanto, que o princípio da solidariedade reforça esse ideal, permitindo que o Direito Tributário adote técnicas de tributação que sirvam à realização desse objetivo redistributivo, sem prejuízo de outros mecanismos a serem adotados no instante da realização dos gastos públicos.
O sistema tributário – esteja-se a falar do esposado pela Constituição brasileira ou de outra Constituição ocidental democrática – tem, como conseqüência do princípio da solidariedade, a missão de propiciar uma justa distribuição de rendas. Tal constatação é relativamente simples sob o ponto de vista doutrinário, mas a efetivação desse intento constitucional mostra-se de extrema dificuldade: “A Constituição republicana abandonou a noção liberal de finanças “neutras”, pela qual a imposição deve deixar inalteradas as posições econômicas dos contribuintes e pode ser justificada apenas pela remoção das causas de ineficiência do funcionamento do mercado, para assumir uma impostação de finanças ‘funcionais’; e nesta funcionalidade não se pode deixar de subentender também uma função isonômica e redistributiva da renda em obediência ao art. 3º da Constituição [italiana].” (SACCHETTO, 2005, p. 187, versão nossa)5
Como diz Sacchetto (2005, p. 188, versão nossa) sobre a Constituição italiana, em assertiva que pode também ser aplicada à Constituição brasileira, “o Fisco não apenas não é mais neutro, mas segundo a Carta Constitucional não deve ser neutro”.6
Considerações Finais
Diante dos problemas e distorções sociais ocasionadas pelo mercado na era da globalização, o sistema tributário precisará passar por rápidas reformas, recordando-se sempre que questões de mercado, muito embora importantes, devem ficar em segundo plano quando se trata de tributação, eis que o sistema tributário não tem por escopo apenas a arrecadação tributária, mas também a busca pela redução das desigualdades.
Em qualquer hipótese, valiosa é a missão do Direito Tributário em seu dever de implementação de uma melhor distribuição de rendas, sendo variados os mecanismos de que dispõe o sistema tributário, destacando-se o princípio da capacidade contributiva e a função extrafiscal.
Constatar-se a presença do princípio da solidariedade na Constituição brasileira e reconhecer que sua existência decorre de uma longa evolução das teorias do Estado pode ser importante fator de modificação da postura adotada ante a tributação, vista, comumente, pelo cidadão e pelo Estado, como simples conseqüência do poderio estatal com todos os consectários daí decorrentes: autoritarismo, evasão fiscal, falho exercício da cidadania etc.
Adicionalmente, o princípio da solidariedade embasa, juridicamente, os atos a serem tomados pelos governos em busca da redução das desigualdades e de uma distribuição de renda menos desigual.
Informações Sobre o Autor
Paulo Sergio Rosso
Procurador do Estado do Paraná, Mestre em Ciência Jurídica pela UENP/FUNDINOPI e Professor de Direito Tributário da UENP/FUNDINOPI e da FANORPI.