Resumo: O presente artigo irá tratar sobre a violência conjugal contra a mulher, praticada por marido ou companheiro, abordando algumas teorias acerca da violência contra as mulheres, entendimentos sobre o instituto da representação como “empoderamento” das mulheres e, ao final, uma reflexão acerca de alternativas para a resolução do conflito evitando a recorrência ao Sistema Penal.
Sumário: 1. Introdução – 2. Delimitando Conceitos – 3. Entendendo a violência conjugal sob a lente de gênero – 4. Lei 9.099/95 x Lei 11.340/06 – 5. Conclusão
1. Introdução
O presente artigo faz parte do projeto de pesquisa da dissertação, que tem o título provisório de “Feminismo e discurso punitivo: uma análise entre práticas e teorias.[1]”
A Organização Mundial da Saúde (OMS), divulgada recentemente, no qual foram entrevistadas 25.000 mulheres em 10 países, entre os quais o Brasil, constatou que entre 25% e 50% das mulheres entrevistadas foram vítimas de violência doméstica moderada ou severa no último ano. Constatou-se que, com algumas variações, entre 20% e 60% das mulheres disseram nunca haver denunciado esses fatos. Os danos produzidos pela violência no ambiente doméstico vão do medo à dor física crônica, passando pelo esfacelamento da auto-estima. Ainda, os estudos recentes demonstram que, mais do que a pobreza, é o impacto de processos de mobilidade social negativa, alcoolismo e drogadição, que leva muitas vezes o cônjuge masculino a uma dinâmica destrutiva para si próprio e seu entorno familiar[2].
Nos últimos vinte anos, o reconhecimento da violência contra a mulher como sendo um problema público vem ocorrendo na sociedade brasileira. Durante este período, aconteceu uma politização do discurso relativo às práticas de violência contra a mulher, resultando em correntes de opinião que tendem a recorrer à criminalização e à punição dessas formas de violência. Simultaneamente, esse discurso punitivo dos movimentos de mulheres, em um cenário mais amplo, tem se confrontado com dois aspectos importantes da contemporaneidade: a crise do sistema de justiça criminal brasileiro (morosidade e impunidade) e a falência do sistema punitivo. Contudo, quando um movimento social conhece um certo sucesso e perdura durante algumas décadas mudanças, obviamente, acontecem. O entusiasmo inicial diminui, o “sucesso” do movimento não é estável: determinados temas levantados podem, às vezes, ser retomados e incorporados pela sociedade, esvaziando o caráter de tabu de tais assuntos fazendo com que o discurso deixe de ser marginal e se torne dominante.
Por sua vez, o Estado, no intuito de se mostrar politicamente correto, encampou a defesa dos Direitos das Mulheres, institucionalizando alguns espaços de discussão dos movimentos feministas e de mulheres. Em decorrência desta aproximação do movimento social com os órgãos estatais está ocorrendo uma maior tendência do Estado a incorporar na legislação reivindicações feministas, mormente no que se refere à violência doméstica e familiar contra a mulher.
Dentro desse contexto, têm-se, em especial, a Lei 11.340/2006, chamada de Lei Maria da Penha, que instituiu os Juizados da Violência Doméstica e familiar contra a mulher e, entre outras modificações, aumentou a pena do delito de violência doméstica, bem como vedou a utilização do rito da Lei 9.0099/95 para a apuração do referido delito.
Desde 1979, mais de uma centena de países foram signatários da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, instrumento jurídico internacional dos mais relevantes, a partir do qual resultaram legislações nacionais, declarações e convenções assinadas em decorrência da atuação de diferentes agências e organismos ligados à ONU, tais como Organização Internacional do Trabalho, a Organização Mundial da Saúde, Organização Estados Americanos.
Nos anos 80, incentivado pelo processo de democratização política que engatinhava na sociedade brasileira, o movimento de mulheres iniciou um diálogo com o Estado, no sentido de reivindicar políticas que dessem respostas institucionais de prevenção e punição da violência praticada contra a mulher[3]. Neste sentido, o Brasil passou a ratificar importantes tratados internacionais a respeito de direitos humanos,
Em 1994, é aprovada a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, conhecida como a Convenção de Belém do Pará. No ano seguinte, 1995, é realizada a IV Conferência Mundial das Nações Unidas sobre a Mulheres, Beijing, China, na qual foi destacado o reconhecimento definitivo do papel econômico e social da mulher. Além disso, abriu os caminhos para o futuro, consagrou todas as conquistas das mulheres, ressaltando o princípio da universalidade dos direitos humanos e o respeito à especificidade das culturas.
Mas a distância entre compromissos assumidos pelos países e a sua efetividade é enorme. Assim, a Declaração de Beijing e a Plataforma de Ação Mundial, documentos elaborados na IV Conferência Mundial da Mulher, em Beijing, reiteram compromissos assumidos anteriormente e têm o grande mérito de articulá-los numa perspectiva de reconhecimento dos impasses e proposição de caminhos para superá-los, sabendo que o mundo contemporâneo vive o acirramento das suas contradições.
Os dois documentos resultantes da Conferência de Beijing (1995) são grandes desafios a todos – homens e mulheres- que dizem defender a democracia, a justiça e a igualdade no mundo. A Declaração de Beijing que, saliente-se, não teve reservas por parte de nenhum país, manifestou o reconhecimento pela luta das mulheres e o compromisso com a igualdade de direitos e a dignidade humana intrínseca de mulheres e homens, com o fortalecimento dos consensos e progressos das Conferências Mundiais anteriores. Explicita ainda que, convencidos de que a plena participação das mulheres em condição de igualdade com os homens em todas as esferas da sociedade, inclusive nas esferas de poder e de decisão, é fundamental para a conquista da igualdade e desenvolvimento. Para tanto, os governos deveriam se comprometer a implementar a Plataforma de Ação e a garantir que todas as suas políticas e programas de ação refletissem uma perspectiva de gênero.
É a Plataforma de Ação Mundial, nos seus 350 artigos, que apresenta diagnósticos e recomenda medidas nas áreas de saúde, educação, direitos reprodutivos e sexuais, participação no poder e nos centros de decisão, comunicação e meio ambiente, trabalho e emprego, direitos humanos, conflitos armados, prevenção e combate à violência e à pobreza. O Capítulo IV da Plataforma Mundial de Ação é o mais significante, pois se refere aos objetivos estratégicos e medidas recomendadas. Note-se que esse capítulo possui cerca de 210 artigos.
Nesse sentido, destacar alguns dos compromissos assumidos que dão a dimensão da amplitude dos temas tratados e que remetem aos governos, aos organismos internacionais e à sociedade civil a responsabilidade de construir um mundo de justiça e igualdade, como aspiração dos povos representados em Beijing, no final do século XX:
a) Atualizar e propor novas legislações e medidas de combate à discriminação da mulher e promoção da igualdade em todos os âmbitos, incluindo ações afirmativas para a igualdade de acesso a cargos públicos e mandatos eletivos, cargos decisórios em todos os âmbitos, igualdade de oportunidades para o trabalho e emprego;
b) Reconhecer a violência contra a mulher como um desrespeito aos direitos humanos, seja ela o abuso sexual, o assédio sexual no trabalho e nos estabelecimentos educacionais, a violência física e psíquica, a mutilação genital, os estupros, a violência policial e nos serviços de saúde, o tráfico de mulheres, a prostituição infantil, a prostituição forçada – e tomar medidas adequadas em nível local, nacional e internacional, implementando serviços e programas de prevenção e atendimento às mulheres;
Portanto, é necessário se ter me mente que a Lei 11.340/06 – Lei Maria da Penha – surgiu como forma do Estado Brasileiro cumprir seus compromissos internacionais já há muito assumidos. Ademais, foi imposta ao Brasil a criação de legislação específica ao combate da violência contra a mulher, por condenação nas Cortes Internacionais, de violação de direitos humanos.
O objetivo específico deste artigo é analisar, de forma crítica, a Lei 11.340/2006 evidenciando a recorrência ao discurso punitivo como forma de evidenciar a luta pelos direitos das mulheres e a tentativa de, com isto, diminuir a violência contra a mulher. Entretanto, tal análise não deixará de abordar os dispositivos pertinentes à esfera cível, constantes na referida Lei, que devem ser considerados como relevantes na luta pelos direitos das mulheres, mas afastando-se da utilização do Direito Penal como meio de solução de conflitos sociais.
2. Delimitando conceitos
Da investigação para a elaboração desse projeto foi possível verificar que, embora a maioria dos trabalhos sobre violência contra as mulheres desenvolvam conceitos a este respeito, apresentam uma indistinção terminológica, fazendo certa confusão entre os termos “violência contra a mulher”, “violência doméstica”, “violência familiar” e “violência conjugal” os quais muitas vezes são utilizados como sinônimos, mesmo não o sendo.
Conforme a Convenção de Belém do Pará, violência contra mulher é “qualquer ação ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como privado[4]”. O termo “violência contra a mulher”, portanto engloba a violência doméstica, a violência familiar e a violência conjugal. Por violência doméstica deve-se entender como sendo aquela conduta que cause dano físico, psíquico ou sexual não só à mulher, como a outras pessoas que coabitem na mesma casa, incluindo empregados e agregados. Já a violência familiar é mais específica abrangendo apenas as agressões físicas ou psicológicas entre membros da mesma família. Por fim, violência conjugal deve ser entendida como todo tipo de agressão praticada contra o cônjuge, companheira (o) ou namorada (o). Não se deve restringir a violência conjugal àquela praticada pelo marido contra a esposa, pois sabidamente essas agressões alcançam também os casais de namorados, além de recentes pesquisas demonstrarem a existência de violência conjugal entre lésbicas, o que desnatura essa violência como sendo cometida exclusivamente pelos homens contra as mulheres (esposas, companheiras ou namoradas). Ademais, embora sejam poucos os casos ocorridos, existe também a violência conjugal praticada pela mulher contra o homem.
A Lei 11.340/06, nos incisos do art. 5º, define violência doméstica ou familiar contra a mulher como sendo toda ação ou omissão, baseada no gênero, que cause morte, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral e patrimonial, no âmbito da unidade doméstica, da família e em qualquer relação íntima de afeto, em que o agressor conviva ou tenha convivido com agredida. Ainda, no parágrafo único do referido artigo, há a ressalva que as relações íntimas mencionados independem de orientação sexual, do que se pode entender a possibilidade do “agressor” também ser mulher, caso se trate de uma relação homossexual (ou seria melhor lésbica?).
Da leitura do art. 5º da Lei 11.340/06, depreende-se que os dispositivos dessa lei deverão abarcar, não só os delitos de lesão corporal (art. 129, § 9º do CP), mas todos os delitos praticados contra a mulher no âmbito doméstico ou familiar. Em suma, a apuração de qualquer tipo de violência em que a vítima seja mulher, desde que o sujeito passivo tenha com ela relações íntimas de afeto, deve ser regulada pela Lei em análise.
A Lei 11.340/06 é uma legislação peculiar, porque deve ser interpreta sob a ótica de gênero. Assim, importante que se tenha essa especificidade em mente ao realizar análises sobre a Lei Maria da Penha, para que não se cometam impropriedades como reivindicar o abrigo da Lei aos casos de violência conjugal exercida pela mulher contra seu companheiro. Isto porque tais episódios, apesar de existirem, são totalmente esporádicos, não possuindo o caráter de problema social como o caso da violência contra a mulher.
Além disso, a lente de gênero é relevante ferramenta teórica para se delimitar a competência dos Juizados da violência doméstica e familiar, pois o preceito do art. 5° da Lei 11.340/06 indica que a lei alberga os casos de violência doméstica e familiar baseada no gênero. Portanto, a violência deve ser praticada contra mulher e a agressão deve estar calcada na idéia de uma dominação, que hierarquiza os gêneros de tal forma que o gênero feminino seja o submisso ou inferior.
Ademais, a Lei Maria da Penha, ao enumerar o dano moral e patrimonial como conseqüências da violência doméstica e familiar, engloba os casos de apropriações indébitas, furtos e outros delitos de cunho patrimonial praticados contra a mulher no âmbito doméstico, abrindo a possibilidade para se pleitear, inclusive, indenizações pelo dano moral.
3. Entendendo a violência conjugal sob a lente de gênero
As teorias sobre violência contra as mulheres eclodiram a partir do início dos anos 80, sendo uma das principais temáticas dos estudos feministas no Brasil. O desenvolvimento dessas teorias e de estudos feministas é reflexo das mudanças sociais e políticas que ocorriam, na época, no país. Assim, como outros movimentos sociais o movimento de mulheres acompanhou o processo de redemocratização que despontava no Brasil.
Nesse período, o movimento de mulheres tinha como um dos principais objetivos dar visibilidade à violência contra a mulher e tentar combatê-la por meio de intervenções sociais e jurídicas mormente, a criminalização de condutas. Incentivado pela redemocratização política que dava seus primeiros passos na sociedade brasileira, o movimento de mulheres iniciou um diálogo com o Estado, no sentido de reivindicar políticas que dessem respostas institucionais de prevenção e punição da violência praticada contra a mulher.
Em 1980, foi fundado o grupo SOS-Mulher, em São Paulo, experiência pioneira no sentido da defesa dos Direitos das Mulheres e, também, de oferecer apoio psicológico e material a mulheres vítimas de violência.
Uma das primeiras conquistas do movimento de mulheres no Brasil foi a criação, em 1985, na cidade de São Paulo, da Delegacia de Defesa da Mulher (DDM). Contudo, se por um lado a instituição das Delegacias de Defesa da Mulher concedeu visibilidade ao problema da violência contra a mulher, por outro restringiu, tão somente, à criminalização o debate sobre as formas de combate à violência contra a mulher.
Os primeiros estudos sobre o tema da violência contra as mulheres partiram das denúncias nos distritos policiais e das práticas feministas não-governamentais de atendimento às mulheres. Com o advento das delegacias da mulher, passam a privilegiar as ações do Estado. Empiricamente, pode-se afirmar que a tarefa primordial dessas pesquisas consistia em identificar os crimes mais denunciados, quem eram as mulheres vítimas e quem eram os agressores. Tais investigações compartilhavam de referências teóricas adotadas para compreender o fenômeno social da violência contra as mulheres[5].
As principais referências teóricas adotadas nesses trabalhos podem ser identificadas em três correntes: a da dominação masculina, a da dominação patriarcal e a relacional. A primeira define violência contra as mulheres enquanto “expressão de dominação da mulher pelo homem, resultando na anulação da autonomia da mulher, concebida tanto como ‘vítima’ quanto ‘cúmplice’ da dominação masculina[6]”, essa corrente, entende ainda que a dominação masculina é uma ideologia reproduzida, tanto por homens quanto por mulheres, que transforma diferenças em desigualdades hierarquizadas; a segunda corrente, a da dominação patriarcal, é contaminada pela perspectiva feminista e marxista, percebendo a violência como expressão do patriarcado, em que a mulher é vista como sujeito social autônomo, contudo, historicamente, vitimada pelo controle social masculino; a terceira corrente, chamada de relacional, tenta relativizar as noções de dominação masculina e vitimização feminina, concebendo a violência como uma maneira de comunicação: um jogo do qual a mulher não é vítima, mas participante.
A vitimização é pouco problematizada pelos trabalhos iniciais dos anos 80 que tinham como objetivo dar visibilidade às denúncias de violência através da identificação do perfil das queixas, das vítimas e dos agressores. Contudo, na década de 90, incentivados pelas discussões teóricas que incorporavam categoria gênero nos estudos feministas no Brasil, os estudos sobre violência contra as mulheres adentram no debate sobre vitimização. Embora continuassem com vistas à Delegacia da Mulher, os novos estudos passaram a não se limitarem a mapear o perfil das agressões, vítimas e agressores, pois as taxas de impunidade não chegaram a diminuir e a criminalização das condutas não era necessariamente o intuito das vítimas. As pesquisas, então, começam a analisar a dinâmica das denúncias nos sistemas policial e judicial. Com isso, a vitimização ganha destaque nas pesquisas em virtude da freqüente retirada das queixa por parte das vítimas, além das providências, geralmente, não criminais solicitadas, ao Estado, pelas mulheres vítimas de violência.
Perante esse novo cenário, o conceito de gênero, popularizado por Joan Scott como sendo “um elemento constitutivo das relações sociais, baseado em diferenças percebidas entre os sexos; (…) uma forma primária de significação das relações de poder”,[7] passou a ser utilizado para se compreender as complexidades das denúncias. A utilização da categoria gênero introduz nos estudos sobre violência contra as mulheres um novo termo para discutir tal fenômeno social: “violência de gênero”.
Nesse período, surgem novos estudos sobre violência contra as mulheres, os quais enfatizam o exercício da cidadania das mulheres e o acesso destas à Justiça. Entretanto, tais estudos ainda não superam as dificuldades teóricas relativas à conceituação de violência contra as mulheres e violência de gênero, pois não abandonam totalmente a idéia do patriarcado, ocasionando confusão de conceitos.
A terceira corrente teórica sobre violência contra as mulheres, chamada de relacional, visa a relativizar a perspectiva “dominação-vitimização”. O trabalho que melhor exemplifica essa corrente é o de Maria Filomena Gregori, intitulado Cenas e Queixas e publicado nos anos 90.[8] A autora, baseando-se em sua experiência como observadora e participante do SOS-Mulher de São Paulo, entre fevereiro de 1982 e julho de 1983, identificou e analisou as contradições entre as práticas e os discursos feministas na área de violência conjugal, bem como os depoimentos das mulheres que sofreram violência. De acordo com Gregori, o discurso feminista do SOS-Mulher percebe a mulher como vítima da dominação masculina, a qual acarreta a violência conjugal, assim libertação da mulher dependeria da sua conscientização enquanto sujeito autônomo e independente do marido (homem) o que seria obtido por meio das práticas de conscientização feminista. Contudo, Gregori observa que, inversamente a essa perspectiva, as mulheres atendidas pelo SOS-Mulher não buscavam, necessariamente, a separação de seus parceiros. A autora entende que não há uma simples dominação das mulheres pelos homens, estas não são meras vítimas de seus companheiros, não existem, numa relação, um estabelecimento dualista e fixo dos papéis de gênero.. Embora a dualidade vítima-agressor facilite a denúncia da violência, Gregori destaca que devem haver limites para essa visão jurídica dualista: “a construção de dualidades – como ‘macho’ culpado e mulher ‘vítima’ – para facilitar a denúncia e indignação, deixando de lado o fato de que os relacionamentos conjugais são de parceria e que a violência pode ser também uma forma de comunicação, ainda que perversa, entre parceiros”[9]. As cenas em que os personagens se vêem envolvidos e que culminam em agressões estão sujeitas a inúmeras motivações – disposições conflitivas de papéis cujos desempenhos esperados não são cumpridos, disposições psicológicas tais como esperar do parceiro certas condutas e inconscientemente provocá-lo, jogos eróticos etc.[10]
Para a autora, a mulher também é protagonista nas cenas de violência conjugal e se representa como “vítima” e “não-sujeito” quando denuncia, através das queixas, tais cenas de violência. Em assim procedendo, a mulher reforça a reprodução dos papéis de gênero. Gregori reconhece, contudo, que o medo da violência também alimenta a cumplicidade da mulher, salientando que é o corpo da mulher que sofre os danos, é nela que o medo se instala e assim é ela que vai se aprisionando ao criar sua própria vitimização”[11]. A intenção da autora não é culpar a mulher pelo fato de ser agredida, mas compreender melhor os contextos da violência e os diferentes significado que assumem.
O estudo de Gregori inaugura um dos debates mais importantes que acompanha os estudos feministas sobre violência contra as mulheres no Brasil. As organizações feministas prestadoras de atendimento a mulheres, começam a discutir a “cumplicidade” da mulher na violência conjugal e incorporam a expressão “mulher em situação de violência” no lugar de “mulher vítima de violência”.[12]
Relevante, ainda, que os estudos definam “violência de gênero” com maior rigor teórico, sobretudo fazendo referência a gênero como um campo em que o poder é articulado. As pesquisas sobre violência conjugal contra as mulheres devem desenvolverem-se a partir de uma perspectiva de gênero que leve em conta diversas categorias sociais, investigando como diferentes construções socioculturais de feminilidade e de masculinidade articulam-se, formando redes variadas.
4. Lei 9.0099/95 x Lei 11.340/06
O processamento dos casos de violência conjugal contra a mulher pelos juizados especiais criminais (Lei 9.099/95) gerou opiniões diversas tanto no movimento feminista quanto entre as pesquisadoras. Algumas perceberam os juizados especiais criminais como benéfico à luta das mulheres por dar visibilidade ao problema da violência conjugal, que antes não chegava ao âmbito judicial, outras entenderam que os juizados ampliaram a rede punitiva estatal, pois judicializou condutas que antes não chegavam até o judiciário e que em muito pouco contribuíram para a diminuição do problema da violência conjugal, já que as taxas de impunidade quase não foram alteradas.
Dentre esses diversos entendimentos será destacado o de duas importantes pesquisadoras do tema: Carmen Hein Campos e Wânia Pasinato Izumino. Doravante, será apresentado os diferentes posicionamentos destas autoras acerca dos Juizados Especiais Criminais, para, na seqüência, confrontar tais entendimentos com as modificações trazidas pela Lei 11.340/06.
Campos afirma que a Lei 9.0099/95 foi criada baseada num paradigma masculino e, por isso, apresenta um déficit teórico pelo não acolhimento da criminologia feminista. Tal déficit poderia ser comprovado pela operacionalidade da Lei. De acordo com Campos, há um massivo arquivamento dos processos, uma reprivatização do conflito e a redistribuição do poder ao homem, mantendo-se uma assimetria de gênero. Para a autora, “a proposta despenalizante dos Juizados Especiais Criminais é positiva na perspectiva do autor do crime e negativa na perspectiva da vítima. Significa dizer que a Lei é imprópria para o julgamento da violência doméstica”[13]. Na verdade, a autora pensa que esses conflitos devem estar fora da esfera de atuação do sistema penal. Contudo, a Lei 11.340/06 amplia a atuação do sistema penal sobre o conflito da violência doméstica.
Na pesquisa realizada por Campos, 70% dos casos julgados nos JECrims, em Porto Alegre, eram de violência doméstica cometida pelo homem contra a mulher e tais delitos eram habituais. Estes dados demonstram que os juizados, apesar de não possuírem competência exclusiva para tanto, estão majoritariamente processando casos de violência doméstica, sem, contudo, incorporar o paradigma de gênero. A autora destaca que a conseqüência dessa fórmula que exclui o paradigma de gênero é a banalização da violência doméstica, com a não participação da vítima, as renúncias massivas das vítimas, que desistem da representação, não havendo solução satisfatória ao conflito[14]. O que se percebe é que Lei 11.340/06 também não recepcionou o paradigma de gênero, pois excluiu a participação da mulher na discussão do problema, o que dificulta muito uma solução satisfatória para esse conflito social.
Antes da Lei 9.099/95, o que se julgava não era o delito, mas como este afetavam a estabilidade das instituições da família e do casamento. Quando ocorria a condenação era porque o casamento já havia sido desfeito, nada mais havia para ser preservado. Assim, o que movia as decisões judiciais era a preservação do casamento, segundo uma expectativa social. Com o advento dos juizados especiais criminais, de acordo com Campos, essa lógica da preservação do casamento permaneceu inalterada, contudo, passou a ser operada não pela absolvição, mas pelo arquivamento massivo dos processos, através da renúncia das vítimas. Para a autora, a postura dos magistrados de atenderem a expectativa social de preservação demonstra que o direito é aplicado às mulheres de forma assimétrica, ocultando as maneiras de distribuição social do poder. Além disso, entende que o incentivo à renúncia ao direito de representação auxilia a banalizar a violência conjugal e reprivatiza o conflito, devolvendo o poder ao agressor.
Contudo, para Izumino, o Poder Judiciário, aplicando a lei conforme a expectativa social age corretamente. Não necessariamente com a finalidade de preservar a instituição do casamento, mas de manter a união conjugal, o que na maioria dos casos, é o desejo também da vítima. A busca pela denúncia nas Delegacias e pelo apoio do Poder Judiciário é recurso encontrado pelas mulheres para fazer cessar períodos de agressões contínuas. A condenação dos companheiros, na grande maioria dos casos, não é a intenção da vítima da agressão. Neste sentido, a preocupação do judiciário em tentar manter a união certamente é importante, obviamente, que esta não pode estar acima de outros objetivos. Pouco contribui o incentivo à conciliação e, portanto, à retirada da representação, se não houver a discussão sobre a violência perpetrada. Neste sentido, a exclusão do rito da Lei 9.099/95, expressa no art. 41 da Lei Maria da Penha, para a apuração de casos de violência doméstica, retira a possibilidade de conciliação, que se constituía em uma oportunidade das partes discutirem o conflito e serem informadas sobre seus direitos e as conseqüências de seus atos. Cabe ressaltar que a vedação da aplicação da Lei 9.099/95 conecta-se a uma antiga reivindicação feminista, que entendia ser a referida lei empecilho para a produção de jurisprudência nos casos de violência doméstica.
Izumino trata a possibilidade de manuseio da representação como um “empoderamento” das mulheres, pois estas deixaram de ser vítimas passivas para atuarem de forma ativa, reagindo à situação de violência que enfrentam. A capacidade de dispor da representação revela formas através das quais as mulheres podem exercer poder na relação com os companheiros. Entretanto, a autora chama a atenção que o problema não está na possibilidade da vítima de se manifestar retirando a representação, mas na ausência de mecanismos que permitam que ela seja informada de seus direitos e das conseqüências de sua renúncia à representação. A este respeito, o inc. V do art. 11 da Lei 11.340/06, estabelece que a autoridade policial deve informar a mulher os direitos e serviços a ela conferidos, tal atitude é importante, porém o que se lastima é que tenha sido necessário sua previsão legal, o que leva a crer não ser a oferta da informação um hábito nas delegacias de polícia.
A Lei 9.099/95 se encaixou à perspectiva da diversion para dar conta da demanda processual, o que acarretou uma rotinização dos conflitos e a uma despreocupação com os interesses da vítima. Contudo, a Lei 11.340, a qual deveria incentivar o modelo da conciliação, com o diálogo entre as partes (vítima e agressor), trilhou o caminho contrário, excluindo a oportunidade de conciliação e determinando, para a apuração dos casos de violência doméstica.
Uma legislação adequada sobre a violência conjugal, para a autora, deve ser pautada segundo a perspectiva da adoção de medidas que possibilitem o agressor a abster-se de comportamento violento. Campos salienta, contudo, “que ao que tudo indica, essa nova legislação há de ser pensada longe do direito penal, na perspectiva do direito civil. Impossível pensar-se em retrocesso no campo penal, buscando agravamento das penas. Ao contrário, cada vez mais se deve pensar na mínima utilização do direito penal, não só nos delitos em que as mulheres são consideradas vítimas. A utilização do direito penal reforça a idéia do pólo repressivo em detrimento de outras formas mais positivas de atuação do direito, que emergem a partir do direito constitucional. A falência do todo o sistema repressivo estão a demandar novas soluções para a consolidação dos direitos humanos e dos laços de solidariedade social”.[15]
De fato, no âmbito penal, a nova lei trouxe poucas, porém significativas mudanças. A inovação foi o acúmulo de competências cíveis e criminais no mesmo juizado. Contudo, a referida Lei instituiu um aumento de pena para o crime de violência doméstica (art. 129, § 9ª do CP), que passou a ser punido com três meses a três anos de detenção. Além disso, a lei 11.430/06 estabeleceu a possibilidade da decretação de prisão preventiva, nos casos de violência doméstica contra a mulher[16]. Com o aumento da pena, o delito de lesões corporais praticadas no âmbito doméstico deixa de ser considerado “crime de menor potencial ofensivo”, estado modificação possui uma importância muito mais simbólica do que prática, na tentativa de transformar o entendimento popular de que a violência contra mulher é menos grave.
Tão somente essas duas alterações já demonstram que a nova Lei veio de encontro ao proposto por Campos, já que apresentou um afastamento da perspectiva minimalista do Direito Penal, agravando penas e possibilitando mais uma utilização de medida excepcional que é a prisão preventiva, ferindo, inclusive, a regra para a decretação desta prisão cautelar que é o crime supostamente praticado ser apenado com reclusão.
Ao que parece os Juizados da violência doméstica, percorreram o caminho inverso dos Juizados Especiais Criminais, pois estes últimos, segundo Campos, não recepcionaram a criminologia feminista, porém os primeiros, agora, não incorporaram a olhar da criminologia crítica, ao se utilizar do Direito Penal como forma de proteger direitos.
A exclusão da conciliação, a inibição explícita à renúncia da representação e a conseqüente transmissão de seus direitos processuais ao Ministério Público retira das mulheres possibilidades de exercício de poder. No âmbito penal, a nova lei não proporciona o empoderamento das mulheres, pois restringe o manuseio de seu direito de representação, impondo uma única oportunidade para tanto (art.16 da lei 11.340/06), além de colocar a mulher em uma posição de tutelada.
As medidas não-penais de proteção a mulher em situação de violência, previstas nos artigos 9º, 22 e 23 da Lei Maria da Penha, mostram-se providências muito mais sensatas para fazer cessar as agressões e, ao mesmo tempo, menos estigmatizante para o agressor. Entretanto, a possibilidade de decretação de prisão preventiva , para os casos de lesões corporais no âmbito doméstico, certamente irá inibir a aplicação dessas medidas protetivas, pois recolher o suposto agressor ao sistema prisional é atitude menos trabalhosa e dispendiosa para o Estado, do que, por exemplo, incluir a mulher e seus dependentes em programa de proteção.
Ainda, a previsão de composição de equipe multidisciplinar (art.29 da Lei 11.340/06) é avanço importante para se lidar com o conflito social complexo que é a violência doméstica, porém a Lei não estabelece a obrigatoriedade da criação dessas equipes. Cada estado poderá implementa-las, ou seja, há a liberdade para que o Judiciário de cada estado crie tais equipes multidisciplinares para acompanhamento dos envolvidos na situação de violência. Porém, deve ser considerado que a maioria dos estados da federação passa por sérias crises financeiras, fato que, provavelmente, dificultará a contratação, através de concurso público, de profissionais para atuarem nas equipes multidisciplinares.
5. Conclusão
Assim, o que se percebe, principalmente com o advento da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) é uma certa obsessão punitiva mesmo por parte de movimentos sociais, como o feminista, conhecidos pelas reivindicações emancipatórias. A ânsia punitiva pode ser explicada, do ponto de vista filosófico, através da obra de Nietzsche, mormente, em Genealogia da Moral. Nietzsche entende que a origem da punição está no desejo do homem em não esquecer e, conforme o autor, “apenas o que não cessa de causar dor fica na memória.[17]” Assim, a racionalidade moderna calcada na “consciência” não permite esquecer, para tanto recorre constantemente à dor. Assim sendo, pode-se ter idéia da memória de uma sociedade por meio das leis penais: quanto maior o rigor da legislação penal, maior é a sua capacidade de não esquecer.
A idéia de culpa, segundo Nietzsche, teve seu surgimento a partir do entrelaçamento dos conceitos de dívida e castigo, os quais foram estabelecidos em uma relação de credor e devedor. O castigo foi tomado como forma de reparação e, assim, dano e dor foram associados. O pensamento punitivo está baseado no estabelecimento de preços e equivalências, ou seja, em uma relação entre credor e devedor.
Aqui Nietzsche abre caminho para Foucault[18], que irá dizer que a punição é uma estratégia de controle, através da inscrição do poder nos corpos. Portanto, ao observar os efeitos da punição, percebe-se que ela é absolutamente inútil para despertar sentimentos de remorso ou culpa, pois o delinqüente circundado pelos procedimentos judiciais não consegue sentir seu ato como repreensível, uma vez que nota o mesmo gênero de condutas serem praticas em nome da justiça e sem “peso na consciência”.
Desde essa perspectiva Nietzscheana, seria possível dizer que o movimento feminista, ao apoiar uma legislação penal mais rigorosa para os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, demonstra um posicionamento repleto de ressentimento, ou seja, de desejo de não esquecer. Contudo, como já foi exposto é a dor que melhor mantém o fato na memória, então, para o esquecimento não acontecer, legislação penal mais severa, cada vez em doses maiores.
O conflito social que é a violência doméstica não pode ser tratado como os demais delitos. A aplicação do rito ordinário do processo criminal para apuração dos casos de violência doméstica, não leva em consideração a relação íntima existente entre vítima e acusado, não sopesa a pretensão da vítima nem mesmo seus sentimentos e necessidades. Não há uma simples dominação das mulheres pelos homens, estas não são meras vítimas de seus companheiros, não existe, numa relação, um estabelecimento dualista e fixo dos papéis de gênero.
A intenção não é culpar a mulher pelo fato de ser agredida, mas compreender melhor os contextos da violência e os diferentes significado que assumem. Uma abordagem mais adequada da violência conjugal deve levar em conta também a agressão como uma relação de poder, entendendo o poder não como algo absoluto e estático, exercido invariavelmente pelo homem sobre a mulher, mas como algo fluído que perpassa a dinâmica relacional, exercido ora por homens ora por mulheres.
A punição não trará aos agressores o sentimento de culpa, e mesmo que trouxesse, tal sentimento em nada repararia a integridade, já abalada, da mulher. A Lei 11.340/06 avança ao prever medidas protetivas, no âmbito cível, a fim de fazer cessar a agressão contra a mulher em situação de violência, tais como o afastamento do companheiro do lar (art. 22, inc. II) e a possibilidade de remoção, de servidora pública, para distanciá-la do agressor (art. 9º, § 2º). Entretanto, estipular uma legislação penal mais rigorosa para os casos de violência doméstica e familiar, desde a perspectiva da mínima utilização do direito penal, é uma estagnação. Com isso, mais uma vez é contrariado o pensamento de Baratta ao dizer que “uma criminologia feminista pode desenvolver-se, de modo, cientificamente oportuno, somente na perspectiva epistemológica da criminologia crítica.[19]”
As tentativas de solução ou diminuição desse tipo de conflito deve, cada vez mais, se afastar do Direito Penal, o qual se mostra via inadequada para o despertar de sentimentos ou de reflexão para mudança de comportamento. Experiências como a mediação de conflito, realizada por equipe multidisciplinar e mediadores componentes da própria comunidade,[20]são alternativas que vêm se mostrando eficazes para a solução do conflito sem a intervenção do sistema penal.
Informações Sobre o Autor
Elisa Girotti Celmer
Advogada Criminalista. Graduada em Direito pela FURG. Especialista em Ciências Penais pela PUCRS. Mestranda em Ciências Criminais na PUCRS. Bolsista da CAPES