1. INTRODUÇÃO
“A mão que te acaricia / é a mesma que esbofeteia (…) O teu silêncio é cúmplice da violência / acorda para a vida e pede socorro”. (S.O.S Mulher, 1982)
A canção acima tem quase 25 anos e parece manchete dos jornais desta semana. As mulheres, amiúde, foram e são alvos da agressão dos seus companheiros.
No dia 10/11/2006, uma mulher de 21 anos foi baleada pelo ex-marido em Montes Claros, interior de Minas Gerais. José Ferreira Bastos atirou seis vezes contra a cabeça da ex, mas as balas ficaram alojadas no couro cabeludo. A vítima recebeu alta do hospital – embora as sequelas sejam elementares – e Bastos está foragido.
No mesmo dia André Luiz, acusando sua ex-mulher Cristina de tê-lo traído, seqüestrou vários passageiros em um ônibus, com Cristina debaixo da mira de um revólver, impondo-lhe as mais ignominiosas agressões físicas e morais defronte todos os passageiros seqüestrados. O caso ganhou as manchetes de todos os jornais. Afora algumas lesões na face, felizmente André não a matou. Se o fizesse, teria sido apenas mais um número na assombrosa estatística dos homens que matam mulheres que não os querem mais.
É igualmente comum que esposos, companheiros, padrastos e mesmo pais exponham suas mulheres às mais variadas formas de violência. Dentre as corriqueiras destacam-se a agressão física mais branda, sob a forma de tapas e empurrões, sofrida por 20% das mulheres; a violência psíquica de xingamentos, com ofensa à conduta moral da mulher, vivida por 18%, e a ameaça através de coisas quebradas, roupas rasgadas, objetos atirados e outras formas indiretas de agressão, vivida por 15%[1].
Há casos pitorescos que seriam cômicos se não fossem trágicos: Um romeno de 72 anos prendeu sua esposa numa gaiola durante uma semana, após desconfiar que ela estava tendo um caso com outro homem. De acordo com o site Ananova, a mulher de 70 anos foi libertada depois que os vizinhos desconfiaram de barulhos estranhos e chamaram a polícia. O autor do fato inusitado foi preso, acusado de maus tratos e cárcere privado. O idoso disse à polícia que prendeu sua mulher para impedir que ela o traísse. “Eu fiquei sabendo que ela estava me passando para trás e resolvi trancá-la para impedir que voltasse a aprontar”, disse o romeno[2].
Um dos casos mais emblemáticos envolve Maria da Penha, uma biofarmacêutica que lutou durante 20 anos para ver seu agressor condenado.
Em 1983, seu então marido, o professor universitário Marco Antonio Herredia – o que mostra que a violência doméstica não é exclusividade das classes baixas ou menos aculturadas – tentou matá-la duas vezes. Na primeira vez deu-lhe um tiro, deixando-a paraplégica. Na segunda, tentou eletrocutá-la. Na ocasião, ela tinha 38 anos e três filhas, entre 6 e 2 anos de idade.
A condenação de Marco Antônio Herredia sobreveio somente oitos anos após os fatos, cominando-se-lhe oito anos de prisão. Contudo, Marcos Herredia usou de recursos jurídicos para protelar o cumprimento da pena. Cumpriu dois anos em regime fechado e hoje está em liberdade.
Maria da Penha foi incansável na busca da condenação de seu agressor. Seu caso teve tanta repercussão que em abril de 2001, a OEA condenou o Brasil a definir uma legislação adequada a esse tipo de violência. Sobreveio, então, a Lei 11.340, publicada no Diário Oficial de 08-08-2006, que teve sua alcunha lançada como “Lei Maria da Penha”, como “homenagem” à laboriosa luta de uma mulher que não se calou ante às agressões, e lutou por Justiça!
2. A VIOLÊNCIA E OS AGRESSORES
Seria desnecessário dizer que todas as mulheres estão a mercê da proteção desta lei, independentemente de religião, etnia, nível cultural ou econômico etc (art. 2º.)
Interessante notar que configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou mesmo psicológico e dano moral ou patrimonial. Logo, tem-se por violência não apenas os atos de agressão física, mas também as agressões psicológicas, morais, patrimoniais e, claro, sexuais (art. 5º.)
Outrossim, em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação, ocorrendo situação caracterizadora de violência contra a mulher, haverá a aplicação da lei em estudo.
De há muito nossos Tribunais vêm entendendo que o parceiro que constrange sua companheira ou esposa a ter relações sexuais mediante violência ou grave ameaça pratica crime de estupro e/ou atentado violento ao pudor. A nova lei só vem reforçar essa tese.
A Lei ainda reforça que políticas públicas devem ser orientadas no sentido de proteger-se a mulher.
E, então, a “Lei Maria da Penha” passa a tratar de várias formas específicas de proteção à mulher. Eis algumas:
2.1. DA ASSISTÊNCIA À MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR
A mulher que esteja em situação de violência doméstica ou familiar poderá, a requerimento do Juiz de Direito que conduza seu caso, determinar sua inclusão em programas de assistência do governo Federal.
Quando se tratar de funcionária pública, ser-lhe-á garantida a remoção prioritária para outra lotação. E se for empregada regida pelas regras celetistas poderá afastar-se do seu emprego por até seis meses, com a suspensão do vínculo de emprego, sendo vedada a dispensa por justa causa nesse caso.
2.2. ATENDIMENTO POLICIAL
A mulher que seja vítima de violência doméstica ou que esteja a mercê de ser violentada, poderá socorrer-se ao departamento policial mais próximo. A autoridade policial que tomar conhecimento dos fatos tomará, entre outras medidas, as seguintes:
a.dará garantia de proteção à mulher;
b.encaminhará a ofendida ao Hospital ou Instituto Médico legal, inclusive para realização de exame de corpo delito;
c.fornecerá transporte para abrigo seguro;
d.se necessário, acompanhará a ofendida para assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar;
Assim, a proteção à mulher já começa desde a seara policial, sendo que a autoridade, além daquelas providências já ditas, deverá também adotar os procedimentos preliminares, lavrando o boletim de ocorrência e tomando a representação da ofendida; colhendo as provas necessárias para futura ação penal; ouvindo o agressor e a vítima. Após esses expedientes, deverá remeter os autos do inquérito à autoridade Judicial e ao Ministério Público.
2.3. PROCEDIMENTO DE APURAÇÃO DAS AGRESSÕES CONTRA A MULHER
2.3.1. Criação dos juizados especiais de violência doméstica e familiar
Enquanto norma eminentemente programática, a Lei estabelece que os Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Disse mais: que a competência destes Juizados abarcaria questões cíveis e criminais.
Ademais, criou um leque variado para o foro competente para julgamento de suas questões, sempre no intuito de facilitar o acesso ao Judiciário por parte das mulheres. Sendo assim, determinou que, por opção da ofendida, seria competente o foro: I – do seu domicílio ou de sua residência; II – do lugar do fato em que se baseou a demanda; III – do domicílio do agressor.
2.3.1. Representação da ofendida
Algumas medidas criminais para que sejam apuradas demanda a representação expressa da ofendida.
Era comum a mulher representar perante a autoridade policial o desejo de ver processado seu agressor. Posteriormente, por medo ou ameaça, desistia da ação, simplesmente deixando de comparecer aos demais atos do processo, sobretudo às audiências.
Esse panorama agora é alterado. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o Juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público[3].
2.3.2. Das penas
É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa[4].
3. DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA
No intento de garantir melhor proteção à mulher vítima de situação de risco, a Lei garantiu ao Juiz que possa tomar medidas de ofício e, claro, mediante requerimentos do Ministério Público e da própria vítima.
Aliás, o Juiz poderá decretar ex officio, em qualquer fase do inquérito ou da processo criminal, a prisão preventiva do acusado de agressão, desde que verificadas situações comprovadas da necessidade da medida para preservação do bem-estar da mulher agredida.
No entanto, e acompanhando a melhor jurisprudência, a segregação preventiva só é de rigor se houver fundada situação devidamente comprovada que a justifique. É indispensável que o juiz mencione os fatos que o convenceram da necessidade da prisão, não bastando a simples menção de que “a prisão é necessária à proteção da mulher” ou que ela “é conveniente para a instrução criminal”.
Sim, “a prisão provisória é medida de extrema exceção. Só se justifica em casos excepcionais, onde segregação preventiva, embora um mal, seja indispensável. Deve, pois, ser evitada, porque é uma punição antecipada” (RT 531/301).
A experiência forense tem mostrado que o agressor é recorrente nos seus atos. Imagine-se, então, o desejo de vingança que nutrirá contra a ofendida caso venha a ser preso preventivamente. Tão logo colocado em liberdade poderá novamente tentar ou consumar nova violência contra a mulher. Deste modo, para que a vítima não fique desprevenida, “a ofendida deverá ser notificada dos atos processuais relativos ao agressor, especialmente dos pertinentes ao ingresso e à saída da prisão, sem prejuízo da intimação do advogado constituído ou do defensor público.”[5]
4. DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA QUE OBRIGAM O AGRESSOR
É axiomático no sistema processual penal, e sobretudo constitucional, que ninguém será considerado culpado enquanto não houver o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. E, por extensão, não se pode impor ao réu medidas conseqüenciais desta punição senão posteriormente ao decreto judicial condenatório.
Contudo, já se decidiu que medidas liminares, inclusive prisões preventivas, mesmo sem o trânsito em julgado de uma sentença, nada tem de inconstitucional. Nesta toada, a Lei em questão trata de outras medidas provisórias que o juiz pode decretar contra o agressor feminino, entre elas:
I – suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente.
O certificado de registro de arma de fogo e a autorização para o porte de arma de fogo serão expedidos pela Polícia Federal e será precedido de autorização do Sinarm – Sistema Nacional de Armas. Uma vez havida agressão contra mulher, o juiz poderá de imediato decretar a suspensão da posse ou restringir o porte, comunicando a Polícia Federal e o Sinarm do ocorrido.
II – afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;
Medida de cunho estritamente civil, caberá doravante ao Juiz criminal que conduzir o processo que apure eventual agressão.
Aliás, o art. 23, II, determina que se o agressor estiver residindo no local poderá ser afastado e a agredida reconduzida ao lar.
Poder-se-á, também, pleitear a separação de corpos, com vistas à futura separação judicial ou mesmo divórcio.
III – proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;
Instituto típico do direito americano, o juiz poderá impor ao agressor que mantenha certa distância da ofendida, seus familiares e testemunhas. Em havendo descumprimento desta regra, o agressor se sujeitará às penas do crime de desobediência.
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;
c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;
IV – restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;
Eventualmente, a agressão é de tal modo que envolvem inclusive os filhos, quer porque ficam a mercê física dos ataques, quer porque assistem a mulher ser agredida redundando num abalo psicológico.
Em qualquer desta situação, preservando-se sempre o “melhor interesse do menor”, o juiz poderá impedir que o agressor visite-o, mesmo que seja seu filho.
V – prestação de alimentos provisionais ou provisórios.
A mulher agredida poderá pedir alimentos ao agressor se não reunir condições de subsistência condigna.
Caso essas medidas não sejam suficientes, o juiz poderá determinar qualquer outra que seja pertinente, sobretudo aquelas determinadas no art. 24.
Amiúde o agressor, principalmente quando casado ou vivendo em união estável, sabendo que a separação é iminente e irreversível, promove a dilapidação do patrimônio, com vistas a locupletar-se, prejudicando a mulher. Novamente a lei se fez atenta, possibilitando que o juiz criminal:
I – restitua bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida;
II – proíba temporariamente a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial;
III – suspenda as procurações conferidas pela ofendida ao agressor;
IV – preste caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.
5. APLICAÇÃO DA LEI 9099/95
A Lei 9.099/95 criou os Juizados Especiais Criminais, editando algumas medidas despenalizadoras como a conciliação (art. 74), a transação penal (art. 76) e a suspensão condicional do processo (art. 79).
Em linhas gerais, essas medidas visam impedir que réus sejam processados por crimes denominados de “menor potencial ofensivo”, oferecendo-lhes medidas alternativas. Possibilitou-lhes, presentes os pressupostos subjetivos, os institutos despenalizadores da conciliação e da transação penal aos acusados de cometerem contravenções penais e delitos com cominação de pena máxima não superior a 02 (dois) anos e da suspensão condicional do processo, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, quando a imputação for a de infração cuja pena mínima seja igual ou inferior a 1 (um) ano.
Porém, a Lei “Maria da Penha”, no seu art. 41, vedou a aplicação destes institutos de benefício aos agressores das mulheres.
Já há vozes contra a constitucionalidade desta lei. João Paulo de Aguiar Sampaio Souza e Thiago Abud Fonseca[6] dizem que a igualdade de gêneros é um primado constitucional, estampado em vários artigos do texto da constituição. E então apresenta alguns exemplos:
a.a filha é agredida pelo pai. Esse agressor responderá pelo crime do art. 129, parágrafo 9º., impondo-lhe de 03 meses a 03 anos de detenção, sem direito de qualquer instituto despenalizados; se o filho é agredido pelo pai, as penas são as mesmas, mas aqui o agressor desfrutaria das penas substitutivas de direito e da suspensão condicional do processo;
b.filho que ameaça a mãe: não tem direito a nenhum instituto despenalizador; filho que ameaça o pai: tem direito aos institutos
Esse tratamento desigual, ao ver dos autores, é uma ofensa à constituição. Neste sentido:
“Salvo melhor juízo, não é preciso muito esforço para se perceber que a legislação infraconstitucional acabou por tratar de maneira diferenciada a condição de homem e mulher e o status entre filhos que o poder constituinte originário tratou de maneira igual, criando, aí sim, a desigualdade na entidade familiar”
De fato, num primeiro momento nada há a justificar esse tratamento diferenciado. Se a lei andou bem em vários aspectos, queremos crer que no particular da não aplicabilidade dos institutos despenalizadores da Lei 9099/95 há evidente inconstitucionalidade, por tratarem os iguais desigualmente, sem justificativa legítima, criando, destarte, situações jurídicas teratológicas como as apresentadas acima.
6. A LEI MARIA DA PENHA – A REAFIRMAÇÃO DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE ENTRE HOMENS E MULHERES
A igualdade de sexos é um axioma inexorável afirmado pela Declaração Universal dos Direitos dos Homens, determinando-se que todos são iguais perante a lei, não sendo tolerado nenhuma forma de preconceito.
Hoje, está consolidado constitucionalmente que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. O preâmbulo constitucional e o caput do artigo 5º, da Constituição Federal, já prega que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à igualdade.
Tal assertiva é um postulado constitucional tão expressivo, que é novamente invocado no artigo 5º, I, da Carta Maior, ao estabelecer que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”.
Mais que isso, a Carta Magna repete no artigo 226, § 5º, que “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.”
Então, a igualdade de gêneros, contida implicitamente na formulação genérica do caput do artigo 5º e disposta expressamente no inciso I do mesmo artigo, é reafirmada detalhadamente nos direitos e deveres do âmbito familiar[7]
É, porém, insuficiente reconhecer-se a igualdade dos sexos sem instrumentalizá-la de forma tal a tornar esse postulado efetivo. Aliás, conforme Norberto Bobbio, “o problema fundamental em relação aos direitos, hoje, não é tanto o de ‘justificá-lo’, mas o de protegê-lo”.[8]
Há de se buscar, neste sentido, a igualdade material, geradora de oportunidades e situações iguais aos gêneros e não meramente uma igualdade formal, como simples dogma de adorno no ordenamento jurídico.
E, infelizmente, muitas vezes a mulher é colocada em situação de inferioridade no seio familiar, vez por outra submetida inclusive a violência nas suas mais variadas formas. Logo, deve-se tratar as desiguais desigualmente. Sim, pois quando se fala em igualdade, sempre convém rememorar as palavras de Rui Barbosa[9]:
A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da desigualdade. O mais são desvarios de inveja, de orgulho ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real.
Deveras, nas palavras de João Baptista Villela[10], “pode ser paradoxal, mas a verdade é que afirmar a igualdade, pressupõe reconhecer a diferença.” Por isso se diz existirem duas classes de igualdade: a igualdade absoluta e a igualdade relativa.
Conforme Carlos David S. Aarão Reis[11], “são duas igualdade, homônimas, é certo, mas de fato quase opostas entre si por muitos modos.”
E completa[12]:
Os indivíduos são diferentes entre si em capacidades física e intelectual, em inteligência e caráter, em preferências e aptidões, não tendo qualquer declaração de direitos o condão de aplainar estas desigualdades. Portanto, a igualdade absoluta não é possível, pois contraria a natureza das coisas e do ser humano; pretende-la, repetindo uma expressão de Burke, é colocar-se “em guerra civil contra a natureza.
George Orwell[13], mediante uma fábula em que usa bichos para fazer uma alusão à tirania, à cegueira do poder, demonstra que embora na essência os movimentos de igualdade entre os seres possam ser embalados pela melhor das intenções, o certo é que acabam ligeiramente modificados, ou, em alguns casos, totalmente comprometidos.
A essência do pensamento de George Orwell é que “todos são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros”[14].
Não deixa de ser verdade que alguns – senão muitos – dos sistemas que pregam a igualdade entre as pessoas acabam por ser, na verdade, propagandas e propagadores de uma desigualdade entre os indivíduos. Carlos David S. Aarão Reis[15] faz uma interessante consideração quanto ao tema:
Assim, na primeira Constituição do Estado soviético-comunista, a da República Socialista Federativa Soviética Russa, de 10 de julho de 1918, revista a 11 de Maio de 1925, negou expressamente o princípio da igualdade.
Embora proclamasse fundar-se tal república na “igualdade de direitos dos cidadãos, independentemente de sua raça ou de sua nacionalidade”, também afirmava propor-se “garantir a ditadura do proletariado com a finalidade de esmagar a burguesia”. Bastaria este último preceito para contrariar o princípio da igualdade.
Vê-se, assim, que pregar a igualdade absoluta é perigoso, podendo gerar, inclusive, situação de verdadeira desigualdade.
Vingando a “igualdade exterior, mecânica, que mede a todos com a mesma medida: grandes e pequenos, ricos e pobres, crianças e adultos, inteligentes e tolos”, na observação de Ihering[16], não apenas o ordenamento jurídico trataria “o desigual como igual, produzindo na realidade a máxima desigualdade (summa ius, summa injuria), ele estaria destruindo a si mesmo.”
Busca-se, pois, a igualdade relativa, também denominada proporcional, geométrica ou orgânica. Neste tipo de igualdade leva-se em consideração as diferenças humanas, vistas do ponto de vista biológico, social, cultural, político e econômicos.
Esta igualdade relativa é que deve ser aplicada aos homens e mulheres, pois, dentre tantas diferenças entre os sexos, uma se ressalta como evidente: a diferença física. Sendo assim, impõem-se que em alguns casos sejam legítimas as distinções de tratamento entre pessoas de sexos diferentes.
Conforme João Baptista Villela[17], nestas hipóteses, “o Estado, com ou sem bons fundamentos, entende que a diversidade de sexos impõe diversidade de resposta jurídica.”
Celso Antônio Bandeira de Mello[18], escrevendo sobre o elemento discrimen que o legislador pode adotar, a fim de tratar as pessoas desigualmente, propôs:
(…) aquilo que é,em absoluto rigor lógico, necessária e irrefragavelmente igual para todos não pode ser tomado como fator de diferenciação, pena de hostilizar o princípio isonômico. Diversamente, aquilo que é diferenciável, que é, por algum traço ou aspecto desigual, pode ser diferençado, fazendo-se remissão à existência ou à sucessão daquilo que se dessemelhou as situações (…) Cabe, por isso mesmo, quanto a este aspecto, concluir: o critério especificador escolhido pela lei, a fim de circunscrever os atingidos por uma situação jurídica – a dizer: o fator de discriminação – pode ser qualquer elemento radicado neles, todavia necessita inarredavelmente guardar relação de pertinência lógica com a diferenciação que dele resulta.
Destarte, o elemento discriminatório usado pelo legislador, a fim de que, eventualmente, seja dado tratamento diferenciado entre homens e mulheres, será legítimo quando guardar relação lógica “com a diferenciação que dele resulta.”
Eis que plausivelmente legítima essa diferenciação, as medidas apresentadas pela Lei “Maria da Penha”, com exceção da vedação da aplicabilidade das regras da Lei 9.099/95 aos agressores, são todas legítimas e constitucionais.
Informações Sobre o Autor
Jesualdo Eduardo Almeida Junior
Advogado, sócio do escritório Zanoti & Almeida Advogados Associados; Mestre em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos; Pós-Graduado em Direito das Relações Sociais; Pós-Graduado em Direito Contratual; Prof. de Direito Civil e Processual Civil da Associação Educacional Toledo, de Presidente Prudente, da FEMA/IMESA, de Assis, e da FADAP/FAP, de Tupã; Prof. de Processo Civil Constitucional do curso de Pós-Graduação da PUC/PR; Prof da Escola da Magistratura do Trabalho do Paraná; Prof. da Escola Superior da Advocacia de Assis/SP e de Presidente Prudente/SP