Uma reflexão crítica sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA

”O maior analfabeto não é o que não sabe ler ou escrever, mas o que não sabe interpretar as nuances da vida. Devemos valorizar o ser em todas as suas potencialidades como um todo vivo que se transforma, o que não podemos é abandoná-lo, excluí-lo”[1]


Resumo: O presente estudo menciona algumas reflexões críticas acerca da cidadania de crianças e adolescentes, os quais, como sujeitos de direitos, possuem também deveres a cumprir. O trabalho visa demonstrar que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu contexto jurídico, protege, mas também pune aqueles que infringem a ordem normativa vigente no Estado Democrático de Direito. É uma tentativa de evidenciar a importância de os pais imporem limites nas ações de seus filhos como manifestação de amor, sendo que tal ato necessita do apoio da sociedade em uma conjugação de todos os fatores indispensáveis para a formação de cidadãos capazes de construir um futuro melhor, partindo de um presente promissor. Limite, afeto e amor são palavras repletas de significados que irão dar qualidade à vida de crianças e adolescentes.


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Palavras-chaves: ECA. Direitos. Deveres. Reflexão crítica.


INTRODUÇÃO


A nossa sociedade está vivenciando uma grave crise de valores, pois não se vê mais animais comendo ou juntando alimentos do lixo. Hodiernamente, vê-se pessoas: catadoras de misérias, colhendo os restos que sobram dos pratos dos mais abonados.


Seres humanos que não possuem mais valores e não sabem como buscá-los. Leis que falam uma linguagem rebuscada, a qual dificulta a interpretação jurídica servindo de subsídios para a desídia da estrutura familiar e social.


Exatamente sob este enfoque, analisa-se alguns dos motivos que levaram a família a se desestruturar, ora responsabilizando a norma jurídica, ora citando fatores como a base da pirâmide social – a miséria absoluta -, ou o seu oposto – o excesso de bens materiais como recompensa pela ausência, a falta de diálogo e a convivência entre pais e filhos.


A escola está clamando por socorro ante as barbáries cometidas pelos seus alunos. Crianças e adolescentes impondo regras invertidas de valores, agressões físicas e morais, falta de interesse pelo estudo, e o que é mais grave – o descaso dos pais ante esta trágica realidade.


O desamparo da escola é cristalino, apesar de existir o Estatuto que prevê a obrigatoriedade de os pais participarem da vida escolar de seus filhos. Percebe-se, também, o desconhecimento quanto ao que pode ou não ser regulamentado, através do Regimento Escolar sobre os atos de  indisciplina do corpo discente.


Quando falamos em crianças e adolescentes, estamos falando a respeito de seres em formação e não em pequenos adultos, como algumas pessoas, com o intuito de fugirem de suas responsabilidades enquanto educadores e orientadores, seguidamente o fazem. Buscaremos, com este artigo, esclarecer os leitores acerca dos benefícios da Lei (Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA) para a construção da cidadania.


1 O PODER FAMILIAR É UM EXERCÍCIO DE CIDADANIA


O artigo 22, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é claro ao referir sobre os deveres dos pais: “Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais”[2].


Nitidamente, pode-se perceber que é dever dos pais ou responsáveis legais pelos, relativa e absolutamente incapazes, a responsabilidade pela educação de sua prole, ou tutelado. Não se pode argumentar que crianças e adolescentes podem fazer tudo o que desejam sem respeitar a autoridade daqueles que exercem o poder familiar.


A infração a preceito normativo, pelas crianças e adolescentes, acarreta a incidência do Estatuto no fato concreto jurisdicizando-o, tornando-o fato jurídico, irradiando os efeitos da Lei que protege e, ao mesmo tempo, aplica medidas sócio-educativas e protetivas aos inimputáveis[3].


Urge ressaltar que educar é bem mais amplo do que simplesmente sustentar, ultrapassa a esfera econômica atingindo questões psicológicas, sociais, afetivas implicando a formação integral do ser como uma pessoa crítica, participativa, política[4] e valorizada em todas as suas potencialidades.


Valter Ishida melhor esclarece as responsabilidades dos pais e tutores, com relação ao artigo 22, do ECA:


“Este artigo possui fundamental importância para a Justiça da Infância e da Juventude. A grande maioria dos casos em que chegam à vara menorista versa sobre conduta incompatível dos genitores biológicos. Isto em decorrência de descumprimento dos deveres supraelencados, básicos na criação de crianças e adolescentes”.[5]


O referido autor, referendando o importante papel a ser desempenhado pelos pais ou responsáveis pelas crianças e adolescentes, menciona que a incumbência pela educação de alguém é tão relevante para o contexto social, que o descumprimento do dever de educar deveria ser severamente punido a fim de evitar novas práticas delituosas, quer seja, a reincidência.


As pessoas deveriam estar preparadas para constituir família, principalmente, para ter filhos, pois a relevância no contexto sócio-econômico, político e psicológico é tal que o descumprimento da tarefa de educador acarreta um desequilíbrio jurídico-social[6]. Quanto mais abandonados tivermos, maiores as chances de ocorrerem chacinas, crimes, miséria.


Alguns pais e/ou responsáveis ainda não estão cientes de que o poder familiar é um exercício de cidadania. É mais um dever que um poder. Esclarecendo melhor a assertiva, argumenta-se que os genitores têm o encargo inerente à construção da democracia, pois o sucesso e/ou fracasso social de nossos pupilos (filhos, tutelados,…) depende das orientações recebidas, onde o bem e o mal são dois pólos que se repelem e se atraem concomitantemente.


Portanto, não é demagógico elucidar o relevante desempenho daqueles que têm a obrigação legal de educar impondo limites nas atitudes de seus dependentes e participando de suas vidas.


2 DESCASO SOCIAL – CONSEQÜÊNCIA DE NOSSA INDIFERENÇA


É importante esclarecermos que, segundo o ECA, artigo 2º, caput, “considera-se criança, para todos os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade”.


O legislador não determinou, ao seu bel prazer, a idade legal das crianças e adolescentes. Houve estudos com psicólogos e juristas onde a ciência foi buscada com o intuito de trazer coerência ao texto legal e à realidade do mundo dos fatos e do mundo jurídico.


A criança possui a tendência de copiar padrões de condutas, por este motivo, retrata as atitudes que vivencia e observa. Não é punida pelos seus atos, mas protegida, através de procedimentos que a põe a salvo da discriminação, dos maus tratos e da exploração. Geralmente, guardam o medo e a timidez que ecoam negativamente, de uma forma ou de outra, eis que reproduzem os padrões do lugar em que vivem e das pessoas que convivem.


O adolescente também não é punido como um adulto, mas sofre medidas sócio-educativas as quais podem levá-lo a perda da liberdade. Já possui certo discernimento de seus atos, mas intimamente traz as vivências da infância, do descaso, do excesso e, enfim, tentará agredir a sociedade através da ilicitude, da infração.


Novamente se reafirma o quanto é indispensável construir uma infância equilibrada, a fim de não arcarmos com as conseqüências da indiferença: descaso social. Aprende-se a excluir aquilo/aquele que desagrada os anseios sociais, mas ainda não se aprendeu a prevenir o ilícito.


Prefere-se a internação no CASE (Centro de Atendimento Sócio-Educativo) para não enxergarmos as condutas de quem transgride as normas, dando a aparência do justo, do que investirmos na infância, na família, na educação e nos fundamentos de cidadania.


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As crianças e adolescentes, como princípio mínimo de cidadania, devem ser respeitados e assim aprenderão a respeitar os outros. A questão da cidadania é bem mais ampla do que podemos imaginar, vai além da mera participação política: votar e ser votado. Pedro Demo evidencia:


“Participação sem auto-sustentação é farsa, porque sucumbe a dependências. É incorreto definir cidadania como fenômeno meramente político, como se a questão se esgotasse na participação. Faz parte, na mesma relevância, a capacidade produtiva. Cidadão pleno participa e trabalha/produz”.[7]


O trabalho de crianças e adolescentes, antes de tudo, é  estudar, freqüentar as aulas e levar a sério à educação. Frisamos que a Lei 8069/90, em nenhum momento, mencionou o fato de que crianças/adolescentes não devam cumprir determinações, ou ferir os princípios de justiça, que acabam por lesar a sociedade em geral. Ao contrário, a lei evidencia o cumprimento do ordenamento jurídico vigente, o agir de forma lícita, a idoneidade, a virtude e não o caos, que é determinado pela anarquia, desrespeito, falta de valores éticos e morais.


3 LIMITES AOS FILHOS: DEMONSTRAÇÃO DE AMOR INCONDICIONAL


A valorização dos familiares das crianças e adolescentes, através do trabalho, estudo, salário digno para o sustento da prole, atendimento médico compatível com a natureza humana, levarão o jovem a ter o desejo de dar continuidade ao ambiente salutar em que vive (reprisa-se os modelos, quer sejam bons ou maus); no entanto, existe pessoas sobrevivendo sem qualquer dignidade. E o que pode ser mencionado a respeito daqueles que tudo têm e descumprem a lei? Pergunta-se: tudo o que? Limite, amor, atenção,…? Bens?


Quando o ECA, em seu artigo 1º, dispõe sobre a proteção integral aos indivíduos entre zero e 18 anos, não quis dizer que eles tudo podem fazer e que não devam ter limites. Isto é um grande equívoco de interpretação, o qual demonstra-se através do esclarecimento de Janice Bertoldo:


“Faz-se necessário, em primeiro lugar, tentar definir o que se quer dizer quando se pronuncia essa palavra: limites. Palavra esta, por vezes, revestida de muitas interpretações e equívocos. Partindo deste ponto de vista, pode-se destacar questões importantes, e dentre elas o fato de que limites e disciplina ajudam as pessoas a sentirem-se seguras, portanto, estes são necessários. (…) Vale dizer que a idéia de poupar uma criança do trabalho de crescer acaba condenando-a a ser eternamente criança, imatura e despreparada para o convívio e para o exercício da cidadania. Em outras palavras, quando pais não dão limites para seus filhos acabem limitando-os em sua condição infantil, o que impossibilita a passagem à maturidade.(…) As regras são extremamente relevantes para que a criança entre no universo da razão. (…) É importante salientar que, para que isto ocorra, são necessários muitos “nãos” com seus devidos “porquês”, bem como ser paciente e escutar com atenção. Mais tarde, quando a criança for maior, ela respeitará quem lhe ensinou a viver adequadamente dentro das normas sociais”.[8]


Dar limites aos filhos é demonstração de amor incondicional. A sociedade não tolera crianças e adolescentes desordeiros, cheios de mimos e sem regras. Os pais têm o dever moral de educar seus filhos e isto tem a ver com limite/amor; caso contrário, estará sujeito a ver seus filhos transgredindo a lei, respondendo um processo em conseqüência de suas ações negativas.


Mas, ao se deparar com crianças e adolescentes indisciplinados e infratores, se esta diante de problemas que não são somente deles, mas, principalmente, de nós adultos, uma vez que cabe a nós – pais, educadores e sociedade em geral – a responsabilidade por sua educação, consoante se depreende da própria lei 8069/90.


As crianças e adolescentes refletem a nossa alma; e eles reconhecem as nossas inseguranças e incertezas. Tem-se que ter a consciência de que somos responsáveis pelo seu equilíbrio, seus atos e estabilidade emocional e tudo isto passa pelo binômio limite/amor.


4 A CADA DIREITO CORRESPONDE UM DEVER


Crianças e adolescentes deixaram de ser propriedades de seus pais como em Hamurábi, onde podiam ser vendidos como escravos para pagamento de dívidas, ou utilizados para pagar pelos crimes cometidos pelos pais “olho por olho, dente por dente”; Na Lei das XII Tábuas, em que se deveria matar os filhos nascidos monstruosos e, em outras tantas leis que demonstram a figura do filho como objeto.


Hoje, os filhos são sujeitos de direito e de deveres também, pois a cada direito corresponde um dever, portanto, culpar o ECA pelo crescente número de infrações infanto-juvenis é um grande equívoco de interpretação. Edson Sêda ratifica esse entendimento:


“Quem tem direitos, automaticamente tem deveres. Incluir crianças e adolescentes no mundo do Direito (como sujeitos de Direito, ou em outras palavras, como sujeitos jurídicos) os transforma em sujeitos de direitos e de obrigações (deveres). Esse reconhecimento está na base interdisciplinar da Convenção. É um erro grave de paradigma sequer pensar que no processo de formação (educação) de uma criança se venha a incutir-lhe o sentir e o pensar de que é dotada de direitos (aquilo que ela pode exigir dos outros), sem incutir-lhe o pensamento e o sentimento de que é dotada de deveres (aquilo que os demais, a começar por pai e mãe, irmãos e amigos, podem e devem dela exigir)”.[9]


Nesta ordem de idéias, pode-se perceber que o pensamento ultrapassado, de que a criança tudo pode é um grande equívoco. Alguns responsáveis pelas crianças e adolescentes, consideram mais cômodo nada fazer do que dialogar, mencionar as regras de conduta familiar e social, aplicar castigos (perda temporária do computador, saídas, televisão); quer seja, retirar o que o infante gosta, a fim de que aprenda que existem sanções para o descumprimento das normas estabelecidas.


O desgaste aparente é maior, mas, as conseqüências futuras são promissoras; ao contrário, a omissão quanto ao dever de educar poderá acarretar o uso de drogas, prostituição, vandalismo, enfim, a desestrutura psicológica e social do indivíduo.


Ainda, o inciso VII, do art. 1634, do Novo Código Civil, referenda: “Art. 1634. Compete aos pais, quanto às pessoas dos filhos menores (…) VII- exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição”.


Desta forma, pode se evidenciar que tanto o Código Civil quanto o ECA deixam claro que as crianças e adolescentes devem ter deverem tanto quanto direitos e que devem aprender e serem ocupados na proporção de suas faixas etárias.


A lei especial de proteção possui, conotativamente, dois braços: um que ampara crianças e adolescentes vítimas de maus tratos, através dos Conselhos Tutelares, e outro que “pune” os adolescentes, quando estes forem os causadores de danos ou vitimizadores.


Com relação à sanção é óbvio que esta é aplicada aos mesmos não pode ser entendida como a um adulto, até porque são inimputáveis, o que não implica a idéia de impunidade, eles não sofrem as penas como os maiores de 18 anos, mas podem perder a liberdade, através de internação no CASE (Centro de Atendimento Socioeducativo), neste sentido argumenta João Batista Costa Saraiva:


“O Estado de Direito se organiza no binômio direito/dever, de modo que às pessoas em peculiar condição de desenvolvimento, assim definidas em lei, cumpre ao Estado definir-lhe direitos e deveres próprios de sua condição. A sanção estatutária, nominada medida socioeducativa, tem inegável conteúdo aflitivo (na lição legada por Basileu Garcia) e por certo esta carga retributiva se constitui em elemento pedagógico imprescindível à construção da própria essência da proposta socieducativa. Há a regra e há o ônus de sua violação”.[10]


Crianças sofrem medidas de proteção, tanto quando forem vítimas, como vitimizadoras. Adolescentes, apesar de serem inimputáveis, recebem os dois “braços” da Lei, quando vítimas, são protegidas pelas medidas insertas nos artigos 98 a 102 (de proteção) e quando vitimizadores sofrem medidas socioeducativas, um termo complacente para atenuar as punições impostas e talvez, pela fase de desenvolvimento em que se encontram, mais severamente se comparado às penalidades impostas aos adultos.


5 CRIANÇAS E ADOLESCENTES – CIDADÃOS AQUI E AGORA


O ECA, salvo melhor juízo, deve sim proteger as crianças e adolescentes de abuso sexual, maus tratos (queimaduras com cigarros, ‘correção’ com chicotes, socos, exploração na mendicância, álcool, drogas,…) e quem, sendo absolutamente capaz[11],  pode ser contrário a esse tipo de proteção?


Apesar de a Constituição Federal, em seu art. 5º, dizer que todos são iguais perante a Lei, ainda há quem considere crianças e adolescentes como menores (por se tratarem de crianças abandonadas, de rua, os filhos dos outros,…) termo invocado como um vocábulo frio e distante de afeto.


Mas, ao contrário, criança e adolescente são palavras cercadas de carinho, aproximam-se de cada um de nós, demonstrando que necessitam de amparo, amor, diálogo, dignidade, assim esclarece Edson Sêda esclarece:


“Essa doutrina via crianças e adolescentes como menores ou em situação irregular porque através dela se viam meninos e meninas não aquilo que eram (seres regulares), mas aquilo que não eram (seres irregulares). Não eram capazes, não eram sujeitos de direitos e deveres, não eram autônomos em relação aos seus pais ou em relação ao Estado.  (…) Esse sistema da menoridade absoluta ou da situação irregular era um sistema de exclusão social e ética de crianças consideradas menores. Agora, queremos saber como incluir, não excluir, meninos no mundo das pessoas que convivem socialmente. Quando criamos instituições para excluir meninos e meninas da convivência entre as pessoas (…) nós as estamos tratando como menores, objetos dos adultos que se consideram maiores, e não como crianças e adolescentes, sujeitos sociais em si mesmos”.[12]


Se há infratores, é porque existem falhas e isto nos traz transtornos, porque incute uma idéia de falha e indiferença; sendo que, não se está acostumado a refletir sobre os atos que se praticam no dia a dia, e, principalmente, sobre as omissões frente aos problemas sociais.


A respeito deste enfoque, Edson Sêda referenda:


“Isso quer dizer o seguinte: crianças e adolescentes devem ser incluídos no sistema de vida de uma sociedade (…) pelo fato relevante de que efetivamente são cidadãos e por conseguinte são sujeitos de direitos e deveres. Dito de outra maneira, são incluídos no sistema social de vida das pessoas não para serem cidadãos (ou sujeitos de direitos e deveres) no futuro mas por serem cidadãos (e sujeitos de direitos e deveres) aqui e agora”.[13]


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A criança e o adolescente são os adultos de amanhã (mas são cidadãos desde hoje) e estes homens carregarão, para sempre, as marcas positivas ou negativas de sua infância. Frisa-se, que o indivíduo se torna sujeito de direitos e deveres no âmbito do Direito Civil, ao nascer com vida.


Quanto menor for a nossa responsabilidade pela formação integral do infante/adolescente, maiores serão os índices de criminalidades praticadas por adultos, porque maiores serão as causas de distúrbios ocasionados por uma infância infeliz. Uma história: causas e efeitos. Eva Pierrakos e Judith Saly ensinam, com bastante propriedade:


“A dor causada pelo problema atual é exatamente a mesma dor do passado. Agora, reavaliem a dor atual, comparando-a com a da infância. Finalmente, será possível perceber que ambas são uma só. Por mais verdadeira e compreensível que seja a dor atual, é a mesma dor da infância. (…) Tomando ciência do padrão repetitivo das diversas dificuldades enfrentadas, vocês aprenderão a reconhecer as semelhanças entre seus pais e as pessoas que provocaram ou provocam sofrimento em vocês.”[14]


Punir não nos faz livrar do problema, deve-se prevenir antes de castigar e para isto, é necessário um trabalho conjunto para acabar com a fome moral, psicológica e física. Frisa-se que enquanto a miséria estiver nas favelas, ela não nos atingirá, pois não a sofremos; enquanto o filho abastado estiver causando problemas a seus pais, não teremos de nos preocupar, pois nada temos com isso; porém, quando estes distúrbios nos atingem, aí sim começamos a refletir sobre o assunto e percebemos o elo que nos une.


Nesta ordem de idéias, é importante citar o autor Edson Sêda:


“Agora, como aprendendo a falar, falando; a andar, andando; a nadar, nadando; os cidadãos desses países, participando, aprendem a participar. Mas há que se criarem programas, políticas e legislações que induzem e estimulam a participação. Repito: Há que se criarem programas, políticas e legislações que induzam e estimulem a participação. No novo paradigma o sujeito aprende a ser sujeito sendo sujeito  (não objeto) desde que nasce, até que morre, passando pela organização social, que o cidadão aprende a organizar… organizando, no esforço de ser feliz.”[15]


Pensa-se que pode haver prevenção dos atos de infração pelo binômio vivência/exemplo através da educação dirigida aos nossos filhos[16], do diálogo (contar histórias), da participação e da paternidade/maternidade conscientes[17]. Enfatiza Pedro Demo que “educar de verdade é motivar o novo mestre, não repetir discípulos.[18]


A educação começa pelo exemplo, os filhos tendem a repetir os padrões de conduta de seus familiares e esses arquétipos podem ser positivos ou negativos; se positivos, devem ser incentivados a superar os modelos adquiridos; porém, se negativos, a própria sociedade deverá fornecer subsídios[19] para que ocorra a transformação dos paradigmas.


Augusto Jorge Cury referenda que “bons pais cuidam da nutrição física dos filhos.(…) Pais brilhantes vão além. Sabem que a personalidade precisa de uma excelente nutrição psíquica. (…) Prepare seu filho para ‘ser’, pois o mundo o preparará para ‘ter’.[20]


Esclarece-nos, ainda, o mesmo autor:


“Bons pais corrigem falhas, pais brilhantes ensinam os filhos a pensar. Entre corrigir erros e ensinar a pensar existem mais mistérios do que imagina nossa vã psicologia. Não seja um perito em criticar comportamentos inadequados, seja um perito em fazer seus filhos refletirem. (…) Educar não é repetir palavras, é criar idéias, é encantar. (…) Uma das coisas mais importantes na educação é levar um filho a admirar seu educador”.[21]


Os pais devem procurar ao máximo fazer com os filhos adquiram de forma equilibrada uma educação de qualidade e que possa através dela fazer uma estrutura para embasar toda a sua formação, sendo os genitores e educadores os agentes principais na busca por esse aprendizado.


O art. 5º do ECA elucida-nos que “… serão punidos na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.”; desta forma ao falar-se em ação, pensa-se nas agressões anteriormente mencionadas, mas com relação à omissão, parece que este termo não está bem nítido no nosso entendimento, uma vez que omitir é um não agir, estagnar, ver e fingir que não viu.


Neste contexto ocorre omissão quando preferimos culpar a lei por ser benéfica demais (e não é), quando é solicitada a redução da imputabilidade, quando não se enxerga criticamente à realidade social.


Já o art. 4º, do ECA, afasta a idéia de que não somos mais responsáveis pelos problemas sociais, envolvendo os destinatários desta Lei, ao referir: “é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade,…”. Frisa-se que todos responsáveis pelo bem-estar das crianças e adolescentes e isto inclui educar e evitar a exclusão social que castiga, humilha e pune.


Com relação a relevância do citado artigo, o Tribunal de Justiça gaúcho decidiu:


“DESTITUIÇÃO DO PODER DE FAMÍLIA. ABRIGAMENTO. MÃE QUE NÃO REÚNE CONDIÇÕES MATERIAIS E PESSOAIS PARA MANTER CONSIGO O FILHO MENOR. Embora a manutenção dos filhos junto aos pais biológicos seja a solução ideal e que atende a todos os interesses, no caso, verificada a vulnerabilidade da família, especialmente da mãe que vive em condições de miserabilidade e apresenta comportamento omissivo e negligente quanto aos deveres inerentes ao poder familiar, o Estado deve intervir para garantir à criança os direitos fundamentais da pessoa humana (arts. 3º e 4º do ECA). RECURSO IMPROVIDO”[22] (grifos nossos).


Paulo Affonso Garrido De Paula citado por Valter Ishida ensina:


“Criar é também educar, de sorte que o primeiro seria um dever genérico do qual o segundo seria uma de suas espécies. Educar, por outro lado, em sentido amplo, no propósito de transmitir é possibilitar conhecimentos, despertando valores e habilitando o filho para enfrentar os desafios do cotidiano”.[23]


Muitos criticam a Lei por proteger demais crianças e adolescentes em situação de risco ou também as que estão à margem da sociedade e que cometem atos ilícitos.[24]  Sob este aspecto, citamos Liberati, o qual corrobora que a responsabilidade pelos infantes não é deles.


“Na verdade, em situação irregular está, a família, que não tem estrutura e que abandona a criança; os pais, que descumprem os deveres do poder familiar; o Estado, que não cumpre as suas políticas sociais básicas; nunca a criança ou o jovem.(…) A família é o primeiro agente socializador do ser humano. A falta de afeto e de amor da família gravará para sempre seu futuro. Os pais são os responsáveis pela formação e proteção dos filhos não só pela detenção do poder familiar, mas pelo dever de garantir-lhes os direitos fundamentais assegurados pela Constituição, tais como a vida, a saúde, a alimentação e a educação”.[25]


Ratificando as assertivas anteriores, de que a família é a base de toda a estrutura social, enfatiza-se, igualmente, que nenhuma família alcança o equilíbrio se não tiver dignidade, através de um emprego íntegro, que viabilize escola, alimentação, saúde, laser, aos seus dependentes; enfim, proporcionar a sua prole os direitos básicos insertos em nossa Carta Magna.


A base social deve ser composta por cidadãos e não por lixos humanos. Esclarece-se que os problemas sociais não existem apenas nas classes menos favorecidas (estas são vítimas do sistema), eles são vivenciados, também, pelas classes mais abastadas, o que deve ser idealizado é a busca por maiores reflexos em torno dos direitos e deveres das crianças e adolescente no intuito de vivenciar um futuro promissor.


6 CONSIDERAÇÕES FINAIS


O presente estudo procurou trabalhar algumas questões relevantes com relação a ótica do ECA em relação aos direitos das crianças e dos adolescentes, sendo que, há duas penalidades a serem impostas aos indivíduos: a legal (aplicada pelo Poder Judiciário) e a social (aplicada por cada um de nós).


A primeira é bem mais branda, pois para aquele que infringe a lei, é aplicada uma sanção, chamada pena (aos maiores) e a medida sócio-educativa (para adolescentes). Ao final do cumprimento da pena e da medida, as pessoas estão livres, pois cumpriram, “pagaram” pelo ato delituoso praticado estando, portanto, “aptas” para reintegrarem o meio social.


Ocorre que quanto à sociedade, existe o que passa-se a denominar pena moral e esta é cruel, porque não liberta, não perdoa, estigmatiza, escraviza e marca para o resto da vida, como um “EX”: ex-detento, ex-presidiário, ex-assassino e, portanto, fora do nosso meio.


Este individuo acaba por ser rotulado como uma pessoa inconveniente para o convívio social e familiar, passa a ser um nada que a tudo nadifica. Restará a este indivíduo procurar os seus iguais, aqueles que sofrem o mesmo preconceito e voltar a delinqüir, na hipótese de não receber um tratamento psicológico e a reintegração a vida social, incluindo o trabalho e o perdão moral.


Em relação ao Estatuto da Criança e do Adolescente, evidencia-se que este não proíbe a educação; ao contrário, a incentiva; veda os maus tratos, os excessos, que são perniciosos. Muitos utilizam estas proibições como pretextos para não se envolver no processo de formação integral das crianças e adolescentes –  eis aí o equívoco na interpretação da lei.


Educar não é punir, nos tempos atuais pensa-se mais em adquirir e no sobreviver, esquecendo do principal, qual seja de refletir, de amar, de enxergar o todo, prefere-se um não ser a ter que ser em essência humanos: um formando o todo.


Rompido o elo que nos une, através da indiferença de nossos próprios filhos, procura-se alguém para responsabilizar, sendo ora o legislador, ora o outro, menos a nós, o que está em demasiado incorreto, a sociedade o todo incluindo pais, professores, crianças, adolescentes, todos devem procurar fazer a sua parte para que ocorra uma verdadeira mudança em relação ao cenário atual.


É relevante pensar e repensar nas atitudes, rever conceitos e preconceitos (conceitos pré-concebidos), a fim de dar chance aos que estão à margem da sociedade. Alguns são apenas pobres; uns têm demais, outros, têm de menos e a grande maioria nem chega a fazer parte da nossa história.


 


Referências bibliográficas:

BERTOLDO, Janice Vidal. Limites – um olhar sobre seu significado. Revista Saúde Interativa n. 21, ano 4. Santa Maria, RS, setembro/outubro de 2005.

CURY, Augusto Jorge. Pais brilhantes, professores fascinantes. Rio de Janeiro: Sextante, 2003.

DEMO, Pedro. Política social, educação e cidadania. 2. ed. São Paulo: Papirus, 1996.

ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da criança e do adolescente – doutrina e jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2004.

LIBERATI, Wilson Donizeti. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. São Paulo: Malheiros, 2005.

PIERRAKOS, Eva e SALY, Judith. Criando união: o significado espiritual dos relacionamentos. São Paulo: Cultrix, 1993.

RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação Cível Nº. 70020265203. Oitava Câmara Cível. Relator: Claudir Fidelis Faccenda. Julgado em 04/10/2007. Disponível em: < http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud2/ementa.php>. Acesso em: 15. Jan. 2008.

SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente em conflito com a lei: da indiferença à proteção integral. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

SÊDA, Edson. Infância e sociedade: terceira via. São Paulo: ADÊS, 1998.

 

Notas:

[1] Silvia Lopes da Luz.

[2] ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da criança e do adolescente – doutrina e jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2004, p.50, esclarece melhor, as responsabilidades dos pais e tutores.

[3] Medidas sócio-educativas são aplicadas apenas aos adolescentes infratores, já as protetivas são aplicadas aos adolescentes e crianças, enquanto vítimas, bem como às crianças, quando vitimizadoras. Inimputáveis são os menores de 18 anos.

[4] Falamos em política como cidadania e não com o aspecto político-partidário.

[5] ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da criança e do adolescente – doutrina e jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2004, p.50.

[6] O desequilíbrio mencionado não se refere somente as classes sociais menos favorecidas economicamente; as famílias abastadas também abandonam sua prole, através da compensação material: presente-ausência. 

[7] DEMO, Pedro. Política social, educação e cidadania. 2. ed. São Paulo: Papirus, 1996. p.42.

[8] BERTOLDO, Janice Vidal. Limites – um olhar sobre seu significado. Revista Saúde Interativa n. 21, ano 4. Santa Maria, RS, setembro/outubro de 2005. p.16-17.

[9] SÊDA, Edson. Infância e sociedade: terceira via. São Paulo: ADÊS, 1998. p.25.

[10] SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente em conflito com a lei: da indiferença à proteção integral. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p.76.

[11] São as pessoas maiores de 18 anos ou emancipadas.

[12] SÊDA, Edson. Infância e sociedade: terceira via. São Paulo: ADÊS, 1998. p.12-13.

[13] Id. Ibid., p.14.

[14] PIERRAKOS, Eva e SALY, Judith. Criando união: o significado espiritual dos relacionamentos. São Paulo: Cultrix, 1993. p.113.

[15] SEDA, Edson. Infância e sociedade: terceira via. São Paulo: ADÊS, 1998. p.17.

[16] Educação no sentido amplo, não só a escolar, mas também, a moral, demonstrando a visão crítica do mundo.

[17] A paternidade deverá ser responsável, mesmo estando os pais separados, uma vez que os cônjuges separam-se entre si e não dos filhos.

[18] DEMO, Pedro. Política social, educação e cidadania. 2. ed. São Paulo: Papirus, 1996. p.41.

[19] Investir em políticas públicas para envolver crianças e adolescentes em projetos que visem o crescimento pessoal, auto-estima, bem como organizar os Conselhos Tutelares com profissionais aptos para atuarem junto às famílias e com crianças e adolescentes vitimizadores e vítimas. 

[20] CURY, Augusto Jorge. Pais brilhantes, professores fascinantes. Rio de Janeiro: Sextante, 2003. p.28-29.

[21] Id. Ibid. p.33-34, 37.

[22] RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação Cível Nº. 70020265203. Oitava Câmara Cível. Relator: Claudir Fidelis Faccenda. Julgado em 04/10/2007. Disponível em: < http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud2/ementa.php>. Acesso em: 15. Jan. 2008.

[23]  DE PAULA, Paulo Affonso Garrido. Educação. Direito e Cidadania. In: Cadernos de direito da criança e do adolescente. São Paulo: Malheiros, 1995. v. 1, p. 102, citado por ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da criança e do adolescente – doutrina e jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2004,  p.52.

[24] Segundo o Código Civil, em seu artigo 186, comete ato ilícito qualquer pessoa (incluindo crianças e adolescentes) que violar direito e causar dano a outrem, seja patrimonial ou extrapatrimonial.

[25] LIBERATI, Wilson Donizeti. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 24.


Informações Sobre os Autores

Silvia Lopes da Luz

Professora de Direito Civil – Parte Geral, da ULBRA, Santa Maria, RS; Especialista em Direito Público pela FAFRA, (UNIFRA), Santa Maria, RS; Coordenadora do Projeto de Extensão Cidadania na Escola pela ULBRA Santa Maria, RS

Carina Deolinda da Silva Lopes

Advogada em Santa Maria (RS), Mestre em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões de Santo Ângelo/RS. Pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina; Pós-graduada em Direito Processual Civil pela Universidade Luterana do Brasil campus Santa Maria/RS.


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